Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Notícias do Império – Fernando del Paso
sábado, 10 de setembro de 2011
A misteriosa chama da rainha Loana – Umberto Eco
Editora: Record
ISBN: 978-85-0107-143-9
Tradução: Eliana Aguiar
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 456
Sinopse: Imagine acordar um dia e perceber que você perdeu a memória. Não sabe onde
está, como se chama, quem é sua mulher (ou marido), se é casado ou não, quem são
— se é que existem — seus filhos... É o que acontece com Yambo, o protagonista de
A Misteriosa Chama Da Rainha Loana.
Yambo lembra-se de Waterloo, de como se dirige um automóvel
e se escova os dentes, mas não lembra quem ele é. Permanece a memória semântica
(sabe tudo que leu sobre Napoleão ou Julio César e consegue citar trechos inteiros
da Divina Comédia) e automática, mas perdeu-se a memória afetiva, o que constitui
seu ser e sua própria história.
Depois do coma que causou a amnésia, por recomendação médica,
Yambo viaja para a casa de campo que fora de seu avô — um colecionador de tralhas,
quinquilharias, jornais e revistas antigas —, nas montanhas do Piemonte, onde passou
grande parte de sua infância e adolescência. E é lá que Yambo, na verdade Giambattista
Bodoni, um comerciante de livros antigos já na meia-idade, mergulha em sua própria
vida. Com a ajuda de músicas, odores, livros e quadrinhos, coisas que viu e tocou
há sessenta anos, Yambo tenta retornar para o presente. De Flash Gordon e Dick Tracy
ao primeiro amor, Umberto Eco resgata sua própria juventude, misturando-se, página
a página, com seu protagonista.
Eco passou dois anos à procura de imagens e ícones que representassem
a memória de Yambo (e a sua própria). A Misteriosa Chama Da Rainha Loana
recompõe a história da Itália dos anos 1930 e 40. Eco traz à tona histórias de Julio
Verne; discos de 78 rotações; figurinhas de álbuns famosos; gibis; as obras de Emilio
Salgari; canções populares, por onde passam jovens frágeis e inesquecíveis (Signorinella
pallida), outras, apaixonadas (C’eravamo tanti amati), ousadas, patriotas (Le ragazze
di Trieste); além dos hinos fascistas, com suas promessas de perenes primavera e
juventude (Primavera, Giovinezza), visando ao fortalecimento moral das fronteiras
do Império Italiano. E mais, o rádio de galena, as ondas curtas e a BBC de Londres.
Toda uma semiologia que leva aos tempos do Fascismo e às portas da Segunda Grande
Guerra.
Montado o quebra-cabeça, A Misteriosa Chama Da Rainha Loana
revela-se a autobiografia de uma geração. Um romance-fábula sensível que mostra
que, muitas vezes, é preciso revisitar o passado para viver o presente. Um livro
emocionante, cheio de calor e lembranças, de suspiros e saudades.
“(Eu havia perdido minha memória, estava com amnésia.)
Disse que me sentia fraco e precisava dormir. Saíram, eu chorava. As lágrimas são
salgadas. Donde, eu ainda tinha sentimentos. Sim, mas fresquinhos da hora. Aqueles
de antes já não eram mais meus. Quem sabe, perguntava-me, se alguma vez fui religioso:
certamente, de qualquer jeito, perdera a alma.”
“Recordar é um trabalho, não um luxo.”
“Eu lia muito?”
“Você é um leitor incansável. Com uma memória
de elefante. Sabe um monte de poesias de cor.”
“Escrevia?”
“Nada seu. Sou um gênio estéril, costumava dizer,
nesse mundo ou se lê ou se escreve, os escritores escrevem por desprezo pelos colegas,
para ter, de vez em quando, alguma coisa de bom para ler.”
“Tenho tantos livros. Desculpe, temos.”
“Aqui são cinco mil. E tem sempre o idiota de
plantão que entra e diz quantos livros o senhor tem, já leu todos?”
“E o que respondo?”
“Em geral: nenhum, de outra maneira por que os
conservaria aqui? O senhor por acaso guarda latas de carne depois de esvaziá-las?
Os cinquenta mil que li, doei a prisões e hospitais. E o idiota vacila.”
