quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Grande sertão: veredas (Parte II), de João Guimarães Rosa

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★★

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ISBN: 978-85-359-3198-3

Páginas: 560

Sinopse: Ver Parte I



“Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim: — “Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar…” De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso. Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás.

— “Vim de vez!” — ele disse; disse desafiando, quase.

— “Em boa veio, chefe! É o que todos aqui representamos…” — Marcelino Pampa respondeu.

— “A pois. Salve Medeiro Vaz!…”

— “Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso…”

— “Aqui soube. Lux eterna…” — e Zé Bebelo tirou o chapéu e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente até se comoveu. Depois, disse:

— “Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a vida em outro tempo me salvou de morte… E liquidar com esses dois bandidos, que desonram o nome da Pátria e este sertão nacional! Filhos da égua…” — e ele estava com a raiva tanta, que tudo quanto falava ficava sendo verdade.

— “Pois, então, estamos irmãos… E esses homens?”

Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte:

— “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!…”

Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas.

Vez de Marcelino Pampa dizer:

— “Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.”

— “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.”

Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado:

— “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens…”

Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez.

— “Acordo!” — eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; todos falaram: — “Acordo!”

Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que esperava mesmo aquele voto. — “De todo poder? Todo o mundo lealda?” — ainda perguntou, ringindo seriedade. Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou: — “Ao redor de mim, meus filhos. Tomo posse!” Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em meio nosso os cinco homens do Urucúia. Adiante: — “Pois estamos. É o duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca Ramiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!…” — ele definiu, apanhando um por um de nós no olhar. — “Assassinos — eles são os Judas. Desse nome, agora, que é o deles…” — explicou João Concliz. — “Arre, vôte: dois judas, podemos romper as alelúias! Alelúia! Alelúia! Carne no prato, farinha na cúia!…” — ele aprovou, deu aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé Bebelo era. Como quando trovejou: desse trovôo de alto e rasto, dos gerais, entrementes antes dos gotêjos de chuva esquentada: o trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi: trovejou de cala-a-boca — e Zé Bebelo tocou um gesto de costas da mão, respeitoso disse: — “Isto é comigo…” Do que se tratava, retorno e conto, ele o seguinte revelou: — “Tudo eu não tinha, com os meus, munição para nem meia-hora…” A gente reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somenos, por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia de ter a valentia muito grande.

A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não esbarrou mais. Achou de ir ver o lugar da cova, e as armas e trens que Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o morto não tendo parentes, então para os melhores mais chegados como lembrança ficassem: as carabinas e revólveres, a automática de rompida e ronco, punhal, facão, o capote, o cantil revestido, as capangas e alforjes, as cartucheiras de trespassar. Alguém disse que o cavalo grande, murzelo-mancho, devia de ficar sendo dele mesmo. Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo grave: — “Este animal é vosso, Marcelino, merecido. Porque eu ainda estou para ver outro com igual siso e caráter!” Apertou a mão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, perturbado. Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé Bebelo. Mas, para si mesmo, Zé Bebelo guardou somente o pelego berbezim, de forrar sela, e um bentinho milagroso, em três baetas confeccionado.

Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo. Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugar nascido, resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer ofício de habilidade. Olhou e contou as pencas de munição e as armas. Repassou os cavalos, prezando os mais bem ferrados e os de aguentada firmeza. — “Ferraduras, ferraduras! Isto é que é importante…” — vivia dizendo. Repartiu os homens em quatro pelotões — três drongos de quinze, e um de vinte — em cada um ao menos um bom rastreador. — “Carecemos de quatro buzinas de caçador, para os avisos…” — reclamou. Ele mesmo tinha um apito, pendurado do pescoço, que de muito longe se atendia. Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa, João Concliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de vinte — nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim, Sesfrêdo, o Quipes, Joaquim Beijú, Coscorão, Dimas Dôido, o Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Crédo, Marimbondo, Rasga-em-Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas. Só que, tidos todos repartidos, ainda sobravam nove — serviram para esquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros, com petrechos e mantimentos. O testa deles foi Alaripe, por bom que fosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o Jacaré exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador deles; e os outros ajudavam; mas Raymundo Lé, que entendia de curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. Mas Zé Bebelo não se atontava: — “Aí em qualquer parte, depois, se compra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha e raiz, vai tendo, vai enchendo… O que eu quero é ver o surrão à mão…” O acampamento da gente parecia uma cidade.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens. — “Trabucar duro, para dormir bem!” — publicava. Gostadamente: — “Morrendo eu, depois vocês descansam…” — e ria: — “Mas eu não morro…” Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó. E — engraçado dizer — a gente apreciava aquilo. Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra. O mais eram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ou esbarrados firmes em formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando, manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: — “Arre, temos nenhum tempo, gente! Capricha…” Sempre, no fim, por animar, levantava demais o braço: — “Ainda quero passar, a cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais… Mas hei-de! Ah, que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no haja vinho… Arranchar no mercado da Diamantina… Eh, vamos no Paracatú-do-Príncipe!…” Que boca, que o apito: apitava.

