Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-258-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 400
Sinopse: Jorge
Amado decidiu escrever a biografia de Prestes em 1941, como forma de pressionar
pela libertação do líder revolucionário, preso desde 1936. Viajou então ao
Uruguai e à Argentina, onde Prestes havia se exilado anos antes. Escrito em
Buenos Aires, o livro foi publicado em 1942, em espanhol – e os primeiros
exemplares eram negociados clandestinamente no Brasil. Até que a edição
argentina também foi proibida e queimada por ordem do governo de Juan Domingo
Perón. A primeira edição brasileira saiu em 1945. Com o golpe militar de 1964,
o livro voltou a sumir das livrarias, e só reapareceu em 1979.
Movido por esse espírito engajado, Jorge Amado narra os
momentos mais dramáticos da trajetória de Prestes: a épica coluna que
atravessou o Brasil entre 1924-27, o exílio, a tentativa frustrada de levante
contra Getúlio Vargas em 1935, a prisão na solitária, a entrega de Olga Benário
– grávida de Anita Leocadia – ao governo nazista, a campanha internacional de
Leocadia, mãe de Prestes, pela libertação do filho e de Olga, e pela guarda da
filhinha do casal.
“Certa vez – era noite de chuva e vento – íamos
pela rua pobre de uma cidade distante. Íamos curvados, teu corpo bem junto ao meu.
Do escuro de uma sala, através da madeira das janelas, o rumor de vozes de homens
em uma prática amarga chegava até nós. E, de súbito, na sala alguém disse um nome.
E desapareceu a amargura e o desespero, ficou só a esperança. Também sobre nós,
sobre a chuva e o vento, brilhou na rua pobre uma estrela. Houve uma alegria de
primavera na noite chuvosa de inverno. Outra vez nós vimos os homens que iam presos.
Sorriam, não eram ladrões, nem assassinos, não exploravam mulheres, nem vendiam
tóxicos. Os que os levavam eram ladrões, assassinos, exploravam mulheres e vendiam
tóxicos e eram a polícia. Os presos sorriam, as mulheres que os viam passar choravam,
os homens apertavam os punhos. Alguém murmurou um nome, o nome de outro preso. E
a esperança brilhou no sorriso dos que iam presos, nas lágrimas das mulheres, nos
punhos cerrados dos que ficavam. Luz de uma estrela que empalideceu os assassinos,
ladrões, cáftens, cocainômanos que eram a polícia.”
“Te contarei a história do Herói, amiga, e então
não terás jamais em teu coração um único momento de desânimo. Como naquelas noites
em que o seu nome, balbuciado por vezes a medo, afastava a amargura e o terror,
agora eu falarei dele pra que tu e o povo do cais que me ouve saibam que podem confiar
e que a noite não é eterna. Eterna no mundo, amiga, só o povo e a memória dos seus
Heróis e dos seus Poetas. É curto o tempo dos tiranos, é curta a noite da escravidão.
E tão bela é a manhã da liberdade que vale a pena morrer por ela, dar a vida pela
certeza de que ela vem, que chegará para os homens. Mas, ah!, amiga, morrer é fácil,
seja por uma mulher, seja pela liberdade! Difícil é viver uma vida de sofrimento
e de luta, sem desanimar e sem desistir, sem se vender, sem se curvar. Mais que
a morte, a liberdade pede a vida de cada um, todos os seus momentos, todas as suas
forças.”
“Nunca é caro, amiga, o preço da liberdade, mesmo
quando é mais que a morte, é a vida no exilo ou na prisão.”
“Por maior que possa ser a sujeira sob a ditadura,
a dignidade de Prestes, por si só, é suficiente para lançar uma luz sobre esse charco,
uma luz de esperança.”
“Esse rapaz lhes mostrava todos os dias que ninguém
pode viver somente para si existindo os homens lá fora, estrangulados pela fome
de pão de liberdade e de cultura. Aprendia para que todos aprendessem. Com Luís
Carlos Prestes, amiga, toda uma geração de cadetes estudou em função do povo.”
“Esse povo do Brasil, negra, é um povo heroico.
Eu queria ser dono dos adjetivos do mundo para te falar sobre ele. Queria saber
as palavras mais doces, as mais ternas e as mais humanas e as mais heroicas para
te dizer da coragem e da confiança que latejam no coração da gente brasileira. Pisado
e acorrentado, ignorado e desprezado, de mãos atadas, de boca cerrada, comendo o
indispensável para não morrer, traído e insultado, o povo do Brasil não desespera
e não se tranca numa indiferença suicida. Luta, clama, grita, brada e cria do seu
sangue os seus líderes e os seus heróis. Heroico povo esse, resistente e digno,
esperança sem fim nas suas canções, esperança nos seus gritos, esperança nos dias
de desgraça que nada mais são que a véspera do dia da liberdade. Tremem os donos
do dinheiro e do poder porque nunca serão donos da vontade desse povo, nunca conquistarão
seu libertário coração rebelde. Nunca esse povo se desesperou nem nos momentos mais
angustiosos. Clamou sempre, numa luta de todos os minutos para rebentar as cadeias
que prendem os seus pulsos. Gritou com Tiradentes e com os poetas mineiros na aurora
da liberdade, nos dias da Inconfidência. Na voz de Alvarenga e Gonzaga, no martírio
e na nobreza do alferes esquartejado. Gritou nos dias da Independência, a voz enorme
de José Bonifácio. Gritou com Zumbi, nas selvas dos palmares, gritou com os negros
nas selvas do Cubatão, gritou na Bahia na revolta do alufá Licutã na frente dos
negros malês. Gritou nas ruas do Recife, gritou pela boca de Frei Caneca sorridente
diante do pelotão de fuzilamento. Pela boca dos gaúchos na revolta do Sul. Com Benjamim
nos dias da república. Com a maior das suas vozes, clamor de beleza na voz de Castro
Alves, construindo liberdade. Gritou com a serena força de Floriano Peixoto consolidando
a república e defendendo a integridade da Pátria. E seu clamor continuava, subterrâneo,
insistente, cada vez mais poderoso. Heroico povo esse, amiga! No seu sofrimento
gerava dolorosa mas tenazmente o seu Herói, sua voz e sua espada. Humanização desses
gritos, o povo concebia Luís Carlos Prestes. Nascido do sangue de Tiradentes e da
voz de Castro Alves. Do coração do povo. Sua voz e sua espada.”
