Editora: Intrínseca
Opinião: ★★★☆☆
Tradução: Ana Ban
Páginas: 576
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Sinopse: Deuses
americanos é, acima de tudo, um livro estranho. E foi essa estranheza que
tornou o romance de Neil Gaiman, publicado pela primeira vez em 2001, um
clássico imediato. Nesta nova edição, preferida do autor, o leitor encontrará
capítulos revistos e ampliados, artigos, uma entrevista com Gaiman e um
inspirado texto de introdução.
A saga de Deuses americanos é contada ao longo da jornada
de Shadow Moon, um ex-presidiário de trinta e poucos anos que acabou de ser
libertado e cujo único objetivo é voltar para casa e para a esposa, Laura. Os
planos de Shadow se transformam em poeira quando ele descobre que Laura morreu
em um acidente de carro. Sem lar, sem emprego e sem rumo, ele conhece
Wednesday, um homem de olhar enigmático que está sempre com um sorriso no
rosto, embora pareça nunca achar graça de nada.
Depois de apostas, brigas e um pouco de hidromel, Shadow
aceita trabalhar para Wednesday e embarca em uma viagem tumultuada e reveladora
por cidades inusitadas dos Estados Unidos, um país tão estranho para Shadow
quanto para Gaiman. É nesses encontros e desencontros que o protagonista se
depara com os deuses ― os antigos (que chegaram ao Novo Mundo junto dos
imigrantes) e os modernos (o dinheiro, a televisão, a tecnologia, as drogas) ―,
que estão se preparando para uma guerra que ninguém viu, mas que já começou. O
motivo? O poder de não ser esquecido.
O que Gaiman constrói em Deuses americanos é um amálgama
de múltiplas referências, uma mistura de road trip, fantasia e mistério ― um
exemplo máximo da versatilidade e da prosa lúdica e ao mesmo tempo cortante de
Neil Gaiman, que, ao falar sobre deuses, fala sobre todos nós.
“— Como foi o enterro? — perguntou.
— Terminou — disse Shadow.
— Quer conversar sobre isso?
— Não.
— Bom — Wednesday sorriu seu sorriso
malicioso. — Há conversa demais hoje em dia. Blá-bla-blá. Este país estaria bem
melhor se as pessoas aprendessem a sofrer em silêncio.”
“Uma voz precisa, presunçosa e exata, falava
com ele, no sonho, mas Shadow não enxergava ninguém.
“Estes são deuses que foram esquecidos e que
agora podem até mesmo estar mortos. Só podem ser encontrados em histórias
áridas. Eles se foram, todos eles, mas seus nomes e suas imagens continuam
entre nós.”
Shadow dobrou uma esquina e percebeu que
tinha entrado em outra sala, ainda mais ampla que a primeira. Continuava além
de onde os olhos podiam enxergar. Perto dele havia a caveira de um mamute,
lustrada e marrom, e uma capa ocre peluda, vestida por uma mulherzinha com a
mão esquerda deformada. Perto daquilo havia três mulheres — cada uma delas
esculpida a partir da mesma rocha de granito — unidas pela cintura: seus rostos
tinham uma aparência inacabada, precipitada, apesar de os seios e a genitália
terem sido esculpidos com cuidado elaborado. Havia um pássaro que não podia
voar, que Shadow não reconheceu: era duas vezes mais alto do que ele, com um bico
parecido com o de um urubu, mas com braços humanos... E assim por diante.
A voz ecoou mais uma vez, como se estivesse
falando com uma sala de aula:
“Esses são os deuses que já perderam a
consciência da memória. Até mesmo seus nomes foram perdidos. As pessoas que os
adoravam estão tão esquecidas quanto eles. Desde há muito tempo, seus totens
foram quebrados e derrubados. Seus últimos sacerdotes morreram sem passar o
segredo adiante. Deuses morrem. E, quando morrem de verdade, ninguém chora nem
se lembra deles. As ideias são mais difíceis de matar do que as pessoas, mas
também podem ser mortas, no fim.”
“— Esse ó o único país no mundo — disse Wednesday, quebrando o silêncio,
— que se preocupa com o que é.
— O
quê?
— O
resto sabe bem o que é. Ninguém nunca precisa sair procurando o coração da
Noruega. Ou procurar a alma de Moçambique. Eles sabem o que são.”
—
Quando as pessoas vieram pros Estados Unidos, elas nos trouxeram junto.
