Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-8057-581-1
Tradução: Monica Baumgarten de Bolle
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 674
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Sinopse: Nenhum livro de economia publicado nos últimos anos foi capaz de
provocar o furor internacional causado por O
capital no século XXI, do francês Thomas Piketty. Seu estudo sobre a
concentração de riqueza e a evolução da desigualdade ganhou manchetes nos
principais jornais do mundo, gerou discussões nas redes sociais e colheu
comentários e elogios de diversos ganhadores do Prêmio Nobel.
Fruto de quinze anos de pesquisas incansáveis, o livro se
apoia em dados que remontam ao século XVIII, provenientes de mais de vinte
países, para chegar a conclusões explosivas. O crescimento econômico e a
difusão do conhecimento impediram que fosse concretizado o cenário apocalíptico
previsto por Karl Marx no século XIX. Porém, os registros históricos demonstram
que o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade, pois, no
longo prazo, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do
crescimento econômico, o que se traduz numa concentração cada vez maior da
riqueza. Uma situação de desigualdade extrema pode levar a um descontentamento
geral e até ameaçar os valores democráticos. Mas Piketty lembra também que a
intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá
voltar a fazê-lo.
Essa obra, que já se tornou uma referência entre os
estudos econômicos, contribui para renovar inteiramente nossa compreensão sobre
a dinâmica do capitalismo ao colocar sua contradição fundamental na relação
entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. O capital no século
XXI nos obriga a refletir profundamente sobre as questões mais prementes de
nosso tempo.
“Quando se discute a distribuição da riqueza,
a política está sempre por perto, e é difícil escapar aos preconceitos e
interesses de classe que predominam em cada época.”
“Quais foram as principais conclusões que
pude tirar dessas fontes históricas inéditas? A primeira é que se deve sempre
desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o
assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da
riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição
aos mecanismos puramente econômicos. Em particular, a redução da desigualdade
que ocorreu nos países desenvolvidos entre 1900-1910 e 1950-1960 foi, antes de
tudo, resultado das guerras e das políticas públicas adotadas para atenuar o
impacto desses choques. Da mesma forma, a reascensão da desigualdade depois dos
anos 1970-1980 se deveu, em parte, às mudanças políticas ocorridas nas últimas
décadas, principalmente no que tange à tributação e às finanças. A história da
desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e
econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência
relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso
decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os
atores envolvidos.
A segunda conclusão, que constitui o cerne
deste livro, é que a dinâmica da distribuição da riqueza revela uma engrenagem
poderosa que ora tende para a convergência, ora para a divergência, e não há
qualquer processo natural ou espontâneo para impedir que prevaleçam as forças
desestabilizadoras, aquelas que promovem a desigualdade. (...)
Não há evidência de que a participação do
trabalho na renda nacional tenha aumentado de modo substancial ao longo dos
anos. O que se sabe é que o capital (não humano) é quase tão indispensável no
século XXI quanto foi nos séculos XVIII e XIX — e que é possível que se torne
ainda mais indispensável no futuro. Podemos também afirmar que, tal qual
acontecia no passado, a desigualdade da riqueza ocorre, sobretudo, dentro de cada
faixa etária, e veremos que a riqueza herdada é quase tão decisiva para o
padrão de vida de uma família no século XXI quanto era na época em que Balzac
escreveu O pai Goriot. No longo
prazo, a força que de fato impulsiona o aumento da igualdade é a difusão do
conhecimento e a disseminação da educação de qualidade.
Ainda que a difusão do conhecimento seja
muito potente, sobretudo para promover a convergência entre países, às vezes
ela pode ser contrabalançada e dominada por outras forças que operem no sentido
contrário — as de divergência, isto é, na direção do aumento da desigualdade. É
evidente que a falta de investimento adequado na capacitação da mão de obra
pode excluir grupos sociais inteiros, impedindo-os de desfrutar dos benefícios
do crescimento econômico, ou até mesmo rebaixá-los em benefício de novos grupos
sociais: vejam, por exemplo, a substituição de operários americanos e franceses
por operários chineses. Ou seja, a principal força de convergência — a difusão
do conhecimento — só é natural e espontânea em parte. Ela também depende muito
das políticas de educação e do acesso ao treinamento e à capacitação técnica, e
de instituições que os promovam.
