Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-336-2146-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Dos
delitos e das penas foi publicado pela primeira vez em 1764 e logo
tornou-se o símbolo de uma batalha ideológica. Nele podemos reconhecer sem
hesitação a ala mais avançada da inteligência europeia. O livro assume
formalmente como objeto de análise a situação da legislação criminal, mas, na
realidade, logo fica evidente a intenção de Beccaria de estender a crítica a
todos os aspectos de uma sociedade assentada sobre o erro e o preconceito. A
obra se inscreve plenamente no projeto elaborado pelos iluministas. Mesmo a
condenação do uso da tortura e do bárbaro rito da pena de morte – que estão
entre as mais famosas passagens do livro – não nasceu apenas da instância
humanitária, mas sobretudo de uma rigorosa reflexão sobre a vida social, sobre
os modos sempre variados pelos quais os atos do poder estatal penetram sempre
no tecido da psicologia coletiva.
Muitas das advertências sobre os devastadores resultados
de uma má administração da justiça têm ainda hoje o mesmo vigor graças à
clareza e originalidade do texto que fazem desta obra um modelo de polêmica na
área do direito civil.
“Ao Estado compete, de fato, a tarefa de
remover todos aqueles obstáculos que se interpõem à iniciativa individual que
visa ao bem coletivo antes de intervir para dirimir os conflitos
inevitavelmente determinados pela dinâmica social.”
“‘Beccaria sustenta, certamente, essa tese;
porém, a eficácia persuasiva de seu escrito está no fato de que dela resulte a
seguinte conclusão: que, qualquer que seja a finalidade que se pretende propor
às leis penais, quer de castigo, quer de correção, de repressão ou de
prevenção, de justiça ou de utilidade e tutela social, é preciso reformar o seu
sistema, abandonar os caminhos da ferocidade cruel que ataca cega e
injustamente, e seguir as vias da medida proporcionada, da moderação que não
necessita de contínuas exceções de perdões e condenações, da justiça livre de
toda ira e que repudia qualquer arbitrariedade’*. A ferocidade, a crueldade, o
arbítrio são manifestações do instinto de prepotência, daquele instinto
conflituante que o pacto social quer conter ou mesmo sufocar com a finalidade
de garantir uma maior participação social desvinculada dos critérios de seleção
de ordem elementar.”
*Rodolfo Mondolfo – Cesare Beccaria y sua obra,
Depalma, Buenos Aires, 1956, pp. 30-31.
(parágrafos supracitados oriundos do prefácio de Riccardo
Campa)
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“As leis são as condições sob as quais homens
independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo
estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de sua
conservação. Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar
o restante com segurança e tranquilidade. A soma dessas porções de liberdade
sacrificada ao bem comum forma a soberania de uma nação e o soberano é o
legítimo depositário e o administrador. Mas não bastava constituir esse
depósito, havia que defendê-lo das usurpações privadas de cada homem em particular,
o qual sempre tenta não apenas retirar do depósito a porção que lhe cabe, mas
também apoderar-se daquela dos outros. Faziam-se necessários motivos sensíveis
suficientes para dissuadir o espírito despótico de cada homem de novamente
mergulhar as leis da sociedade no antigo caos. Esses motivos sensíveis são as
penas estabelecidas contra os infratores das leis.”
“Toda pena que não derive da necessidade
absoluta, diz o grande Montesquieu, é tirânica; proposição essa que pode ser
assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive
da necessidade absoluta é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito
do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito do
bem comum das usurpações particulares; e tanto mais justas são as penas quanto
mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano
garante aos súditos.”
“Quando um código de leis fixas, que devem
ser observadas à risca, não deixa ao juiz outra incumbência senão a de examinar
os atos dos cidadãos e de julgá-los conformes ou não à lei escrita; quando a
norma do justo e do injusto, que deve conduzir os atos tanto do cidadão
ignorante como do filósofo, não é uma questão de controvérsia, mas de fato,
então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos, tanto mais
cruéis quanto menor a distância entre quem sofre e quem faz sofrer, mais fatais
do que as tiranias de um só, porque somente o despotismo de um pode corrigir o
despotismo de muitos e a crueldade de um déspota é proporcional não à força,
mas aos obstáculos. Dessa forma, os cidadãos adquirem aquela segurança de si,
que é justa por ser o objetivo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil
por habilitá-los a calcular exatamente os inconvenientes de um delito. (...)
Esses princípios desagradarão a todos os que se deram ao direito de transmitir
aos inferiores os golpes de tirania que recebem dos superiores. Eu deveria tudo
temer se o espírito de tirania fosse compatível com o espírito de leitura.”