“Evidente, se não começar a pensar que é tudo
uma comédia, você dá um tiro na cabeça.”
“Perguntei a Paola quais eram as minhas posições
políticas: “Não gostaria de descobrir que sou, sei lá, nazista.”
“Você é aquilo que se chama de um democrático”,
respondeu Paola, “mais por instinto do que por ideologia. Eu sempre disse que a
política o entediava – e você, para polemizar, me chamava de La pasionaria.
Era como se tivesse se refugiado nos livros antigos por medo do mundo, ou desprezo.
Não, estou sendo injusta, não era desprezo, porque você se inflamava com os grandes
problemas morais. Assinava pelos pacifistas e pela não-violência, se indignava com
o racismo. Até se inscreveu em uma liga contra a vivissecção.”
“Animal, imagino.”
“Claro. A vivissecção humana se chama guerra.”
“E sempre... fui assim, mesmo antes de encontrar
você?”
“Na infância e na adolescência você resvalava.
É bem verdade que nunca consegui entendê-lo nessas coisas. Sempre foi um misto de
piedade e cinismo. Se havia uma condenação à morte em algum lugar, assinava contra,
mandava dinheiro para uma comunidade antidroga, mas se lhe diziam que dez mil crianças
foram mortas, digamos, em uma guerra tribal na África, dava de ombros, como quem
dissesse que o mundo não deu certo e não há nada que se possa fazer. Sempre foi
um homem jovial, apreciava as belas mulheres, os bons vinhos, a boa música, mas
me dava a impressão de que era como que uma crosta externa, um modo de se esconder.
Quando se soltava, dizia que a história é um enigma sangrento e o mundo um erro.”
“Nada poderá tirar-me da mente que este mundo
é fruto de um deus tenebroso cuja sombra eu prolongo.”
“Quem disse isso?”
“Não sei mais.”
“Precisamos saber de que somos feitos nós, estirpe
de Caim.”
“Telefonei para o médico, Gratarolo perguntou-me
se fizera alguma coisa que não devia e tive que admitir que carregava caixas, bebia
pelo menos uma garrafa por refeição, fumava vinte Gitanes por dia, além de infligir-me
doces taquicardias. Repreendeu-me: estava em convalescença, se a pressão subisse
às estrelas o acidente poderia se repetir e talvez eu não conseguisse escapar de
fininho como da primeira vez. Prometi que iria me cuidar, ele aumentou a dose dos
comprimidos e acrescentou outros para eliminar sal através da urina.
Pedi que Amália salgasse menos a comida, e ela
disse que durante a guerra para conseguir um quilo de sal tinha que dar saltos mortais
e ainda dois ou três coelhos em troca, logo o sal é uma graça de Deus que, quando
falta, as coisas já não têm gosto de nada. Eu disse que o médico me proibira e ela
rebateu que os doutores estudam tanto e depois ficam mais burros que os outros e
que não se deve dar ouvido a eles – bastava olhar para ela, que nunca tinha visto
um médico em sua vida e que aos setenta completos se desancava todo o santo dia
em mil trabalhos, e não tinha nem ciática como os outros. Paciência, eliminaria
o seu sal com minhas urinas.”
“Nada excita mais ao holocausto que o rancor de
uma derrota.”
“Poesias tão ruins só podiam ser minhas. Acne
juvenil. Acho que todos nós escrevemos poesia aos dezesseis anos, é uma fase de
passagem entre adolescência e idade adulta. Não sei mais onde li que os poetas dividem-se
em duas categorias, os bons poetas, que a certa altura destroem suas poesias ruins
e vão vender armas na África, e os maus poetas, que as publicam e continuam a escrevê-las
até a morte.”
“Quem morre jaz e quem vive lhe dá paz.”
“Então estou morto e o além é esse território
monótono e tranquilo no qual por toda a eternidade reviverei minha vida passada,
pior para mim se ela foi atroz (será o inferno), do contrário o paraíso. Ora! Imagine
que você nasceu corcunda, cego e surdo-mudo ou que as pessoas que amava caíram a
seu redor como moscas, pais, mulher, filho de cinco anos e que o além não fosse
mais que a repetição, diferente, mas contínua, dos sofrimentos que viveu? O inferno
não são les autres mas o rastro de morte que deixamos ao viver? Mas nem mesmo
o mais maligno dos deuses poderia imaginar tal sorte para nós.”