Neste livro, procuro dar atenção especial a
algumas das forças de divergência mais preocupantes — elas são tão inquietantes
porque podem existir mesmo num mundo onde haja um nível de investimento
adequado em treinamento e capacitação da mão de obra e onde todas as condições
que asseguram a eficiência dos mercados (na definição dos economistas) estejam
presentes. Quais são essas forças de divergência? São aquelas que garantem que
os indivíduos com os salários mais elevados se separem do restante da população
de modo aparentemente intransponível, ainda que por ora esse problema pareça um
tanto pontual e localizado. São também, sobretudo, um conjunto de forças de
divergência atreladas ao processo de acumulação e concentração de riqueza em um
mundo caracterizado por crescimento baixo e alta remuneração do capital. Esse
segundo processo é potencialmente mais desestabilizador do que o primeiro, o do
distanciamento dos salários, e sem dúvida representa a principal ameaça para a
distribuição igualitária da riqueza no longo prazo.”
“Essa desigualdade fundamental, que denotarei
como r > g, em que r é a taxa de
remuneração do capital (isto é, o que rende, em média, o capital durante um
ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, aluguéis e outras rendas do
capital, em porcentagem de seu valor) e g
representa a taxa de crescimento (isto é, o crescimento anual da renda e da
produção), desempenhará um papel essencial neste livro. De certa maneira, ela
resume a lógica das minhas conclusões.
Quando a taxa de remuneração do capital
excede substancialmente a taxa de crescimento da economia — como ocorreu durante
a maior parte do tempo até o século XIX e é provável que volte a ocorrer no
século XXI —, então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que
a renda e a produção. Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da
renda de seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia como um
todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a
riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do
capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores
meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas
sociedades democráticas modernas.
Essa força de divergência fundamental pode,
além disso, ser reforçada por outros mecanismos, como, por exemplo, se a taxa
de poupança aumentar muito com o nível de riqueza ou, ainda, se a taxa média de
retorno do capital for maior quanto mais elevada for a dotação inicial de
capital de um indivíduo (como parece ser cada vez mais comum). O caráter
imprevisível e arbitrário do retorno do capital, que permite que a riqueza
aumente de diversas maneiras, também apresenta um desafio para o ideal
meritocrático.
Em suma, os processos de acumulação e
distribuição da riqueza contêm em si poderosas forças que impulsionam a divergência,
ou, ao menos, levam a um nível de desigualdade extremamente elevado. Há,
também, forças de convergência, e em alguns países ou em determinados momentos
elas podem predominar; contudo, as forças de divergência têm sempre a
capacidade de se restabelecer, como parece estar acontecendo no mundo agora,
neste início do século XXI. A queda provável no crescimento econômico e no
ritmo de expansão da população ao longo das próximas décadas torna essa
tendência ainda mais alarmante.”
