sexta-feira, 25 de junho de 2010

Surrealismo – Cathrin Klingsöhr-Leroy

Editora: Paisagem
ISBN: 978-38-3650-083-8
Opinião★★★☆☆
Páginas: 98

Sinopse: Este livro busca traçar o legado do surrealismo até suas origens em diversos aspectos, incluindo - filmes, teatro, literatura, teoria da arte, entre outros. A obra busca abordar as influências de artistas como Hans Arp, André Breton, Brassaï, Giorgio de Chirico, Salvador Dalí, Max Ernst, Alberto Giacometti, Paul Klee, René Magritte, André Masson, Matta, Joan Miró, Pablo Picasso, Meret Oppenheim, Yves Tanguy.
Tentar o impossível – René Magritte

     “Eu obriguei-me a contradizer-me para evitar conformar-me com o meu próprio gosto.”
(Marcel Duchamp)


      “Deem-me duas horas por dia de atividade, e eu usarei as outras vinte e duas em sonhos.”
(Luis Buñuel)


      “Felizmente, algures entre o acaso e o mistério está a imaginação, a única coisa que protege a nossa liberdade, independentemente do fato de as pessoas continuarem a tentar reduzi-la ou matá-la completamente.”
(Luis Buñuel)


      “O segredo da arte reside no fato não de procurar, mas sim de encontrar.”
(Pablo Picasso)


      “Cristóvão Colombo devia ter partido à descoberta da América com um barco cheio de loucos.”
(André Breton)

A Boneca (Die Puppe) – Hans Bellmer


      “Antigamente, os pintores costumavam ser loucos e os compradores de pintura espertos. Agora, os pintores são espertos e os compradores são loucos.”
(Giorgio de Chirico)

As musas desinquietantes (Le muse inquietanti) - (Giorgio de Chirico)


      “Não sou eu que sou o palhaço, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e tão inconscientemente ingênua, que joga o jogo da seriedade para melhor esconder a sua loucura.”
(Salvador Dalí)

A persistência da memória (a. k. a.: relógios moles ou o tempo a fugir) (La persistence de la mémoire) – Salvador Dalí


      “A diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou um surrealista.”
(Salvador Dalí)

Sonho causado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã um segundo antes de acordar (Revê causé par le vol d’une abeille autor d’une granade, une seconde avant l’éveil) - Salvador Dalí


      “Um pintor perde-se quando se encontra a si próprio.”
(Max Ernst)

Tempo trespassado (La dureé poignardée) – René Magritte


O império das luzes (L’empire des lumières) – René Magritte


      “A pintura tem sempre um pé na arquitetura, um pé nos sonhos.”
(Matta)


      “Mais importante do que uma obra de arte propriamente dita é o seu efeito. A arte pode desaparecer, uma pintura pode ser destruída, o que conta é a semente.”
(Joan Miró)


      “A arte lava a alma da sujidade quotidiana.”
(Pablo Picasso)
  

      “Eu pinto as coisas como as penso, não como as vejo.”
(Pablo Picasso)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A queda - Albert Camus

Editora: BestBolso
ISBN: 978-85-7799-008-5
Tradução: Valerie Rumjanek
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 112
Sinopse: Um advogado francês faz seu exame de consciência num bar de marinheiros, em Amsterdã. O narrador, autodenominado “juiz-penitente”, denuncia a própria natureza humana misturada a um penoso processo de autocrítica. O homem que fala em A Queda se entrega a uma confissão e onde começa a acusação? Ele se isolou do mundo após presenciar o suicídio de uma mulher nas águas turvas do Sena, sem coragem de tentar salvá-la. Camus revela o homem moderno que abandona seus valores e mergulha num vazio existencial. 



“Quando pensamos muito sobre o homem, por trabalho ou vocação, às vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes não tinham segundas intenções.”


“Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal, aqueles que falam de maneira ininteligível também não são puros.”


“Quanto a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim chamado até o momento em que nossos irmãos hitlerianos abriram espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados – é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem caráter, é preciso mesmo valer-se de um método.”


“Eu era de origem honesta, mas obscura (meu pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo. Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por tantos imbecis”.


“A amizade é menos simples. Sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meios de nos livrarmos dela; temos de enfrentá-la.”


“Bem sei que não se pode deixar de dominar ou de ser servido. Todo homem tem necessidade de escravos, como de ar puro. Mandar corresponde a respirar, não tem a mesma opinião? E até os mais desfavorecidos conseguem respirar. O último da escala social ainda tem o cônjuge ou o filho. Quando é solteiro, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se, sem que alguém tenha o direito de responder: “Não se responde ao pai”, conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo, senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se uma outra: nunca mais se acabaria. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreender isso. Por exemplo, deve ter notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingênuos: “Eu penso assim. Quais são as suas objeções?”. Tornamo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. “Esta é a verdade”, dizemos. “Podemos até discuti-la, isso não nos interessa. Mas, dentro de alguns anos, lá estará a polícia para lhes mostrar quem tem razão”.”


“Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranqüila. Sem isso, seríamos forçados a mudar de opinião, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, deve-se temer tudo. Por isso, nada de insígnias, e isto é escandaloso. Aliás, se todo mundo se sentasse à mesa e ostentasse sua verdadeira profissão, sua identidade, já nem saberíamos para que lado haveríamos de nos voltar! Imagine os cartões de visita: Dupont, filósofo apavorado ou proprietário cristão ou humanista adúltero, na verdade, nós temos a escolha. Mas seria o inferno! Sim, o inferno deve ser assim: ruas com insígnias e nenhuma possibilidade de explicação. Fica-se classificado de uma vez para sempre.”


“Devo reconhecer humildemente, meu caro compatriota, que fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão de minha preciosa vida, e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar vangloriando-me, sobretudo quando o fazia com esta ruidosa discrição, cujo segredo eu possuía. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberado em relação a todos pela excelente razão de que me considerava sem igual. Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e ótimo amante. Mesmo nos setores em que era fácil verificar minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores. Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha benevolência e serenidade. Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.”


“Já notou que há pessoas cuja religião consiste em perdoar todas as ofensas, e que efetivamente as perdoam, mas nunca as esquecem? Eu não era feito de matéria que me permitisse perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, custava a acreditar que estava sendo saudado com um largo sorriso. Segundo sua índole, admirava então minha grandeza de alma ou desprezava minha desfaçatez, sem pensar que minha razão era mais simples: eu havia esquecido até o seu nome. O mesmo defeito que me tornava indiferente ou ingrato fazia-me magnânimo.”


“É preciso que se saiba, antes de tudo, que sempre tive êxito com as mulheres, e sem grande esforço. Não me refiro ao êxito em fazê-las felizes, tampouco em fazer-me feliz por intermédio delas. Não; ter êxito, simplesmente. Eu era bem-sucedido, mais ou menos quando queria. Achavam que eu tinha certo charme, imagine! Sabe o que é isto: um modo de ouvir sim como resposta, sem ter feito uma pergunta clara.”


“Depois de certa idade, todo homem é responsável pelo seu rosto.”


“Em cada caso, minha sensualidade, para só falar dela, era tão real que, mesmo por uma aventura de dez minutos, eu renegaria pai e mãe, mesmo se tivesse de lamentar isso amargamente. Que digo eu! Sobretudo por uma aventura de dez minutos, e mais ainda, se eu tivesse a certeza de que ela não teria futuro. Eu tinha princípios, é claro; por exemplo: a mulher dos amigos era sagrada. Simplesmente, eu deixava, com toda sinceridade, alguns dias antes, de ter amizade pelos maridos.”


“Nenhum homem é hipócrita em seus prazeres.”


“Digo amigos, aliás, por princípio. Não tenho mais amigos, só tenho cúmplices.”


“Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, ridicularizados, ou usados. Quanto a serem compreendidos, isso, nunca.”


“Eis o que nenhum homem (exceto os que não vivem, quero dizer, os sábios) consegue suportar. A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas. Que quer? A ideia mais natural para o homem, a que lhe surge ingenuamente, como no fundo de sua natureza, é a ideia de sua inocência.”


“Como poderia a sinceridade ser uma condição da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, às vezes um conforto, ou um egoísmo. Portanto, se o senhor se encontrar neste caso, não hesite: prometa ser verdadeiro e minta o melhor que puder. Atenderá ao profundo desejo deles e provará duplamente sua afeição.”


“Há, na verdade, esforços e convicções que nunca compreendi. Eu olhava sempre com um ar de espanto e com um pouco de suspeita aquelas estranhas criaturas que morriam por dinheiro e se desesperavam com a perda de uma “situação” ou se sacrificavam com grande ostentação pela prosperidade da família. Eu compreendia melhor aquele amigo que havia decidido nunca mais fumar e que, pela força de vontade, fora bem-sucedido. Certa manhã, abriu o jornal, leu que a primeira bomba H havia explodido, informou-se sobre seus admiráveis efeitos e entrou sem demora numa tabacaria.”


“Foi nesse momento que o pensamento da morte irrompeu em minha vida diária. Contava os anos que me separavam de meu fim. Buscava exemplos de homens de minha idade que já estivessem mortos. E me atormentava a ideia de que não teria tempo de realizar a minha tarefa. Que tarefa? Eu nem sabia.”


“E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, por um breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto! Já para o desconforto! Basta ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhes um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”


“O grande empecilho a evitar não será o de sermos nós os primeiros a nos condenar? É preciso, pois, começar a estender a condenação a todos, sem discriminação, para diluí-la desde já.”

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Memórias de uma Gueixa - Arthur Golden

Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-605-4
Tradução: Lya Luft
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 460
Sinopse: Memórias de uma Gueixa é um romance fascinante, para ser lido de várias maneiras: como um mergulho na tradicional cultura japonesa, ou um romance sobre a sexualidade, e ainda, como uma descrição minuciosa da alma de uma mulher já apresentada por um homem.
Seu relato tem início numa vila pobre de pescadores, em 1929, onde a menina de nove anos é tirada de casa e vendida como escrava. Pouco a pouco, vamos acompanhar sua transformação pelas artes da dança e da música, do vestuário e da maquilagem; e a educação para detalhes como a maneira de servir saquê revelando apenas um ponto do lado interno do pulso – armas e mais armas para as batalhas pela atenção dos homens. Mas a Segunda Guerra Mundial força o fechamento das casas de gueixas e Sayuri vê-se forçada a se reinventar em outros termos, em outras paisagens.