“E, enfim, como se sabe, o inferno, se existe,
é vazio.”
“Revejo uma cena rápida que deve ter acontecido
alguns anos antes. Pergunto:
“Mamãe, o que é revolução?”
“É uma coisa em que os operários vão para o governo
e cortam a cabeça de todos os funcionários como seu pai.”
“Perguntei por que frequentava o Oratório, já
que todos diziam que era ateu. Respondeu que vinha porque era o único lugar em que
podia ver gente. E além do mais não era ateu, era anarquista. Na época não sabia
o que era anarquista e ele explicou que eram pessoas que desejavam a liberdade,
sem patrões, sem rei, sem estado e sem padres. “Sem estado, sobretudo, não como
os comunistas que, na Rússia, têm um estado que diz até quando podem ir ao banheiro”.
(...)
Voltou depois a falar mal dos comunistas que mataram
os anarquistas na Catalunha. Perguntei por que, sendo contra os comunistas, estava
com os garibaldinos, que eram comunistas. Respondeu que, número um, nem todos os
garibaldinos eram comunistas, e entre eles havia socialistas e até anarquistas,
número dois, porque naquele momento o inimigo era o nazifascismo e em casos do gênero
não se deve ligar muito para sutilezas. “Primeiro se vence junto, depois se acertam
as contas.”
Em seguida acrescentou que ia ao Oratório porque
era uma coisa boa. Os padres eram uma raça ruim, mas eram como os garibaldinos,
entre eles também tinha gente boa. “Sobretudo nesses tempos em que não se sabe onde
os meninos vão parar, até o ano passado ensinavam-lhes o livro e a espada. No Oratório
pelo menos não deixam que se estraguem, são educados para serem honestos, embora
eles insistam um pouco demais na história das punhetas (de ser pecado praticá-las),
mas não importa, porque vocês continuam do mesmo jeito e no máximo se confessam
depois. Portanto, venho ao Oratório e ajudo dom Cognasso a entreter os meninos.
Quando chega a hora da missa, fico no fundo da igreja em silêncio, porque Jesus
Cristo eu respeito, mas Deus não”.”
“Como li o verbete Hegel no Novíssimo Melzi
(“Ins. Fil. Al. da escola panteísta”), perguntei quem era. “Hegel não era
panteísta e seu Melzi é um ignorante. Panteísta, no máximo, era Giordano Bruno.
Um panteísta diz que Deus está em toda parte, até no cocô da mosca que você vê bem
ali. Bela satisfação, estar em toda parte é como não estar em parte alguma. Pois
bem, para Hegel, não era Deus, mas o Estado que tinha de estar por toda parte, e
portanto era um fascista.”
“Mas ele não viveu mais de cem anos atrás?”
“E o que importa? Joana D’Arc também, e era uma
fascista de primeira ordem. Os fascistas sempre existiram. Desde os tempos... desde
os tempos de Deus. Pegue Deus. Um fascista.”
“Mas você não é ateu, não diz que Deus não existe?”
“Quem disse isso? Don Cognasso, que não entende
nada de porra nenhuma? Eu acredito que Deus existe, infelizmente. Só que é um fascista.”
“Mas por que Deus é fascista?”
“Ouça, você é jovem demais para que possamos discutir
teologia. Vamos partir daquilo que sabe. Recite os dez mandamentos, já que no Oratório
vocês são obrigados a sabê-los de cor.”
E eu recitava. “Pois bem”, dizia, “agora preste
atenção. Entre esses dez mandamentos tem quatro, atenção, não mais que quatro, que
aconselham boas coisas – se bem que até eles, hum, depois veremos. Não matar, não
roubar, não dar falso testemunho e não desejar a mulher do próximo. Este último
é um mandamento para homens que sabem o que quer dizer honra, de um lado não transformar
os amigos em cornos e, do outro, tentar manter de pé a família, e isso até pode
ser bom, embora a anarquia queira eliminar a família, não se pode fazer tudo de
uma vez só. Quanto aos outros três, certo, mas também é o mínimo que o bom senso
aconselha. Mesmo que depois seja preciso dar um desconto, mentira todo mundo diz,
talvez até com um objetivo bom, mas matar não, não se pode, nunca.”
