quarta-feira, 20 de abril de 2011

A trégua, de Mario Benedetti

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-254-1702-2

Tradução: Pedro Gonzaga

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 168

Sinopse: Martín Santomé é um viúvo com três filhos adultos com os quais tem uma relação acidentada. Está prestes a se aposentar, após anos exercendo um trabalho burocrático e rotineiro em uma firma comercial – um de seus poucos orgulhos como funcionário é a caligrafia cuidadosa com que faz anotações nos livros da empresa. Letargizado em uma vida comezinha, cinzenta e sem alegria, Santomé pergunta-se o que fará quando se aposentar. Aprender a tocar um instrumento, talvez? A sua existência é alterada quando ele conhece Laura Avellaneda, uma bela e encantadora jovem que parece prometer toda a vitalidade que falta a Santomé. Será Avellaneda realmente uma redenção, ou apenas uma trégua?

Publicado em 1960, A trégua é a mais importante narrativa do escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) e uma das obras-primas da literatura latino-americana do século XX. Escrito no formato de diário pessoal e repleto de uma finíssima ironia, retrata de maneira pungente a vida inócua e sem perspectivas dos grandes centros urbanos, bem como a luta perdida contra a solidão e a inexorável passagem do tempo. Um livro atual e definitivo.


 

“Não é do ócio que preciso, mas sim do direito de trabalhar naquilo que quero.”

 

 

“Que me sinta, ainda hoje, ingênuo e imaturo (quer dizer, somente com os defeitos da juventude e quase nenhuma de suas virtudes) não significa que eu tenha o direito de exibir essa ingenuidade e essa imaturidade.”

 

 

“Talvez, no fundo, se queiram bastante bem, ainda que esse negócio de amor entre irmãos traga consigo a cota de exasperação mútua outorgada pelo costume.”

 

 

“Eu deveria me sentir orgulhoso por ter seguido adiante, viúvo e com três filhos. Não é orgulho, porém, o que sinto, e sim cansaço. O orgulho serve para quando se tem vinte ou trinta anos.”

 

 

“Às vezes fazíamos contas. Nunca conseguimos equilibrá-las. Talvez olhássemos demasiadamente para os números, para as somas, para os saldos, e não tínhamos tempo de nos olharmos.”

 

 

“A esta altura nenhum de nós tem mais remédio.”

 

 

“Às vezes me sinto infeliz simplesmente por não saber do que estou sentindo falta.”

 

 

“Quem não se sente atraído pelo próprio passado?”

 

 

“A família de Vignale é numerosa, retumbante, pesada. Inclui sua mulher, sua sogra, seu sogro, seu cunhado, seu concunhado e o “horror dos horrores” seus cinco filhos. Estes poderiam ser definidos aproximadamente como pequenos monstros. Nos aspectos físicos são normais, demasiado normais, corados e sadios. Sua monstruosidade reside em seu comportamento inoportuno. (...) Movem-se constantemente, constantemente fazem barulho, constantemente discutem aos gritos. Tem-se a sensação de que eles estão subindo por suas costas, pelos ombros, que sempre estão a ponto de meter os dedos em suas orelhas ou lhe arrancar os cabelos. Nunca chegam a tanto, mas o efeito é o mesmo, e tem-se a consciência de que na casa de Vignale se está à mercê desta matilha. Os adultos da família se refugiaram em uma invejável atitude de resignação, que não exclui bofetadas perdidas que de repente cruzam o ar e se fazem sentir no nariz, na testa, no olho de um daqueles anjinhos. O método da mãe, por exemplo, poderia ser assim definido: tolerar toda atitude e insolência da criança que incomode os outros, incluindo aí as visitas, mas castigar todo gestou ou palavra dessa mesma criança caso esta a incomode pessoalmente. O ponto culminante do jantar se deu na hora da sobremesa. Um dos meninos quis deixar evidente que o arroz-de-leite não lhe agradava. O testemunho deste fato consistiu em virar integralmente sua porção sobre as calças do caçula. O gesto foi festejado com um ruído generoso, e o pranto do prejudicado superou todas as minhas expectativas, superando qualquer possibilidade de descrição.”