“– O que está olhando?
– Sinto muito, senhora. Eu estava olhando o seu quimono – eu disse.
– Nunca vi nada assim.
Deve ter sido a resposta certa – se é que havia resposta certa –, porque ela deu uma espécie de risada, embora soasse como tosse.
– Então você gostou, hem? – disse, continuando a tossir, ou rir, eu não sabia. – Você tem ideia de quanto ele custou?
– Não, senhora.
– Mais do que você, com certeza.”


“É por isso que os sonhos podem ser coisas tão perigosas: queimam como fogo, e às vezes nos consomem completamente.”


“Um homem só se interessa por uma coisa.”


“Mas, sabe, eu acho fascinante que, não importa como nós homens pareçamos diferentes, por baixo de tudo somos exatamente iguais.”


“Desde que me mudei para Nova Iorque entendi o que a palavra “gueixa” realmente significa para a maioria dos ocidentais. De tempos em tempos, em festas elegantes, fui apresentada a uma jovem ou outra usando um vestido magnífico e joias. Quando ela fica sabendo que um dia eu fui gueixa em Kioto, dá uma espécie de sorriso, embora os cantos de sua boca não se ergam como deveriam. Ela não sabe o que dizer. Então o ônus da conversa recai sobre o homem ou a mulher que me apresentou a ela – porque nunca aprendi muito inglês, mesmo depois de todos estes anos. Naturalmente, a essa altura não faria muito sentido nem tentar, porque a mulher estará pensando: “Meu Deus... estou falando com uma prostituta...” Logo depois ela é salva pelo seu acompanhante, um homem rico trinta ou quarenta anos mais velho que ela. Bem, muitas vezes imagino por que ela não percebe quanto realmente temos em comum. Ela é uma mulher sustentada, você entende, e antigamente eu também fui.”


“A adversidade é como um longo vento forte. Não quero apenas dizer que ela nos afasta de lugares aonde poderíamos ir, mas também arranca de nós tudo, menos as coisas que não podem ser arrancadas, de modo que depois nos vemos como realmente somos, e não apenas como gostaríamos de ser.”


“– Olhe só para você, Nobu-san. Rugas tão fundas entre os olhos como sulcos numa estrada.
Ele relaxou um pouco os músculos em torno dos olhos, de modo que a ruga pareceu se desfazer.
– Não sou mais tão jovem como já fui, sabe? – ele disse.
– E o que quer dizer isso?
– Quer dizer que algumas rugas se tornaram traços permanentes e não vão desaparecer só porque você diz que deviam.
– Há rugas boas e rugas más, Nobu-san. Nunca esqueça isso.”

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Eneida - Virgílio

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-336-2060-5

Tradução: José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 449

Sinopse: Obra de Púbio Virgílio Marão, que ficaria conhecido como Virgílio, foi o modelo de toda a poesia que se escreveu no Ocidente até o século XVII. Os gêneros cultivados por Virgílio foram tomados de empréstimo da literatura grega, mas ele imprimiu à sua poesia uma marca pessoal e inconfundível, derivada de sai sensibilidade artística e da maestria com que trabalhou seus versos. Camões, Tasso, Milton e todos os grandes poetas épicos dos séculos XVI e XVII são virgilianos. Sua maior obra, a epopeia Eneida, foi projetada durante os anos 29 e 27 a. C. e é considerada o maior poema da romanidade.


 

“Pois dentro do espaçoso templo, enquanto

Cada cousa per si passa em resenha,

Aguardando a rainha, enquanto admira

Qual a fortuna seja da cidade,

Dos artistas as mãos rivalizando

Entre si, e das obras o trabalho,

Por ordem vê pintadas as pelejas

De todas a guerra Ilíaca, por fama

Já pelo mundo inteiro divulgadas.

Príamo, e o filho vê d’Atreu, e Aquiles

Para com ambos eles implacável.

Para absorto, e co’as lágrimas nos olhos,

Acates, disse, que lugar no globo,

Que região existe, que já cheia

Dos nossos infortúnios não esteja?

Eis Príamo: a virtude aqui seus prêmios

Tem, a desdita lágrimas, e aos males

Da humanidade as almas são sensíveis.

Desvanece os temores: esta fama

Alguma salvação há de trazer-te.”

 

 

(...) “Meus próprios males

Me ensinaram a ser compadecida”.

 

 

“Que sonhos indecisa, Ana, me aterram!

Que novo hóspede entrou em nossa casa!

Quão gentil! de quão forte peito e braço!

Qu’é progênie dos deuses, creio, e certo

Não creio em vão. Temor vileza indica.

Ai, quanto o hão perseguido adversos fados!