“Na Academia Brasileira de Letras, amiga, um homem
do país dos rios falava da Grécia. Coelho Neto era de um dos três estados amazônicos,
Amazonas, Pará, Maranhão, seus destinos ligados ao grande rio. Havia o cearense,
o português, o sírio, o índio, o homem rico e o homem pobre, não havia mulheres,
havia a selva, a tragédia, o drama, o inferno em vida. A Amazônia era milhares de
romances, de artigos, de poemas. Coelho Neto era símbolo e o chefe de toda uma literatura.
Dos homens que haviam substituído na prosa a geração de Aluísio Azevedo, de Raul
Pompéia, de Machado de Assis, de Euclides da Cunha e na poesia a geração de Castro
Alves. Coelho Neto, Príncipe dos Escritores Brasileiros, considerado o maior
de todos os que escreviam no país naquele momento, a literatura dando-lhe um lugar
na Câmara, outro lugar na direção de um clube de futebol, dando-lhe empregos. Publicou
duzentos livros. Sua letra bonita encheu milhares de folhas de papel, frases, adjetivos,
verbos, substantivos, imagens trabalhadas, períodos estudados, os problemas da língua
portuguesa de Lisboa caprichosamente analisados. Nem uma linha nesses milhões de
linhas sobre os homens lutando na Amazônia, nem uma linha, nem um desaforo, nem
um xingamento, contra os que vendiam a Amazônia. A literatura de toda essa geração
sem fibra, sem nervos, toda uma geração vendida por migalhas, é a mais sórdida,
inútil e falsa literatura do mundo. Mulatos do nordeste e do norte, mestiços do
sul, imigrantes de São Paulo, falando todos eles na Grécia. São Luís do Maranhão
não é uma cidade do Norte do Brasil: é a Atenas Brasileira, se orgulhando
de falar português puro.
A política vendia o país, contraía empréstimos,
girava em torno de um produto, ora a borracha, ora o café, ora o açúcar, os literatos
ignoravam o país. O povo ignorava os literatos e estes vendiam seus livros em Portugal,
quando os vendiam. Para essa geração de sensibilidade de moça-da-cidade-pequena
o Brasil não existiu. A literatura era escada para empregos, o livro e o artigo
matéria para brilho social. Foi essa geração, amiga, quem pariu num aborto cretino
a célebre frase: a literatura é um sorriso da sociedade. A sociedade bailava
nos salões pagando com ouro estrangeiro a orquestra, pagando com dólar, libra, com
marco, com franco, os vestidos, os sapatos, os sorrisos das mulheres, os sorrisos
dos literatos. A tradição de luta e de brasileirismo da literatura nacional se perdia
nesses desfibrados, maus escritores além de tudo, reles imitadores de quanta porcaria
se publicava na Europa. Comprados por míseros empregos, respondendo à sensibilidade
de uma burguesia que não a possuía, preocupados com ridículas questiúnculas gramaticais,
trancados numa torre que não era de cristal porque não era de um vidro fosco e opaco,
esses mulatos pernósticos do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia, esses filhos de
imigrantes de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que falavam em Grécia
e Paris. Traíam a sua missão de escritor, desconheciam seu povo, empregavam sua
voz apenas em cantar ditirambos aos vendedores da pátria. Resultavam da classe que
enriquecia à base da entrega do Brasil aos imperialismos. Por isso mesmo tinham
de ser neutros, apolíticos e medíocres.”
“Nas noites longas de estrelas sobre os rios,
a água parada, os homens lembram, para os meninos sertanejos condutores de cegos
e guias para cangaceiros, o tropel numeroso e épico da Coluna. Vinham mil homens,
mil e quinhentos, por vezes eram só oitocentos, vinha a liberdade com eles. Antes
eram as tropas do governo, o ódio ao povo, os desatinos contra o povo. Depois, quando
longe estivesse a Coluna redentora, seriam de novo a injustiça e a opressão do governo.
Mas, no rastro da Coluna, ficava a esperança. Um dia ela voltará para sempre e com
ela a liberdade. E com ela a justiça e o amor e a alegria.”
“Não é apenas a coragem nos combates, o arriscar
a vida a cada momento. É também, e principalmente, o conceber os planos vitoriosos,
a percepção do momento perigoso e de como sair dele. É a arte da guerra que um rapaz
de vinte e seis anos conhece como o mais experimentado dos generais. Nem o mais
empedernido jogador nem o mais sábio dos generais apostaria um tostão em que a Coluna
seria capaz de realizar sequer uma marcha de 100 quilômetros. Forças infinitamente
maiores contra ela. E a natureza bravia, a fome, as doenças, os animais da selva,
os rios intransitáveis, as montanhas jamais escaladas, a mata, a caatinga, nenhuma
estrada. Prestes marchou com a sua coluna vinte e seis mil quilômetros.”
