Editora: Globo
ISBN: 978-85-2503-339-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 913
“A
história, uma vez aberta ao dinamismo, não contempla atos gratuitos e
inconsequentes – ela devora, segundo uma ideia que seria cara a Hegel, homens e
instituições.”
“O
Estado (no segundo reinado), desta forma elevado a uma posição prevalente,
ganha poder, internamente, contra as instituições e classes particularistas, e,
externamente, se estrutura como nação em confronto com outras nações. Do seu
seio, mediante esse estímulo, floresce o absolutismo, consagrado na razão de
estado. Influxos recíprocos – Estado e comércio – geram o sistema
mercantilista, próprio à expansão do aparelhamento estatal, condutor da
economia e beneficiário da atividade comercial, preocupada, não raro, na ilusão
monetária. Ele permitiu, justificando-a racionalmente, a política de transporte
do tráfico africano, asiático e americano, que supôs, sem a fixação de fontes
produtoras nacionais, que o Estado seria rico se fluísse, no país, muito dinheiro,
em boas e sonantes moedas. A atividade mercantil, desvinculada da agricultura e
da indústria, não permitiu a acumulação de capitais no país: a prata e o ouro,
depois de perturbar e subverter o reino, fugiam para as manufaturas e as
cidades europeias, em louca disparada. “Parece” – confessa um fidalgo – “que
este dinheiro da Índia é excomungado, porque não luz a nenhum de nós.” [...] “É
dinheiro de encantamento” – retruca o soldado, traindo o desdém
medieval pela riqueza, no fundo o pecado da riqueza – “que se converte em
carvões; o mais dele vai por onde veio. Donde o diabo traz a lebre lá lhe leva
a pele; e veio por canais infernais, pelos mesmos se torna a ir. O mais dele é
de sangue de inocentes; e assi como o dinheiro por que foi vendido o Filho de Deus
se não comprou com ele mais do que um pedaço de chão infrutuoso que não servia
mais que para sepultura de mortos e para cama de bichos, assi estoutros nunca
lhe vereis morgados feitos com o seu dinheiro: tudo vai a parar num campo de
mortos, em bichos e sujidades, em que por derradeiro o mais deles vem a parar.”
(Diogo do Couto.) Era o resultado da especulação – a mola, por alguns séculos,
da riqueza, fruto do golpe audaz, do expediente astuto, da aventura temerária,
e não do trabalho continuado, do cálculo e da poupança. O império da mesma
direção – o pensamento importado e tardo, a realidade tumultuária – levou ao
atraso científico e ao enrijecimento do direito, ao serviço, ambas as
fraquezas, do estado-maior de domínio. A utilização técnica do conhecimento
científico, uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foi, em
Portugal e no Brasil, fruta importada. Não brotou a ciência das necessidades
práticas do país, ocupados os seus sábios, no tempo de Descartes, Copérnico e
Galileu, com o silogismo aristotélico desdenhoso da ciência natural. Verney, já
no século XVIII, em nome de uma plêiade de sábios educados no estrangeiro,
clama contra o atraso do ensino nacional, acadêmico, aéreo, falso. Portugal,
cheio de conquistas e glórias, será, no campo do pensamento, o “reino
cadaveroso”, o “reino da estupidez”: dedicado à navegação, em nada contribuiu
para a ciência náutica; voltado para as minas, não se conhece nenhuma
contribuição na lavra e na usinagem dos metais. Toda a vida intelectual, depois
da fosforescência quinhentista, “ficou reduzida a comentários. Comentar os
livros da antiguidade; comentar, subtilizar, comentar. Era um jogo de
subtilezas formais, um jogo verbal de ilusões aéreas. [...] Por toda parte, na
Europa, vemos o triunfo do moderno espírito, do espírito crítico e
experimentalista. Por toda parte? Não digo bem. Menos aqui, na península
ibérica; menos aqui, em Portugal. [...] Temos que confessar que viemos para
trás; temos que declarar que tudo morreu. Nada passou do espírito científico
para o século XVII português; pelo contrário: o século XVII, aqui, é
peripatético e medieval”. A ciência se fazia para as escolas e para os letrados
e não para a nação, para suas necessidades materiais, para sua inexistente
indústria, sua decrépita agricultura ou seu comércio de especulação. Uma camada
de relevo político e social monopolizava a cultura espiritual, pobre de vida e
de agitação. Fora dela, cobertos de insultos, ridicularizados, os reformadores
clamavam no deserto, forçados a emigrar para a distante Europa, envolvida em
outra luz.
“O
inglês fundou na América uma pátria, o português um prolongamento do Estado.”
“A
administração local, a única parcialmente brasileira será apenas autônoma para
pequenas obras, uma ponte ou uma estrada vicinal. A sociedade não se
lusitanizará com esta parada no seu processo de tomada de consciência, nem
apropriará, no seu conteúdo, o papel do governo, como expressão das
necessidades e anseios coletivos. Criará uma dependência morta, passiva,
estrangulada. O Estado não é sentido como o protetor dos interesses da
população, o defensor das atividades dos particulares. Ele será, unicamente,
monstro sem alma, o titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o
recrutador de homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário.
Ninguém com ele colaborará – salvo os buscadores de benefícios escusos e de
cargos públicos, infamados como adesistas a uma potência estrangeira. Os
senhores territoriais, a plebe urbana cultivam, na insubmissão impotente, um
oposicionismo difuso, calado, temeroso da reação draconiana. Cria-se, em toda
parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho conflito
interior, com a vontade animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e
arrependida na hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do
homem colonial: destemperado e afoito na conspiração, tímido diante das armas e,
frente ao juiz, herege que renuncia ao pecado, saudoso da fé. Ao sul e ao
norte, os centros de autoridade são sucursais obedientes de Lisboa: o Estado,
imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece íntegro, reforçado pela
espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper a casca do ovo que
a aprisiona. A colônia prepara, para os séculos seguintes, uma pesada herança,
que as leis, os decretos e os alvarás não lograrão dissolver.”
“Fazenda,
guerra e justiça são as funções dos reis, no século XVI”.
“De
todas as ordens religiosas, franciscanos, capuchinhos, beneditinos, carmelitas,
oratorianos, responsáveis estes pela educação liberal de alguns homens
públicos, nenhuma desempenhou, durante dois séculos (1549 a 1759), o papel dos
jesuítas, junto aos indígenas e aos colonos. Nenhuma ordem, como esta, mais
irredutível aos interesses econômicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos
ditames da administração. Representou, na dissolução de costumes dos invasores
brancos, a moral romana e europeia, enrijecida pelo Concilio de Trento, no
espírito da Contrarreforma. Herdeira, pela inassimilação secular do clero, da
voz dos profetas, defendeu uma causa, só eles coerentes num mundo subvertido
pelo caos: a disciplina da sociedade a padrões religiosos. A Ordem, ao
contrário das demais, vincula-se à mais estrita obediência ao papa, por meio de
solene voto. A família e o Estado são desprezados, em benefício de missão mais
alta e consagrada diretamente ao chefe da Igreja. Nessa submissão havia um
dissídio íntimo e cheio de consequências latentes com o padroado. No trato com
o indígena, sem respeito ao colono e a seus imediatos interesses, em desafio às
autoridades do mundo, tudo levaria o jesuíta a uma organização teocrática.
