Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-0581-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 800
Sinopse: Grão-mestre
do conto brasileiro contemporâneo, Rubem Fonseca afirmou-se – desde Os
prisioneiros e A coleira do cão a Pequenas
criaturas – como narrador de situações extremas, marcadas pela
violência e pelo erotismo. Em contos como Feliz ano novo, Passeio noturno e O
cobrador, o escritor carioca produz curtos-circuitos que desnudam
personagens de todas as origens e pretensões sociais e põem marginais e
figurões em pé de igualdade.
Avesso ao sentimentalismo e à cor local, Rubem Fonseca
inspira-se na economia do cinema e na literatura de escritores como Ernest
Hemingway e Isaac Bábel para forjar uma dicção própria e inconfundível. Mais
que isso, o autor traz para seu próprio estilo a contundência e o
desencantamento dos ambientes e heróis de que se ocupa. Assim, na mesma
linhagem em que figuram Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio,
transfigurou o Rio de Janeiro num território ficcional repleto de segredos e
contradições e consagrou-se como um dos grandes contistas da língua brasileira.
“A primeira aula era do Cambaxirra, assim
apelidado por ser ele mirrado e seus braços parecerem asas de um passarinho
feio. Tínhamos-lhe desprezo e talvez ódio: os jovens não perdoam os fracos.”
“Naquele tempo Copacabana não era ainda a
favela de maior densidade demográfica do mundo; era um lugar onde as pessoas
elegantes e ricas moravam.”
“Frei Euzébio (era assim que Najuba se
chamava agora) respondeu:
“A única realidade é a nossa imaginação”.
“Berkeley. Era bispo.”
“Anglicano”.
“Deus existe ou está em nossa imaginação?”
“Os homens sem imaginação não alcançam Deus.
Deus existe.”
“Eu não sei. Agora, aqui neste silêncio,
neste mosteiro velho, eu não sei. Mas em outras ocasiões, sei que
ele não existe.”
“E as verdades sobrenaturais? Essas ele não
as alcançava. Talvez porque Deus quisesse humilhar o raciocínio orgulhoso dos
homens, essas verdades só podiam entrar na mente através do coração. As coisas
naturais têm que ser reconhecidas antes de serem amadas; as coisas
sobrenaturais só chegam a ser conhecidas por aqueles que as amam.”
“Tinha dado o máximo, se eu provocasse ele
explodia, esquecia o campeonato, apelava para a ignorância, mas eu não ia fazer
isso, não só porque a minha raiva já tinha passado depois que briguei com ele
em pensamento, mas também porque João tinha pedido desculpa e quando homem pede
desculpa a gente desculpa.”
“Não gosto de olhar o Corcundinha. Ele tem
mais de seis tiques diferentes. “Você está melhorando dos tiques”, eu disse;
mas que besteira, ele não estava, por que eu disse aquilo? “Estou, não estou?”,
disse ele satisfeito, piscando várias vezes com incrível rapidez o olho
esquerdo.”
“Mas Leninha também não ia acreditar nessa
história da condessa, que acabou tendo um fim triste como todas as histórias
verdadeiras.”
(...) “E me deu vontade de rezar, e de ter
amigos, o pai vivo, e um automóvel. E fui rezando lá por dentro e imaginando
coisas, se tivesse pai ia beijar ele no rosto, e na mão tomando bênção, e seria
seu amigo e seríamos ambos pessoas diferentes.”
“Quando um homem e uma mulher estão num
restaurante – e ela 1º) não é a mulher dele; 2º) não é velha nem feia – isso
significa que um processo erótico qualquer está em curso.”
“Solidão é bom (mas) depois que eu me
esvaziei com uma mulher ou me enchi com uma mulher.”
“Na portaria do hotel, em grandes letras de
vapor de mercúrio, estava escrito: SE VOCÊ NÃO CONHECE HÁ MUITO TEMPO ESSE(A)
HOMEM(MULHER) QUE ESTÁ COM VOCE, NÃO VÁ PARA A CAMA COM ELE(A). PROTEJA SUA
VIDA.
Se o povo fosse atrás disso, ninguém ia mais
para a cama com ninguém, disse a mulher.”
“Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou
o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.
São quatrocentos cruzeiros.
Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não tem não o quê?
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando
em direção à porta.
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor
pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar
os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio
dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos,
executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o
blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu
na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou.
Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei
as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se
fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e
motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me
olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito
que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!,
gritei para ele, agora eu só cobro!
Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado
aquele filho da puta.
A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha
cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo
comida, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.
(...) Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito,
sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de
futebol, (..) xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta.”
