Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3590-929-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Em As
pequenas memórias, José Saramago põe em prática o antigo projeto de compor
um relato autobiográfico. São histórias familiares, ora alegres ora
dilacerantes, sobre os primeiros quinze anos de vida do escritor.
“Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi
daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados
pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e
viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do
acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos
emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança
já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia
tido tempo de pisar o barro do chão com seus minúsculos e mal seguros pés, para
receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do
imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos de
vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas,
pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida
e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as
secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os
seres e os nadas. Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos
ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito
que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer.”
“Então digo à minha avó: “Avó, vou dar por aí
uma volta.” Ela diz “Vai, vai”, mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse
tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um
bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforje, pego
num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio
para o campo.”
“Quem pela primeira vez me visita (vendo os
vários adereços equinos de enfeite) pergunta-me quase sempre se sou cavaleiro,
quando a única verdade é andar eu a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo
que nunca montei (porque não me deixaram montá-los). Por fora não se nota, mas a
alma anda-me a coxear há setenta anos.”
“... chamava-se António, usava bigode e
estava casado com uma Conceição por causa de quem, anos mais tarde, terá havido
problemas, pois minha mãe suspeitou, ou teve prova suficiente, de certas
intimidades entre o meu pai e ela, exageradas à luz de qualquer critério de
apreciação, incluindo os mais tolerantes.”
“Suponho que terá sido por causa desta
recordação que não suporto as fumigações de pauzinhos do Oriente com que hoje é
costume empestarem-nos as casas, julgando que assim as espiritualizam...”
“Meu avô era um homem como tantos outros
nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de
impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto.”
“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua
porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e
por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas,
e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência
nunca perdida: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Assim
mesmo. Eu estava lá.”
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