Obstou-lhe o passo – ao contrário da sociedade espanhola, embora também presa
ao padroado – a rígida integração do Estado português, estruturado com base na
supremacia do poder civil. Os bandeirantes e os colonos do norte defenderam o
poder civil, compreendido o catolicismo dentro do Estado, identificado com a
grei portuguesa. A organização política de Portugal nunca assentou, como a
espanhola, sobre a Igreja, Igreja, contudo, limitada pelo padroado. O respeito
devotado ao padre e ao clero, a obediência aos padrões religiosos, não
impediram que a supremacia civil mantivesse suas prerrogativas de comando,
alicerçadas numa secular luta. O que as ordens religiosas conseguiram, no
Brasil, foi, no máximo, sobretudo pelo esforço dos jesuítas, a conservação da
moldura religiosa da sociedade. Enquanto as outras ordens transigiram com a
flutuante e dissolvente moral da terra, na qual os transmigrados seriam um
bando desaçaimado de garanhões e de escravizadores e a indiada, matéria-prima
do bordel dos sertões, os jesuítas, os “donzelões intransigentes”, se
mantiveram incólumes ao apelo da carne e à cobiça escravagista. ”
“Em
todos os tempos, as culturas, quando se encontram, combatem, com o sacrifício
de uma, num permanente processo de trituramento interior, com a sobra da nostalgia
idealizada da civilização perdida e soterrada, longínqua e morta.”
“A
classe é um fenômeno da economia e do mercado, sem que represente uma
comunidade – embora a ação comunitária seja possível, provável e frequente com
base na situação comum e em interesses homogêneos. Ter ou não ter – obter
lucros, possuir bens, ou desfrutar de ingressos econômicos em virtude de
habilitação profissional – situam a classe, positiva ou negativamente
qualificada. O ter e o não ter, a capacidade de lucro ou salário refere-se ao
mercado, aos valores que se podem fixar em termos econômicos, redutíveis, em
expressão última, ao dinheiro. As classes, nas suas conexões com o domínio, o
comando e a política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a
Revolução Industrial.”
“Um
século depois, o mais profundo analista do Segundo Reinado (Joaquim Nabuco)
dirá que o crédito faz do fazendeiro “o empregado agrícola que o comissário ou
o acionista de banco tem no interior para fazer o seu dinheiro render acima de
12%”. O comerciante – a burguesia comercial – libará o mel do açúcar, com os
proventos da exportação e reexportação, ficando o industrial e o lavrador com
as sobras e os ônus.”
“A
estrutura de classes recebe sua expressão desse mundo econômico. A economia
mercantil, movida da Europa, traça o contorno das praias e dos sertões
americanos. A exportação, infundindo o valor a todas as coisas, determina o
posto do senhor de engenho e do proprietário na pirâmide social. Essa
circunstância, que encobre todas as outras, se adensa graças a outra realidade.
O escravo – que exige crédito –, base de toda a produção, concentra nos seus
traficantes, na rede de seus traficantes, a outra mola da expansão econômica.
Nesse sentido, e não no sentido retórico e original, a palavra de Joaquim
Nabuco expressa uma verdade: o escravo confundiu as classes, impedindo a
estratificação. O opulento senhor de escravos se converterá, senão ele, seu
filho, senão este, seu neto, no pobre orgulhoso: as terras passarão ao fornecedor
de escravos a crédito, ao exportador, ao comissário, que lhe adiantam os meios
para sustentar o “luxo sem cabedais”: “poucos são os netos de agricultores que
se conservam à frente das propriedades que seus pais herdaram; o adágio ‘pai
rico, filho nobre, neto pobre’ expressa a longa experiência popular dos hábitos
da escravidão”.”
“Atrás
do quadro da escravidão não se esconde apenas a tirania, a dureza de costumes e
o aviltamento do homem. “Os senhores poucos” – bradará Vieira – “os escravos
muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores
nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores
tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os
senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania,
os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da
servidão e espetáculos da extrema miséria”. Há, no fundo da cena, o painel que
desvenda a transmigração e a mercancia, a transmigração e a “mercancia
diabólica”. Na empresa convergem os dois pilares da economia portuguesa – o
comércio e a agricultura –, com a sanção, o proveito e os interesses da camada
politicamente dominante. Nos dois e meio ou quatro milhões de escravos que
entraram no Brasil durante a colônia haverá um negócio global em torno de cem
milhões de libras, mais a importância do tráfico interno, o que levará a um
aumento de cinquenta a cem por cento. O volume dos valores empregados será,
desta sorte, equivalente aos do ouro, o segundo maior valor da colônia, abaixo
do açúcar. Vinte por cento das importações empregam-se no escravo, num comercio
sem paralelo pela sua lucratividade. Esta desdenhada circunstância explica
muitos enigmas da história brasileira: a dependência à burguesia portuguesa,
por sua vez enfeudada à europeia, a centralização política decorrente de um
homogêneo núcleo de interesses, a submissão do agricultor ao vendedor e
financiador de escravos, a pouca mobilidade da empresa colonial, arraigada, ate
à morte, aos seus investimentos de escassa lucratividade, agrilhoada às dívidas
sempre renovadas e crescentes. Do centro da “mercancia diabólica” se irradia,
depois de conjugados o Estado e os negociantes, uma ordem social, que entra em
todos os poros da colônia e infunde vento às metropolitanas combinações
econômicas. O açúcar e o ouro explicam muito da vida colonial, mas nada
explicam sem o escravo, considerada mercadoria mais valiosa. Num momento em que
a renda interna se funda, na maior parte, na exportação, é esta manipulada, no
exterior e nas ramificações internas, por outro e mais fundamental elemento
vinculador aos centros europeus.”
“Toda
nossa política, assim monárquica como republicana, mostrou-se geralmente ou
duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter de suas manifestações,
de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre mais um símbolo constitucional
do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes, representantes e líderes
partidários fossem retemperar o ânimo e o desejo de servir.
A
política brasileira tem a perturbá-la, intimamente, secretamente, desde os dias
longínquos da Independência, o sentimento de que o povo é uma espécie de vulcão
adormecido. Todo perigo está em despertá-lo.