“Esse país inexplorado de Mato Grosso e Goiás,
terras que nunca acabam, fazendas como nações, tudo primário, bárbaro e desconhecido.
Até aqui não chegaram as leis, amiga, nem mesmo essas leis já agora tão deficientes
para as capitais e os estados mais civilizados do litoral. Aqui, os senhores feudais
criaram as suas leis próprias, as mais bárbaras, as mais brutais. Nestas terras
a abolição nunca se deu, a gente continua escrava de uns poucos homens donos da
terra. Em cada uma destas fazendas, negra, poderias pôr uma nação da Europa e sobraria
terra.
Aqui são os tempos da Colônia ainda, amiga. Esses
latifúndios da Mate Laranjeira, esses latifúndios dos senhores feudais, os homens
como os mais miseráveis escravos, sem nenhum direito, sem uma lei que os proteja,
são uma visão dantesca.”
“Deram aos soldados do povo todos os nomes: Coluna
da Morte, Coluna Fênix, Coluna Invicta, Coluna Prestes. E dizendo Coluna Prestes
o povo dizia Coluna da Esperança. Na sua frente o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos
Prestes, suas barbas crescidas, seus olhos ardentes, sua face tranquila, seu sorriso
triste mas confiante. Cavaleiro do povo.”
“Lampião se havia oferecido a Prestes, o general
recusara sua adesão. Lampião foi dono desses estados do Nordeste durante muitos
anos. Partira da injustiça dos donos da terra, das leis bárbaras contra os pobres
para a vingança do cangaço. A revolta virando banditismo, saque, estupro e morte.
O governo contrata Lampião para combater a Coluna. Ele é feito capitão num insulto
ao exército, mais um insulto da tirania da época. E como ele, quanto cangaceiro
existia no nordeste, o governo arrebanhou para lançar contra Prestes. Foram os homens
do padre Cícero, taumaturgo do Ceará. Na esperança dos seus milagres, da sua intimidade
com a Virgem, se dependuravam as populações nordestinas. Viajam léguas e léguas
para tomarem a benção ao padre Cícero. Juazeiro do Ceará, sua cidade e sua fortaleza,
era o reduto onde os cangaceiros se homiziavam. Padrinho de Lampião, prometendo
a toda gente desgraçada um milagre caído do céu, do manto estrelado da Virgem, que
um dia melhorasse as suas vidas. O padre Cícero não aceitou tomar parte na luta
contra Prestes. Talvez que, na sua loucura religiosa, na sua bondade atrapalhada,
querendo ajudar os sertanejos, não tendo para lhes dar senão os milagres, desconhecendo
os caminhos que poderiam levar os homens a uma vida melhor, talvez ele tenha sentido
que com Prestes vinha a palavra verdadeira de libertação para os seus sertanejos
infelizes. Não aceitou luta contra ele, mas todos os Floros Bartolomeus, que exploravam
o seu prestígio de santo supersticioso junto aos nordestinos, aceitaram de bom grado
o dinheiro e os postos militares, armaram os cangaceiros e saquearam cidades e vilas,
povoados e fazendas, já que não conseguiram vencer a Coluna.
É que, amiga, se tornava cada vez mais difícil
ao governo formar os batalhões de voluntários. Esses voluntários eram caçados
a laço pelos senhores feudais, os donos dos latifúndios de Mato Grosso e Goiás.
Os seus escravos que eram lançados contra a Coluna, aparecendo nos jornais de Bernardes,
sob a censura carola de Jackson de Figueiredo, como patriotas que se alistavam para
defender a boa causa. Os feitos da Coluna, os militares e os sociais, a distribuição
de justiça, impossibilitaram, no nordeste, a caça desses voluntários pelos
chefes políticos. As populações desertavam para não formarem contra Prestes. O governo
teve de recorrer aos cangaceiros, bandidos de profissão, terror dos sertões, para
formar tropas contra a Coluna. Foi assim, amiga, que Virgulino, o que foi decapitado
anos depois nas margens do São Francisco foi feito capitão. O capitão Virgulino
Ferreira Lampião, homem de Bernardes contra Prestes. Rezavam os governistas por
Lampião, o que deflorava virgens, matava inocentes, capava gente, roubava ricos
e pobres. Por ele o padre-nosso e a ave-maria.
Luís Carlos Prestes vencera o impaludismo, o sol,
as florestas e os rios. Vencia os cangaceiros também. Seu nome, como uma chicotada
nas faces dos inimigos do povo, ressoava sob os céus do país. Nos lares pobres,
nas choças, nos mocambos, nas senzalas do país, as mulheres de faces cavadas, as
crianças doentes, os homens escravizados imploravam aos céus, aos seus deuses misturados,
brancos, índios, negros, deuses mesclados de religiões e superstições, imploravam
pela vitória do Cavaleiro da Esperança. Também da caatinga sobem preces para os
céus, amiga.”
“As lendas ficavam na rabada da Coluna, amiga,
marchavam também na sua frente. Nesta terra de superstições e história, de bandoleiros
e profetas, nessa terra agreste do sertão, as lendas surgem a cada instante acerca
de cada coisa. Os fantasmas habitam todo o interior do Brasil, milhares de assombrações
morando nas matas, a poesia como em ondas na boca dos cegos violeiros, dos pretos
narradores, das negras velhas que embalaram o sono das crianças brancas e mulatas.
Nestas terras, amiga, os poetas transformados em heróis de aventuras, nunca ninguém
soube onde ficam os limites da realidade e da imaginação. Lendas dos negros, lendas
que vieram da África para as costas da Bahia e de Pernambuco. Lendas dos índios
nas selvas de Goiás e Mato Grosso. Por entre elas atravessava a Coluna Prestes.