“O caso da França é interessante porque a
Revolução Francesa — revolução “burguesa” por excelência — introduziu
precocemente o ideal de igualdade jurídica em relação ao mercado. É
interessante avaliar como esse ideal afetou a dinâmica da distribuição da
riqueza. Embora a Revolução Inglesa de 1688 tenha dado início ao
parlamentarismo moderno, ela conservou uma dinastia real, deixou inalterada a
primazia sobre a propriedade da terra para os primogênitos até os anos 1920 e
manteve os privilégios políticos da nobreza hereditária até o presente (a
reforma da Câmara dos Lordes está em discussão até hoje, o que é, obviamente,
um debate longo demais). Por outro lado, a Revolução Americana de 1776
instituiu o princípio republicano, porém deixou a escravidão prosperar durante
mais um século, além de garantir a legalidade da discriminação racial durante
quase dois séculos. Não é à toa que a questão racial continua a influenciar,
até hoje, o debate social nos Estados Unidos. A Revolução Francesa de 1789 foi,
de certa maneira, mais ambiciosa: aboliu todos os privilégios legais e
tencionou criar uma ordem política e social totalmente fundada na igualdade dos
direitos e das oportunidades. O Código Civil garantiu a igualdade absoluta no
que diz respeito ao direito de propriedade e permitiu a livre contratação (pelo
menos para os homens). No final do século XIX e da Belle Époque, os economistas
conservadores franceses — como Paul Leroy-Beaulieu — utilizavam quase sempre
esse argumento para explicar por que a França republicana, país de “pequenos
proprietários”, que se tornou igualitário graças à Revolução Francesa, não
tinha necessidade de um imposto progressivo sobre a renda ou sobre as heranças,
ao contrário do Reino Unido monárquico e aristocrático. Ora, nossos dados
demonstram que a concentração da riqueza era, nessa época, quase tão extrema na
França quanto no Reino Unido, o que ilustra claramente que a garantia de
direitos iguais nos mercados não é suficiente para conduzir à igualdade dos
direitos tout court. Mais uma vez, a
experiência da França é muito relevante para o mundo de hoje, onde muitos
continuam a crer, à imagem de Leroy-Beaulieu, que basta garantir os direitos de
propriedade e a livre operação dos mercados e enaltecer a concorrência “pura e
perfeita” para se chegar a uma sociedade justa, próspera e harmoniosa. A
tarefa, infelizmente, é mais complexa do que isso.”
“Se os países ricos estiverem tão cheios de
poupança e de capital que estes já não servem para nada além de construir mais
imóveis ou instalar mais uma máquina na fábrica (diz-se, nesse caso, que a
“produtividade marginal” do capital, ou seja, a produção suplementar possibilitada
por uma unidade adicional de capital, é muito baixa), pode ser mais eficaz que
invistam uma parte desses recursos nos países pobres. Dessa maneira, as nações
ricas — ou ao menos os habitantes que detenham capital excedente — obterão uma
taxa de retorno melhor, e os países pobres poderão reduzir o atraso na
produtividade. Esse mecanismo, baseado na livre circulação dos fluxos de
capitais e na equalização da produtividade marginal do capital no âmbito
mundial, é, de acordo com a teoria econômica clássica, o fundamento do processo
de convergência entre países e da redução progressiva da desigualdade ao longo
da história, graças às forças do mercado e da concorrência.
Essa teoria otimista tem, entretanto, dois
grandes defeitos. Em primeiro lugar, do ponto de vista estritamente lógico,
esse mecanismo não garante de modo algum a convergência da renda por habitante
no âmbito mundial. Na melhor das hipóteses, pode levar à convergência do
produto por habitante — desde que haja a livre mobilidade de capital e, sobretudo,
uma equalização completa dos níveis de qualificação da mão de obra e do capital
humano entre países, o que não é pouca coisa. Em todo caso, essa convergência
da produção não implica de modo algum que o mesmo ocorra com a renda. Uma vez
que os investimentos tenham sido realizados, é sempre possível que os países
ricos continuem a possuir os países pobres de forma permanente, chegando a
alcançar proporções massivas, de tal modo que a renda nacional dos países ricos
seja eternamente superior à dos pobres — que continuariam, para todo o sempre,
a enviar uma parte do que produzem aos seus proprietários (como acontece com a
África há muitas décadas). (...)
Em segundo lugar, do ponto de vista
histórico, o mecanismo da mobilidade de capital não parece ter sido o fator que
permitiu a convergência entre os países, ou, ao menos, não o fator principal.
Nenhuma das nações asiáticas que reduziram o atraso em relação aos países mais
desenvolvidos, quer se trate do Japão, da Coreia e de Taiwan no passado ou da
China hoje, se beneficiou de investimentos estrangeiros substanciais.
Basicamente, todos esses países financiaram os próprios investimentos em
capital físico de que necessitavam e, sobretudo, os investimentos em capital
humano — o aumento do nível geral de educação e formação —, cuja importância
para o crescimento econômico de longo prazo foi respaldada por todas as
pesquisas contemporâneas. Em contrapartida, os países que são propriedade de
outros, como na época colonial ou na África atual, não foram tão bem-sucedidos,
muitas vezes porque se especializaram em setores produtivos de pouco futuro ou
devido a uma instabilidade política crônica.