Nossa política nunca aprendeu a pensar normalmente no povo, a aceitar a
expressão da vontade popular como base da vida representativa.” (Hermes Lima)
“O
conservador sem cargos faz-se revolucionário; o liberal no poder esquece a
pólvora incendiária.”
“Ainda
se conservam, e é provável que se conservem para sempre, na lembrança de todos
os que assistiram às eleições anteriores a 1842, as cenas de que eram teatro as
nossas igrejas na formação das mesas eleitorais. Cada partido tinha seus
candidatos, cuja aceitação ou antes imposição, era questão de vida ou morte.
Quais, porém, os meios de chegarem as diversas parcialidades a um acordo?
Nenhum. A turbulência, o alarido, a violência, a pancadaria decidiam o conflito.
Findo ele, o partido expelido da conquista da mesa nada mais tinha que fazer
ali, estava irremissivelmente perdido. Era praxe constante: declarava-se coato
e retirava-se da igreja, onde, com as formalidades legais, fazia-se
a eleição conforme queria a mesa.” Não acabava aí a via crucis eleitoral.
As eleições secundárias abriam outro capítulo, nas quais a barganha, mantida
embora a coerência partidária, designava os deputados. Os afagos oficiais, as
nomeações, as promessas indicavam o eleito, não raro remetidas as atas em
branco para que os presidentes da província decidissem preenchê-las ao seu
talante. Mais tarde, o registro das atas nos tabeliães públicos obstou a
fraude, ao tempo que abria outro expediente, este de longa vida, as duplicatas
eleitorais. O regime, dito democrático, do sistema de 1824, era, na realidade,
o domínio da turbulência popular, só não extremada em virtude do freio
disciplinador da propriedade territorial, forte na quadra inicial da nação e
devido ao pouco prestígio da Câmara na primeira legislatura, escaldadas as
opiniões com a dissolução da Constituinte. ”
“O
governo, para o povo, não é o protetor, o defensor, a guarda vigilante de sua
vontade e de seus interesses: mas o explorador, o algoz, o perseguidor. Um
comando político ativo e violento submete uma sociedade passiva e atemorizada,
vendo no poder a insondável máquina de opressão, incapaz de provocar a
confiança. Na última década do século (XIX), uma transação, provisória e de
resultados tardios, aproximando o mando do povo, para, a título de
representá-lo, impor-lhe, pelo compadrio ou pelo favor, pelo bacamarte ou pela
miséria, o caminho da submissão. A tutela colonial sucede-se a tutela imperial,
sob a luz de um mito, o venerando imperador, fonte de bondade e respeito ao
cidadão, mas, na realidade, desvirilizado pelos intermediários e idealizado
pela distância. A anarquia sucede a ordem, ao tumulto do país real a paz
fictícia do país oficial, depois, uma transação tão governamental como a outra.
Sempre, mortos os fumos da Independência, o governo paira sobre as águas,
comandando os elementos. O “cabresto” não desapareceu, mas alargou-se para
muitas mãos. Só uma coisa permaneceu: a dependência do eleitor, mais ávido de
mercês e não mais autônomo.”
“O
governo tudo sabe, administra e provê. Ele faz a opinião, distribui a riqueza e
qualifica os opulentos. O súdito, turvado com a rocha que lhe rouba o sol e as
iniciativas, tudo espera da administração pública, nas suas dificuldades
grandes e pequenas, confiando, nas horas de agonia, no milagre saído das
câmaras do paço ou dos ministérios. Esse perigoso complexo psicológico inibe,
há séculos, o povo, certo de que o Estado não é ele, mas uma entidade maior,
abstrata e soberana. A caricatura: Bentinho, condenado ao seminário e ao jejum
dos olhos de Capitu, sonha que o imperador desligará a promessa da mãe e selará
o noivado. Os contemporâneos, com a observação mais crua, sentem a realidade.
“Todos cruzam os braços” – lamenta o visconde do Uruguai – “e se voltam para
ele [o governo], todos o acusam, quando se manifesta o mais pequeno mal.” “Tudo
se espera do Estado” – lembra Joaquim Nabuco – “que, sendo a única associação
ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital
disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando
as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do
rico.” Por toda parte, em todas as atividades, as ordenanças administrativas,
dissimuladas em leis, decretos, avisos, ordenam a vida do país e das
províncias, confundindo o setor privado ao público. Os regulamentos, com a
feição francesa, ainda quentes da tradução, com minúcia e casuísmo, inundam as
repartições, o comércio, a agricultura. Da mole de documentos, sai uma
organização emperrada, com papéis que circulam de mesa em mesa,
hierarquicamente, para o controle de desconfianças recíprocas. Sete pessoas
querem incorporar uma sociedade? O governo lhes dará autorização. Quer alguém
fabricar agulhas? O governo intervirá com a permissão ou o privilégio. O
fazendeiro quer exportar ou tomar empréstimos? Entre o ato e a proposta se
interporão um atoleiro de licenças. Há necessidade de crédito particular? O
ministério será chamado a opinar. O carro, depois da longínqua partida, volta
aos primeiros passos, enredado na reação centralizadora e na supremacia
burocrático-monárquica, estamental na forma, patrimonialista no conteúdo. Um
aparente paradoxo: o Estado, entidade alheia ao povo, superior e insondável,
friamente tutelador, resistente à nacionalização, gera o sentimento de que ele
tudo pode e o indivíduo quase nada é. O ideal, utopicamente liberal, que afirma
o domínio, a fiscalização e a apropriação da soberania de baixo para cima, base
do regime democrático, esse ideal não perece, não obstante sua impotência.
Entende a camada dominante, negando-o, que a sociedade brasileira não dispõe
dos instrumentos necessários de cultura e autonomia para o trato de seus
negócios e para governar-se a si mesma. O dogma, não longe da verdade, perde-se
num círculo vicioso: o povo não tem capacidade para os negócios porque o
sistema lhe impede neles participar. A contradição está na raiz do despotismo
pedagógico, da ditadura mental dos planos de José Bonifácio, que, reconhecendo
a inaptidão, sobre ela assenta a casa, cultivando uma atmosfera artificial,
base do seu poder.”
“No
todo, a crise de 1864, como sempre tem acontecido entre nós, foi aproveitada
pelos especuladores para obter do governo, sob a ação do pânico, além das
medidas excepcionais em que a opinião estava concorde, favores extraordinários,
em benefício exclusivo deles. É sempre esse o processo; levanta-se um clamor
geral pedindo a intervenção do governo, e este, no uso da ditadura que lhe é
imposta, não se limita à medida reclamada por todos; tornando-se cúmplice dos
que exploram a confusão do momento, dos que jogam afoitamente contando com o
Estado para salvá-los ou desobrigá-los em caso de perda, decreta providências
excessivas que só aproveitam a essa classe, em favor da qual a lei não merecia
ser suspensa, muito menos inovada. ” A entidade da crise oficial, tão oficial
como a especulação, fecha o círculo da vida financeira do Império.”