 

 

“Em um lapso de uma hora e quinze minutos, passaram exatamente trinta e cinco mulheres interessantes. Para me entreter, fiz uma estatística sobre o que me agradava mais em cada uma delas. Registrei os dados em um guardanapo de papel. Eis o resultado. De duas, agradou-me mais o rosto; de quatro, o cabelo; de seis, o busto; de oito, as pernas; de quinze, o traseiro. Ampla vitória dos traseiros.”

 

 

“Que vento asqueroso, foi um verdadeiro triunfo chegar a Ciudadela, vindo de Colônia, até a Plaza. De uma menina o vento levantou a saia. De um padre levantou a batina. Jesus, que panoramas tão distintos.”

 

 

“Francamente, não sei se acredito em Deus. Às vezes imagino que, caso Deus exista, não haveria de desagradar-lhe esta dúvida. Na realidade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes como para nos dar garantia nem de sua existência nem de sua não-existência. Graças a um pressentimento, posso crer em Deus e acertar, ou não crer em Deus e também acertar.”

 

 

“Não sei se terá ocorrido a algum sociólogo realizar uma análise minuciosa sobre a influência das digestões na cultura, na economia e na política uruguaias? Como comemos, meu Deus! Na alegria, na dor, no assombro, no desalento. Nossa sensibilidade é primordialmente digestiva. Nossa inata vocação de democratas apoia-se em um velho postulado: “Todos temos que comer”. A nossos crentes não é fundamental que Deus lhes perdoe suas dívidas, mas, em contrapartida, pedem de joelhos, com lágrimas nos olhos, que não lhes falte o pão nosso de cada dia. E esse Pão Nosso não é – tenho certeza – meramente um símbolo: é um pão alemão de meio quilo.”

 

 

“A vida é muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que, quando pensamos nessa palavra Vida, quando dizemos, por exemplo, que “nos apegamos à vida”, estamos fazendo com que seja assimilada por outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos fazendo que seja assimilada pelo Prazer. Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e estou certo de que isso é a vida.”

 

 

“Na realidade, o suborno sempre existiu, o acordo também, as negociatas, idem. O que está pior, então? Depois de muito espremer o cérebro, convenci-me de que o pior é a resignação. Os rebeldes passaram a semi-rebeldes, os semi-rebeldes a resignados. Creio que, nesta luminosa Montevidéu, os dois grupos que mais progrediram nesses últimos tempos foram os dos maricas e dos resignados. “Não se pode fazer nada”, dizem as pessoas. Antigamente só usava de suborno aquele que queria conseguir algo ilícito. Até aí tudo bem. Agora aquele que quer conseguir algo lícito também precisa subornar. E isso quer dizer confusão geral.

A resignação, porém, não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono do escrúpulo; mais tarde, a co-participação. Foi um ex-resignado quem pronunciou a célebre frase: “Se os de cima levam o seu, eu também quero levar o meu”. Naturalmente o ex-resignado tem uma desculpa para a sua desonestidade: é a única forma para que os demais não levem vantagem. Diz que se viu obrigado a entrar no jogo, porque do contrário seu dinheiro valeria cada vez menos e a cada passo mais se fechariam os caminhos retos a seguir. Continua mantendo um ódio vingativo e latente contra aqueles pioneiros que o obrigaram a seguir essa rota. Talvez seja também o mais bandido, porque sabe perfeitamente que ninguém morre de desonestidade.”

 

 

“Até o momento de ir para a cama com ela, seja quem for, o importante é ir para a cama com ela; depois do sexo, o importante é irmos embora, voltar cada um para sua cama particular, ignorarmo-nos para sempre. Em tantos e tantos anos desse jogo, não me lembro de uma conversa sequer que tenha sido reconfortante, nem uma frase comovedora (minha ou alheia), destas que estão destinadas a reaparecer depois, quem sabe em que instante confuso, para terminar com alguma vacilação, para nos decidirmos a tomar uma atitude que exigisse uma dose mínima de coragem. Bem, isso não é totalmente certo. Em um motel da rua Rivera, deve fazer uns seis ou sete anos, uma mulher me disse uma frase famosa: “Você faz amor com cara de empregado”.”

 

 

“A experiência e o vigor são simultâneos por muito pouco tempo.”