“Quem conhece a história dos últimos dois ou
três séculos e a nossa poderá ver como no seio do luxo e da indolência nasceram
as mais doces virtudes, a humanidade, a benevolência e a tolerância para com os
erros humanos. Verás quais foram os erros das que erroneamente chamamos boa-fé
e antiga simplicidade: a humanidade gemendo sob a implacável superstição, a
avareza, a ambição de alguns tingindo de sangue humano os cofres de ouro e os
tronos dos reis, as tradições secretas e os massacres públicos, os nobres
tiranizando a plebe, os ministros da verdade evangélica sujando de sangue as
mãos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude. Estas não são obras deste
século iluminado a que alguns chamam corrupto.”
“Aquele que ler sob uma ótica filosófica os
códigos das nações e os seus anais, verá quase sempre as palavras vício
e virtude, bom cidadão ou réu mudar com
as revoluções dos séculos, não em razão das mutações ocorridas nas
circunstâncias dos países, e, por isso, sempre conformes ao interesse comum,
mas em razão das paixões e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos
legisladores. Verá frequentemente que as paixões de um século são a base moral
dos séculos futuros; que as paixões fortes, filhas do fanatismo e do
entusiasmo, enfraquecidas e corroídas, diria eu, pelo tempo, que reduz ao
equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais, tornam-se pouco a pouco
prudência do século e um instrumento útil nas mãos dos fortes e dos sagazes.
Desse modo, nasceram as obscuras noções de honra e de virtude, e tais são elas
porque mudam com as revoluções do tempo, que faz sobreviver os nomes às coisas,
mudam com os rios e com as montanhas, que marcam frequentemente os limites não
só da geografia física, mas também da geografia moral.”
“Finalmente, alguns cogitaram que a gravidade
do pecado participasse da medida dos delitos. A falácia dessa opinião saltará
aos olhos de um examinador imparcial das verdadeiras relações entre os homens e
entre estes e Deus. As primeiras são relações de igualdade. A necessidade, e
ela só, fez nascer do choque das paixões e da oposição dos interesses a ideia
da utilidade comum, que é a base da justiça humana; as últimas são
relações de dependência de um Ser perfeito e criador, que reservou a si só o
direito de legislar e julgar ao mesmo tempo, pois só Ele pode fazê-lo sem
inconveniente. Se estabeleceu penas eternas para quem desobedecer à Sua
onipotência, qual será o inseto que ousará suprir a justiça divina, querendo
vingar o Ser que basta a si mesmo e que não pode receber dos objetos nenhuma
impressão de prazer ou de dor, e que, único entre todos os seres, age sem
reação? A gravidade do pecado depende da imperscrutável malícia do coração, a
qual não pode ser conhecida por seres finitos, sem uma revelação. Como, pois,
poderia essa malícia constituir-se em norma para a punição dos delitos? Nesse,
caso, poderiam os homens punir quando Deus perdoa, e perdoar quando Deus pune.
Se os homens podem estar em contradição com o Onipotente ao ofendê-lo, podem
também contradizê-lo ao punir.”
“Os atentados contra a segurança e a
liberdade dos cidadãos constituem, pois, um dos maiores delitos, e nessa classe
se incluem não apenas os assassínios e os furtos praticados por plebeus, mas
também os dos grandes magistrados, cuja influência age a maior distância e com
maior vigor, destruindo nos súditos as ideias de justiça e de dever,
substituindo-as pela do direito do mais forte, igualmente perigoso para quem o
exerce e para quem o sofre.”
“Uma crueldade que o uso consagrou na maioria
das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo, quer para
forçá-lo a confessar um delito, quer por ele ter caído em contradição, quer
ainda para descobrir os cúmplices ou por quem sabe qual metafísica e
incompreensível purgação da infâmia, quer, finalmente, por outros delitos de
que poderia ser autor, mas dos quais não é acusado.
Um homem não pode ser chamado culpado antes
da sentença do juiz, e a sociedade só pode retirar-lhe a proteção pública após
ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi concedida.