Trouxeram eu, Loki e Thor, Anansi e o Deus-Leão, Leprechauns e Kobolds e Banshees,
Kubera e Frau Holie e Ashtaroth, e trouxeram vocês. Viemos até aqui na cabeça
dessa gente e criamos raízes. Viajamos com os colonizadores pró Novo Continente
do outro lado do oceano. A terra é vasta. Mas o tempo passou e nosso povo nos
abandonou, lembrando de nós apenas como criaturas do Velho Continente, como
coisas que não tinham vindo com elas pró Novo. Quem acreditava verdadeiramente
em nós morreu, ou parou de acreditar, e fomos abandonados, ficamos perdidos,
assustados e sem posses, vivendo de migalhas de adoração e de crença que
podíamos encontrar. E fomos sobrevivendo da melhor maneira possível. Então foi
isso que fizemos, sobrevivemos à margem das coisas, onde ninguém prestava muita
atenção em nós. Hoje temos, vamos admitir, pouca influencia. Fazemos das
pessoas nossas presas, tiramos delas e sobrevivemos; nós nos despimos e nos
prostituímos e bebemos demais. Pegamos gasolina, roubamos, trapaceamos e
existimos nas fendas das margens da sociedade. Somos deuses antigos, aqui neste
Novo Continente sem deuses.
Ele
fez uma pausa. Encarou cada um de seus ouvintes, com gravidade e com jeito de
político. Todos olhavam de volta para ele impassíveis, com rostos ilegíveis,
que pareciam máscaras. Wednesday limpou a garganta e cuspiu com força no fogo.
O cuspe reluziu e queimou, iluminando o interior do salão.
—
Assim, como todos vocês tiveram oportunidade de descobrir sozinhos, existem
novos deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez
maiores de crenças: deuses de cartão de crédito e de autoestrada, de internet e
de telefone, de rádio, de hospital e de televisão, deuses de plástico, de bipe
e de néon. Deuses orgulhosos, gordos e tolos, inchados por sua própria novidade
e por sua própria importância. Eles sabem da nossa existência e tem medo de
nós, e nos odeiam — disse Odin. — Vocês estão se enganando se acreditam que
não. Eles vão nos destruir, se puderem. Ë hora de a gente se agrupar. E hora de
agir.”
“Tudo que temos para acreditar ou não em algo
são os sentidos, as ferramentas que usamos para perceber o mundo: nossa visão,
nosso tato, nossa memória. Se os sentidos mentem para nós, então não dá para
confiar em nada. E, mesmo se não acreditarmos, ainda assim não podemos tomar
qualquer outro caminho além da estrada que os sentidos mostram; e é preciso
percorrê-la até o fim.”
“A verdade é que você é o que pensam que você
é.”
“Quando eles saíram do Estado de Illinois, bem tarde naquela noite,
Shadow fez a Wednesday sua primeira pergunta. Ele viu a placa de BEM-VINDO AO
WISCONSIN e disse:
—
Então, quem eram aqueles caras que me pegaram no estacionamento? O senhor Wood
e o senhor Stone?
Os
faróis do carro iluminavam a paisagem invernal. Wednesday avisou que eles não pegariam
autoestradas porque não sabia para onde as autoestradas levavam, por isso iam
rodar pelas estradinhas locais. Shadow não se importou. Ele nem tinha certeza
se Wednesday era louco.
Wednesday
deu um grunhido.
—
Só uns agentes. Membros da oposição. Gente ruim.
—
Eles acham que são gente boa.
—
Claro que sim. Nunca aconteceu uma guerra entre dois lados que não se achavam
corretos. As pessoas perigosas fazem o que querem somente e apenas porque acham
que é o certo, sem sombra de dúvida. E é isso que as torna perigosas.
— E
você? — perguntou Shadow. — Por que você faz o que faz?
—
Porque eu quero fazer — disse Wednesday. Então, sorriu:
—
Então está tudo certo.”
“Sobrevoavam algum lugar do Nebraska tomando um café da manhã de avião
nada impressionante, quando Shadow disse:
—
Minha mulher.
—
Aquela que já morreu.
—
Laura. Ela não quer continuar morta. Ela me disse, depois que me libertou dos
caras do trem.
— O
ato de uma esposa maravilhosa. Libertar você da prisão vil e matar aqueles que
o teriam machucado. Você deveria apreciá-la, sobrinho Ainsel.
—
Ela quer ficar viva de verdade. Dá pra fazer isso? É possível? Wednesday ficou
tanto tempo sem dizer nada que Shadow começou a se perguntar se ele escutara a
pergunta ou se tinha caído no sono com os olhos abertos. Então disse, olhando
para a frente, para o vazio:
—
Sei um encanto que pode curar dor e doença, e que pode tirar o sofrimento do
coração daqueles que sofrem. Sei um encanto que cura com um toque. Sei um
encanto que faz as armas do inimigo se virarem pró outro lado. Sei outro
encanto que me solta de todas as amarras e abre todas as fechaduras. Um quinto
encanto: eu consigo pegar uma flecha no ar e não me machucar.
As
palavras soavam pesadas, urgentes. O tom amedrontador não estava mais lá, o
sorriso cínico também não. Wednesday falava como se recitasse as palavras de um
ritual religioso, ou como se estivesse se lembrando de alguma coisa obscura e
dolorida.
—
Um sexto: feitiços feitos pra me machucar só vão machucar quem os enviou. Sétimo
encanto que eu sei: posso apagar o fogo apenas olhando pra ele. Oitavo: se
algum homem me odiar, eu consigo ganhar sua amizade. Nono: eu posso fazer o
vento dormir com o meu canto e posso acalmar uma tempestade durante tempo
suficiente pra levar um barco até a costa. Esses foram os primeiros nove
encantos que eu aprendi. Durante nove noites eu fiquei pendurado na árvore nua,
a lateral do meu corpo perfurada pela ponta de uma lança. Eu balançava de um
lado pró outro e sacolejava aos ventos frios e aos ventos quentes, sem comida,
sem água, um sacrifício de mim pra mim mesmo, e os mundos se abriram. Como
décimo encanto, eu aprendi a dispersar bruxas e fazê-las rodopiar no céu de
modo a nunca mais encontrarem seu caminho de volta às suas próprias portas. Décimo
primeiro: se eu cantar quando uma batalha eclodir, posso fazer com que
guerreiros passem pelo tumulto ilesos e intactos e posso trazê-los de volta a
suas famílias e a seus lares sãos e salvos. Décimo segundo encanto que sei: se
eu vir um homem enforcado, posso tirá-lo da forca pra que sussurre no nosso
ouvido tudo de que consegue se lembrar. Décimo terceiro: se eu jogar água sobre
a cabeça de uma criança, ela não vai sucumbir na batalha. Décimo quarto: sei os
nomes de todos os deuses. De cada um dos malditos. Décimo quinto: sonho com
poder, com glória, e com sabedoria, e eu posso fazer as pessoas acreditarem nos
meus sonhos.
A
voz dele estava tão baixa agora que Shadow precisava se esforçar para ouvi-lo
por sobre o barulho do motor do avião.
—
Décimo sexto encanto que sei: se preciso de amor, posso transformar a mente e o
coração de qualquer mulher. Décimo sétimo: nenhuma mulher que eu desejo vai
desejar alguém mais na vida. E eu ainda sei um décimo oitavo encanto, que é o
maior de todos, e esse eu não posso contar pra nenhum homem, porque um segredo
que ninguém mais além de você sabe é o segredo mais poderoso que pode existir.
Ele
suspirou e então parou de falar.
Shadow
sentia seus pelos se arrepiando. Era como se tivesse acabado de ver uma porta
se abrindo para outro lugar, em algum lugar a muitos mundos de distância, onde
homens enforcados balançavam ao vento em todas as encruzilhadas, onde bruxas
guinchavam por cima das cabeças de todos no meio da noite.”
“Era um sonho, e em sonhos você não tem escolhas:
não há decisões a serem tomadas, ou foram tomadas para você muito tempo antes
de o sonho começar.”
“Existem relatos que, se abrirmos nossos corações a eles, vão nos ferir
muito profundamente. Olhe — aqui está um homem bom, bom de acordo com seu
próprio ponto de vista e com o de seus amigos: é fiel e verdadeiro com sua
esposa, adora e passa o maior tempo possível com seus filhinhos, preocupa-se
com seu país, faz seu trabalho pontualmente, o melhor que pode. Então, com
eficiência e boas intenções, extermina judeus: ele aprecia a música de fundo
que toca para acalmá-los; adverte os judeus para que não esqueçam seus números
de identificação quando vão para o banho — muitas pessoas, ele explica,
esquecem seus números e pegam as roupas erradas quando saem do banho. Isso
acalma os judeus. Haverá vida, eles se asseguram, depois do banho. Nosso homem
supervisiona os detalhes de levar os corpos até os fornos; e, se há alguma
coisa que faz com que ele se sinta mal, é ainda permitir que a exterminação da
gentalha com gás o afete. Se fosse um homem verdadeiramente bom, ele sabe, não
sentiria nada além de alegria por ver a terra livre de suas pestes.
