domingo, 17 de abril de 2011

O homem e o cavalo (teatro) – Oswald de Andrade

Editora: Globo
ISBN: 978-85-2500-829-9
Opinião★★☆☆☆
Páginas: 128


“ETELVINA – Vocês estão ficando histéricas. Precisam consultar um psicopata!”


         “O POETA-SOLDADO – Eu sou o companheiro de leito da morte! A morte é o cabaço da necessidade! Como é que um espermatozoide pretende ser imortal! Que és tu, espectador, senão um espermatozoide de colarinho! E por isto te recusas a conhecer a verdade que a guerra traz nas artérias. Cantemos o nosso hino! Entoemos a nossa loa! Kip! Kip! Burra!”


“QUERUBINA – Por que é que você o matou, querido?!
O POETA-SOLDADO – Eu não o matei! O desencarnei! Há muita diferença. O que vocês queriam, suas messalinas modernas, era pilhar um preto no céu! Para estragar a raça!
ETELVINA – Mas ele não era preto! Era chocolate ariano.
O POETA-SOLDADO – Com aquela cara!
ETELVINA – Ficou preto porque passou perto do sol. A três léguas! Era natural que amorenasse!
O POETA-SOLDADO – Não quero saber! Em negócio de raça, eu não transijo! Nada de misturas. Não sofro de delicadezas! Vou matando logo. Vocês sabem que as almas são brancas. Como os esqueletos das baratas! São arianas! Ora, ele mesmo, descascado como está agora, já vai sentindo as vantagens incalculáveis do arianismo! Se você falasse a ele, antes da desencarnação, na necessidade que a gente branca tem de submeter, explorar e humilhar a gente de cor, ele talvez não compreendesse. Agora compreende. Já discreteamos sobre Civilização, Cultura, Imperialismo, Capital, Raça e outros temas brancos. Olhem, outro sujeito que me encoleriza é esse judeu...
MALVINA – São Pedro, coitado!
O POETA-SOLDADO – Coitado por quê? Eu por mim dava cabo dele! Cristão-novo!
MALVINA – Não faça isso! Deus castiga!
O POETA-SOLDADO – Deus? Você não sabe que Deus nosso Senhor foi crucificado pelos judeus! Pedro, antes de ser naturalizado cristão, era judeu. E judeu pobre! O que é inadmissível! Bolas! Somos ou não somos arianos? Olhe! Se vocês quiserem, tenho um plano diabólico, terrível. 
Todos se aproximam. 
AS QUATRO – Diga! Fale!
O POETA-SOLDADO – Vocês não denunciam? Posso contar com a altura dos vossos sentimentos raciais?”


“O POETA-SOLDADO – Inaugurou-se há dois dias na Alemanha de Hitler a campanha de morticínio contra os judeus*...”
*: a peça foi escrita em 1934 – antes de Hitler perpetrar o massacre do holocausto.


         “SÃO PEDRO – Vamos assistir. É um espetáculo empolgante. Há buracos na trincheira. Espia!
         ICAR – Prefiro trepar.”



“ICAR – Aquele outro é Job.
SÃO PEDRO – É Job novo-rico. Está ao lado da alimária bíblica, Leviatã. Escuta. Ele pediu a palavra. Vai falar!
A VOZ DE JOB – Eu sou Job, o pedagogo. Resolvi há três mil anos o problema do empregado que quer ficar sócio do patrão. Avacalhai-vos! eis o meu lema. Um dia talvez Deus tenha dó! Então ele vos dará o dobro do que tirou. A mais-valia por intermédio da Providência. E tereis de novo honras, mulheres e festins. A família vos abandonará quando estiverdes na miséria. Mas voltará, quando ficardes rico outra vez. Talvez traga alguns rebentos a mais. Não faz mal. O pai é sempre o marido. A legitimidade é feita pela herança. Deus quer assim!
ICAR – Mas é a propaganda da mansidão e do servilismo.
A VOZ DE JOB – Qualquer revolta é insensata. O homem nasceu para a desgraça como o pássaro para voar!
SÃO PEDRO – Corno!
A VOZ DE JOB – É preciso adorar o arbítrio. Achar bom tudo o que acontece. O arbítrio possui Behemoth – Leviatã Dio a sempre raggione!
VOZES (Aclamando.) – Be-he-moth – Le-vi-a-tã!
ICAR (Emocionado.) – Desceu da tribuna! Vai puxando pelo queixo o monstro bíblico!
VOZES – Be-he-moth – Leviatã! Dio a sempre raggione!
SAO PEDRO – Eles conduzem para a guerra um grande carro. Credo! Os trabalhadores são forçados a atirar sob as rodas dele suas mulheres e filhas!
ICAR – O desemprego e o pauperismo abrem alas... e recrutam as vítimas.
SÃO PEDRO – É o carro de Djaggernat?
ICAR – Não! É o rolo compressor do capital!
SÃO PEDRO – Job dirige a marcha...”