Quantas batalhas conta pelejadas!

Se n’alma fixo e imoto eu não tivesse

Em laço conjugal não mais unir-me

A homem algum, depois qu’o amor primeiro

Com a morte falseou minha esperança;

Se do tálamo tão aborrecida,

E fachos de Himeneu, não estivesse,

Talvez a esta só culpa eu sucumbira.

Ana, (o confesso enfim), depois do infausto

Destino de Siqueu, mísero esposo;

Depois que ensanguentou irmão cruento

Com assassínio atroz nossos penates,

Este só atraiu os meus sentidos,

Meu ânimo impeliu, prostrou de todo:

Reconheço os sinais da antiga chama.

Mas antes se abra a terra e nos abismos

Me sepulte, ou o padre omnipotente

Co’um raio às sombras e profunda noite,

Ó santa Pudicícia, qu’eu te ofenda,

Ou chegue a violar os teus preceitos!

Aquele que me uniu a si primeiro,

Esse levou consigo os meus amores:

Ele os tenha, ele os guarde no sepulcro!

Disse, e banhou de lágrimas o seio.”

 

 

“Aonde, ó Fábios, me levais cansado?

Tu, Máximo, és aquele que nos salvas

A República só temporizando.

Com mais brandura os respirantes bronzes

Fundirão outros, não duvido, e vultos

Farão surgir do mármore animados;

Terão mais eloquentes oradores,

As voltas mostrarão do céu co’a vara

E dirão por que modo os astros surgem.

Tu, Romano, a reger co’o império os povos

Te aplica: estas serão as tuas artes:

E impor as leis da paz, aos submetidos

Perdoar clemente, e debelar os soberbos.”

 

 

“Os Enéades súbito turbados

O odioso semblante reconhecem

E os membros giganteus! Então de um salto

Pândaro ingente avança e ardendo em ira

Pela fraterna morte: “Não é este

O palácio dotal (lhe diz) de Amata,

Nem Árdea te contém dentro em seus muros.

Estás em campo imigo e tem por certo

Que com vida escapar te é impossível.”

Com sorrir desdenhoso lhe responde

Turno: “Se tens denodo, principia,

Vamos às mãos, que a Príamo irás breve

Contar que novo Aquiles deparaste.”

Disse, e Pândaro logo uma haste rude

Ainda com os nós e a casca crua

Com quanta força tinha lhe dispara:

Recebe o vento o golpe, que a Satúrnia

Juno, dos céus baixando, lh’o desvia,

E a hasta na porta se cravou tremendo.

“D’esta lança que o braço meu te vibra

Agora tu não fugirás por certo,

Que da lança e do golpe o autor é outro.”

Disse, e co’a espada erguida se prolonga,

Com desumana cutilada o colhe

Por entre as fontes e as imberbes faces,

De meio a meio fende-lhe a cabeça.

C’o baque e peso ingente o chão se abala,

Já pela terra lânguidos os membros

E do cérebro as armas salpicadas

Morrendo estira; em duas metades

A cabeça lhe pende dividida.”

 

 

“Por que o silêncio a quebrar me obrigas?

E a concentrada dor mostrar com vozes?”

 

 

“A fortuna é de audazes”.

 

 

“Mal que de longe os batalhões turbando

Purpúreo no cocar, purpúreo em roupas,

Dom da noiva, Mezêncio o vê em guisa

De faminto leão, que, estimulado

De apetite frenético, mil voltas

Já dera em torno de um curral, se acaso

Veado alticornígero descobre,

Ou fugaz cabra, as fundas fauces abre,

Ouriça as jubas, fica-se estendido

Da presa sobre as vísceras e lava

Em negro sangue os truculentos beiços;

Assim o audaz Mezêncio se arremessa

Dos inimigos no esquadrão cerrado.”

 

 

“Já o féretro e grades outros tecem

De vergônteas e de roble e arbúteas varas

E o pronto leito de folhagem cobrem.

Sobre esta agreste cama o moço estendem,

Qual flor colhida por virgíneos dedos

De branda viola, ou lânguido jacinto

De quem inda o fulgor, inda a beleza

Não fugiram de todo, bem que a terra

Já forças lhe não dá, nem dá sustento.”

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dos delitos e das penas - Cesare Beccaria

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-336-2146-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Dos delitos e das penas foi publicado pela primeira vez em 1764 e logo tornou-se o símbolo de uma batalha ideológica. Nele podemos reconhecer sem hesitação a ala mais avançada da inteligência europeia. O livro assume formalmente como objeto de análise a situação da legislação criminal, mas, na realidade, logo fica evidente a intenção de Beccaria de estender a crítica a todos os aspectos de uma sociedade assentada sobre o erro e o preconceito. A obra se inscreve plenamente no projeto elaborado pelos iluministas. Mesmo a condenação do uso da tortura e do bárbaro rito da pena de morte – que estão entre as mais famosas passagens do livro – não nasceu apenas da instância humanitária, mas sobretudo de uma rigorosa reflexão sobre a vida social, sobre os modos sempre variados pelos quais os atos do poder estatal penetram sempre no tecido da psicologia coletiva.
Muitas das advertências sobre os devastadores resultados de uma má administração da justiça têm ainda hoje o mesmo vigor graças à clareza e originalidade do texto que fazem desta obra um modelo de polêmica na área do direito civil.