 

 

“Eu mesmo fabriquei minha rotina, mas pelo caminho mais curto: a acumulação.”

 

 

“Sua teoria, a grande teoria de sua vida, a que a mantém em vigor, é que a felicidade, a verdadeira felicidade, é um estado muito menos angelical e até muito menos agradável do que alguém costuma sonhar. Ela diz que as pessoas acabam, geralmente, sentindo-se infelizes apenas por ter acreditado que a felicidade era uma permanente sensação de indefinível bem-estar, de prazeroso êxtase, de festa perpétua. Não, ela diz, a felicidade é muito menos (ou talvez muito mais, mas de qualquer maneira uma coisa diferente). E é certo que muitos desses supostos infelizes são, na realidade, felizes, mas não se dão conta, não admitem isso, porque acreditam que estão longe demais do bem-estar máximo.”

 

 

“Quando se está no foco da própria vida, é impossível refletir.”

 

 

“Enquanto a solteirona se torna mal-humorada, cada vez menos feminina, maníaca, histérica, incompleta, o solteirão, por sua vez, torna-se extrovertido, fulgurante, ruidoso, um velho cheio de jovialidade. Os dois sofrem com a solidão, mas para o solteirão é só um problema de assistência doméstica, de cama individual; para a solteirona, a solidão é uma cacetada na nuca.”

 

 

“Nos escritórios não há amigos; há pessoas que se veem todos os dias, que se exasperam juntas ou de forma isolada, que fazem piadas e as celebram, que trocam suas queixas e transmitem seus rancores, que falam mal da Diretoria como um todo e adulam cada diretor em particular. A isso se chama convivência, mas só por ilusão e convivência pode chegar a se parecer com a amizade. Em tantos anos de escritório, confesso que Avellaneda é meu primeiro afeto verdadeiro. O resto tem a desvantagem da reação não-escolhida, do vínculo imposto pelas circunstâncias. Que tenho em comum com Muñoz, Méndez e Robledo? Apesar disso, às vezes damos boas risadas juntos, bebemos algo, tratamos uns aos outros com simpatia. No fundo, cada um é um desconhecido para os outros, porque nesse tipo de relação superficial se fala de muitas coisas, mas nunca das vitais, nunca das verdadeiramente importantes e decisivas. Creio que é o trabalho que impede outro tipo de confiança; o trabalho, essa espécie constante de martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico. Algumas vezes, um deles (especialmente Muñoz) se aproximou para iniciar uma conversa comunicativa de verdade. Começou a falar, a delinear com franqueza seu autorretrato, a sintetizar os termos de seu drama, desse drama módico, parado, desconcertante que envenena a vida de cada um, por mais comum que um homem se sinta. Mas sempre há alguém que chama no balcão. Durante meia hora ele tem de explicar a um cliente moroso sobre as inconveniências e as penalidades da mora, discute, grita um pouco, seguramente se sente envilecido. Quando volta à minha mesa, me olha, não diz nada. Faz o esforço muscular correspondente ao sorriso, mas as comissuras se voltam para baixo. Então apanha uma planilha velha, amassa-a com a mão, de uma maneira meticulosa, e depois a atira no cesto de papel. É um simples substitutivo; o que não serve mais, o que ele lança ao cesto, é a confidência. Sim, o trabalho amordaça a confiança. Mas também existe a gozação. A disponibilidade de interesse pelo próximo precisa ser gasta de algum modo; caso contrário, ela fica reprimida e aí vem a claustrofobia, a neurastenia, sei lá o que mais. Já que não temos nem a coragem nem a fraqueza suficientes para nos interessarmos amistosamente pelo próximo (não aquele próximo nebuloso, bíblico, sem face, mas sim o próximo com nome e sobrenome, o próximo mais próximo, o que escreve à escrivaninha aqui em frente e me alcança o cálculo dos juros para que eu o revise e dê o visto), já que renunciamos voluntariamente à amizade, bem, pois então vamos entrar em um clima de gozação com esse vizinho que por oito horas está sempre vulnerável. Além disso, a gozação proporciona uma espécie de solidariedade. Hoje o candidato é este, amanhã aquele, na sequência serei eu. A vítima das chacotas pragueja em silêncio, mas logo se resigna, sabe que isso é apenas parte do jogo, que em um futuro próximo, talvez dentro de uma ou duas horas, poderá escolher a forma de desforra que melhor coincida com sua vocação. Os gozadores, por sua vez, sentem-se solidários, entusiasmados, fulgurantes. Cada vez que algum deles acrescenta à gozação um tempero, os outros festejam, trocam sinais, sentem-se excitados pela cumplicidade, só falta se abraçarem aos gritos de urra. E que alívio é dar umas risadas, inclusive quando é preciso conter o riso porque lá no fundo assomou o gerente com sua cara de melancia, que desforra contra a rotina, contra a papelada, contra essa condenação representada por estar oito horas enredado em algo que não tem nenhuma importância, que só faz engordar as contas bancárias desses inúteis que pecam pela simples razão de estarem vivos, de se deixar viver, desses imprestáveis que acreditam em Deus apenas porque ignoram que faz muito tempo que Deus já deixou de acreditar neles. A gozação e o trabalho. No fim das contas, em que se diferenciam? E que trabalho nos dá ser gozadores, que cansaço. E que gozação é esse trabalho, que piada de mau gosto.”