A sério, ele me chamava para o lado dele, e ia mandando vir outros — Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o urucuiano Pantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham de expor o que sabiam daquele gerais território: as distâncias em léguas e braças, os váus, o grau de fundo dos marimbús e dos poços, os mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos. Como Zé Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindo avante. Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo representado. Ia organizando aquilo na cabeça. Estava aprendido. Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos. Bem eu conhecia Zé Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasse ter nascido como ele… Aí, saía, por caçar. Sucinto que gostava de caçar; mas estava era sujeitando a exame o morro, discriminando. O mato e o campo — como dois é um par. Veio e foi, figurava, tomava a opinião da gente: — “Com dez homens, naquela altura, e outros dez espalhados na vertente, se podia impedir a passagem de duzentos cavaleiros, pelo resfriado… Com outros alguns, dando a retaguarda, então…” Nest’artes, só nisso ele pensava, quase que. Sendo que expedia, sobre hora, alguém adiante, se informar do meximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homem feliz, feito Zé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nunca não vi.

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege… Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver… O senhor já sabe: viver é etcétera… Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Ôi, suindara! — linda cor…”

 

 

“Quando se dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em toda a parte é desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue. Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra… O demônio na rua, no meio do redemunho… O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.”

 

 

“O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.”

 

 

Mas, minha vida na fazenda, era ruim ou era boa? Se melhor era. Arre, eu estava feito um inhampas. Aí lordeei. Me acostumei com o fácil movimento, entrei de amizade com os capangas. Sempre chegavam pessoas de fora, que conversavam em sozinhos com Zé Bebelo, gente de cidade. De um, eu soube que era delegado, em missão. E ele me apresentava com a honra de: Professor Riobaldo, secretário sendo. Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinquenta. Elas vinham vindo, tantas, que, quase todo dia, mais tinham de baratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: — “Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas raparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. — “Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo em abusos, patuleias…” — isto explicava. Demais, de tudo ali se prazia fartura confortável! Abastada comida, armamento de primeira, monte de munição, roupas e calçados para os melhores. E o cobre para semanal de pagamento, pois nenhum daqueles homens estava ali por amor-de-deus, mas ajeitando seu meio de viver. Diziam que era dinheiro do cofre do Governo. Parecia.

A tal que, enfim, veio o dia de se sair, guerreiramente, por vales e montes, a gente toda. Ôi, o alarido! Aos quantos gritos, um araral, revôo avante de pássaros — o senhor mesmo nunca viu coisa assim, só em romance descrito. De glória e avio de própria soldadesca, e cavalos que davam até medo de não se achar pasto que chegasse, e o pessoal perto por uns mil. Acompanhado dos chefes-de-turma — que ele dava patente de serem seus sotenentes e oficiais de seu terço — Zé Bebelo, montado num formudo ruço-pombo e com um chapéu distintíssimo na cabeça, repassava daqui p’r’ali, eguando bem, vistoriava. Me chamou para junto, eu tinha de ter à mão um caderno grosso, para por ordem dele assentar nomes, números e diversos, amanuense. Com eles eu estava vindo, então, o senhor vê. Vinha, para conhecer esse destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que, quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava baixa e alta de me ir m’embora.

Digo que fui, digo que gostei. À passeata forte, pronta comida, bons repousos, companheiragem. O teor da gente se distraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia ser ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era o enfim.”

 

 

Daí, quando se estava no depois do almoço, vieram cavaleiros nossos, tangendo o troço de presos. Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos — se via que não tinham esperança nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia de Extrema, e de lá para outras cadeias, de certo, até para a da Capital. Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. — “Tem dó não. São os danados de façanhosos…” Ah, era. Disso eu sabia. Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.”

 

 

“Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido — porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. — “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos” — me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece — só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por que? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta.”

 

 

A bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já vai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo dele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui. Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro de primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos. Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O senhor vigie esses: comem o crú de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô Candelário, que se prezava de bondoso, mandava mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus. — “E Deus, Diadorim?” — uma hora eu perguntei. Ele me olhou, com silênciozinho todo natural, daí disse, em resposta: — “Joca Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de Espinosa…”

Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.

Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando um inimigo foi pego, ele mandou: — “Guardem este.” Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca prôpria se abrir alta no meio, qual sem vontade, boca de dôr. Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele — um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu em claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rás, com o inferno da jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí eu não queria ficar dôido, no nem mesmo. Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juizo: — “Riobaldo, onde é que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é com quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bem-comportados bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé Bebelo e aos cachorros do Governo?!” A espichado, nesse dia calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição. Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.”

 

 

“Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”

 

 

E mesmo forte era a minha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado de ódio: que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igual palpite de amor. Esse Hermógenes — belzebú. Ele estava caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube tanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí, arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de mim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras. Nas larguezas do sono da gente.”

 

 

“O senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele Hermógenes me fazia agradados, demo que ele gostava de mim. Sempre me saudando com estimação, condizia um gracejo amistoso ou umas boas palavras, nem parecia ser o bedegueba. Por cortesia e por estatuto, eu tinha de responder. Mas, em mal. Me irava. Eu criava nôjo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas profundas. Nem olhei nunca nos olhos dele. Nôjo, pelos eternos — razão de mais distâncias. Aquele homem, para mim, não estava definitivo. E arre que ele não desconfiava, não percebia! Queria conversa, me chamava; eu tinha de ir — ele era o chefe. Fiquei de ensombro. Diadorim notou; me deu conselho: — “Modera esse gênio que você tem, Riobaldo. As pessoas não são tão ruins agrestes.” “— Dele não me temo!” — eu respondi. Eu podia xingar com os olhos. Aí, o Hermógenes me presenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive para nem aceitar. Eu já possuía revólver meu, carecia algum daquele, de tanto só cano, tão enorme? Por insistências dele, mesmo, com aquilo fiquei. Cuspi, depois. Dado que eu nunca ia retribuir! Queria eu lá viver perto de chefes? Careço é de pousar longe das pessoas de mando, mesmo de muita gente conhecida. Sou peixe de grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta, quando desgosto, também. Ninguém, com dádivas e gabos, não me transforma. Aquele Hermógenes era matador — o de judiar de criaturas filhos-de-deus — felão de mau. Meus ouvidos expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinha sido feita para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes — eu padecia que ele assistisse neste mundo… Quando ele vinha conversar comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até ao demônio para vir ficar de permeio entre nós dois, para dele me apartar. Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio, e descarregar nele tiros, entre os todos olhos. O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais.

Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.”

 

 

Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. Que Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E, naqueles meses todos, a gente vivendo em par a par, por altos e baixos, amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia esconder, bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a gente estivesse em ofício de bando, que nenhum de nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: — “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avêjo servem só para tirar da gente o poder da coragem… Você cruza e jura?!” Jurei. Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. Mas Diadorim dava como exemplo a regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem — o sempre sem mulher, mas valente em qualquer praça. Prometi. Por um prazo, jejuei de nem não ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência. O senhor sabe o que isso é? Desdeixei duma rôxa, a que me suplicou os carinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga, das de luxo, que passou de viagem, e serviu aos companheiros quase todos, e era perfumada, proseava gentil sobre as sérias imoralidades, tinha beleza. Não acreditei em juramento, nem naquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas Diadorim me vigiava. De meus sacrifícios, ele me pagava com seu respeito, e com mais amizade. Um dia, no não poder, ele soube, ele quase viu: eu tinha gozado hora de amores, com uma mocinha formosa e dianteira, morena cor de dôce-de-burití. Diadorim soube o que soube, me disse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi que uns dias calado passei, na asperidão sem tristeza. De déu em demos, falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim não me acusava, mas padecia. Ao que me acostumei, não me importava. Que direito um amigo tinha, de querer de mim um resguardo de tamanha qualidade? Às vezes, Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. — “Não sou o nenhum, não sou frio, não… Tenho minha força de homem!” Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saíu para longe de mim; desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para eu ter pena? Homem não chora! — eu pensei, para formas. Então, eu ia deixar para a boca dos outros aquela menina que se agradou de mim, e que tinha cor de dôce de burití e os seios tão grandes?! Ah, essa agora não estava a meu dispor, tínhamos viajado muito para longe de onde ela morava. Mas entramos num arraial maior, com progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí muito, sou senhor. Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas. Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças da mocidade. Não estou contando? Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu — como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão… Diadorim tomou conta de mim.”

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