“Ao Estado compete, de fato, a tarefa de remover todos aqueles obstáculos que se interpõem à iniciativa individual que visa ao bem coletivo antes de intervir para dirimir os conflitos inevitavelmente determinados pela dinâmica social.”


“‘Beccaria sustenta, certamente, essa tese; porém, a eficácia persuasiva de seu escrito está no fato de que dela resulte a seguinte conclusão: que, qualquer que seja a finalidade que se pretende propor às leis penais, quer de castigo, quer de correção, de repressão ou de prevenção, de justiça ou de utilidade e tutela social, é preciso reformar o seu sistema, abandonar os caminhos da ferocidade cruel que ataca cega e injustamente, e seguir as vias da medida proporcionada, da moderação que não necessita de contínuas exceções de perdões e condenações, da justiça livre de toda ira e que repudia qualquer arbitrariedade’*. A ferocidade, a crueldade, o arbítrio são manifestações do instinto de prepotência, daquele instinto conflituante que o pacto social quer conter ou mesmo sufocar com a finalidade de garantir uma maior participação social desvinculada dos critérios de seleção de ordem elementar.”
*Rodolfo Mondolfo – Cesare Beccaria y sua obra, Depalma, Buenos Aires, 1956, pp. 30-31.

(parágrafos supracitados oriundos do prefácio de Riccardo Campa)

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“As leis são as condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de sua conservação. Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurança e tranquilidade. A soma dessas porções de liberdade sacrificada ao bem comum forma a soberania de uma nação e o soberano é o legítimo depositário e o administrador. Mas não bastava constituir esse depósito, havia que defendê-lo das usurpações privadas de cada homem em particular, o qual sempre tenta não apenas retirar do depósito a porção que lhe cabe, mas também apoderar-se daquela dos outros. Faziam-se necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o espírito despótico de cada homem de novamente mergulhar as leis da sociedade no antigo caos. Esses motivos sensíveis são as penas estabelecidas contra os infratores das leis.”


“Toda pena que não derive da necessidade absoluta, diz o grande Montesquieu, é tirânica; proposição essa que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da necessidade absoluta é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano garante aos súditos.”


“Quando um código de leis fixas, que devem ser observadas à risca, não deixa ao juiz outra incumbência senão a de examinar os atos dos cidadãos e de julgá-los conformes ou não à lei escrita; quando a norma do justo e do injusto, que deve conduzir os atos tanto do cidadão ignorante como do filósofo, não é uma questão de controvérsia, mas de fato, então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos, tanto mais cruéis quanto menor a distância entre quem sofre e quem faz sofrer, mais fatais do que as tiranias de um só, porque somente o despotismo de um pode corrigir o despotismo de muitos e a crueldade de um déspota é proporcional não à força, mas aos obstáculos. Dessa forma, os cidadãos adquirem aquela segurança de si, que é justa por ser o objetivo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil por habilitá-los a calcular exatamente os inconvenientes de um delito. (...) Esses princípios desagradarão a todos os que se deram ao direito de transmitir aos inferiores os golpes de tirania que recebem dos superiores. Eu deveria tudo temer se o espírito de tirania fosse compatível com o espírito de leitura.”


“Quem conhece a história dos últimos dois ou três séculos e a nossa poderá ver como no seio do luxo e da indolência nasceram as mais doces virtudes, a humanidade, a benevolência e a tolerância para com os erros humanos. Verás quais foram os erros das que erroneamente chamamos boa-fé e antiga simplicidade: a humanidade gemendo sob a implacável superstição, a avareza, a ambição de alguns tingindo de sangue humano os cofres de ouro e os tronos dos reis, as tradições secretas e os massacres públicos, os nobres tiranizando a plebe, os ministros da verdade evangélica sujando de sangue as mãos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude. Estas não são obras deste século iluminado a que alguns chamam corrupto.”


“Aquele que ler sob uma ótica filosófica os códigos das nações e os seus anais, verá quase sempre as palavras vício e virtude, bom cidadão ou réu mudar com as revoluções dos séculos, não em razão das mutações ocorridas nas circunstâncias dos países, e, por isso, sempre conformes ao interesse comum, mas em razão das paixões e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos legisladores. Verá frequentemente que as paixões de um século são a base moral dos séculos futuros; que as paixões fortes, filhas do fanatismo e do entusiasmo, enfraquecidas e corroídas, diria eu, pelo tempo, que reduz ao equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais, tornam-se pouco a pouco prudência do século e um instrumento útil nas mãos dos fortes e dos sagazes. Desse modo, nasceram as obscuras noções de honra e de virtude, e tais são elas porque mudam com as revoluções do tempo, que faz sobreviver os nomes às coisas, mudam com os rios e com as montanhas, que marcam frequentemente os limites não só da geografia física, mas também da geografia moral.”


