Editora:
Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3590-849-7
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 560
Sinopse: O
narrador principal (mas não exclusivo) das centenas de fragmentos que compõem
este livro é o “semi-heterônimo” Bernardo Soares. Ajudante de guarda-livros na
cidade de Lisboa, ele escreve sem encadeamento narrativo claro, sem fatos
propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida. Ainda assim, foi nesta
obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance. Os temas não
deixam de ser adequados a um diário íntimo: a elucidação de estados psíquicos,
a descrição das coisas, através dos efeitos que elas exercem sobre a mente,
reflexões e devaneios sobre a paixão, a moral, o conhecimento. “Dono do mundo
em mim, como de terras que não posso trazer comigo”, escreve o narrador. Seu
tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso.
“Deus é o existirmos e isto não ser tudo.”
“Haja ou não deuses, deles somos servos.”
“A beleza de um corpo nu só a sentem as raças
vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a
energia.”
“Não se pode comer um bolo sem o perder.”
“Agir, eis a inteligência verdadeira.”
“Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente , a
ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos –
que amamos.”
“A renúncia é a libertação. Não querer é
poder.”
“Para mim, escrever é desprezar-me; mas não
posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício
que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos,
compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos
sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas
de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais
da alma.”
“Os homens de acção são os escravos
involuntários dos homens de entendimento. As coisas não valem senão na
interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros,
transmutando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é
apenas ser vivido.”
“Só uma alma satânica poderia ter inventado a
ideia de inferno.”
“O caçador de leões não tem aventura para
além do terceiro leão.”
“A razão é a fé no que se pode compreender
sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há
qualquer coisa compreensível.”
“Pensar é destruir. O próprio processo do
pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os
homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil
complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não agiriam nunca,
não viveriam até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não
ser guilhotinados no dia seguinte.”
“Assim, há dois tipos de artista: o que
exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.”
“Não se subordinar a nada – nem a um homem,
nem a um amor, nem a uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste
em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela –
tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida
íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer – eis a banalidade.
Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isso é a cela e as algemas. Ser é
estar livre.”
“Possuir é ser possuído, e portanto perder-se
(...) Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua
essência.”
“Que seria do mundo se fôssemos humanos?”
“A acção é uma doença do pensamento, um
cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a acção é incompleta e imperfeita.
O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo. No mito de
Jesus está escrito isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo
martírio. O supremo sonhador tem por filho o martírio supremo.”
“Não há felicidade senão com conhecimento.
Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é
conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás.
Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.”
“Viver do sonho e para o sonho, desmanchando
o Universo e recompondo-o, distraidamente conforme mais apraza ao nosso momento
de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e
____________ de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da
realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de
areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher
e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as
desmanchar totalmente e minuciosamente. Pegar em tintas e misturá-las na paleta
sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem
ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas
estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um
sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não
só falso mas vão.
Pensar em frases que se contradigam, falando
alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer – e
compreendê-lo, o que aliás é impossível – que temos consciência de não ter
consciência, e que não somos o que somos. Explicar tudo isto por um sentido
oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado e divino, e
não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar.
Esculpir em silêncio nulo todos os nossos
sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de acção.
E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o
horror de viver paira alheadamente.”
“A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto
de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha
poucas preocupações morais.”
“Os homens são fáceis de afastar: basta não
nos aproximarmos.”
(Não foi inserido por questões de espaço, mas
recomendo a “Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera”)
“A arte é um isolamento. Todo o artista deve
buscar isolar os outros, levar-lhes às almas o desejo de estarem sós.”
“Para mim uma criatura não tem alma. A alma é
só com ela mesma.”
“G. Junqueiro? Tenho uma grande indiferença
pela obra dele. Já o vi... Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver.”