“Mauá,
o maior empresário e banqueiro do Império, via com clareza a estrutura do seu
tempo. Ele sofria, como todos, o dilaceramento de tendências opostas: reclama a
liberdade para a empresa, mas não dispensa, senão que reclama estímulo oficial,
envolvendo o Estado nos negócios, no esquema global. (...) O empresário quer a
indústria, mas solicita a proteção alfandegária e o crédito público. Duas
etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal; no nível
da empresa, a livre iniciativa.”
“Ao
arvorar no Partido Liberal a ideia da federação, em combate à apropriação republicana,
Joaquim Nabuco denunciará, como impedimento fundamental do progresso, “esta
burocracia que só serve para falsificar, na transmissão para o centro, as
impressões da nossa vasta superfície, essa organização forasteira e espoliadora
que, em vez de ajudar a viver, esgota em nome e com a força do Estado a
atividade de cada uma de suas partes. [...] As províncias hão de compreender
dentro de pouco” – prossegue, em tom vivamente republicano – “que o que
constitui governo colonial não é a falta de representação parlamentar, nem a da
Constituição, nem o nome de colônia, nem a diferença de nacionalidade. O que
constitui o governo colonial é a administração em espírito contrário ao do
desenvolvimento local”. Os recursos deverão ficar onde são produzidos, sem separar
o trabalho de seus frutos. O governo deveria expressar a vontade dos
governados, com a responsabilidade plena da administração, extinguindo-se o
“beduinismo político”, comparados os presidentes de província às "aves de
arribação e de rapina", iguais aos magistrados ingleses na Índia, que
tributam e devastam as localidades em proveito da corte (discurso na Câmara dos
Deputados, de 21 de setembro de 1885). O Estado, concentrado nas garras
centralizadoras, confunde-se com a exploração estrangeira, voraz, impiedosa,
esterilizadora.”
“No
fundo, ainda uma vez, o dogma liberal da soberania do povo. “Há entre nós, um
monarca: o Imperador; mas só há um soberano: o povo. Aquele cede a este, ou
muda de terra. Pode ser Pedro I; mas não esqueça a porta, por onde este saiu”.”
(Rui Barbosa)
“Os
escravos, auxiliados pela campanha abolicionista e estimulados pelas alforrias
humanitárias, fogem do trabalho, formando quilombos, renascem os quilombos de
memória já perdida nas suas tentativas iniciais. Em São Paulo, principalmente,
as fazendas de café da zona de Campinas se despovoam, com a fuga de escravos
para o litoral. Diante da reação dos proprietários, que apelam para a força
pública, Cotegipe, escravocrata intransigente, se dispõe a utilizar o Exército
na repressão. Na Câmara dos Deputados, o líder abolicionista Joaquim Nabuco
concita os militares a se negarem ao papel degradante de “capitães-do-mato na
pega de negros fugidos”. A semente não podia cair em terreno mais fértil – o
Exército, sem compromissos com a propriedade territorial, de onde não saíam os
oficiais, não se dispôs a apoiar, de outro lado, o estamento monárquico, do
qual se desligara e que não admitia abrir-lhe as portas. Não se poderia contar
com a força armada para conter a rebelião das senzalas, com cerca de doze mil
escravos, que abandonam as fazendas, só em São Paulo, no contágio de um
movimento que se precipitara a partir do norte. Deodoro, autorizado pelos seus
pares em assembleia, repele a presença do Exército na obra repressora. O Clube
Militar não se dirige ao gabinete – nesse ano de 1887 chefiado por um
escravocrata – mas ao ajudante-general do exército e à princesa regente. O
Exército declara que a perseguição aos escravos não será decorosa ou digna,
cabendo a tarefa à polícia. “Não nos deem tais ordens, porque não as
cumpriremos” – diz enfaticamente o chefe militar. A princesa a linguagem é mais
macia, docemente áulica, embora inflexível nos propósitos, sempre com o
protesto de lealdade ao trono: “esperam que o governo imperial não consinta que
os oficiais e as praças do Exército sejam desviados de sua nobre missão, que
não deseja o esmagamento do preto pelo branco nem consentiria também que o
preto, embrutecido pelos horrores da escravidão, conseguisse garantir sua
liberdade esmagando o branco”.
“O
Exército havia de manter a ordem. Mas, diante de homens que fogem calmos, sem
ruído, tranquilamente, evitando tanto a escravidão como a luta e dando, ao
atravessar cidades, enormes exemplos de moralidade, cujo esquecimento tem feito
muitas vezes a desonra do Exército mais civilizado, o Exército brasileiro
espera que o governo imperial conceder-lhe-á o que respeitosamente pede em nome
da humanidade e da honra da própria bandeira que defende”. A manifestação
casa-se com outra, cuja importância não foi avaliada no tempo: a candidatura de
Deodoro para uma vaga de senador pelo Rio de Janeiro, nas eleições de 17 de
julho de 1887. O futuro proclamador da República concorre desligado dos
partidos, distante já de suas simpatias ao Partido Conservador. Será uma candidatura
gerada pelos seus camaradas de farda, em nome do abolicionismo, incapaz,
obviamente, de romper a barreira partidária. Os dois fatos, a candidatura de 17
de julho e a manifestação de outubro, denunciam o desligamento do Exército das
teias partidárias da monarquia. Indicarão, mais significativamente, o comando
militar nos assuntos políticos, tolerado, não sem irritação, pelo grupo
dirigente, impotente para punir, reprimir ou restabelecer a disciplina. Somente
os golpes de bastidores suprem a reação aberta, com planos e providências para
anular o desvio do eixo político. Desprotegidos pelo Exército, o fazendeiro e o
comerciante urbano sentem que a abolição está às portas. Os paulistas, aptos a
dispensar o escravo e substituí-lo pelo assalariado, apressam a mudança do
regime de trabalho, confiados em que os pretos permaneceriam nas fazendas, se
livres, sem motivo para a fuga em massa. Antônio Prado, agora abolicionista, em
nome dos interesses agrícolas de São Paulo, aceita a alforria imediata,
abandonados os projetos da transição suave, em dois ou cinco anos. Não será o
13 de maio, desta forma, a generosa dádiva da regente, mas o resultado do
dissídio na cúpula, com a defecção da força armada. (...) A abolição fazia-se
de cima para baixo, não pelo ofício dos senadores, conselheiros e viscondes,
mas pela espada.”
