terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A criança roubada – Keith Donohue

Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-6028-138-1
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 368
Sinopse: A criança roubada é uma emocionante fábula sobre os desafios da vida. Henry Day tem 7 anos quando foge de casa e se esconde na floresta. Só que ele não sabe que é seguido de perto por pequenos seres que vivem na mata e, de tempos em tempos, roubam a identidade de uma criança humana.
Rebatizado de Aniday, Henry ficará para sempre aprisionado no corpo de um desses seres, a não ser que, algum dia, consiga roubar o lugar de um garoto. Aniday cresce em espírito, lutando para se lembrar da vida e da família que deixou para trás, e busca se adaptar à terra de sombras em que se encontra, ameaçada constantemente pelo avanço do mundo moderno.
Enquanto isso, em seu antigo lar, um duplo assume sua personalidade, ocultando sua verdadeira natureza. Aos poucos, no entanto, essa criatura demonstra uma rara habilidade musical — que o verdadeiro Henry jamais teve —, e suas exibições impressionantes no piano levam o pai a suspeitar que o filho que está criando é um impostor.
À medida que cresce, esse novo Henry Day é assombrado por lembranças tênues, mas persistentes, de uma outra vida, que levou há mais de um século, antes de ter se tornado um desses seres da floresta. São memórias que o farão ir em busca de sua verdadeira identidade, da mesma forma que, na mata, Aniday tentará reconstruir seu passado. Nessa jornada, eles nem sequer pressentem que seus destinos irão se cruzar mais uma vez.

“– Meu nome é Henry Day – murmurei, num grasnado rouco de sofrimento.
– Olá, Anyday.
Onions sorriu e todo mundo riu do apelido. As fadas-crianças começaram a cantar “Aniday, Aniday”, e um lamento ecoou em meu coração. Desse dia em diante, passei a ser chamado de Aniday, e com o tempo, esqueci meu verdadeiro nome, embora em certas ocasiões ele voltasse parcialmente como Andy Day ou Anyway. Desse modo batizado, minha antiga identidade começou a sumir, assim como um bebê não se recorda do que aconteceu antes de seu nascimento. Perder o próprio nome é o princípio do esquecimento.”


“Dizem que a pessoa nunca esquece o primeiro amor, mas é com grande consternação que admito não lembrar de seu nome ou de muita coisa a seu respeito – além do fato de ter sido a primeira garota que vi nua. Pelo bem da narrativa, vou chamá-la de Sally. Talvez fosse mesmo seu nome. Após o verão em que confessei meu segredo a Oscar, retomei as aulas com o Sr. Martin e lá estava ela. Havia partido ao final do ano letivo e voltara uma criatura diferente – alguém a ser desejada, um fetiche, uma obsessão. Sou tão culpado de desejos anônimos quanto qualquer outro, mas foi ela quem me escolheu. Acolhi sua estima de bom grado e sem lhe dar trégua. Eu vinha observando suas curvas havia meses, antes que ela reunisse coragem de conversar comigo no recital de inverno. Estávamos juntos nos bastidores, trajados formalmente, aguardando angustiados a vez de cada um sentar ao piano. As crianças mais novas iam antes, pois a agonia é mais bem servida como aperitivo.”


“– Escreva, rapaz. Se você encontra uma passagem na leitura de que gostaria de lembrar, escreva em seu caderninho; depois pode ler de novo, memorizar e ter com você sempre que quiser.”


“– Todo sonho é louco, Henry, e você não pode desejar que eles não existam, assim como não pode querer que existam. Você tem que decidir se age guiado por eles ou se vai deixá-los sumir.”


“– E assim caminha a vida. Todas as coisas passam e dão lugar a outras. Não é lá muito sábio se apegar demais a qualquer mundo ou sua gente.”


“– Pequeno tesouro, vá dormir – disse Smaolach. – A gente vai pensar num plano. Um novo dia é a promessa de algo diferente.”


“Todo mundo tem um segredo indizível horrendo demais para contar a um amigo ou companheiro, padre ou psicanalista, entranhado demais no coração para ser extirpado sem dano. Algumas pessoas decidem ignorá-lo; outras enterrá-lo bem fundo e arrastá-lo em silêncio até a cova. Nós o mascaramos tão bem que até o corpo às vezes esquece que o segredo existe.”


“– Tenho sido um bom filho, mãe?
– Henry. – Ela encostou a palma de sua mão em meu rosto, um gesto de meus tempos de infância, e a dor com a partitura perdida diminuiu. – Você é quem você é, para o bem ou para o mal, e não adianta nada ficar se torturando com suas próprias criações. Demônios. – Sorriu como se um pensamento novo houvesse entrado em sua mente. – Alguma vez pensou se você é real para eles? Tire esses pesadelos de sua cabeça.
Fiquei de pé para ir, então me curvei e dei-lhe um beijo de despedida. Ela me tratara com bondade nesses anos todos, como se eu fosse seu próprio filho.
– Eu sempre soube, Henry – ela disse.
Saí de casa sem perguntar o quê.”


“O que a memória deixa escapar, a imaginação recria.”

Nenhum comentário: