Editora: BestBolso
ISBN: 978-85-7799-008-5
Tradução: Valerie Rumjanek
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 112
Sinopse: Um
advogado francês faz seu exame de consciência num bar de marinheiros, em
Amsterdã. O narrador, autodenominado “juiz-penitente”, denuncia a própria
natureza humana misturada a um penoso processo de autocrítica. O homem que fala
em A Queda se entrega a uma confissão e onde começa a acusação? Ele se
isolou do mundo após presenciar o suicídio de uma mulher nas águas turvas do
Sena, sem coragem de tentar salvá-la. Camus revela o homem moderno que abandona
seus valores e mergulha num vazio existencial.
“Quando pensamos muito sobre o homem, por
trabalho ou vocação, às vezes sentimos nostalgia dos primatas. Estes não tinham
segundas intenções.”
“Consolo-me dizendo a mim mesmo que, afinal,
aqueles que falam de maneira ininteligível também não são puros.”
“Quanto a mim, moro no bairro judeu, ou no
que era assim chamado até o momento em que nossos irmãos hitlerianos abriram
espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados – é
a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando
não se tem caráter, é preciso mesmo valer-se de um método.”
“Eu era de origem honesta, mas obscura (meu
pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso,
sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo
diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo.
Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por
tantos imbecis”.
“A amizade é menos simples. Sua aquisição é
longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meios de nos livrarmos dela;
temos de enfrentá-la.”
“Bem sei que não se pode deixar de dominar ou
de ser servido. Todo homem tem necessidade de escravos, como de ar puro. Mandar
corresponde a respirar, não tem a mesma opinião? E até os mais desfavorecidos
conseguem respirar. O último da escala social ainda tem o cônjuge ou
o filho. Quando é solteiro, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa
poder zangar-se, sem que alguém tenha o direito de responder: “Não se responde
ao pai”, conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se
responderia neste mundo, senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente.
É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se
uma outra: nunca mais se acabaria. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou
tempo, mas conseguimos compreender isso. Por exemplo, deve ter notado, a nossa
velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos
tempos ingênuos: “Eu penso assim. Quais são as suas objeções?”. Tornamo-nos
lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. “Esta é a verdade”, dizemos.
“Podemos até discuti-la, isso não nos interessa. Mas, dentro de alguns anos, lá
estará a polícia para lhes mostrar quem tem razão”.”
“Cá entre nós, a servidão, de preferência
sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não
pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por
princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação
certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós
ficaremos com a consciência tranqüila. Sem isso, seríamos forçados a mudar de
opinião, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, deve-se temer tudo. Por
isso, nada de insígnias, e isto é escandaloso. Aliás, se todo mundo se sentasse
à mesa e ostentasse sua verdadeira profissão, sua identidade, já nem saberíamos
para que lado haveríamos de nos voltar! Imagine os cartões de visita: Dupont,
filósofo apavorado ou proprietário cristão ou humanista adúltero, na verdade,
nós temos a escolha. Mas seria o inferno! Sim, o inferno deve ser assim: ruas
com insígnias e nenhuma possibilidade de explicação. Fica-se classificado de
uma vez para sempre.”
“Devo reconhecer humildemente, meu caro
compatriota, que fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão de
minha preciosa vida, e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar
vangloriando-me, sobretudo quando o fazia com esta ruidosa discrição, cujo
segredo eu possuía. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso.
Simplesmente, sentia-me liberado em relação a todos pela excelente razão de que
me considerava sem igual. Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo,
como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite,
incomparável ao volante e ótimo amante. Mesmo nos setores em que era fácil
verificar minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era apenas
um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para
treinar, superaria os melhores. Só reconhecia em mim superioridades, o que
explicava minha benevolência e serenidade. Quando me ocupava dos outros, era
por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu
favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.”