“Eu
quisera” – escreve o cético comparsa – “dar a esta data a denominação seguinte:
15 de novembro do primeiro ano da República; mas não posso, infelizmente,
fazê-lo”.
“O
que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era”.
“Como
trabalho de saneamento, a obra é edificante”.
“Por
ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles,
deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”.
“O
povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo (na proclamação da
república) uma parada. Mas o que fazer?” (Aristides Lobo).”
“A
insatisfação, já provada nas ruas com a despedida debaixo de vaia de Campos
Sales, irrompe em 1904, no Rio de Janeiro, a pretexto da vacina obrigatória. “A
revolta de novembro de 1904” – observa José Maria dos Santos – “foi um
movimento de natureza essencialmente econômica, com as suas verdadeiras origens
na absoluta indiferença dos meios políticos e governamentais ante o sofrimento
geral da população. A vacinação obrigatória, por si só, não a explicaria. O
pronunciamento militar Sodré-Travassos foi apenas um enxerto apressado e de
última hora. A relativa indulgência reservada posteriormente aos seus diretos
responsáveis, a contrastar com a dureza do tratamento usado para com os
elementos populares, mostra bem que neste ponto o governo não tinha dúvidas.
Foi mesmo a partir daquele momento que se tornaram correntes na nossa polícia
os hábitos de grosseira e infinita brutalidade que especialmente a
caracterizam, nas suas relações com a gente pobre”.”
“O
cético não é só pessimista, senão sobretudo realista.”
“‘Entre
as instituições militares e o militarismo vai,’ – dirá Rui Barbosa, em 1909,
com a correção quase sociológica dos termos – ‘em substância, o mesmo abismo de
uma contradição radical. O militarismo, governo da nação pela espada, arruína
as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As
instituições militares organizam juridicamente a força. O militarismo a
desorganiza. O militarismo está para o Exército, como o fanatismo para a
religião, como o charlatanismo para a ciência, como o industrialismo para a
indústria, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a
realeza, como o demagogismo para a democracia, como o absolutismo para a ordem,
como o egoísmo para o eu’.”
“Hermes
da Fonseca, diante da ameaça de perder o apoio civil, com a maioria no
Congresso, incapaz de, com os elementos militares, resistir às unidades
federadas em armas, cede para não perder tudo. Esta será a última manobra do
senador e chefe: ‘Agarrando nas suas mãos potentes uma revolução militar,
quebrou-a, fingindo que brincava com ela e a ela servia, entregando-a ao país
aniquilada, destruída, sem sentir o que havia sido, submetida à lei e à
Constituição. Sustentara-se assim mais uma vez por seu intermédio e aí, então,
através do seu completo sacrifício, a República civil de que ele é, depois de
Prudente, o verdadeiro consolidador’ (Gilberto Amado).”
“E assim nos aparece
este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema de reciprocidade:
de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de
eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política
dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força
policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da
desgraça.” (Victor Nunes Leal)
“(No final do século XIX e início do século XX) As poucas oposições municipais, como a formada em Araras, contra o domínio do senador Lacerda Franco, eram combatidas ou pela violência, no nascedouro, ou pela fraude, nas farsas eleitorais. (...) ‘Houve um caso típico’ – conta um “borgista”, carregando sobre a fraude do outro lado – ‘na seção de Cachoeira, em que tomei assento como fiscal do meu Partido. A certa hora apresentou-se um cidadão, e ia depositar a cédula pró Assis Brasil, na urna, quando eu, sabendo sem dúvida que ele não era a pessoa cujo nome figurava no título, indaguei: ‘Como se chama?’ O homem titubeou. Terminou virando-se para trás e perguntando em voz alta aos que o tinham levado: ‘Como é mesmo o meu nome?’...
“As
reações dos vencidos, por três vezes, sacodem a nação: em 1910, com menos
intensidade, em 1922, abalando as instituições, em 1930, destruindo a ordem.
Num crescendo, cada vez mais capaz de reagir, levanta-se o protesto, em nome da
legitimidade democrática, talvez, na verdade, sem a maioria, atada está a
interesses e tradições antigas. Sob a teia das eleições, mantidas por amor de
preconceitos construídos sobre o liberalismo adulterado, agitavam-se grupos
sociais autônomos, não atendidos nas respostas do sistema. As elites, presas às
suas raízes de classe, não eram flexíveis, dúcteis para se sobrepor aos
dissídios, ordenando e dirigindo os conflitos. Esta missão só o estamento
preencherá, fundido em outros moldes, desde que, nos fins do século XIX, ele é
escorraçado, perseguido nos seus resíduos ardentes, vivos sob a cinza. A plebe
rural, abandonada e desajustada no quadro institucional, refugia-se no
messianismo e no cangaceirismo, em protesto difuso e sem alvo. Nas cidades, as
duas classes médias – a do pequeno comerciante e do pequeno industrial, bem
como a dos empregados de colarinho branco – não se conformam ao afastamento da
política, obra apenas de chefes. Contra esse fermento anarquizante, a República
pune, vinga e reprime, com os instrumentos de suas oligarquias e de seus
coronéis.”
“Os
amigos da mocidade de Getúlio Vargas, os aliados políticos, os adversários
descobrem, para surpresa de suas lembranças íntimas, que a nova encarnação do
príncipe maquiavélico, marcado de domjuanismo sedutor, caminha sem direção e
sem bússola, cavalgando todas as oportunidades. Flores da Cunha percebe,
espantado, que o chefe revolucionário (Getúlio) não era apenas dúplice, mas
multíplice. João Neves vê o timoneiro que zomba de compromissos, “sem plano
preconcebido, sem rumos previamente traçados, sem persistência nas diretrizes
que adota, marchando e contramarchando, entre vacilações habituais”.
“Uma vela em cada altar, até que os acontecimentos se encarregassem de situar o
perfil da situação.” “Hoje tudo, amanhã menos, no dia seguinte quase
nada. Sempre a velha tática das concessões e recuos, a farmacopeia dos
emolientes, aquelas murmurações monossilábicas, cedendo aqui para recuperar
alhures. Política reptiliana, buscando tornar estável a instabilidade do equilíbrio.
Especialmente, dilatando, adiando, dividindo, prometendo, no compromisso dos
interesses e rivalidades.” (João Neves da Fontoura). Moysés Velhinho, um
escritor, que o frequentou, diria, reproduzindo impressões antigas, que
“Getúlio Vargas impusera ao país uma ditadura em nome de coisa nenhuma. O que
se via e sentia era simplesmente o exercício vegetativo do poder”. Para o povo,
o chefe do governo aparece como o não político que, em ágil golpe de capoeira,
estatela no chão seus oponentes ou companheiros de jornadas. Na imagem ingênua
das ruas, o quadro, antes de ser grotesco, satisfaz aspirações ocultas e vinga
agravos anônimos: o homem de casaca, chapéu alto, solene, recebe um golpe
certeiro, inesperadamente, chaplinianamente entre as gargalhadas do auditório.