“Finalmente, alguns cogitaram que a gravidade do pecado participasse da medida dos delitos. A falácia dessa opinião saltará aos olhos de um examinador imparcial das verdadeiras relações entre os homens e entre estes e Deus. As primeiras são relações de igualdade. A necessidade, e ela só, fez nascer do choque das paixões e da oposição dos interesses a ideia da utilidade comum, que é a base da justiça humana; as últimas são relações de dependência de um Ser perfeito e criador, que reservou a si só o direito de legislar e julgar ao mesmo tempo, pois só Ele pode fazê-lo sem inconveniente. Se estabeleceu penas eternas para quem desobedecer à Sua onipotência, qual será o inseto que ousará suprir a justiça divina, querendo vingar o Ser que basta a si mesmo e que não pode receber dos objetos nenhuma impressão de prazer ou de dor, e que, único entre todos os seres, age sem reação? A gravidade do pecado depende da imperscrutável malícia do coração, a qual não pode ser conhecida por seres finitos, sem uma revelação. Como, pois, poderia essa malícia constituir-se em norma para a punição dos delitos? Nesse, caso, poderiam os homens punir quando Deus perdoa, e perdoar quando Deus pune. Se os homens podem estar em contradição com o Onipotente ao ofendê-lo, podem também contradizê-lo ao punir.”


“Os atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos constituem, pois, um dos maiores delitos, e nessa classe se incluem não apenas os assassínios e os furtos praticados por plebeus, mas também os dos grandes magistrados, cuja influência age a maior distância e com maior vigor, destruindo nos súditos as ideias de justiça e de dever, substituindo-as pela do direito do mais forte, igualmente perigoso para quem o exerce e para quem o sofre.”


“Uma crueldade que o uso consagrou na maioria das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo, quer para forçá-lo a confessar um delito, quer por ele ter caído em contradição, quer ainda para descobrir os cúmplices ou por quem sabe qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia, quer, finalmente, por outros delitos de que poderia ser autor, mas dos quais não é acusado.
Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só pode retirar-lhe a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi concedida. Qual é, pois, o direito, senão o da força, que confere ao juiz o poder de aplicar uma pena a um cidadão, enquanto perdure a dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência? Não é novo este dilema: ou o delito é certo ou incerto; se é certo, não lhe convém outra pena que não a estabelecida pelas leis, e são inúteis os tormentos, pois é inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois é inocente, segundo as leis, um homem cujos delitos não estejam provados. Mas digo mais: é querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado, que a dor se torne o cadinho de verdade, como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz. Esse é o meio seguro de absolver os celerados vigorosos e de condenar os inocentes fracos. Eis aqui os fatais inconvenientes desse pretenso critério da verdade, digno de canibais, que os romanos, bárbaros a mais de um título, reservavam tão-somente aos escravos, vítimas de uma virtude tão feroz quanto louvada. (...)
Outro ridículo motivo da tortura é o da purgação da infâmia, isto é, que um homem julgado infame pelas leis deve confirmar seu depoimento com a luxação dos seus ossos. Esse abuso não deveria ser tolerado no século XVIII. Acreditar-se que a dor, que é uma sensação, purgue a infâmia, que é uma mera relação moral. Será a dor realmente um cadinho? Será a infâmia um corpo misto impuro? (...)
Porém, a infâmia é um sentimento que não está sujeito às leis nem a razão, mas à opinião comum. A própria tortura produz uma real infâmia nas suas vítimas. Assim sendo, com esse método se suprimirá a infâmia por meio da infâmia.”


“A tortura não é julgada necessária pelas leis dos exércitos, compostos em sua maioria pela escória das nações, que, por isso, pareciam precisar dela mais do que qualquer outra corporação. É estranho para aquele que não considere como é grande a tirania do uso admitir que as leis pacificadoras tenham que aprender dos corações, endurecidos pelas carnificinas e pelo sangue, o método mais humano de julgar.”


“Uma estranha consequência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado. Com efeito, se ambos são submetidos ao suplício, o primeiro tem tudo contra si, uma vez que ou confessa o delito e é condenado, ou é declarado inocente, mas sofreu uma pena não merecida; ao passo que, um caso é favorável ao culpado quando, resistindo à tortura com firmeza, deverá ser absolvido como inocente, trocando uma pena maior por uma menor. O inocente, portanto, só tem a perder e o culpado a ganhar.
A lei que ordena a tortura é uma lei que diz: Homens, resisti à dor, e se a natureza criou em vós um inextinguível amor-próprio, se ela vos deu o direito inalienável de vos defenderes, desperto em vós o sentimento contrário, o ódio heroico de vós mesmos, e ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais a verdade ainda que vos dilacerem os músculos e vos quebrem os ossos.
Aplica-se a tortura para descobrir se o réu cometeu outros delitos além daqueles de que é acusado. Isso equivale ao seguinte raciocínio: Tu és culpado de um delito; é pois possível que o seja de outros cem; esta dúvida me oprime e quero certificar-me com meu próprio critério de verdade; as leis torturam-te porque és culpado, porque podes ser culpado, porque quero que tu sejas culpado.”