Qual é, pois, o direito, senão o da força, que confere ao juiz o poder de
aplicar uma pena a um cidadão, enquanto perdure a dúvida sobre sua
culpabilidade ou inocência? Não é novo este dilema: ou o delito é certo ou
incerto; se é certo, não lhe convém outra pena que não a estabelecida pelas
leis, e são inúteis os tormentos, pois é inútil a confissão do réu; se é
incerto, não se deve atormentar um inocente, pois é inocente, segundo as leis,
um homem cujos delitos não estejam provados. Mas digo mais: é querer subverter
a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado,
que a dor se torne o cadinho de verdade, como se o critério dessa verdade
residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz. Esse é o meio seguro de
absolver os celerados vigorosos e de condenar os inocentes fracos. Eis aqui os
fatais inconvenientes desse pretenso critério da verdade, digno de canibais,
que os romanos, bárbaros a mais de um título, reservavam tão-somente aos
escravos, vítimas de uma virtude tão feroz quanto louvada. (...)
Outro ridículo motivo da tortura é o da
purgação da infâmia, isto é, que um homem julgado infame pelas leis deve
confirmar seu depoimento com a luxação dos seus ossos. Esse abuso não deveria
ser tolerado no século XVIII. Acreditar-se que a dor, que é uma sensação,
purgue a infâmia, que é uma mera relação moral. Será a dor realmente um
cadinho? Será a infâmia um corpo misto impuro? (...)
Porém, a infâmia é um sentimento que não está
sujeito às leis nem a razão, mas à opinião comum. A própria tortura produz uma
real infâmia nas suas vítimas. Assim sendo, com esse método se suprimirá a
infâmia por meio da infâmia.”
“A tortura não é julgada necessária pelas
leis dos exércitos, compostos em sua maioria pela escória das nações, que, por
isso, pareciam precisar dela mais do que qualquer outra corporação. É estranho
para aquele que não considere como é grande a tirania do uso admitir que as
leis pacificadoras tenham que aprender dos corações, endurecidos pelas
carnificinas e pelo sangue, o método mais humano de julgar.”
“Uma estranha consequência que
necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente se acha numa posição
pior que a do culpado. Com efeito, se ambos são submetidos ao suplício, o
primeiro tem tudo contra si, uma vez que ou confessa o delito e é condenado, ou
é declarado inocente, mas sofreu uma pena não merecida; ao passo que, um caso é
favorável ao culpado quando, resistindo à tortura com firmeza, deverá ser
absolvido como inocente, trocando uma pena maior por uma menor. O inocente,
portanto, só tem a perder e o culpado a ganhar.
A lei que ordena a tortura é uma lei que
diz: Homens, resisti à dor, e se a natureza criou em vós um
inextinguível amor-próprio, se ela vos deu o direito inalienável de vos
defenderes, desperto em vós o sentimento contrário, o ódio heroico de vós
mesmos, e ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais a verdade
ainda que vos dilacerem os músculos e vos quebrem os ossos.
Aplica-se a tortura para descobrir se o réu
cometeu outros delitos além daqueles de que é acusado. Isso equivale ao
seguinte raciocínio: Tu és culpado de um delito; é pois possível que o
seja de outros cem; esta dúvida me oprime e quero certificar-me com meu próprio
critério de verdade; as leis torturam-te porque és culpado, porque podes ser
culpado, porque quero que tu sejas culpado.”
“Alguns delitos são atentados contra a
pessoa, outros contra os bens. Os primeiros devem infalivelmente ser punidos
com penas corporais: nem ao homem poderoso, nem ao rico deve permitir-se o
ressarcimento dos atentados contra o fraco e o pobre; de outra forma, as
riquezas que sob a tutela das leis são o prêmio da indústria, tornar-se-iam o
alimento da tirania.”
“Os furtos não acompanhados de violência
deveriam ser punidos com penas pecuniárias. Quem procura apoderar-se do alheio
deveria ser privado do próprio. Mas como habitualmente esse é o delito da
miséria e do desespero, o delito daquela porção infeliz de homens a quem o
direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) não deixou
senão uma existência de privações; mas como, ainda, as penas pecuniárias
castigam um número de pessoas maior que o dos delitos, pois que, ao tirar o pão
aos celerados, acabam tirando-o aos inocentes, a pena mais oportuna será então
o único tipo de escravidão que possa se chamar de justa, ou seja, a escravidão
temporária dos trabalhos e da pessoa ao serviço da sociedade comum, para
ressarci-la com a própria e total dependência, do injusto despotismo exercido
ao violar o pacto social. Se, porém, o delito for acompanhado de violência, a
pena deve ser igualmente um misto de pena corporal e servil.”