“Quando não se tem dinheiro / é bom ter
músculos / e ódio”.
“Quer atirar? pode atirar, a velha não vai
ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a
altura da minha testa. Aqui não dói.
Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra
minha testa.
Já.
Foi bom?
Foi.
Como?
Um alívio.
Como nós dois na cama?
Não, não, outra coisa. O outro lado disso.”
“Augusto, logo que entra, vai até o lago, ali
perto estão as esculturas dos franceses. O campo tem uma velha história, dom
Pedro foi aclamado imperador no Campo de Santana, tropas amotinadas ali
acamparam enquanto aguardavam ordens de atacar, mas Augusto pensa apenas nas
árvores, as mesmas daquele tempo longínquo, e passeia por entre os baobás, as
figueiras, as jaqueiras ostentando enormes frutos; como sempre, tem vontade de
se ajoelhar ante as árvores mais antigas, mas ficar de joelhos lembra a
religião católica e ele agora odeia todas as religiões que fazem as pessoas
ficarem de joelhos, e também odeia Jesus Cristo, de tanto ouvir os padres, os
pastores, os eclesiásticos, os negociantes falarem nele; o movimento da Igreja
ecumênica é a cartelização dos negócios da superstição, um pacto político de
não-agressão entre mafiosos: não vamos brigar uns contra os outros que o bolo
dá para todos.”
“Nem tenho desejo, nem esperança, nem fé nem
medo. Por isso ninguém pode me fazer mal. Ao contrário do que o Velho disse, a
falta de esperança me libertou.”
“Sabe quando descobri que estava velho?
Quando passei a gostar mais de comer do que de foder. Esse é um indício
terrível, pior do que os cabelos crescendo no nariz. Agora não gosto nem de
comer.”
“Existem coisas piores do que ter um livro
idiota escrito a nosso respeito.
Sim, sim, existem. Por exemplo, (com a idade)
o esperma do sujeito ficar fininho como água.”
“Você dormiu vestido?”, pergunta Lou, à mesa
do café.
“Não tenho pijama.”
“Nem uniforme”.
“Você é casada?”
“Por que você quer saber?”
“Estava pensando no seu marido.”
“Não tenho marido.”
“Sujeito de sorte. Esse que não casou com
você.”
“Os críticos... Mary McCarthy tem razão: os
críticos são os maiores inimigos dos leitores.”
“Enquanto vê, da janela de sua suíte no
hotel, os Alpes surgirem com as primeiras luzes do dia, Landers desenvolve um
raciocínio estremunhado: toda literatura, vista de uma determinada perspectiva,
pode ser considerada “de evasão”. Diferente, porém, da evasão sedativa ou
alienante da música. Escritores e leitores, por saberem que não são eternos,
evadem-se, nietzschianamente, da morte. Quando se lê ficção ou poesia está-se
fugindo dos estreitos limites da realidade dos sentidos para uma outra, a que
já disseram ser a única realidade existente, a realidade da imaginação. Vem à
mente de Landers a história de um idiota que percorria todos os dias as ruas de
uma aldeia de pescadores gritando “eu vi a sereia, eu vi a sereia!” e que um
dia realmente viu a sereia e ficou mudo. O poeta é como esse bobo da aldeia? Se
o confronto com a realidade ofuscar sua imaginação ele também ficará mudo?”
“Vamos presumir que o balão fantasma exista.
E que está sendo feito aos pedaços, em locais diferentes, para nós não
descobrirmos, e depois eles vão juntar tudo, acender a bucha e soltar o bicho.
Não dá para você descobrir alguma coisa, alguém dar o serviço?
Depois que foi proibido soltar balão ninguém
mais abre o bico. É uma espécie de religião.
Cristãos na catacumba.
Uma coisa assim. Lembra, doutor, daquele
avião francês que os terroristas sequestraram? Um passageiro que estava no
avião disse que estava tranquilo até que os sequestradores se reuniram num
canto e começaram a rezar. Então ele percebeu que aquela reza significava que
os passageiros estavam fodidos. Logo em seguida começou a matança dos reféns.
Religião é isso. O balão é a reza dos baloeiros. O senhor pode trazer um deles
para cá e arrancar os colhões do elemento com um alicate que ele não dá o
serviço. E os colhões são o bem mais precioso de um homem, não é verdade?
É verdade, respondi, pensando em Fabiana.
O senhor sabe que o Zé de Souza é meu amigo,
não sabe?
Estou sabendo agora.
O Zé de Souza um dia me disse que está cagando
para a lei dos tribunais e para a frescura dos ecologistas. Nossa briga, ele me
disse, é com a lei de Newton. Quando eu falei nas florestas ele respondeu
fodam-se as florestas, as florestas pegam fogo há milhões de anos e o mundo não
acabou.”