“Alguns delitos são atentados contra a pessoa, outros contra os bens. Os primeiros devem infalivelmente ser punidos com penas corporais: nem ao homem poderoso, nem ao rico deve permitir-se o ressarcimento dos atentados contra o fraco e o pobre; de outra forma, as riquezas que sob a tutela das leis são o prêmio da indústria, tornar-se-iam o alimento da tirania.”


“Os furtos não acompanhados de violência deveriam ser punidos com penas pecuniárias. Quem procura apoderar-se do alheio deveria ser privado do próprio. Mas como habitualmente esse é o delito da miséria e do desespero, o delito daquela porção infeliz de homens a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) não deixou senão uma existência de privações; mas como, ainda, as penas pecuniárias castigam um número de pessoas maior que o dos delitos, pois que, ao tirar o pão aos celerados, acabam tirando-o aos inocentes, a pena mais oportuna será então o único tipo de escravidão que possa se chamar de justa, ou seja, a escravidão temporária dos trabalhos e da pessoa ao serviço da sociedade comum, para ressarci-la com a própria e total dependência, do injusto despotismo exercido ao violar o pacto social. Se, porém, o delito for acompanhado de violência, a pena deve ser igualmente um misto de pena corporal e servil.”


“Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em consequência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que frequentemente tudo supre em nós, afasta a ideia de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança. A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitá-la com uma ousadia tanto maior quanto maior é o mal em que incorremos e leva a cometer outros delitos mais para escapar a pena de um só. Os países e os tempos em que se infligiam os suplícios mais atrozes sempre foram aqueles das ações mais sanguinárias e desumanas, pois o mesmo espírito de ferocidade que guiava a mão do legislador conduzia a do parricida e do sicário. Do trono, esse espírito ditava leis férreas a ânimos torturados de escravos, que obedeciam; na escuridão do privado, estimulava a imolação dos tiranos para criar outros novos.
À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, os espíritos humanos que, como os fluidos, se nivelam sempre com os objetos que os cercam, endurecem, e a força sempre viva das paixões faz com que, após cem anos de cruéis suplícios, a roda* assuste tanto quanto antes a prisão assustava. Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser levada em conta a infalibilidade da pena e a perda do bem que o delito devia produzir. Tudo mais é supérfluo e, portanto, tirânico. Os homens pautam-se pela ação repetida dos males que conhecem e não daqueles que ignoram. Considerem-se duas nações, numa das quais, na escala das penas proporcional à escala dos delitos, a pena maior seja a escravidão perpétua e, na outra, a roda. Eu digo que a primeira terá tanto temor de sua pena quanto a segunda.”
*A roda: o suplício da roda, que consistia em amarrar o condenado a uma roda enfiada horizontalmente numa estaca, para aí deixá-lo morrer lentamente, após ter-lhe quebrado braços e pernas.


“Não é o espetáculo terrível mas passageiro da morte de um celerado, e sim o longo e sofrido exemplo de um homem privado da liberdade e que, convertido em besta de carga, recompensa com seu trabalho aquela sociedade que ofendeu, que constitui o freio mais forte contra os delitos. Aquela repetição a si mesmo, eficaz por seu insistente retorno, “eu mesmo serei reduzido a tal longa e mísera condição se cometer semelhantes delitos”, é muito mais poderosa do que a ideia da morte, que os homens sempre veem longínqua e obscura.”


“Um ladrão ou um assassino, cujo único contrapeso para não violar a lei é a forca ou a roda, raciocina mais ou menos da seguinte forma. Sei que desenvolver os sentimentos do próprio espírito é uma arte que se aprende com a educação, mas se um ladrão não sabe expressar apropriadamente os seus princípios, não é por isso que eles deixem de atuar. Que leis são essas que devo respeitar e que põem uma distância tão grande entre mim e o rico? Ele me nega o vintém que lhe peço e se desculpa mandando-me trabalhar, o que ele mesmo não sabe fazer. Quem fez essas leis? Homens ricos e poderosos que nunca se dignaram visitar os míseros casebres dos pobres, que nunca precisaram repartir um pão amanhecido entre os gritos inocentes dos filhos esfomeados e as lágrimas da mulher. Rompamos esses liames fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos indolentes; ataquemos a injustiça em sua fonte. Voltarei ao meu estado de independência natural, viverei livre e feliz por algum tempo com os frutos da minha coragem e da minha indústria; virá talvez o dia da dor e do arrependimento, mas esse tempo será breve, e terei um dia de privação por muitos anos de liberdade e de prazeres. Rei de poucos homens, corrigirei os erros da fortuna, e verei esses tiranos empalidecerem e palpitarem à presença daquele que preteriram, com fausto ultrajante, aos seus cavalos e aos seus cães.”


“A história da humanidade nos dá a ideia de um imenso oceano de erros, dos quais emergem, a grandes intervalos, algumas poucas verdades confusas. Os sacrifícios humanos foram comuns a quase todas as nações, mas quem ousará desculpá-los?”.