“Um dos maiores freios aos delitos não é a
crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em consequência, a vigilância
dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma
virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um
castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de
outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os
menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a
esperança, dom celestial que frequentemente tudo supre em nós, afasta a ideia
de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela
venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança. A própria atrocidade da pena
faz com que tentemos evitá-la com uma ousadia tanto maior quanto maior é o mal
em que incorremos e leva a cometer outros delitos mais para escapar a pena de
um só. Os países e os tempos em que se infligiam os suplícios mais atrozes
sempre foram aqueles das ações mais sanguinárias e desumanas, pois o mesmo
espírito de ferocidade que guiava a mão do legislador conduzia a do parricida e
do sicário. Do trono, esse espírito ditava leis férreas a ânimos torturados de
escravos, que obedeciam; na escuridão do privado, estimulava a imolação dos
tiranos para criar outros novos.
À medida que os suplícios se tornam mais
cruéis, os espíritos humanos que, como os fluidos, se nivelam sempre com os
objetos que os cercam, endurecem, e a força sempre viva das paixões faz com
que, após cem anos de cruéis suplícios, a roda* assuste tanto quanto antes a
prisão assustava. Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que
ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve
ser levada em conta a infalibilidade da pena e a perda do bem que o delito
devia produzir. Tudo mais é supérfluo e, portanto, tirânico. Os homens
pautam-se pela ação repetida dos males que conhecem e não daqueles que ignoram.
Considerem-se duas nações, numa das quais, na escala das penas proporcional à
escala dos delitos, a pena maior seja a escravidão perpétua e, na outra, a
roda. Eu digo que a primeira terá tanto temor de sua pena quanto a segunda.”
*A roda: o suplício da roda, que
consistia em amarrar o condenado a uma roda enfiada horizontalmente numa
estaca, para aí deixá-lo morrer lentamente, após ter-lhe quebrado braços e
pernas.
“Não é o espetáculo terrível mas passageiro
da morte de um celerado, e sim o longo e sofrido exemplo de um homem privado da
liberdade e que, convertido em besta de carga, recompensa com seu trabalho
aquela sociedade que ofendeu, que constitui o freio mais forte contra os
delitos. Aquela repetição a si mesmo, eficaz por seu insistente retorno, “eu
mesmo serei reduzido a tal longa e mísera condição se cometer semelhantes
delitos”, é muito mais poderosa do que a ideia da morte, que os homens
sempre veem longínqua e obscura.”
“Um ladrão ou um assassino, cujo único
contrapeso para não violar a lei é a forca ou a roda, raciocina mais ou menos
da seguinte forma. Sei que desenvolver os sentimentos do próprio espírito é uma
arte que se aprende com a educação, mas se um ladrão não sabe expressar
apropriadamente os seus princípios, não é por isso que eles deixem de
atuar. Que leis são essas que devo respeitar e que põem uma distância
tão grande entre mim e o rico? Ele me nega o vintém que lhe peço e se desculpa
mandando-me trabalhar, o que ele mesmo não sabe fazer. Quem fez essas leis?
Homens ricos e poderosos que nunca se dignaram visitar os míseros casebres dos
pobres, que nunca precisaram repartir um pão amanhecido entre os gritos
inocentes dos filhos esfomeados e as lágrimas da mulher. Rompamos esses liames
fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos indolentes; ataquemos a injustiça
em sua fonte. Voltarei ao meu estado de independência natural, viverei livre e
feliz por algum tempo com os frutos da minha coragem e da minha indústria; virá
talvez o dia da dor e do arrependimento, mas esse tempo será breve, e terei um
dia de privação por muitos anos de liberdade e de prazeres. Rei de poucos
homens, corrigirei os erros da fortuna, e verei esses tiranos empalidecerem e
palpitarem à presença daquele que preteriram, com fausto ultrajante, aos seus
cavalos e aos seus cães.”
“A história da humanidade nos dá a ideia de
um imenso oceano de erros, dos quais emergem, a grandes intervalos, algumas
poucas verdades confusas. Os sacrifícios humanos foram comuns a quase todas as
nações, mas quem ousará desculpá-los?”.
“O clamor público, a fuga, a confissão
extrajudicial, o depoimento de um cúmplice, as ameaças e a constante inimizade
com a vítima, o corpo de delito e indícios semelhantes são provas suficientes
para prender um cidadão; mas essas provas devem ser estabelecidas pela lei e
não pelos juízes, cujos decretos são sempre nocivos à liberdade política,
quando não são proposições de uma máxima geral emanada do código público.”
“Regra geral: em cada delito que, por
natureza, deve geralmente ficar impune, a pena torna-se um incentivo.”
“Não pretendo diminuir a justa repulsa que
merecem esses delitos, mas, indicando suas origens, creio-me no direito de
extrair uma conclusão geral, a saber: que não se pode chamar precisamente justa
(isto é, necessária) a pena de um delito, enquanto a lei, nas dadas
circunstâncias de uma nação, não tenha aplicado os melhores meios possíveis
para preveni-lo.”