E dela, desse punhado de soldados destemidos, nasciam igualmente as lendas. A Coluna
conduzia o heroísmo e a justiça, conduzia a poesia também, amiga. No seu rastro
as lendas, as lendas na sua frente.
Já te disse que, na voz dos sertanejos, os soldados
da Coluna só comiam as partes dianteiras dos animais, para assim adquirirem aquela
espantosa rapidez de movimentos que caracterizou a Grande Marcha. As patas dianteiras
arrastam para frente, as patas de trás são as que querem ficar. Nas patas dianteiras
está o segredo das marchas velozes. Assim o contam os sertanejos, amiga, assombrados
ante a ligeireza dos movimentos da Coluna.
Nasciam as lendas das potreadas audaciosas, nasciam
das vivandeiras valentes, nasciam do heroísmo dos oficiais, do gênio de Prestes.
Para o interior a Coluna era o inédito, o nunca visto e o nunca esperado. As populações
estavam acostumadas com os cangaceiros roubando, queimando, destruindo, violando,
propriedades e mulheres, com a polícia que perseguia os cangaceiros e que em nada
se diferenciava deles. Um grupo de homens armados representava sempre para o camponês
do interior uma ameaça à sua vida, à sua família, aos seus parcos bens. Era sempre
um aumento das suas desgraças, no bando vinham novas leis ainda mais terríveis que
as escravizadoras leis dominantes. A lei do cangaço, a lei da polícia que perseguia
o cangaço. Junto com as enchentes, os rios transbordando, levando as plantações
e o gado, junto com as secas, o sol comendo as safras, sugando o sangue dos animais
até matá-los, os cangaceiros e a polícia eram o tráfico cotidiano do sertão. No
seu folclore tão sofrido, conduzido através do país nas violas dos cegos esmoladores,
essas eram as personagens das lendas, dos cânticos, das histórias e dos ABCs.
A Coluna era diferente. Aqueles homens armados,
lutando todos os dias, barbados, cabeludos, sujos e esfarrapados, vestidos de couro
como os cangaceiros, como os vaqueiros tocadores de gado, ardendo em febre nas caminhadas,
a maleita agarrada neles, não traziam a morte, o roubo, o crime, a violação no lombo
dos seus cavalos, no rastro dos seus pés andarilhos. Traziam algo que o sertão desconhecia,
algo que nunca estivera presente nos júris, nas administrações, nos impostos, nas
contas com que os coronéis liquidavam com os trabalhadores: a Coluna trazia a justiça,
amiga, era impossível de crer!”
“Essas populações aprenderam a respeitar os padres,
houve um tempo em que o clero pobre defendeu os seus interesses. Depois uma grande
parte dos padres ficou com os ricos, seus instrumentos de escravidão. Mas a lembrança
dos padres bons restara no pensamento do sertão. E quando a Coluna chegava, os camponeses
beijavam, por vezes, a mão de Miguel Costa e o tratavam de Bispo, como quem lhe
dava um nome bom. Como confundiam uma vivandeira com a princesa Isabel, a que ficara
na memória dos pobres porque assinara o decreto de libertação dos negros. Mas Prestes
era um mistério maior: nos seus olhos ardentes os sertanejos viram o dom de adivinhar.
Adivinhava o pensamento de todos, ninguém lhe podia esconder nada. Para ele não
havia segredos, nem os homens, nem os animais, nem a natureza bravia podiam com
ele. Era maior que todos, era um adivinho.”
“Nesse momento da entrada na Bahia, a Coluna contava
com um total de mil e duzentos homens. A cerca de trinta mil homens subia o número
das tropas governistas espalhadas entre a Bahia, Pernambuco e Minas. Três ou quatro
vezes maior ainda era o total de soldados que o governo aliciara por todo o país
para perseguir os mil homens de Prestes. Dezoito generais, vários coronéis são derrotados
durante a Grande Marcha. O governo empregou todos os seus recursos militares na
tentativa de derrotar a Coluna. Sem resultado. Prestes brincou com essas forças
contrarrevolucionárias, fez delas o que quis, fê-las andar para a frente e para
trás, se juntarem num estado quando ele queria entrar noutro, lutarem entre si,
fugirem inúmeras vezes, se desorientarem sempre. Na sua visão genial, o adivinho
dos sertanejos previa com um acerto absoluto os movimentos do inimigo, não lhe dava
tempo a surpresas. Oferecia-lhe combate quando o achava necessário, enganava os
bernardistas todas as vezes que desejava.”
“O São Francisco, amiga, é como a veia arterial
do Brasil. Seus problemas, suas riquezas, seus dramas são o cerne dos problemas,
das riquezas e dos dramas do Brasil. Existe toda uma literatura sobre esta região.
Fortunas se edificaram aqui, aqui a escravidão é um drama banal. Prestes vai estudar
estes problemas, como estudou os demais problemas do Brasil, em carne viva. Marchando
através deles, vivendo-os.”
“Os soldados, amiga, olham uns para os outros,
murmuram entre si frases de assombro. Não é mesmo um homem aquele general, é um
feiticeiro, aquela Coluna é mesmo mal-assombrada, aparece e desaparece, onde ela
está que ninguém sabe? Os soldados do governo nessas perseguições sem resultados,
no mar de notícias contraditórias que arrancavam das populações sertanejas, afogados
em lendas sobre a Coluna e o seu chefe, terminam tomados de terror diante do sobrenatural
que para eles era a Coluna Prestes. Se nem os próprios generais do exército sabiam
e podiam explicar os movimentos audaciosos, os súbitos desaparecimentos, os aparecimentos
ainda mais súbitos, as vitórias consecutivas da Coluna, como não haveriam os soldados
supersticiosos de imaginar mil coisas, de tremer todas as vezes que tinham que se
lançar no rastro da coluna?”