“O clamor público, a fuga, a confissão extrajudicial, o depoimento de um cúmplice, as ameaças e a constante inimizade com a vítima, o corpo de delito e indícios semelhantes são provas suficientes para prender um cidadão; mas essas provas devem ser estabelecidas pela lei e não pelos juízes, cujos decretos são sempre nocivos à liberdade política, quando não são proposições de uma máxima geral emanada do código público.”


“Regra geral: em cada delito que, por natureza, deve geralmente ficar impune, a pena torna-se um incentivo.”


“Não pretendo diminuir a justa repulsa que merecem esses delitos, mas, indicando suas origens, creio-me no direito de extrair uma conclusão geral, a saber: que não se pode chamar precisamente justa (isto é, necessária) a pena de um delito, enquanto a lei, nas dadas circunstâncias de uma nação, não tenha aplicado os melhores meios possíveis para preveni-lo.”


“Os homens, entregues a seus sentimentos mais óbvios, amam as leis cruéis, embora, sujeito a elas, fosse do interesse de cada um que elas fossem moderadas, pois é maior o temor de ser ofendido que a vontade de ofender”.


“Outra questão diz respeito à utilidade ou não de se colocar a prêmio a cabeça de um homem, notoriamente culpado, armar o braço de cada cidadão e fazer dele um carrasco. Ou o réu está além das fronteiras, ou dentro delas. No primeiro caso, o soberano estimula os cidadãos a cometerem um delito e os expõe ao castigo, praticando assim uma injustiça e uma usurpação de autoridade nos domínios alheios; autoriza, assim, as outras nações a agir da mesma forma. No segundo, dá ele mostras da própria fraqueza. Aquele que tem a força para se defender não procura comprá-la. Ademais, semelhante édito subverte todas as ideias de moral e de virtude, que, ao menor sopro de vento, se desvanecem no espírito humano. Ora as leis convidam à traição, ora a punem. Com uma mão o legislador estreita os laços de família, de parentesco, de amizade, e com a outra premia quem os quebra; sempre contradizendo a si mesmo, ora convida à confiança os ânimos desconfiados dos homens, ora espalha a desconfiança nos corações. Ao invés de prevenir um delito, dá origem a outros cem. São esses os expedientes de nações fracas, cujas leis não passam de restaurações momentâneas de um edifício em ruínas que esteja desabando. À medida que crescem os lumes numa nação, tornam-se necessárias a boa-fé e a confiança recíproca e cada vez mais tendem elas a confundir-se com a verdadeira política. Os artifícios, as cabalas, as vias obscuras e indiretas são, geralmente, previsíveis e a sensibilidade de todos inibe a sensibilidade de cada um em particular. Os próprios séculos de ignorância, nos quais a moral política obriga os homens a obedecer à moral privada, servem de ensinamento e de experiência aos séculos iluminados. Mas as leis que premiam a traição e atiçam uma guerra clandestina semeando a desconfiança recíproca entre os cidadãos se opõem a essa aliança tão necessária entre a moral e a política, aliança que asseguraria aos homens a felicidade, às nações a paz, e, ao universo, intervalos mais longos de tranquilidade e repouso dos males que o afligem.”


“Alguns tribunais oferecem a impunidade àquele cúmplice de delito grave que denuncie seus companheiros. Tal expediente tem seus inconvenientes e suas vantagens. Os inconvenientes são que a nação autoriza a traição, detestável mesmo entre os celerados, porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vileza: porque a coragem não é frequente, já que só espera uma força benéfica e diretriz que a faça concorrer ao bem público, enquanto a vileza é mais comum e contagiosa, e sempre mais se concentra em si mesma. Ademais, o tribunal revela a sua própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora ajuda a quem a ofende. As vantagens consistem na prevenção dos delitos importantes que, por terem efeitos evidentes e autores ocultos, atemorizam o povo; além disso, se contribui para mostrar que quem não tem fé nas leis, isto é, no público, é provável que também não confie no privado. Parece-me que uma lei geral que prometesse a impunidade ao cúmplice delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial num caso particular, porque assim preveniria as uniões pelo temor recíproco que cada cúmplice teria de se expor sozinho e o tribunal não faria homens audaciosos, dos celerados que se vissem chamados a ajudar num caso particular. Uma tal lei, portanto, deveria unir a impunidade ao banimento do delator...”.


“O ódio é um sentimento mais durável que o amor na medida em que aquele retira a sua força da continuidade dos atos que enfraquecem este último.”


“A maioria das leis não passam de privilégios, isto é, um tributo de todos em benefício de alguns poucos.”


“Os filósofos adquirem necessidades e interesses desconhecidos da gente vulgar, principalmente o de não desmentir à luz do dia os princípios apregoados na obscuridade, e adquirem o hábito de amar a verdade por si mesma. Uma seleção de homens como esses forma a felicidade de uma nação; será, no entanto, uma felicidade momentânea se as boas leis não aumentarem seu número de tal modo que reduza a probabilidade sempre grande de uma má eleição”.


“Para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos dos delitos e ditadas pelas leis.”