“Nem quando o rei manda você para a guerra?”
“Aí está o ponto. Os padres dizem que se for mandado
para a guerra pelo rei, você pode, aliás, deve matar. De qualquer forma a responsabilidade
é do rei. Assim, justifica-se a guerra, que é uma besta imunda, sobretudo se quem
o mandou para lá foi Crapone. Note-se que os mandamentos não dizem que se pode matar
na guerra. Dizem não matar e ponto final. Mas depois...”
“Depois?”
“Vamos ver os outros mandamentos. Eu sou o senhor
teu Deus. Isso não é um mandamento, senão seriam onze. É o prólogo. Mas é um prólogo
vivaldino.” (...)
“E sempre fez assim: tem que acreditar na bíblia
porque é inspirada por Deus, mas quem falou que a bíblia é inspirada por Deus? A
própria bíblia. Entendeu a manha? Mas vamos adiante. O primeiro mandamento diz que
não terás outro Deus fora ele. Assim, esse senhor o proíbe de pensar, sei lá, em
Alá, em Buda ou talvez em Vênus – que, a bem da verdade, ter como deusa um pedaço
de mulher daqueles não era nada mau. Mas quer dizer que também não se pode acreditar,
sei lá, na filosofia, na ciência, porque podem botar na sua cabeça que o homem descende
do macaco. Só ele, e basta. Agora preste atenção, todos os outros mandamentos são
fascistas, feitos para obrigar a aceitar a sociedade do jeito que é. Guardar domingos
e festas... O que acha?”
“Bem, na verdade manda ir à missa aos domingos,
o que há de mau?”
“Isso é o que diz dom Cognasso, que, como todos
os padres, não sabe nem onde fica a bíblia da casa. Acorde! Numa tribo primitiva
como aquela que Moisés andava levando para passear, isso significava observar os
rituais e os rituais servem para engambelar o povo, dos sacrifícios humanos aos
comícios de Crapone na praça Venezia! E depois: Honrar pai e mãe. Calado, não me
diga que é justo obedecer aos pais, isso está bom para as crianças que precisam
ser guiadas. Honrar pai e mãe quer dizer respeitar as ideias dos mais velhos, não
se opor à tradição, não pretender mudar o modo de vida da tribo. Entendeu? Não cortar
a cabeça do rei, como ao contrário, Deus manda – quer dizer, desculpe, como se deve
fazer se tivermos a cabeça, a nossa, no lugar, sobretudo com um rei como o anão
de Savóia que traiu seu exército e mandou seus oficiais para a morte. E então se
entende que até não roubar não é aquele mandamento inocente que parece, pois ordena
que não se toque na propriedade privada, que é de quem enriqueceu roubando gente
como você. Mas quem dera fosse só isso. Ainda faltam três mandamentos. O que significa
não cometer atos impuros? Os vários dom Cognasso querem que acredite que serve apenas
para impedir que você sacuda a coisa que tem no meio das pernas, mas incomodar as
tábuas da lei por causa de umas punhetas me parece um desperdício. O que devo fazer
eu, que sou um fracassado, aquela boa mulher da minha mãe não me fez bonito, e ainda
por cima manco e que uma mulher, uma mulher de verdade nunca toquei? Querem me tirar
até esse desafogo? (...)
Deus podia dizer, sei lá, pode trepar, mas só
para fazer neném, sobretudo porque naquela época tinha muito pouca gente no mundo.
Mas os dez mandamentos não dizem isso: de um lado, não se pode desejar a mulher
do próximo e do outro não se deve cometer atos impuros. Resumindo, quando é que
se trepa? Ora, é preciso fazer uma lei que sirva para todo mundo, os romanos, que
não eram Deus, quando fizeram leis foi coisa que serve até hoje, e Deus baixa um
decálogo que não diz as coisas mais importantes? Você vai dizer: sim, mas a proibição
dos atos impuros proíbe trepar fora do casamento. Está certo de que era isso mesmo?