Não é de todo errado pensar que essa
instabilidade se explica, em parte, pelo seguinte: quando um país é, em larga
medida, posse de estrangeiros, a demanda social pela expropriação é recorrente
e quase irreprimível. Outros atores do quadro político respondem que somente a
proteção incondicional dos direitos de propriedade originais garante um
ambiente adequado para o investimento e o desenvolvimento. O país se encontra,
desse modo, preso numa interminável alternância entre governos revolucionários
(cujo sucesso na promoção de melhorias na qualidade de vida de seu povo é,
muitas vezes, limitado) e governos que protegem os interesses dos proprietários
existentes enquanto preparam a próxima revolução ou golpe de Estado. A
desigualdade da propriedade do capital já é algo muito difícil de aceitar e
organizar de modo suave no contexto da comunidade nacional. No âmbito
internacional, isso é quase impossível (a não ser que se imagine uma relação de
dominação política do tipo colonial).
Evidentemente, a inserção internacional na
economia global não é negativa em si: a autarquia jamais foi uma fonte de
prosperidade. Os países asiáticos sem dúvida foram beneficiados pela abertura
internacional para reduzir seu atraso. Mas eles se apoiaram, sobretudo, na
abertura dos mercados de bens e serviços e numa excepcional inserção no
comércio internacional, não tanto na livre circulação dos fluxos de capital. A
China, por exemplo, pratica até hoje o controle de capitais: não se pode
investir livremente no país, mas isso não impede a acumulação de capital, uma
vez que a poupança interna é suficiente. O Japão, assim como a Coreia e Taiwan,
financiou o investimento usando os recursos de sua própria poupança. Os estudos
disponíveis mostram, também, que a maior parte dos ganhos provenientes da
abertura do comércio internacional advém da difusão do conhecimento e do
aumento dinâmico da produtividade que resultam da abertura, e não dos ganhos
estáticos relacionados à especialização. Esses parecem ser relativamente
modestos.*
Em suma, a experiência histórica sugere que o
principal mecanismo que permite a convergência entre países é a difusão do
conhecimento, tanto no âmbito internacional quanto no doméstico. Ou seja, as
economias mais pobres diminuem o atraso em relação às mais ricas na medida em
que conseguem alcançar o mesmo nível de conhecimento tecnológico, de
qualificação da mão de obra, de educação, e não ao se tornarem propriedade dos
mais ricos. Esse processo de difusão do conhecimento não cai do céu: muitas
vezes ele é acelerado pela abertura internacional e comercial (a autarquia não
facilita a transferência tecnológica) e, sobretudo, depende da capacidade desses
países de mobilizar os financiamentos e as instituições que permitam investir
vastos montantes na formação de seu povo, tudo isso sob as garantias de um
contexto jurídico para os diferentes atores. Ele está, portanto, intimamente
relacionado ao processo de construção de uma potência pública (um governo)
legítima e eficaz. Essas são as principais lições, brevemente resumidas, que
podem ser extraídas da investigação histórica da evolução do crescimento
mundial e da desigualdade entre países.”
*: De acordo com um estudo recente, os ganhos
estáticos da abertura comercial da China e da Índia não teriam superado 0,4% do
PIB mundial, 3,5% do PIB da China e 1,6% do PIB da Índia. Levando em conta os enormes efeitos redistributivos
entre setores e países (com importantes grupos de perdedores dentro de cada
país), parece difícil justificar a abertura comercial (na qual os países
parecem tão engajados) unicamente com esses ganhos.