 

 

“Como é ruim quando alguém lhe diz a verdade, ainda mais quando se trata de uma dessas verdades que se tem evitado pronunciar até mesmo nos solilóquios matinais, quando a gente recém se põe de pé e murmura amargas tolices, profundamente antipáticas, carregadas de rancor contra si mesmo, as quais é preciso dissipar antes de acordar por completo e vestir a máscara que, no resto do dia, verão os outros e verá os outros.”

 

 

“Deus, se é que existe, deve estar fazendo sinais-da-cruz lá de cima.”

 

 

“Quando um sujeito já nasce podre, não há educação que o endireite.”

 

 

“A verdadeira divisão das classes sociais deveria ser feita levando-se em conta a hora em que cada um sai da cama.”

 

 

“Oito da manhã. Estou tomando o café-da-manhã no Tupí. Um de meus maiores prazeres. Sentar-me junto a qualquer uma das janelas que dão para a praça. Chove. Ainda melhor. Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palácio Salvo. Por alguma razão aparece em todos os cartões-postais para turistas. É quase uma representação do caráter nacional: grosseiro, insosso, exagerado, simpático. É tão feio, mas tão feio, que deixa você de bom humor. (...) Na segunda parte de meu festim, entram os jornais. Há dias em que compro todos. Gosto de reconhecer seus elementos característicos. O estilo de cabriola sintática nos editoriais de El Debate; a civilizada hipocrisia de El País; a mixórdia informativa de El Día, interrompida apenas por uma ou outra galhofa anticlerical; a compleição robusta de La Mañana, arrebanhando como ela só. Como são diferentes e ao mesmo tempo iguais. Jogam entre si uma espécie de truco, enganando-se uns aos outros, fazendo sinais, trocando de parceiros. Mas todos se servem do mesmo prato, todos se alimentam da mesma mentira. E nós lemos e, a partir dessa leitura, acreditamos, votamos, discutimos, perdemos a memória, esquecemo-nos, generosa e cretinamente, de que o que dizem hoje é o contrário do que disseram ontem, que hoje defendem com ardor aquele a quem ontem maldisseram e, o pior de tudo, que hoje esse mesmo sujeito aceita, orgulhoso e ufano, essa defesa. Por isso prefiro a espalhafatosa franqueza do Palácio Salvo, porque sempre foi horrível, nunca nos enganou, porque se instalou aqui, no lugar mais concorrido da cidade, e há trinta anos obriga a todos nós, nativos e estrangeiros, a erguermos os olhos em homenagem à sua fealdade. Para olhar os jornais, é preciso baixar os olhos.”