O que eram atos impuros para os hebreus? Eles tinham regras severíssimas, por exemplo,
não podiam comer carne de porco e nem boi abatido de certa maneira e, ouvi dizer,
nem mesmo sardinhas ainda novinhas. Então os atos impuros são todas as coisas que
o poder proibiu. Quais? Todas as que o poder definiu como atos impuros. É só inventar,
o Crapone considera impuro falar mal do fascismo e eles mandam você para o exílio.
É impuro ser solteiro e toca pagar uma taxa sobre o celibato. É impuro desfraldar
uma bandeira vermelha. Etc. etc. etc. E agora chegamos ao último mandamento, não
desejar as coisas dos outros. Mas você nunca perguntou o porquê desse mandamento,
quando já tinha não roubar? Se você deseja ter uma bicicleta como a de seu amigo
é pecado? Não, se não roubá-la. Dom Cognasso diz que esse mandamento proíbe a inveja,
que com certeza é coisa ruim. Mas tem uma inveja ruim, aquela que, quando um amigo
tem uma bicicleta e você não, lhe dá um desejo de que ele quebre o pescoço numa
ladeira, e tem a inveja boa, aquela que faz você desejar, você também, uma bicicleta
e, para poder comprar uma, mesmo usada, começa a trabalhar que nem um doido, e a
inveja boa é o que faz girar o mundo. E depois tem uma outra inveja, que é a inveja
da justiça, que leva a não aceitar que alguém tenha tudo, enquanto tem gente que
morre de fome. E se você sente essa bela inveja, que é a inveja socialista, começa
a trabalhar para realizar um mundo em que a riqueza seja mais bem distribuída. Mas
é justamente isso que o mandamento proíbe: não desejar mais do que tem, respeitar
a ordem da propriedade. Nesse mundo tem quem tenha dois campos de trigo só porque
herdou e tem quem é obrigado a roçá-lo por um bocado de pão, e quem roça não pode
desejar o campo do patrão senão o estado desmorona e estamos em plena revolução.
Portanto, meu caro rapaz, não mate e não roube os pobres como você, mas deseje sim
as coisas que os outros tiraram de você. Esse é o sol do futuro e é por isso que
os companheiros estão lá em cima na montanha, para dar um fim no Crapone, que chegou
ao poder financiado pelos proprietários de terras, e pelos pequeno-burgueses de
Hitler que queria conquistar o mundo para ajudar aquele Krupp, que constrói cada
Berta desse tamanho, a vender mais canhões. Mas você, o que vai entender dessas
coisas, você que foi criado aprendendo a repetir de cor juro obedecer às ordens
do Duce?”
“Não, estou entendendo, mas nem tudo.”
“Espero.”
Naquela noite sonhei com o Duce.”
“Está vendo, meu rapaz, o mundo é dominado pelo
mal. Aliás, Mal com maiúscula. E não falo só do mal de quem mata um semelhante para
roubar dois tostões ou do mal das SS que enforcam nossos companheiros. Estou falando
do Mal em si, que faz meus pulmões apodrecerem, uma colheita estragar, uma tempestade
de granizo que pode levar à miséria o proprietário de uma pequena vinha que é tudo
que ele tem. Nunca se perguntou por que existe o Mal no mundo, e antes de mais nada
a morte, por que as pessoas gostam tanto de viver, mas um belo dia, ricos ou pobres,
a morte vem levá-las, às vezes ainda crianças? Já ouviu falar da morte do universo?
Eu que leio sei: o universo, quero dizer inteiro, as estrelas, o sol, a via láctea,
é como uma lanterna elétrica que vai funcionando, funcionando, mas vai descarregando
também e um dia se esgota. Fim do universo. O Mal do males é que o próprio universo
está condenado à morte. Desde o nascimento, por assim dizer. Mas será mesmo um belo
mundo, esse em que o Mal existe? Não seria melhor um mundo sem Mal?”
“É, sim”, filosofava eu.