“Meu avião só partia no dia seguinte. Pela
primeira vez lamentei não ter um retrato da minha mãe comigo, mas sempre achei
uma idiotice andar com retratos da família no bolso, ainda mais da mãe.
Eu não me incomodava de ficar mais dois dias
vagando pelas ruas daquele grande formigueiro sujo, poluído, cheio de gente estranha.
Era melhor do que andar por uma cidade pequena com ar puro e caipiras que dizem
bom-dia quando cruzam com você. Eu ficaria ali um ano se não tivesse aquele
compromisso me esperando.
Andei o dia inteiro respirando monóxido de
carbono. À noite meu anfitrião me convidou para jantar. Uma mulher nos
acompanhava.
Comemos vermes, o prato mais caro do
restaurante. Ao olhar um deles na ponta do garfo, pareceu-me uma espécie de
larva ou pupa de berne que ao ser frita perdera os pelos negros e a cor
leitosa. Era um verme raro, explicaram-me, extraído de um vegetal. Se fosse um
berne a iguaria seria ainda mais cara, respondi, irônico, já tive berne no meu
corpo três vezes, dois na perna e um na barriga, e os meus cavalos e os meus
cães também tiveram, é difícil tirar ele inteiro, de forma a ser comido frito,
somente frito poderia ser saboroso, como estes aqui – e enchi minha boca de
vermes.”
“Um sujeito rico deve ter uma amante, tira o
cara do ramerrão burguês. Um sujeito pobre também deve ter uma amante, se puder,
evidentemente, faz bem à saúde e torna a miséria mais amena. As esposas são
sempre chatas, nos livros e na vida real, uma amante faz você ter mais
paciência com ela, a esposa.”
“O que me resta? Deus? Deus é um placebo como
qualquer outro.”
“As mães perdoam os filhos, os filhos é que
não perdoam as mães.”
“Você disse que estava tudo resolvido. Como é
que estava tudo resolvido? Como foi que tudo estava resolvido?
De que maneira você resolveu tudo? Você não me disse como foi.
Porra, Clarinha, que interrogatório!
Como é que uma coisa resolve e depois
desresolve?
Essa palavra não existe.
Eu já fiz as malas.
Que malas?
As malas.
Nós não vamos a lugar nenhum.
Não vamos a lugar nenhum? E a viagem a Miami?
Não vamos a lugar nenhum.
Vamos ficar aqui sentados?
Podemos ficar de pé.
Senta, Alfredinho. Você me põe nervosa.
Eu também estou nervoso. Minha vida é mais
complicada que a sua.
Por que? Prova.
Você não precisa arranjar dinheiro. Eu
preciso arranjar para nós dois. A única coisa realmente complicada na vida é
arranjar dinheiro. O resto sai na urina.
E cuidar da mãe paralítica?
Quem cuida é a enfermeira.
E ser amante de homem casado?
É pior ser homem casado amante de mulher
solteira.
E ter que pedir dinheiro pro amante?
É pior ter que dar dinheiro pra amante.
Ah, é?! Não quero mais um tostão seu.
Eu estava brincando. Ei, onde é que você vai?
Abre a porta, Clarinha.”
“Foder é viver, não existe mais nada, como
bem sabem os poetas.”
“E sua mãe?
Morreu de parto, eu não a conheci, só de
retrato...
Sinto muito...
Quem nunca teve mãe não sente a falta dela.
Às vezes quem tem também não sente, disse a
doutora, mas eu não entendi bem o que ela queria dizer com isso.”
“Astuto, escrevo uns óbvios poemas de amor
para Agnes, e deixo-os impressos, de propósito, na gaveta da mesa do
computador, um local que Negrinha sempre vasculha. Ela vive fuçando minhas
coisas, é muito ciumenta.
Negrinha fica furiosa quando descobre os
poemas. Xinga-me, profere palavras duras, respondidas com doçura por mim.
Esmurra o meu peito e a minha corcunda, diz que me ama, que me odeia, enquanto
respondo com palavras meigas. Li não sei onde que, numa separação, aquele que
não ama é o que diz as coisas carinhosas.”
“Minha namorada chegou e fomos para a cama.
Você está preocupado com alguma coisa, ela
disse, depois de algum tempo.
Não estou me sentindo bem.
Não se preocupe, querido, podemos ficar
apenas conversando, adoro conversar com você.
Essa é uma das piores frases que um homem
pode ouvir quando está nu com uma mulher nua na cama.”
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