“Os homens, entregues a seus sentimentos mais
óbvios, amam as leis cruéis, embora, sujeito a elas, fosse do interesse de cada
um que elas fossem moderadas, pois é maior o temor de ser ofendido que a
vontade de ofender”.
“Outra questão diz respeito à utilidade ou
não de se colocar a prêmio a cabeça de um homem, notoriamente culpado, armar o
braço de cada cidadão e fazer dele um carrasco. Ou o réu está além das
fronteiras, ou dentro delas. No primeiro caso, o soberano estimula os cidadãos
a cometerem um delito e os expõe ao castigo, praticando assim uma injustiça e
uma usurpação de autoridade nos domínios alheios; autoriza, assim, as outras
nações a agir da mesma forma. No segundo, dá ele mostras da própria fraqueza.
Aquele que tem a força para se defender não procura comprá-la. Ademais,
semelhante édito subverte todas as ideias de moral e de virtude, que, ao menor
sopro de vento, se desvanecem no espírito humano. Ora as leis convidam à
traição, ora a punem. Com uma mão o legislador estreita os laços de família, de
parentesco, de amizade, e com a outra premia quem os quebra; sempre
contradizendo a si mesmo, ora convida à confiança os ânimos desconfiados dos
homens, ora espalha a desconfiança nos corações. Ao invés de prevenir um
delito, dá origem a outros cem. São esses os expedientes de nações fracas,
cujas leis não passam de restaurações momentâneas de um edifício em ruínas que
esteja desabando. À medida que crescem os lumes numa nação, tornam-se
necessárias a boa-fé e a confiança recíproca e cada vez mais tendem elas a
confundir-se com a verdadeira política. Os artifícios, as cabalas, as vias obscuras
e indiretas são, geralmente, previsíveis e a sensibilidade de todos inibe a
sensibilidade de cada um em particular. Os próprios séculos de
ignorância, nos quais a moral política obriga os homens a obedecer à moral
privada, servem de ensinamento e de experiência aos séculos iluminados. Mas as
leis que premiam a traição e atiçam uma guerra clandestina semeando a
desconfiança recíproca entre os cidadãos se opõem a essa aliança tão necessária
entre a moral e a política, aliança que asseguraria aos homens a felicidade, às
nações a paz, e, ao universo, intervalos mais longos de tranquilidade e repouso
dos males que o afligem.”
“Alguns tribunais oferecem a impunidade
àquele cúmplice de delito grave que denuncie seus companheiros. Tal expediente
tem seus inconvenientes e suas vantagens. Os inconvenientes são que a nação
autoriza a traição, detestável mesmo entre os celerados, porque são menos
fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vileza: porque a coragem não
é frequente, já que só espera uma força benéfica e diretriz que a faça
concorrer ao bem público, enquanto a vileza é mais comum e contagiosa, e sempre
mais se concentra em si mesma. Ademais, o tribunal revela a sua própria
incerteza, a fraqueza da lei, que implora ajuda a quem a ofende. As vantagens
consistem na prevenção dos delitos importantes que, por terem efeitos evidentes
e autores ocultos, atemorizam o povo; além disso, se contribui para mostrar que
quem não tem fé nas leis, isto é, no público, é provável que também não confie
no privado. Parece-me que uma lei geral que prometesse a impunidade ao cúmplice
delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial num caso
particular, porque assim preveniria as uniões pelo temor recíproco que cada
cúmplice teria de se expor sozinho e o tribunal não faria homens audaciosos,
dos celerados que se vissem chamados a ajudar num caso particular. Uma tal lei,
portanto, deveria unir a impunidade ao banimento do delator...”.
“O ódio é um sentimento mais durável que o
amor na medida em que aquele retira a sua força da continuidade dos atos que
enfraquecem este último.”
“A maioria das leis não passam de
privilégios, isto é, um tributo de todos em benefício de alguns poucos.”
“Os filósofos adquirem necessidades e
interesses desconhecidos da gente vulgar, principalmente o de não desmentir à
luz do dia os princípios apregoados na obscuridade, e adquirem o hábito de amar
a verdade por si mesma. Uma seleção de homens como esses forma a felicidade de
uma nação; será, no entanto, uma felicidade momentânea se as boas leis não
aumentarem seu número de tal modo que reduza a probabilidade sempre grande de
uma má eleição”.
“Para que cada pena não seja uma violência de
um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública,
rápida, necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional
aos dos delitos e ditadas pelas leis.”