“Certo, pode-se dizer que o mundo nasceu por engano,
o mundo é uma doença do universo que já não andava tão bem sozinho e um belo dia
lhe nasce um furúnculo que é o sistema solar, e nós com ele. Mas as estrelas, a
via láctea e o sol não sabem que devem morrer, logo, não se incomodam. No entanto,
da doença do universo nascemos nós, que para a nossa desgraça somos uns espertos
e acabamos descobrindo que é preciso morrer. E assim, não somos apenas vítimas do
Mal, mas temos que saber disso. Que alegria!”
“Mas quem diz que o mundo não foi feito por ninguém
são os ateus e você diz que não é ateu...”
“Não sou porque não sou capaz de acreditar que
todas essas coisas que vemos a nosso redor e o modo como crescem as árvores e os
frutos, e o sistema solar, e o nosso cérebro nasceram por acaso. São bem-feitos
demais. Logo, deve ter existido uma mente criadora. Deus.”
“E então?”
“Então como acertar Deus com o Mal?”
“Assim, como assim, não sei, deixe-me pensar...”
“É claro, deixe-me pensar, diz ele, como se durante
séculos e séculos as mentes mais sagazes não tivessem pensado nisso...”
“E a que conclusão chegaram?”
“A um figo podre. O Mal, disseram, foi introduzido
no mundo pelos anjos caídos. Mas como? Deus vê e prevê tudo e não sabia que anjos
caídos se rebelam? Por que os criou se sabia que se rebelariam? Como alguém que
fizesse pneus de modo que arrebentassem depois de dois quilômetros. Seria um idiota.
Mas não, ele criou os anjos e depois ficou satisfeitíssimo, olha que esperto que
sou, sei até fazer anjos... Depois esperou que se rebelassem (e sabe-se lá quanto
se deleitou esperando que dessem esse passo em falso) e jogou-os no inferno. Mas
então é uma hiena. Ouros filósofos pensaram diferente: o Mal não existe fora de
Deus, ele o tem dentro de si, como uma doença, e passa a eternidade tentando se
libertar. Pobrezinho, talvez seja assim. Mas eu, como sei que sou tísico, nunca
vou colocar crianças no mundo para não criar mais desgraçados, porque a tísica passa
de pai para filho. E um Deus que sabe que tem essa doença lá dele e se mete a fazer
um mundo que, por melhor que seja, será sempre dominado pelo Mal? É pura ruindade.
E mais, um de nós pode fazer um filho sem querer, porque se empolgou certa noite
e esqueceu de usar camisinha, mas Deus, ele fez o mundo porque queria mesmo.”
“E se foi uma coisa que nos escapou, como nos
escapa o xixi?”
“Você pensa que está dizendo uma coisa engraçada,
mas é justamente o que pensaram outros grandes cérebros. A Deus, o mundo lhe escapuliu
como nos escapa o xixi. O mundo é um efeito de sua incontinência, como alguém com
a próstata inchada.”
“O que é próstata?”
“Não importa, faz de conta que dei um outro exemplo.
Mas olhe, acreditar que o mundo tenha lhe escapulido, que Deus realmente não tenha
conseguido se segurar e que tudo isso seja feito do Mal que ele carrega consigo,
essa é a única maneira de desculpar Deus. Estamos na merda até o pescoço, mas ele
também não está melhor que nós. Mas então caem como peras maduras todas as lindas
coisas que contam no Oratório, sobre Deus que é o Bem e que é o ser perfeitíssimo
criador do céu e da terra. Foi o criador do céu e da terra justo porque é imperfeitíssimo.
E assim construiu estrelas como uma lanterna que não se pode carregar.”
“Desculpe, mas Deus pode ter construído um mundo
no qual nós estamos destinados a morrer, mas o fez para nos colocar à prova e permitir
que ganhássemos o paraíso e, portanto, a felicidade eterna.”
“Ou gozássemos do inferno.”
“Os que cedem às tentações do diabo.”
“Você fala como um teólogo, só que todos eles
falam de má-fé. Dizem como você que o Mal existe, mas Deus nos deu o mais belo presente
do mundo que é o livre-arbítrio. Podemos livremente fazer o que Deus ordena ou o
que o Diabo sugere, e se depois vamos para o inferno é porque não fomos criados
como escravos, mas como homens livres, só que usamos mal a nossa liberdade e isso
foi uma decisão nossa.”
“Isso.”