“Assim havia de marchar duzentas léguas por terrenos
como este. A flora inimiga, a fauna inimiga também, negra. Nessas terras do sem
fim, não resistem outros animais que as cobras e os lagartos, os répteis mais imundos,
mais traiçoeiros e mais venenosos. Aparecem na margem da picada, o seu silvo aterrador,
o seu beijo da morte. As folhas secas estalam sob as passagens das cobras, dos lagartos
ficados do princípio do mundo, animais de outras eras distantes que ainda viviam
naquelas terras, terras que pareciam elas também de um passado remoto. De entre
as coroas-de-frade e as unhas-de-gato, a cascavel e a jaracuçu, as grandes cobras
da mata, espiam a marcha da Coluna Prestes. Os homens vão com sede, vão com fome.
Silvam as cobras, a cabeça-de-platona, a pico-de-jaca. Estremecem
os homens no horror do animal venenoso, mas seguem. Na frente vai Prestes, quem
pode ter medo quando o acompanha?”
“Para que o leitor tenha uma ideia da confiança
que os oficiais e os soldados da Coluna depositavam em Prestes, cito as seguintes
frases de Moreira Lima: O meu estado de espírito era tal, nessa campanha, que
se Prestes resolvesse ir ao Inferno, eu o acompanharia...
O mesmo Moreira lima nos conta dessa saborosa
frase de um homem da Coluna sobre Prestes: O general Prestes é muito homem para
vadear o mar-oceano e virar a Oropa em frege.”
“Aqui lutaram os sertanejos, Antonio Conselheiro
à sua frente. Anos depois lutaram de novo, era Prestes que os conduzia. E com eles
volverão à luta uma, duas, mil vezes se assim for necessário, amiga. Um dia essas
terras serão somente da fartura, a desgraça terá fugido delas. Quando a Coluna voltar,
negra.”
“Prestes terminava a sua campanha da Bahia, onde
marchou cinco mil e vinte e dois quilômetros, atravessou trinta e três rios, perseguido
por trinta mil soldados, pela fome, pela sede, pela febre, pela agreste natureza,
pelos répteis traiçoeiros. Duzentos homens da Coluna haviam ficado nos campos e
nas caatingas da Bahia, feridos, desaparecidos ou mortos. O inimigo fora vencido
várias vezes, e agora, após os últimos feitos militares de Prestes, nem mesmo os
generais de Bernardes acreditavam possível derrotá-lo. Quando eles telegrafavam
para o Rio de Janeiro dizendo que a Coluna estava cercada e desta vez seria fatalmente
destruída, eles já o faziam por hábito, amiga, nem mesmo eles acreditavam nesses
telegramas. Agora, negra, até os generais se haviam inoculado da superstição dos
cangaceiros. Também eles pensavam que se tratava de algo sobrenatural: era-lhes
impossível medir o gênio de Prestes. Para eles era o Demônio da guerra, dono de
todos os caminhos daqueles infernos das caatingas. Para os sertanejos era uma estrela
cortando a noite da Bahia.”
“No dia 24 a Coluna toma o rumo do oeste, indo
combater a 28 na ponte sobre o rio Mando, contra o 6º B.C., o qual derrota, tomando-lhe
munições. O Ano-Novo encontra a Coluna na fazenda Rafael, de partida, sob chuva
torrencial. Sob essa mesma chuva é comemorado entre os soldados o vigésimo nono
aniversário de Prestes, o terceiro que ele passava marchando através do Brasil,
o primeiro dos três que passava sem combater. Aos 26 anos era, amiga, um capitão
de engenheiros que se havia distinguido na escola, que não pudera permanecer no
posto de engenheiro-fiscal porque sua honestidade o fizera protestar violentamente
contra escandalosos desvios de verba. Um homem que parecia indicado para trabalhos
de gabinete, um matemático antes de tudo, construtor de estradas, de usinas elétricas,
longe estavam, aqueles que o conheciam, de imaginá-lo general, traçando planos de
combates, de ataques e retiradas. Fora um aluno de estratégia militar em luta com
seu professor, tirando notas discretas, dando palpites que pareciam inteiramente
errados ao mestre. Agora, três anos depois, era o general mais celebrado da América
Latina, tendo realizado o maior raid de cavalaria do mundo, tendo derrotado 18 generais
de renome, tendo percorrido trinta mil quilômetros, um gênio militar como antes
não houvera notícias nessa parte do mundo. A marcha da sua Coluna era agora estudada
com assombro não só pelos mestres que duvidaram antes das suas qualidades de estrategista,
como pelos mais autorizados estados-maiores dos demais países da América e da Europa.
Batera todos os recordes de marcha de infantaria na travessia de Tabuleiro Alto
a Sento Sé. Com mil e quinhentos homens, que haviam se reduzido aos quinhentos que
comandava agora, atravessara cem mil inimigos bem armados, bem municiados, bem pagos.
Lutara contra o exército, contra as diversas polícias estaduais, contra os cangaceiros
organizados em tropas de combate. Vencera todos, como vencera a natureza bravia,
como vencera as febres e os animais da selva e da caatinga. Sua derrota fora anunciada,
pelos generais governistas, vinte ou trinta vezes. Sua cabeça a prêmio, marchando
e combatendo com trinta e nove graus de febre. Sua Coluna cercada várias vezes.