 

 

“Talvez eu esteja exagerando, impondo a meus filhos (ou permitindo que assumam) uma função de juízes. Cumpri meu dever para com eles. Dei-lhes instrução, cuidado, carinho. Bem, talvez no terceiro aspecto eu tenha sido meio avaro. Mas é que não posso ser um desses tipos que andam sempre de peito aberto. Para mim é difícil ser carinhoso, inclusive na vida amorosa. Sempre dou menos que tenho. Meu modo de amar é esse, um pouco reticente, reservando o máximo somente para as grandes ocasiões. Talvez haja uma razão para isso na minha mania por matizes, por graduações. De modo que, se sempre estivesse me expressando no limite, o que deixaria para esses momentos (há uns quatro ou cinco em toda uma vida para cada indivíduo) em que alguém deve dar tudo de si? Também sinto um leve receio de ser piegas, e para mim pieguice é justamente isto: andar sempre com os sentimentos à flor da pele. Para aquele que chora todos os dias, que recurso lhe restará quando uma grande dor se abater sobre ele, uma dor para a qual sejam necessárias as máximas defesas? Sempre há o suicídio, mas isso, depois de tudo, não deixa de ser uma solução pobre.”

 

 

“A vida é suficientemente amarga para que, além disso, fiquemos chorosos, melindrosos ou histéricos só porque algo se antepôs em nosso caminho e não nos deixa seguir nosso percurso até a felicidade, que às vezes vai lado a lado com o desatino.”

 

 

“Para mim, o essencial sempre foi que meus vencimentos chegassem para viver.”

 

 

“Para um futebolista, o máximo significa chegar um dia a jogar na seleção; para um místico, comunicar-se alguma vez com seu Deus; para um sentimental, achar em alguma ocasião em outro ser o verdadeiro eco de seus sentimentos. Para esta pobre gente, em compensação, o máximo é chegar e sentar em cadeiras presidenciais, experimentar a sensação (que para outros seria por demais incômoda) de que alguns destinos estão em suas mãos, ter a ilusão de que resolvem, de que dispõem, de que são alguém.”

 

 

“Sei que, quando alguém vê as coisas de fora, quando não se sente implicado nelas, é muito mais fácil proclamar o que está certo e o que está errado. Mas, quando alguém está metido até o pescoço no problema (e eu já passei por isso muitas vezes), as coisas mudam, a intensidade é outra, surgem convicções profundas, sacrifícios inevitáveis e renúncias que podem parecer inexplicáveis para aquele que só observa.”

 

 

“Os pensamentos servem para edificar o digno sem evasiva, o estoico sem claudicação, o equilíbrio sem reservas, mas as evasivas, as claudicações, as reservas estão agarradas à realidade e, quando chegamos ali, elas nos desarmam e nos afrouxam. Quanto mais dignos sejam os propósitos a cumprir, mais ridículos parecem os propósitos não cumpridos. Olharei para ela e não poderei sentir ciúmes de ninguém; somente ciúmes de mim mesmo, ciúmes deste indivíduo de hoje que sente ciúme de todos. Saí com Avellaneda e meus cinquenta anos, passeei em sua companhia e na deles ao longo da Dieciocho. Quis que me vissem com ela. Creio que não cruzei com ninguém do escritório. Em contrapartida, me viram a mulher do Vignale, um amigo de Jaime, dois parentes dela. Ademais (que terrível ademais!), na Dieciocho com a Yaguarón, cruzei com a mãe de Isabel (minha falecida esposa há duas décadas). É incrível: passaram-se anos e anos pelo meu rosto e pelo dela, e, no entanto, quando a vejo, meu coração segue tendo sobressaltos; na realidade, algo mais que um sobressalto, uma pontada de raiva e impotência. Uma mulher invencível, tão admiravelmente invencível que só lhe resta tirar o chapéu. Cumprimentou-me, com a mesma reticência agressiva de vinte anos atrás, e depois olhou Avellaneda literalmente da cabeça aos pés, um olhar a um só tempo de diagnóstico e condenação. Avellaneda percebeu a animosidade, me apertou o braço e perguntou quem era. “Minha sogra”, eu disse. E é certo: minha primeira e única sogra. Porque ainda que eu me casasse com Avellaneda, ainda que eu nunca tivesse sido marido de Isabel, esta altíssima, potente, decisiva matrona de setenta anos teria sido sempre e para sempre minha Sogra Universal, inevitável, predestinada, minha Sogra que procede diretamente desse Deus de terror que tomara não exista, mesmo que não seja mais para me recordar que o mundo é isso, que o mundo também se detém às vezes para nos contemplar, com um olhar que também pode chegar a ser de diagnóstico e condenação.”

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