“Isso? Mas quem lhe disse que a liberdade é um
presente? Ou melhor, tome cuidado para não confundir as coisas. Nossos companheiros
na montanha estão lutando pela liberdade, mas é a liberdade contra outros homens
que queriam nos transformar em um monte de maquinetas. A liberdade é uma coisa bela
entre o homem e homem, você não tem o direito de me fazer agir e pensar o que quiser.
E os nossos companheiros eram livres para decidir se deviam ir para as montanhas
ou esconder-se em algum lugar. Mas a liberdade que Deus nos deu, que liberdade é
essa? É a liberdade de ir para o paraíso ou para o inferno, sem alternativas. Você
nasce e já é obrigado a jogar essa partida de bisca, e se perder, vai sofrer por
toda a eternidade. E se eu não quisesse jogar? Crapone que, entre tanta coisa ruim,
algo de bom deve ter feito, proibiu os jogos de azar, pois há lugares em que as
pessoas são tentadas e acabam se arruinando. E não vale dizer que o homem é livre
para ir ou não. Melhor não induzir as pessoas à tentação. Mas isso é um presente?
É como se eu o jogasse daquele penhasco e lhe dissesse para ficar tranquilo porque
você tem a liberdade de agarrar um arbusto qualquer e subir de volta ou de deixar-se
cair até o fundo, até se reduzir àquela carne moída que eles comem em Alba. Você
poderia dizer: mas por que me empurrou se eu estava tão bem aqui? E eu respondo:
para que você pudesse provar se era mesmo bom. Grande brincadeira. Você não queria
provar que era bom, contentava-se em não cair.”
“Agora estou confuso. Qual é a sua ideia, então?”
“É simples, só que ninguém pensou nisto antes.
Deus é mau. Por que os padres dizem que Deus é bom? Porque ele nos criou. Mas essa
é justamente a prova de que é mau. Deus é o Mal. Talvez, visto que é eterno, não
fosse mau há milhares de anos. Ficou mau como aquelas crianças que no verão se entediam
e começam a arrancar asinha de mosca, para passar o tempo. Preste atenção, se você
pensa que Deus é mau, todo problema do Mau fica claríssimo.”
“Todos mau, então, até Jesus?”
“Ah, não! Jesus é a única prova de que pelo menos
nós, homens, sabemos ser bons. Para dizer tudo, não estou seguro de que Jesus fosse
filho de Deus, como uma matéria boa assim pode nascer de um pai cuja maldade é tanta
coisa que não sei explicar. Também não estou seguro de que Jesus realmente existiu.
Talvez nós o tenhamos inventado, mas é justamente esse o milagre, que tenhamos tido
uma ideia tão bonita. Ou talvez tenha existido, era o melhor de todos e dizia ser
filho de Deus por bom coração, para nos convencer de que Deus era bom. Mas se você
lê bem o evangelho, percebe que ele também se deu conta no final de que Deus era
mau: assustou-se no monte das Oliveiras e pediu que afastasse dele aquele cálice,
e necas, Deus não lhe dá ouvidos; grita na cruz, pai, por que me abandonaste, e
necas, Deus estava virado para o outro lado. Mas Jesus nos ensinou o que um homem
pode fazer para reparar a maldade divina. Se Deus é ruim, podemos ao menos tentar
ser bons, perdoar-nos uns aos outros, não nos ferir mutuamente, cuidar dos doentes
e não nos vingarmos das ofensas. Ajudar-nos entre nós já que aquele lá não nos ajuda.
Entendeu como era grande a ideia de Jesus? E quem sabe como Deus ficou irritado.
Jesus é o único verdadeiro inimigo de Deus, nada de Diabo. Jesus é o único amigo
que nós, pobres cristos, temos.”
“Você não seria um herege como aqueles que foram
queimados...”
“Eu sou o único que entendeu a verdade, só que
para não ser queimado não posso andar espalhando por aí e só contei a você. Jura
que não vai dizer nada a ninguém.”
“Juro”, e cruzei os dedos sobre os lábios. “Cruzin,
cruzan...”
“Comenta Hugo: “A mulher nua é a mulher armada.”
“O sonho é ilógico e sonhando você não reclama
que o seja.”