“ICAR – Ficou um para trás. Sem cavaleiro! É Rocinante!
SÃO PEDRO – Sancho vai montá-lo. É a pequena burguesia que tomou conta do cavalo idealista do D. Quixote. O fascismo!
A VOZ DO POETA-SOLDADO – MacBeth cavalga Incitatus! Manefrego de todas as vidas humanas! A guerra é divina porque carrega consigo a juventude.
UMA VOZ ISOLADA – Para a mutilação e para a morte.
A VOZ DO POETA-SOLDADO – Espedaçados no campo da luta, renasceremos-dionisicamente! Quem não quiser me seguir – vista saia!

Clamores. Sereias. Canhões. Motores de avião. Ruídos de marcha.

A VOZ DO DIVO – Eu sou o patos da destruição! Pela raça branca! Pela classe rica! Pela moral cretina! Pelo rei cornudo! Pelo altar vendido! Heil! Duce! Heil! Duce!
A VOZ DO POETA-SOLDADO – O sangue espirra na ponta das nossas espadas.
ICAR – Felizmente eu deixei de ser preto.
SÃO PEDRO – Eu sou judeu batizado!
A VOZ DO DIVO – Heil! Duce! Heil! Duce!
A VOZ DO POETA – Somos a herança de Roma. A salvaguarda da Civilização! Debout les rats!”


“MYSTER BYRON – Que dor de ouvido!
LORD CAPONE – Por quê?
MYSTER BYRON – É o seu calão que fere a minha nobre trompa de Eustáquio.
LORD CAPONE – Fiteiro! No parlamento inglês dizia-se amigo dos operários!
MYSTER BYRON – Demagogia, meu caro. O cartismo foi um movimento perigoso. No fundo, sempre julguei a miséria uma necessidade social. Uma arma para acorrentar as classes pobres às ocupações duras e repugnantes. A tudo que a vida tem de desagradável e vil. Para que a nossa classe tenha dignidade, repouso e gramática. O senhor deve conhecer as minhas origens históricas – a expropriação do camponês pela lã.
LORD CAPONE – Confraternizemos então! Num outro continente e numa etapa mais avançada, eu sou a heroica imagem. O romantismo. O senhor comia lã e cagava rimas! Eu bebo cerveja e mijo gasolina...
MYSTER BYRON – Simbolicamente...
LORD CAPONE – Sim. Comercialmente, bancariamente. Somos símbolos apoiados em metralhadoras.
MYSTER BYRON – Para o trabalhador revoltado há sempre um trocadilho final – a força ou a forca...
LORD CAPONE – Há melhor que isso. A pressão pacífica e silenciosa da fome.”