“Já notou que há pessoas cuja religião
consiste em perdoar todas as ofensas, e que efetivamente as perdoam, mas nunca
as esquecem? Eu não era feito de matéria que me permitisse perdoar as ofensas,
mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim,
custava a acreditar que estava sendo saudado com um largo sorriso. Segundo sua
índole, admirava então minha grandeza de alma ou desprezava minha desfaçatez,
sem pensar que minha razão era mais simples: eu havia esquecido até o seu nome.
O mesmo defeito que me tornava indiferente ou ingrato fazia-me magnânimo.”
“É preciso que se saiba, antes de tudo, que
sempre tive êxito com as mulheres, e sem grande esforço. Não me refiro ao êxito
em fazê-las felizes, tampouco em fazer-me feliz por intermédio delas. Não; ter
êxito, simplesmente. Eu era bem-sucedido, mais ou menos quando queria. Achavam
que eu tinha certo charme, imagine! Sabe o que é isto: um modo de ouvir sim
como resposta, sem ter feito uma pergunta clara.”
“Depois de certa idade, todo homem é
responsável pelo seu rosto.”
“Em cada caso, minha sensualidade, para só
falar dela, era tão real que, mesmo por uma aventura de dez minutos, eu
renegaria pai e mãe, mesmo se tivesse de lamentar isso amargamente. Que digo
eu! Sobretudo por uma aventura de dez minutos, e mais ainda, se eu tivesse a
certeza de que ela não teria futuro. Eu tinha princípios, é claro; por exemplo:
a mulher dos amigos era sagrada. Simplesmente, eu deixava, com toda
sinceridade, alguns dias antes, de ter amizade pelos maridos.”
“Nenhum homem é hipócrita em seus prazeres.”
“Digo amigos, aliás, por princípio. Não tenho
mais amigos, só tenho cúmplices.”
“Os mártires, caro amigo, têm de escolher
entre serem esquecidos, ridicularizados, ou usados. Quanto a serem
compreendidos, isso, nunca.”
“Eis o que nenhum homem (exceto os que não
vivem, quero dizer, os sábios) consegue suportar. A única defesa está na
maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem
julgadas. Que quer? A ideia mais natural para o homem, a que lhe surge
ingenuamente, como no fundo de sua natureza, é a ideia de sua inocência.”
“Como poderia a sinceridade ser uma condição
da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e
a que nada resiste. É um vício, às vezes um conforto, ou um egoísmo. Portanto,
se o senhor se encontrar neste caso, não hesite: prometa ser verdadeiro e minta
o melhor que puder. Atenderá ao profundo desejo deles e provará duplamente sua
afeição.”
“Há, na verdade, esforços e convicções que
nunca compreendi. Eu olhava sempre com um ar de espanto e com um pouco de
suspeita aquelas estranhas criaturas que morriam por dinheiro e se desesperavam
com a perda de uma “situação” ou se sacrificavam com grande ostentação pela
prosperidade da família. Eu compreendia melhor aquele amigo que havia decidido
nunca mais fumar e que, pela força de vontade, fora bem-sucedido. Certa manhã,
abriu o jornal, leu que a primeira bomba H havia explodido, informou-se sobre
seus admiráveis efeitos e entrou sem demora numa tabacaria.”
“Foi nesse momento que o pensamento da morte
irrompeu em minha vida diária. Contava os anos que me separavam de meu fim.
Buscava exemplos de homens de minha idade que já estivessem mortos. E me
atormentava a ideia de que não teria tempo de realizar a minha tarefa. Que
tarefa? Eu nem sabia.”
“E então? Então, a única utilidade de Deus
seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma
grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, por um breve tempo,
precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta
sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados,
todos castigados, escarremo-nos, e pronto! Já para o desconforto! Basta ver
quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhes um grande segredo, meu caro.
Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”
“O grande empecilho a evitar não será o de
sermos nós os primeiros a nos condenar? É preciso, pois, começar a estender a
condenação a todos, sem discriminação, para diluí-la desde já.”
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