Rompeu os cercos, transformou derrotas certas em vitórias conquistadas a rasgos
de gênio. Nunca sentiu a febre, entrando pelos atoleiros, dando seu cavalo a um
soldado ferido, a um soldado cansado. Levando por um imenso país desgraçado e angustiado
a esperança de um futuro melhor. Levantando as gentes, negra, traçando os caminhos
da liberdade no Brasil.”
“E em direção à Bolívia, penetra nesse dia nos
pântanos que se estendem até a fronteira. É o trecho mais assustador da marcha,
se algo pode assustar esses homens de aço. Os animais já não existiam. Dos mil e
quinhentos homens que haviam partido das margens do Paraná, apenas quinhentos estão
reunidos em torno de seu chefe, dois terços da Coluna ficaram pelo Brasil, corpos
e sangue em catorze estados, esperança sobre toda uma pátria. São quinhentos e,
desses quinhentos, muitos não podem combater. São feridos, são doentes, são mulheres,
são velhos, são meninos. Não há quase munições, não há quase armas, não há o que
comer, não há cavalos sobre os quais viajar, vão montados nos poucos bois que levam,
e essa montaria diminui a cada dia porque os bois são abatidos para comida. Além
da carne magra desses raros bois cansados, tudo que resta é o palmito de quando
em vez encontrado na estrada difícil. Todos marcham descalços, não há mais sapatos,
não há roupa tampouco. Vestem farrapos, de cor indefinida, bordados de lama, da
lama dos pantanais. Alguns levam apenas uma tanga sobre o sexo, feita com os restos
de um cobertor. Outros vestem recordações do que fora antes calças ou cuecas. Os
mosquitos, trazendo todas as febres nos seus ferrões aguçados, cobrem as noites
da Coluna. Não resta nenhum tempero para cozinhar. A pouca carne é comida sem sal,
chamuscada no fogo difícil de acender no lamaçal sem fim. Para descansar os homens
têm que subir nos galhos mais altos das árvores, como um imenso bando de macacos.”
“Eles olham: é a fronteira da Bolívia na frente.
Os olhos se voltam para trás, ali ficava o Brasil. Esses soldados, amiga, não têm,
perfeita ideia do que realizaram. Sabem que acompanharam a Prestes, que lutavam
pela liberdade e por uma vida melhor. Mas talvez nem saibam que plantaram nas terras
do Brasil a revolução para todo o sempre.
Marchavam devagar. Esses homens nunca choraram,
amiga. Mas agora, quando a Pátria fica para trás, os soldados da Coluna, curtidos
de mil combates, deixam que as lágrimas rolem sobre os farrapos, sobre as barbas
crescidas, sobre os peitos nus. E, como o faziam sempre que algo os perturbava,
procuram com os olhos o general Luís Carlos Prestes. Olham para a frente, ele sempre
vai na frente. Não, desta vez, amiga, ele marcha na retaguarda, é o último a deixar
as terras do Brasil. Seu rosto sereno, sua face tranquila, seu olhar ardente. Um
soldado o fita e o compreende. Grita para os outros, sua voz alegre como um toque
de clarim:
– Um dia a gente volta...
Sua voz em direção do Brasil que fica, última
mensagem de esperança da Coluna Prestes.
Agora é o exílio, amiga.”
“O povo foi uma bandeira para estes homens e o
chamado do povo é poderoso como nenhum chamado.”
“Como heróis do povo do Brasil são esses mil e
quinhentos homens da Coluna. Mais de oitenta por cento da tropa ferida, quase sempre
mais de uma vez. Vinte e seis mil quilômetros atravessados em quase três anos de
uma marcha cujo descanso maior foi de quarenta e oito horas. Seiscentos soldados
que morreram, misturando seu sangue com o de setenta oficiais. Cem mil cavalos utilizados
na maior marcha de calaria do mundo. Trinta mil bois abatidos nos dias em que havia
bois a abater. Cinquenta e três combates de importância, milhares de tiroteios menores.”
“Pires foi ferido quatorze vezes. Fez toda a Coluna
até a Bolívia, onde chegou capitão. Agrícola Batista recebeu três balas na mesma
perna. Não se amedrontou, fazia pilhéria, falava em cortar aquela perna que trazia
urucubaca. Assim eram eles, amiga, esses soldados da Coluna.”
“O que tínhamos em vista – disse Prestes se referindo
à Coluna – principalmente, era despertar as populações do interior, sacudindo-as
da apatia em que viviam mergulhadas, indiferentes à sorte do país, desesperançadas
de qualquer remédio para os seus males e sofrimentos. Isso ele o havia conseguido
realizar. Essa foi uma face da Coluna, um dos seus trabalhos.
Havia
a outra face, os líderes do povo aprendendo os sofrimentos do povo, vendo o superficial
daquelas plataformas revolucionárias que haviam acompanhado os movimentos de 22
e 24. É o momento em que o pensamento tenentista começa a evoluir para o pensamento
nacional-libertador.”
“Ao fazer o retrato da Coluna, vendo-a desde o
exílio, Prestes fala sobre esta outra face e marca a evolução rápida que estava
tendo o tenentismo:
Não há solução possível para os problemas brasileiros
dentro dos quadros legais vigentes. A questão não é de homens, mas é de fatos, isto
é, de sistema e de regime. Nenhum governo, mesmo animado das melhores intenções
desse mundo, poderá, nos limites da legalidade normal, resolver os problemas nacionais
em equação. A solução tem de vir de uma transformação radical em tudo, não apenas
na superfície política, é preciso reorganizar o país sobre bases novas. É preciso
criar novas bases econômicas e sociais de relações entre os homens que habitam e
trabalham nesta grande terra. É preciso quebrar, resolutamente, as cadeias que oprimem
o Brasil e impedem seu desenvolvimento ulterior, sua expansão fecunda e gloriosa.