“Em trinta anos, um crescimento de 1% ao ano
corresponde a um crescimento acumulado de mais de 35%; já 1,5% ao ano
corresponde a um crescimento acumulado de mais de 50% no mesmo período. Na
prática, isso implica transformações consideráveis nos modos de vida e nos
empregos. De fato, o crescimento da produção por habitante foi de, no máximo,
1-1,5% por ano ao longo dos últimos trinta anos na Europa, na América do Norte
e no Japão. Ainda assim, nossas vidas foram transformadas radicalmente: no
início dos anos 1980 não existiam nem a internet nem os telefones celulares, os
transportes aéreos eram inacessíveis para um grande número de pessoas, a
maioria das tecnologias de ponta da medicina disponíveis hoje ainda não
existia, e apenas uma minoria tinha acesso ao ensino superior. Na área das
comunicações, dos transportes, da saúde e da educação, as mudanças foram
profundas. Essas transformações também afetaram a fundo a estrutura dos
empregos: quando a produção por habitante cresce 35-50% no espaço de trinta
anos, isso significa que uma fração substancial da produção realizada hoje —
entre um quarto e um terço — não existia há trinta anos, e, portanto, entre um
quarto e um terço das carreiras e das tarefas realizadas hoje não existiam há
trinta anos. (...)
Um país com um crescimento de 0,1% ou 0,2% ao
ano se reproduz quase de forma idêntica de uma geração para a outra: a
estrutura das carreiras é a mesma, assim como a da propriedade. Um país no qual
o crescimento é de 1% ao ano, como tem sido o caso dos países mais avançados
desde o início do século XIX, é uma sociedade que se renova de modo profundo e
permanente.”
“A dívida pública não é nada mais do que um
crédito de uma parte do país (aqueles que recebem os juros) junto a outra
(aqueles que pagam os impostos).”
“Na prática, a primeira regularidade
observada quando se busca medir a desigualdade das rendas é que a desigualdade
do capital é sempre mais forte do que a do trabalho. A distribuição da
propriedade do capital e das rendas que dele provêm é sistematicamente mais
concentrada do que a distribuição das rendas do trabalho.
Dois pontos merecem ser ressaltados de imediato.
Primeiro, essa regularidade é encontrada em todos os países e em todas as
épocas com dados disponíveis, sem exceção e sempre em grandes proporções.
Apenas para destacar uma primeira ordem de grandeza, a participação dos 10% dos
indivíduos que recebem as rendas do trabalho mais elevadas costuma ser de
25-30% do total das rendas do trabalho, enquanto a participação dos 10% dos
indivíduos que detêm o patrimônio mais alto é sempre superior a 50% do total da
riqueza, chegando às vezes a 90% em algumas sociedades. Talvez ainda mais
marcante, os 50% mais mal pagos recebem uma parte considerável do total das
rendas do trabalho (geralmente entre um quarto e um terço, mais ou menos tanto
quanto os 10% mais bem pagos), enquanto os 50% mais pobres em patrimônio não
possuem nada — ou quase nada (sempre menos de 10% do patrimônio total e em
geral menos de 5%, ou dez vezes menos do que os 10% mais ricos). A desigualdade
em relação ao trabalho é com frequência mais suave, moderada e razoável (ao
menos até onde a desigualdade puder ser considerada razoável — veremos que essa
questão não deve ser exagerada). Já a desigualdade do capital é sempre
extrema.”
“Nas sociedades mais igualitárias em matéria
de patrimônio, que são, mais uma vez, os países escandinavos dos anos 1970-1980,
os 10% com patrimônios mais elevados representam cerca de 50% da riqueza
nacional, ou até um pouco mais — entre 50% e 60% — se as maiores fortunas forem
consideradas. Atualmente, no início dos anos 2010, a participação dos 10% com
patrimônios mais altos se situa em torno de 60% da riqueza nacional na maior
parte dos países europeus, e em particular na França, na Alemanha, no Reino
Unido e na Itália.
Sem dúvida, o mais assombroso é que, em todas
essas sociedades, a metade mais pobre da população não possui quase nada: os
50% mais pobres em patrimônio detêm sempre menos de 10% da riqueza nacional, e
geralmente menos de 5%. Na França, de acordo com os dados disponíveis para os
anos 2010-2011, a parcela dos 10% mais ricos chegava a 62% da riqueza total, e
a dos 50% mais pobres não passava de 4%. Nos Estados Unidos, a pesquisa mais
recente organizada pelo Federal Reserve para os mesmos anos revela que o décimo
superior possuía 72% da riqueza americana, e a metade inferior da distribuição,
apenas 2%. É preciso, ainda, salientar que essa fonte, como a maioria das
pesquisas baseadas em declarações individuais, subestima as fortunas mais
elevadas.”