Na outra face, ou dentro dela, emerge o mito, personificado no protetor das
classes desamparadas. No jogo inconsequente das manobras de cúpula, o “homem
providencial”, formado nas entrelinhas da ideologia colorida de utopia do
tenentismo, amalgamadas ao povo, o presidente encarna o condutor das
transformações, em rumos novos. Muitos de seus seguidores lamentam, é verdade,
a cautela dos seus passos, o temor de abrir as velas aos ventos, o que seria
explicado por suas raízes oficiais. Ele será, na hora do trânsito, o agente da
transformação de um sistema de poder tradicional, calcado no coronelismo e nas
oligarquias, para o delírio manso da chefia carismática. A estrutura racional,
de fundo liberal, tais as decepções e a incapacidade de operar nos fatos,
perde-se, rapidamente, nas sombras de sonhos teóricos, obra de copiadores dos
modelos norte-americanos. A urbanização tumultuaria, o desligamento dos
vínculos rurais dos trabalhadores emigrados da lavoura, sugere que, de golpe, a
sociedade de massas tumultua a ordem social. Os detentores do poder, oriundos
das categorias socialmente superiores e das situações políticas dominantes,
correm para o mito em gestação, rédea flexível para controlar o caos iminente.
Dessa matriz gera-se o populismo, identificado com o líder, um líder hesitante
e arguto, não entregue a si mesmo, mas enquadrado estamentalmente. Antecipando
a hora decisiva, o teórico de 1937 sonda o futuro, armado com a lâmina
fascista, temperada em leituras nacional-socialistas. Para a transição, a
doutrina do mito soreliano, instrumento pragmático, salva os dedos sem
sacrificar os anéis. No máximo, dar-se-á a sombra das coisas, guardando-as ao
preço da violência policial. A contradição – repressão policial e concessões
sociais – é de substância do esquema em preparo. Combina-se o irracionalismo
romântico das massas com o ceticismo dos líderes, flutuando entre a
mistificação e a verdade, materiais que forjam o César nativo. “Não tem sentido
indagar,” – diz, catedraticamente, Francisco Campos – “a propósito de um mito,
de seu valor de verdade. O seu valor é de ação. O seu valor prático, porém,
depende, de certa maneira, da crença no seu valor teórico, pois um mito que se
sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em
que o mito tem um valor de verdade, é que ele possui um valor de ação, ou um
valor pragmático”.”
“Getúlio
Vargas evitaria o comunismo, conciliando o operariado, e se afastaria do
fascismo, oficializando os grupos de pressão capitalistas. O centro de
equilíbrio, igualmente afastado dos extremismos, não se situa na democracia,
nem no liberalismo. Não seria ele homem de, convidado por tantas oportunidades,
afastar o poder, em nome de escrúpulos constitucionais, seja dos vigentes ou
dos por ele próprio outorgados. “Somente os países economicamente fortes”
– confidenciará mais tarde – “são realmente livres. E é essa a
liberdade que eu desejaria dar ao meu país. A Constituição de 1937 [...] é
apenas uma tentativa, uma experiência transitória, para atravessarmos a
tempestade que se aproxima com o mínimo de sacrifícios possível. Digamos que é
um meio para atingir um fim, e não um fim em si próprio”. Não
haveria, para legitimá-la, nem plebiscito, nem o chefe do governo se
comunicaria com a nação por meio de partidos – ou do partido único –: entre o
Povo e o ditador só a burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num
vínculo ardente com as massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil
para evitar o predomínio de outros grupos.
(...) O
perfil autoritário do sistema, que dispensa a participação popular, não logra
dominar a sociedade, situando-se mais como árbitro de dissídios do que diretor
de opinião. Por isso, não conseguiu oficializar nenhuma ideologia,
disfarçando-se o poder sob a ditadura pessoal. O curso do sistema levaria, de
acordo com suas inspirações iniciais, sugeridas pelo temor ao comunismo, ao
tradicionalismo, não conservador, mas reformista, ao modelo de Salazar, de onde
se buscou o nome da ordem nova. Mas, do caráter de conciliação pendular de
contrários do regime, de ondulação dialética do comando, se condensaria a
corrente capaz de, ao ativá-lo, provocar-lhe o abalo que o abateria.”
“O
populismo, fenômeno político não especificamente brasileiro, funda-se no
momento em que as populações rurais se deslocam para as cidades, educadas nos
quadros autoritários do campo. O coronel cede o lugar aos agentes
semi-oficiais, os pelegos, com o chefe do governo colocado no
papel de protetor e pai, sempre autoritariamente, pai que distribui favores
simbólicos e castigos reais. O número de operários, no Brasil, entre 1940 e 50
cresceu em sessenta por cento, enquanto a população aumentou em vinte e seis
por cento. O preço desta transformação, na qual grupos errantes se integram numa
sociedade diversa, quase traumaticamente, se processa no ambiente de tensões e
crises. Daí o conteúdo do getulismo ou do “queremismo” dos
meados da década de 40 – que se enreda no dilema de suas origens e evolução.
Criado para substituir a participação política, controlá-la e canalizá-la,
anulando-lhe a densidade reivindicatória, não conseguiu estruturar um programa
de respostas, primeiro aos pedidos de ajuda e socorro, depois às exigências.”
“No
clima de desabamento, o chefe do governo revolucionário (Getúlio) eleva a
tônica ao extremo, acentuando que “problema máximo, pode dizer-se, básico
da nossa economia, é o siderúrgico”, que se resolveria não mais pelo esquema
capitalista internacional. “Completado, finalmente,” – afirma já em
23 de fevereiro de 1931 – “o meu pensamento, no tocante à solução do magno
problema, julgo oportuno insistir ainda em um ponto: a necessidade de ser
nacionalizada a exploração das riquezas naturais do país, sobretudo a do ferro.
Não sou exclusivista, nem cometeria o erro de aconselhar o repúdio do capital
estrangeiro a empregar-se no desenvolvimento da indústria brasileira, sob a
forma de empréstimos, no arrendamento de serviços, concessões provisórias ou em
outras múltiplas aplicações equivalentes.
“Mas
quando se trata da indústria do ferro, com o qual havemos de forjar toda a
aparelhagem dos nossos transportes e da nossa defesa; do aproveitamento das
quedas d’água, transformadas na energia, que nos ilumina e alimenta as
indústrias de paz e de guerra; das redes ferroviárias de comunicação interna,
por onde se escoa a produção e se movimentam, em casos extremos, os nossos
exércitos; quando se trata – repito – da exploração de serviços de tal
natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa
nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, cumprindo-nos,
previdentemente, manter sobre eles o direito de propriedade e de
domínio.” Volvidos três meses da definição de princípios, o chefe do
governo provisório torna mais claras suas palavras: “Dispomos de grandes
possibilidades de expansão econômica. Somos país rico em matérias-primas,
inexploradas e em produtos exóticos, e, simultaneamente, vasto mercado
consumidor. Nestas condições, a política econômica brasileira deve, em parte,
orientar-se no sentido de defender a posse e exploração das nossas fontes
permanentes de energia e riqueza, como sejam as quedas d’água e as jazidas
minerais. Julgo ainda aconselhável a nacionalização de certas indústrias e a
socialização progressiva de outras, resultados possíveis de serem obtidos,
mediante rigoroso controle dos serviços de utilidade pública e lenta penetração
na gerência das empresas privadas, cujo desenvolvimento esteia na dependência
de favores oficiais” (4 de maio de 1931). Essa orientação, depois de
medidas provisórias de 1931, se cristaliza no Código de Águas e no Código de
Minas de 1934. O movimento se prolonga nas iniciativas, mais tarde consagradas,
da Cia. Siderúrgica Nacional, cujo esboço será a Comissão do Plano Siderúrgico
Nacional (1940), a Petrobrás (1953) e a Eletrobrás, de criação recente,
inspirada nos mesmos princípios. As águas e as minas ficavam, desta sorte,
dependentes do governo, de sua orientação e estímulo, num complexo nacionalista
que se extrema da socialização, embora a esta recorra numa conjuntura de
escassez de capitais estrangeiros.”
“Será
o tipo de Estado gerado pelas circunstâncias, mas moldado historicamente num
leito permanente, embora transitoriamente obscurecido, que ensejará as reformas
de maior profundidade, algumas alheias às diretas pressões da sociedade. Das
peças lançadas, entre extravios e indecisões, formar-se-á o esquema autoritário
de 1937. Obviamente, o modelo não será obra do capricho dos homens, da
inspiração arbitrária dos governantes ou da fantasia dos utopistas. O poder
estatal já se sentia em condições de comandar a economia – num regresso
patrimonialista, insista-se –, com a formação de uma comunidade burocrática,
agora mais marcadamente burocrática que aristocrática, mas de caráter
estamental, superior e árbitro das classes. O primeiro passo dessa jornada será
a disciplina social e jurídica do proletariado, com a fixação de seus direitos
e seu capitaneamento governamental. As reivindicações operárias, antes de 1930,
não conseguiram, apesar de leis votadas e não aplicadas, conquistar posição de
barganha na sociedade, nem reconhecimento oficial. Perdidas entre o anarquismo
e o comunismo, sofriam a hostilidade dos grupos dominantes, que as encaravam
como ameaças à ordem pública. O Conselho Nacional do Trabalho, instituído em
1923, não chegou, na verdade, a funcionar. Na Câmara dos Deputados, em 1920, um
congressista, ao advogar melhores salários aos empregados, é repelido
como “agente do bolchevismo”. Um deputado traduz o pensamento dominante: “O
trabalho, em sua origem, nos seus inícios foi escravo e só pela evolução
natural da sociedade humana tornou-se livre. Que mais pode aspirar? [...] Com a
capa de reivindicações o que se quer de fato é o gozo, o luxo [...]” (Brígido
Tinoco). O problema, posto que colocado ao debate nacional por Rui Barbosa e
Nilo Peçanha, esbarrara, na sua solução, na concepção liberal do Estado,
correspondente aos interesses da República Velha. Washington Luís, candidato
presidencial, declara que “a questão operária é uma questão que interessa
mais à ordem pública que à ordem social”, expressões caricaturadas com a
réplica de que “a questão social é uma questão de polícia”. A Aliança
Liberal adotou outro rumo, no propósito inicial de aliciar às suas fileiras os
descontentamentos sociais. No poder, cria o Ministério do Trabalho – Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio –, acenando, na pluralidade de tarefas, com a
política conciliatória de classes, em repúdio implícito à linha contestatória
dos frágeis movimentos operários anteriores. O chefe do governo provisório,
aprovando a orientação do primeiro ocupante da nova pasta – a “conjugação
dos interesses patronais e operários” –, mostra o sentido da reforma, que
oficializa os sindicatos: “As leis, há pouco decretadas, reconhecendo
essas organizações, tiveram em vista, principalmente, seu aspecto jurídico,
para que, em vez de atuarem como força negativa, hostis ao poder público, se
tornassem, na vida social, elemento proveitoso de cooperação no mecanismo
dirigente do Estado. Explica-se, assim, a conveniência de fazê-las compartilhar
da organização política, com personalidade própria, semelhante à dos partidos,
que se representam de acordo com o coeficiente das suas forças
eleitorais” (4 de maio de 1931). A sindicalização abrangia operários e
patrões, com organismos próprios, para solverem seus dissídios sob a supervisão
ministerial, ampliado largamente o campo dos direitos dos trabalhadores – lei
dos dois terços de trabalhadores brasileiros, oito horas de trabalho, férias,
etc. A conciliação legal não valida, entretanto, os reclamos operários,
reprimidos severamente, como antes, se apelassem para a greve, assimilada à
violência. Em São Paulo, o interventor João Alberto – nem ele, com seus
antecedentes revolucionários, tolera o desafio à ordem. Não obstante, o governo
federal não admite a suspensão, mesmo provisória, das leis trabalhistas. Sob a
cor do amparo e proteção ao capital e ao trabalho, num esquema ainda liberal na
pena do autor das medidas reformistas – liberal com tintas herdadas de Augusto
Comte e emprestadas do uruguaio Battle y Ordóñez –, o alvo seria o controle
estatal, para a eventual direção, do industrial e do operário. Protestam,
contra o ambicioso plano, patrões e operários – somadas as críticas no“signo
criminoso da incaracterística e da imperfeição. A sua [de Lindolfo Collor] obra
era eclética, cinzenta, privada de seiva vital [...] S. Ex.ª, bom moço,
vestindo boas roupas, desejava ardentemente a simpatia dos homens rudes do
trabalho sem, contudo, ousar desgostar os magnatas da indústria e do comércio”
(Virgínio Santa Rosa). O norte estava traçado, favorecido pelos
acontecimentos: a oficialização dos sindicatos, transformado o líder operário
em agente designado, o pelego, substituto urbano do coronel, e
o líder industrial em cliente blandicioso e humilde do Tesouro e suas agências.