Isso ele aprendera com a Coluna, durante a marcha.
Não fora apenas a Coluna quem dera algo. Também o povo dera aos homens da grande
marcha uma nova visão da vida e do Brasil. O povo acabara de criar o seu líder à
sua feição, marcara-o com o fogo dos seus problemas. Nesse momento Prestes fala
em retalhar os latifúndios. Prestes se levanta, depois da Coluna, contra
o imperialismo, sua voz clama para todos os países da América Latina no sentido
de se unirem contra o inimigo comum: o imperialismo. O líder do povo do Brasil começa
a sua carreira de grande líder de toda a América. Porque viveu no interior da sua
pátria os problemas semelhantes de todos os países latino-americanos.”
“A coluna, linha do coração traçada na mão do
Brasil, como disse o poeta, amiga, revela o país para Luís Carlos Prestes, dá-lhe
a responsabilidade de Herói de um povo. Nunca trairá a Coluna. Mesmo hoje, amiga,
na prisão mais infecta, ele está continuando a Grande Marcha, os problemas na mão
direita, na mão esquerda as soluções. Como naqueles distantes anos, o povo o espera.
Mais que qualquer outra, sua voz vai concorrer para que terminem os dias de fome
e de escravidão. Desta vez para sempre.”
“Todos esses revolucionários sul-americanos, que
haviam tomado parte em golpes armados nos seus países, que haviam fracassado, não
pensam noutra coisa senão em novos golpes. Prestes, não. Ele pensa em problemas
para os quais é necessário encontrar solução. Ele pensa em encontrar a fórmula que
possa solucionar aquela equação de novo tipo. Por que fracassaram estas revoluções?
Por que sendo tamanhos os problemas são tão reduzidos os programas e as consignas?
Por que, se uma revolução é vitoriosa, meses depois nada distingue os revolucionários
no poder dos políticos derrubados do poder? Que há por detrás disso tudo? Que filosofia
de vida, que doutrina pode responder a todas essas perguntas? Qual poderá solucionar
os problemas do povo?”
“As divergências de Prestes com os demais exilados
brasileiros irão em breve começar e logo se agravar. Agora todos os sábados conversa
com Ghioldi e outros comunistas, apresentando os seus problemas, os problemas do
Brasil, discutindo e aprendendo. Lê muito. Lê avidamente. Quando chega do trabalho
– porque continua a exercer a sua profissão de engenheiro e a administrar as rendas
parcas dos exilados – se joga sobre os livros, esquecendo a comida, o descanso,
as diversões, na febre de aprender. E, como é de seu hábito, quer que os outros
leiam. Distribui livros, cita trechos, vai palmilhando o seu caminho com a mesma
precisão que o fizera um grande general e um grande engenheiro.
O movimento operário argentino é outro campo em
que muito aprende. Antigo movimento esse, amiga. Ainda nos tempos da Primeira Internacional,
Engels se correspondia com os líderes proletários do Prata. Os partidos Radical,
Socialista e Comunista são longamente observados por Prestes, que se aprofunda no
estudo da política argentina. Por outro lado, estuda a experiência soviética. Dessas
conversas, dessas análises, dessas aproximações, desses estudos, resulta que Prestes
compreende a importância da classe operária na revolução, o seu papel de classe
organicamente revolucionária. Vê que com o proletariado está, naturalmente, a hegemonia
da revolução. Que a pequena e a média burguesia, e mesmo a burguesia progressista,
se querem salvar-se nesse momento do mundo, têm que cerrar fileiras ao lado da classe
operária e acompanhá-la. Seu pensamento descortina novos horizontes, amiga.”
“Prestes escreve sobre o Brasil:
As condições peculiares à nossa categoria de país
dominado pelos grandes senhores da terra, por um regime semifeudal de latifundiários
ou da exploração das massas semi-escravizadas dos campos e ainda do país semicolonial
dependendo do imperialismo, estabelecem como etapa imediata do movimento emancipador
do Brasil a revolução agrária e antiimperialista. A dominação que esses latifundiários
exercem sobre a ditadura política apoiados no imperialismo, na terrível opressão
do capitalismo estrangeiro, torna estes pontos os mais sensíveis do nosso sistema
explorador e portanto aqueles sobre os quais se têm de concentrar os seus esforços
revolucionários.”
“Daí dirige uma carta circular aos seus amigos
e companheiros das lutas anteriores. Esclarece seu pensamento, agora já é o marxista
quem fala, sua linguagem é uma linguagem nova, esses anos de estudos, de experiências,
de discussões, de erros, de busca de um caminho fizeram dele um revolucionário consciente.
Agora já sabe o que o povo brasileiro precisa, já tem uma resposta para as perguntas
que lhe fizerem.”
“Prestes, ao aderir ao proletariado na sua revolução,
sabe que todos os ódios dos donos da vida vão acirrar-se contra ele. Mas, quando
aceita o marxismo como concepção de vida, quando encontra nele a resposta às suas
perguntas, não tem um minuto de vacilação. É o mesmo general Luís Carlos Prestes
que atravessava por caminhos que faziam os demais estremecer. Ali está a verdade,
ele a acompanhará.”
“Nunca, em todo mundo, incluindo o futurismo
de Marinetti no fáscio italiano, incluindo as teorias árias do nazismo alemão,
nunca se escreveu tanta idiotice, tanta cretinice, em tão má literatura, como o
fez o integralismo no Brasil. Foi um momento onde maior que o ridículo só era a
desonestidade. Plínio Salgado, führer de opereta, messias de teatro barato, tinha
o micróbio da má literatura. Tendo fracassado nos seus plágios de Oswald de Andrade,
convencido que não nascera para copiar boa literatura, plagia nesses anos o que
há de pior em letra de fôrma no mundo. É a literatura mais imbecil que imaginar
se possa.”