“LORD CAPONE – Detesto o romantismo policial. Me mexe com os nervos. A burguesia não me compreendeu.
MYSTER BYRON – Nem a mim. Classe desunida pela concorrência acaba se estrepando!
LORD CAPONE – Vamos ser francos. Ela nunca devia ter feito o que fez comigo! Sempre fui um moralista, um inimigo do comunismo e da Rússia. Ela agora me põe na cadeia e reconhece os sovietes. Bolas!
MYSTER BYRON – O senhor é mundialmente conhecido como filantropo.
LORD CAPONE – Sou a fauce do monopólio. Inventei os processos mais avançados de vencer a concorrência...
MYSTER BYRON – À bala!, como diria Floriano Peixoto.
LORD CAPONE – Os que tinham olhos não me viam. Os que tinham pernas não me alcançavam. Os que tinham braços não me agarravam. Corpo fechado!
MYSTER BYRON – Mas como é que foi preso?
LORD CAPONE – Traição da pequena burguesia! Quando a gente não divide com os outros, eles se tornam moralistas. Foi o que se deu!”


“ICAR – Quero ir à missa. Neste país não há mais igrejas. Eu quero rezar. Me regenerar.
SÃO PEDRO – Deixa de besteira.”


“A VOZ DO SOLDADO VERMELHO – Para comer e trepar todos os homens estão preparados!”


“SÃO PEDRO – O que nasceu da mulher pode por acaso ser perfeito?”


“A 2ª CRIANÇA – Proprietários? Que negócio é esse?
A 1ª CRIANÇA – Foram os homens que se apossaram da terra pela força, pelo ludíbrio ou pela herança, para fazer os despojados trabalharem para eles!
A 2ª CRIANÇA – Mas o solo não era de todos?
A 3ª CRIANÇA – Não era não. Nem as máquinas. E os burgueses lutaram séculos para que esse regímen continuasse. Quando as crises apertavam, promoviam guerras patrióticas a fim de massacrar o povo. Os filhos dos ricos não iam para as trincheiras. As famílias dos trabalhadores e dos pobres, transformadas em família de soldados, perdiam os seus chefes e filhos. Os resultados das guerras eram distribuídos entre os ricos. Os soldados que voltavam cegos, mutilados ou sem emprego eram abandonados pelos seus sinistros empresários e acabavam mendigando nas pontes e nas portas das igrejas...
A 2ª CRIANÇA – Igreja?
A 3ª CRIANÇA – Sim, igrejas, bobinha! Não vê que, para manter a exploração das massas que trabalhavam, os exploradores, de acordo com piratas que se chamavam sacerdotes, inventavam que havia um ser supremo e terrível que enchia a pança dos ricos na terra e para os pobres reservava o céu...
A 1ª CRIANÇA – Conseguiam, prometendo ilusões e castigos, que o povo não se revoltasse contra a miséria que lhe impunham as classes ricas...
A 2ª CRIANÇA – Mas o povo se revoltou...”



“Mme. ICAR – Mas teus pais procuram incutir-te bons sentimentos...
A 2ª CRIANÇA – Sentimentos os mais torpes, os mais falsos! O da caridade que manda restituir aos desgraçados uma migalha do que eles nos dão no trabalho diário. Só para que eles não se revoltem e exijam o que é deles. O amor sentimental, complicado, masoquista e absurdo. Todos os recalques catalogados pelo professor Freud. A falsa virtude, a hipocrisia, a libidinagem...
Mme. ICAR – Isso são pecados...
A 2ª CRIANÇA – Pecados que o Deus dos ricos perdoa facilmente. E que só os pobres não podiam ter no vosso mundo...”


     “O que não convém ao enxame não convém à abelha.”


“O EMPREGADO DA GARE – De que te queixas? De teres produzido um benefício para a humanidade? Restituíste apenas o que ela te deu. Velho idealista, acreditas ainda que as invenções são obras de um só homem. Não vês como delas a humanidade se apropria serenamente. (...) Não sabes que o inventor é apenas quem acrescenta a última pedra ao edifício, experimentado antes por inúmeros trabalhadores, anônimos e sacrificados?”

2 comentários:

Revistacidadesol disse...

Tudo de bom! Eu andei reescrevendo essa peça no meu blog.


Abs!

Osmar Fernando disse...

Meu amigo, voce saberia resumir este livro? Eu preciso fazer um trabalho explicando ele, porem eu nao entendo essa "formalidade" toda usada no mesmo.