A Constituição de 1934 reage, todavia, à ameaça de domesticação, com o
sindicato livre, prometido pela lei. A pluralidade sindical, praticamente
banida desde 1931 (Decreto 19770), volta a imperar, fruto extemporâneo do
liberalismo, apesar dos temperos sub-reptícios opostos ao texto legal, que a
subtraem à proliferação (José Alberto Rodrigues). Depois de outorgada a
Carta de 1937, tudo volta à normalidade, com o desvanecimento do risco –
agora grave risco – do liberalismo econômico, que conduz ao comunismo, por meio
da anarquia, segundo o pontífice intelectual da ordem reformulada (Francisco
Campos). O que não se poderia prever, no caos em dissipação, seria que a
crisálida tentasse voar com asas libertas, para a aventura populista.”
“Nem
a calculada firmeza de José Bonifácio, nem a astúcia flexível de dom Pedro II
ou o maquiavelismo de Vargas explicam a realidade, a todos superior, condutora
e não passivamente moldada.”
“Característico
principal, o de maior relevância econômica e cultural, será o do predomínio,
junto ao foco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de
aristocrático (em tempos idos), se burocratiza progressivamente, em mudança de
acomodação e não estrutural.”
“A
burocracia, como burocracia, é um aparelhamento neutro, em qualquer tipo de
Estado, ou sob qualquer forma de poder.”
“O
estamento, por sobranceiro às classes, divorciado de uma sociedade cada vez
mais por estas composta, desenvolve movimento pendular, que engana o
observador, não raras vezes, supondo que ele se volta contra o fazendeiro, em
favor da classe média, contra ou a favor do proletariado. Ilusões de óptica,
sugeridas pela projeção de realidades e ideologias modernas num mundo antigo,
historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos. As formações sociais
são, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio móveis,
valorizados aqueles que mais a sustentam, sobretudo capazes de fornecer-lhe os
recursos financeiros para a expansão – daí que, entre as classes, se alie as de
caráter especulativo, lucrativo e não proprietário. O predomínio dos interesses
estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida
na evolução anglo-americana –, condiciona o funcionamento das constituições, em
regra escritos semânticos ou nominais sem correspondência com o mundo que
regem.”
“A
minoria governa sempre, em todos os tempos, em todos os sistemas políticos.”
“No
governo estamental, tal como se estrutura neste ensaio, há necessariamente,
como sistema político, a autocracia de caráter autoritário e não a autocracia
de forma totalitária. “O conceito 'autoritário” – escreve Loewenstein
– “caracteriza uma organização política na qual um único detentor do poder
– uma só pessoa ou ‘ditador’, uma assembleia, um comitê, uma junta ou um
partido – monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus
destinatários a participação real na formação da vontade estatal. O único
detentor impõe à comunidade sua decisão política fundamental, isto é, dita-a
aos destinatários do poder. O termo ‘autoritário’refere-se mais à
estrutura governamental do que à ordem social. Em geral, o regime autoritário
se satisfaz com o controle político do Estado sem pretender dominar a
totalidade da vida socioeconômica da comunidade, ou determinar sua atitude
espiritual de acordo com sua imagem.” (Karl Loewenstein). Este
sistema é compatível, e ordinariamente se compatibiliza, com órgãos estatais
separados, assembleias ou tribunais, numa ordenação formalmente jurídica. De
outro lado, o regime autoritário convive com a vestimenta constitucional, sem
que a lei maior tenha capacidade normativa, adulterando-se no aparente
constitucionalismo – o constitucionalismo nominal, no qual a Carta Magna tem
validade jurídica mas não se adapta ao processo político, ou o
constitucionalismo semântico, no qual o ordenamento jurídico apenas reconhece a
situação de poder dos detentores autoritários (Karl Loewenstein). A
autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter
ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais
e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder
político. Em última análise, a soberania popular não existe, senão como farsa,
escamoteação ou engodo. Já na estrutura normativamente constitucional,
democrática na essência, os detentores do poder participam na formação das
decisões estatais, mediante mecanismos de controle que atuam na participação
popular. Não importa que o encadeamento que vai da cúpula à base esteja
enrijecido por minorias diretoras, contanto que o circuito percorra a escala vertical.
Este último sistema – normativamente constitucional e democrático – se ajusta
ao quadro das elites, mais ou menos sujeitas ao controle, necessariamente
preocupadas com as agências de comando, sejam os círculos eleitorais, as
oligarquias estaduais entrosadas às municipais, como na República Velha, ou os
partidos. A soberania popular não se reduz à emanação da vontade de baixo para
cima, cabendo às minorias as decisões e à maioria o controle, de acordo com a
fórmula de Sieyès: “a autoridade vem de cima, a confiança vem de baixo”. A
astúcia, a habilidade, a sagaz manipulação são qualidades psicológicas
ajustadas ao comando elitário, enquanto nos estamentos prevalece a decisão de
utilizar a violência, a direção voltada à eficiência, o cálculo nas intervenções
sobre o mecanismo jurídico. ”
“O
estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta ante a mudança
interna e no ajustamento à ordem internacional. Gravitando em órbita própria
não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo de todas as classes. Em
lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações
necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica e autoritariamente as
reservas para seus quadros, cooptando-os, com a marca de seu cunho
tradicional.”
“A
nação e o Estado, nessa dissonância de ecos profundos, cindem-se em realidades
diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se desconhecem. Duas categorias
justapostas convivem, uma cultivada e letrada, outra, primária, entregue aos
seus deuses primitivos, entre os quais, vez ou outra, se encarna o bom
príncipe. Onde a mobilização de ideais manipulados não consegue manter o
domínio, a repressão toma o seu lugar, alternando o incentivo à compressão.”
“A
pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez
o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na
transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de
brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera,
tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que
não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um
delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O
Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário,
resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos
membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos
contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização
das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais
preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com
os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensados de
justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição,
mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não
formulou.
A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Sousa, reiterada na travessia de dom João VI, ainda o regente de dona Maria I, a louca, dementada pelos espectros da Revolução Francesa. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem rei, não conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, heróis oficiais de uma grande empresa, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama – herói burocrata. A máquina estatal resistiu a todas as setas, a todas as investidas da voluptuosidade das índias, ao contato de um desafio novo – manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa, aristocraticamente superior. Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity (Arnold Toynbee), segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.”
A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Sousa, reiterada na travessia de dom João VI, ainda o regente de dona Maria I, a louca, dementada pelos espectros da Revolução Francesa. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem rei, não conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, heróis oficiais de uma grande empresa, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama – herói burocrata. A máquina estatal resistiu a todas as setas, a todas as investidas da voluptuosidade das índias, ao contato de um desafio novo – manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa, aristocraticamente superior. Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity (Arnold Toynbee), segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.”