“Getúlio apoiava-se em uma trilogia trágica: Rao,
Filinto e Plínio Salgado. Latifúndio, imperialismo e fascismo. O programa de um
Governo Popular Nacional Revolucionário era exatamente o de combate a estes inimigos
do povo.”
“Bando de torturadores, recrutados entre os criminosos
mais eficientes. Dos chefes ao último tira. Dos que formaram o Tribunal de Segurança
aos investigadores sem importância. Nomes que dá nojo dizer. Desonra da espécie
humana, indignidade vivendo, bestas vestidas de homens, excrescência de podridões,
hálito fétido de latrinas.
Lama, sujeira, lixo, miséria, chagas podres, carne
leprosa, pus de feridas, vômito e escarro, podridão humana, excremento de prostíbulos!
Mais vale, amiga, encher a boca de sujeira que pronunciar o nome desses vermes com
corações de feras, soltos sobre o Brasil, presença envilecendo a Pátria. Os assassinos!
Frios assassinos, covardes assassinos, bestiais e degenerados! Qualquer palavra
suja, qualquer imundo substantivo, é doce palavra de poema lírico ao lado desses
nomes podres. Leprosos por dentro, a lepra no coração infame.”
“Torturavam Prestes, era seu ódio maior, porque
era seu medo maior. E torturavam Olga, a esposa de Luís, que trazia no ventre uma
criança filha daquele amor. Descobriram então o maravilhoso presente, o regalo ideal,
para mandar ao grande tirano Adolf. E enviaram-lhe Olga com o filho no ventre. Com
certeza o grande tirano ficaria feliz. Um ser humano que levava outro dentro de
si para que ele os torturasse à vontade. Assim fazes, amiga, os tiranos quando querem
imitar os homens.
No cargueiro que reproduzia as viagens dantescas
dos navios negreiros, Olga dormia sobre a sujeira dos vômitos, sentia dentro de
si aquela vida bulindo, fruto do seu amor. No Brasil, nas mãos mesquinhas dos inimigos
do povo, nas mãos desses homens que odeiam tudo que representa dignidade e beleza,
ficava seu marido que era a própria dignidade e a própria beleza da vida. E ela,
com um filho no ventre, ia para as mãos de um louco feroz que desgraçava sua pátria
de nascimento. Um mês no porão infecto, sem ar, sem luz, como um fardo jogado sobre
as sujeiras. Ouvindo os hinos hitleristas, as saudações odiosas, viajando para o
próprio inferno.”
“Diante do que os integralistas saem à rua, armados
de punhais, ornados com a cruz suástica, com fuzis alemães, Newton Cavalcanti é
enviado para fechar as câmaras, e Vargas dá, tranquilamente, o golpe de Estado.
A 10 de novembro é comunicado ao país e ao Povo que já não existe a república do
Brasil, agora existe o Estado Novo corporativo, com uma constituição copiada da
italiana e da portuguesa, sob os ardentes aplausos e votos de felicidade da Alemanha
e da Itália.
Vão começar, amiga, os anos ainda mais desgraçados
do Estado Novo. O Estado Novo se caracteriza pelo desejo de arrancar do brasileiro
todas as suas qualidades de caráter. É o regime do suborno, da absoluta e cínica
despreocupação pelos interesses do país e do povo, é o regime da servilidade, da
bajulação e da torpeza no seu máximo. Tirania na América. Degradante e criminosa.”
“Lá está ele, amiga, na prisão. Sobre as grades
de ferro dos buracos por onde penetra um pouco de ar, as telas de arame impedem
que ele veja a paisagem bela da cidade. Mas nada impede que seus olhos profundos
vejam o desenrolar da vida, sintam e analisem e julguem os acontecimentos, que vejam
o caminho a seguir.
Quando sua voz fala, amiga, é o gênio do povo
que fala por ela, condutor da sua gente, general do Brasil, Herói da América!
Lá está ele na prisão imunda. Não lhe permitem
falar nem com seu advogado, não lhe permitem escrever os livros que deseja escrever,
cortam sua correspondência com a família, castigam-no de todas as maneiras, desde
que começou a guerra ele não sabe da sua esposa, processam-no e julgam-no à sua
revelia, dão-lhe uma comida insuficiente e contraindicada para as suas enfermidades,
puseram-no nas proximidades de tuberculosos para ver se o contagiavam, puseram ao
seu lado o companheiro que enlouqueceu com as torturas para ver se assim o enlouqueciam
também. Fizeram-lhe tudo que se pode fazer a um ser humano, a um animal para experiências
de laboratórios de cientistas degenerados, tratam-no como a um cão hidrófobo. Lançaram
sobre ele lama e lodo, pensando que assim afastavam dele o povo, que assim o tornariam
impotente e inofensivo. Não tiveram coragem de matá-lo, temem o povo que se levantará
para vingar a morte do seu Herói. Mas assassinam-no lentamente, com uma crueldade
inaudita. Mantêm sua velha mãe numa tortura selvagem, mantêm ele sob regime inumano.
Não conseguiram dobrá-lo, não conseguiram afastar
o povo dele. Todos os sofrimentos não diminuíram sua profunda visão do mundo e dos
homens. Todas as misérias não diminuíram o amor que o povo lhe tem, a confiança
que deposita nele, a certeza, que o verá novamente partir pelos campos do Brasil
na batalha definitiva da liberdade.”