“O caráter mais ou menos sustentável de uma
desigualdade tão extrema depende não só da eficácia do aparato repressivo, mas
também — e talvez sobretudo — da eficácia das diversas justificativas para ela.
Se a desigualdade for percebida como justificada, por exemplo, porque os mais
ricos escolheram trabalhar mais — ou de maneira mais competente — do que os
mais pobres ou mesmo porque impedi-los de ganhar mais inevitavelmente
prejudicaria os mais pobres, seria possível imaginar uma concentração de renda
superior aos recordes históricos observados. É por essa razão que um novo
recorde possível de ser alcançado pelos Estados Unidos em torno de 2030 caso a
desigualdade das rendas do trabalho — e, em menor grau, a desigualdade da
propriedade do capital — continue a evoluir como nas últimas décadas.”
“A forte elevação da desigualdade na França
entre 1945 e 1967 conjuga uma expressiva alta da participação do capital na
renda nacional e das desigualdades salariais num contexto de sólido crescimento
econômico. O clima político desempenhou um papel relevante: todo o país estava
concentrado na reconstrução, e a prioridade não era a redução da desigualdade,
sobretudo quando havia a sensação de que ela tinha diminuído substancialmente
depois da guerra. Os salários dos executivos, engenheiros e outros
profissionais qualificados cresceram mais rápido que os salários baixos e
médios nos anos 1950-1960, e num primeiro momento ninguém se abalou com isso. O
salário mínimo nacional fora criado em 1950, mas não sofreu alterações e
revalorizações e, assim, se distanciou bastante do salário médio.
A ruptura interveio em 1968. O movimento de
maio de 1968 teve raízes estudantis, culturais e sociais que foram além da
questão dos salários — ainda que o sentimento de fadiga em relação ao modelo de
crescimento desigualitário dos anos 1950-1960 tivesse um grande peso. Contudo,
seu desfecho político mais imediato deu-se sobre os salários: para sair da
crise, o governo do general De Gaulle assinou os acordos de Grenelle, que
previam uma alta de 20% do salário mínimo. O salário mínimo foi oficialmente
indexado — em parte — ao salário médio em 1970, e os sucessivos governos de
1968 a 1983 se sentiram compelidos a aumentá-lo consideravelmente a cada ano
diante do clima político e social em ebulição. Foi assim que o poder de compra
do salário mínimo aumentou mais de 130% entre 1968 e 1983, enquanto o salário
médio não subiu mais do que 50%, o que resultou numa forte compressão da
desigualdade salarial. A ruptura com o período anterior foi marcante e
substancial: o poder de compra do salário mínimo aumentara apenas 25% entre
1950 e 1968, e o salário médio mais do que dobrara. Propelida pela forte alta
dos salários mais baixos, a massa salarial cresceu no total bem mais rápido que
a produção ao longo dos anos 1968-1983, e daí decorreram a queda considerável
da participação do capital na renda nacional e a compressão particularmente
forte da desigualdade da renda.
O movimento voltou a se inverter em
1982-1983. O novo governo socialista que venceu as eleições de maio de 1981
gostaria, sem dúvida alguma, de ter prolongado a tendência. Contudo, não é nada
simples fazer com que o salário mínimo aumente duas vezes mais rápido que o
salário médio no longo prazo (sobretudo quando o próprio salário médio sobe
mais rápido do que a produção).
Assim, o governo eleito decidiu implementar,
em 1982-1983, o que na época se chamou de “volta à austeridade”: os salários
foram congelados e a política de gatilhos anuais do salário mínimo foi
abandonada em definitivo. Logo vieram as consequências: a participação dos
lucros na produção disparou feito uma flecha durante os anos 1980 e as
desigualdades salariais retornaram com força, assim como a desigualdade da
renda. A ruptura foi tão intensa quanto a de 1968, mas no sentido oposto.”
“Para avançar em nossa compreensão, é
aconselhável decompor o décimo superior da hierarquia das rendas americanas em
três grupos: o 1% mais rico, os 4% seguintes e os 5% que vêm depois. Observa-se
que a maior parte da alta resulta do grupo do “1%”, cuja parcela na renda
nacional passou de cerca de 9% nos anos 1970 a cerca de 20% nos anos 2000-2010
(com fortes variações provenientes dos ganhos de capital), uma elevação de onze
pontos percentuais. O grupo dos “5%” (para os quais a renda anual variava entre
108.000 e 150.000 dólares por domicílio em 2010), assim como o grupo dos “4%”
(cuja variação da renda domiciliar era entre 150.000 e 352.000 dólares) foi
beneficiado por elevações substanciais: a parcela dos “5%” na renda nacional
americana passou de 11% a 12% (alta de um ponto percentual), enquanto a dos
“4%” passou de 13% a 16% (alta de três pontos percentuais). Por definição, isso
significa que esses grupos sociais foram beneficiados por altas expressivas
desde os anos 1970-1980, muito superiores ao crescimento médio da economia
americana, fato nada negligenciável.
Nesses grupos estão os economistas que
trabalham como professores universitários americanos, os mesmos que tendem a
acreditar que a economia americana funciona muito bem e, em particular, que ela
remunera o talento e o mérito com justiça e precisão: aí está uma reação
bastante humana e compreensível. A verdade, entretanto, é que os grupos sociais
acima deles se saíram bem melhor: dos quinze pontos percentuais de renda
nacional suplementar que foram absorvidos pelo décimo superior, em torno de
onze pontos — quase três quartos — foram arrebanhados pelo “1%” (isto é, o grupo
das rendas anuais superiores a 352.000 dólares em 2010), e a metade disso foi
para o “0,1%” (o grupo das rendas anuais acima de 1,5 milhão de dólares).”
“Vimos que a crise financeira em si não
parece ter influenciado a alta estrutural da desigualdade. Mas e a causalidade
inversa? Seria possível que a alta estrutural da desigualdade americana tivesse
contribuído para a eclosão da crise de 2008? Considerando que a parcela do
décimo superior na renda nacional americana atingiu dois picos absolutos ao
longo do último século, um em 1928 (às vésperas da crise de 1929) e o segundo
em 2007 (às vésperas da crise de 2008), é difícil evitar essa pergunta.
De meu ponto de vista, não resta dúvida de
que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro
americano. A razão é simples: a alta da desigualdade teve como consequência uma
quase estagnação do poder de compra das classes populares e médias nos Estados
Unidos. Daí só poderia resultar o endividamento crescente das famílias menos
abastadas, sobretudo considerando que o acesso ao crédito foi ficando cada vez
mais fácil e a falta de regulação dos bancos e das instituições de
intermediação financeira, cada vez menos escrupulosas, ávidas por bons
rendimentos, pela enorme poupança financeira injetada no sistema pelos mais
ricos.
Para sustentar essa tese, é importante
insistir na considerável amplitude da transferência de renda americana — da
ordem de quinze pontos percentuais da renda nacional — que ocorreu entre os 90%
mais pobres e os 10% mais ricos desde 1970. Concretamente, se acumularmos o
crescimento total da economia americana ao longo dos trinta anos que
antecederam a crise, isto é, de 1977 a 2007, observa-se que os 10% mais ricos
se apropriaram de três quartos desse crescimento — o 1% mais rico absorveu
sozinho cerca de 60% do crescimento total da renda nacional ao longo desse
período. Para os 90% restantes, a taxa média de crescimento da renda foi de
menos de 0,5% por ano. Essas cifras são incontestáveis e assombrosas: a
despeito do que se pense sobre a legitimidade da desigualdade de renda, elas
merecem ser examinadas com muita atenção. É difícil imaginar uma economia e uma
sociedade que funcionem para sempre com uma divergência tão extrema entre os
grupos sociais.”