Havia
uma menina, e seu tio a vendera. Colocado assim, parece tão simples.
Nenhum
homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos
ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. Nós nos isolamos
(uma palavra que significa, literalmente, lembre-se, ser transformado em ilha)
da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma
repetitiva das histórias. O desenho não muda: havia um ser humano que nasceu,
cresceu e então, por causa de uma coisa ou de outra, morreu. Pronto. É possível
preencher as lacunas com base em sua própria experiência. Tão sem originalidade
como qualquer outro conto, tão único como qualquer outra vida. Vidas são flocos
de neve, formando figuras que já vimos antes, tão parecidos uns com os outros
quanto ervilhas em uma vagem (e você já olhou para as ervilhas em uma vagem? Eu
quero dizer, olhou mesmo para elas? Depois de um minuto de exame atento, não há
chance de você confundir uma com a outra), mas, ainda assim, única.
Sem
indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, 100 mil mortos, “o número de
vítimas pode chegar a um milhão”. Com histórias individuais, as estatísticas se
transformam em pessoas — mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a
sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. Olhe, veja a
barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele, seus
membros esqueléticos: vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e
medos? Se enxergá-lo por dentro? E, se ajudar, será que não estaremos prestando
um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora,
uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se
lamentarmos por essas duas crianças, será que elas agora passarão a ser mais
importantes para nós do que milhares de outras crianças atingidas pela mesma
fome, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão
em alimento para os mosquitos?
Nós
desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor... continuamos em
nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura
nacarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas
almas sem que sintamos dor verdadeira.
A
ficção nos permite deslizar para dentro dessas outras cabeças, para esses
outros lugares, e olhar através de outros olhos. E então, no conto, paramos
antes de morrer, ou morremos de forma indireta ou sem prejuízo e, no mundo além
do conto, viramos a página ou fechamos o livro, e terminamos de viver nossa
vida.
Uma
vida que, como qualquer outra, é diferente de todas.”
“O telefone de Shadow tocou.
—
Fala.
—
Isso não é jeito de atender o telefone — rosnou Wednesday.
—
Quando ligarem meu telefone, atenderei com educação — disse Shadow. — Posso
ajudar?
—
Não sei — disse Wednesday. Fez uma pausa, então continuou:
—
Organizar deuses é a mesma coisa que tentar mandar gatos fazerem filas retas.
Não faz parte da natureza deles.
Havia
um ar de morte e exaustão na voz de Wednesday, que Shadow nunca tinha ouvido
antes.
—
Qual é o problema?
—
Está difícil. Está fodidamente difícil. Não sei se vai funcionar. A gente podia
mesmo é cortar nossas próprias gargantas, só isso.
—
Você não deve falar assim.
—
É. Está certo.
—
Bom, se você cortar sua própria garganta — disse Shadow, tentando animar
Wednesday e deixá-lo menos sombrio — talvez nem doa.
—
Doeria. Mesmo pró meu povo, a dor ainda machuca. Se você se movimenta e atua no
mundo material, então o mundo material atua sobre você. A dor machuca, assim
como a cobiça intoxica e a luxúria queima. Nós até podemos não morrer
facilmente e, com tanta certeza quanto o inferno existe, não morremos bem, mas
podemos morrer. Se ainda formos amados e lembrados, alguma coisa que se parece
muito conosco chega e toma nosso lugar e a porra começa toda de novo. Mas, se
formos esquecidos, é o nosso fim.”
“O carro ficou em silêncio, enquanto cruzava a ponte.
—
Quem matou aqueles homens? — ela perguntou.
—
Você não iria acreditar se eu contasse.
—
Eu acreditaria.
Ela
parecia brava agora. Ele se perguntou se tinha sido uma ideia sábia levar vinho
para o jantar. A vida com certeza não era nenhum cabernet naquele momento.
—
Não é fácil acreditar.
—
Sou capaz de acreditar em qualquer coisa. Você não faz a mínima ideia das
coisas em que eu posso acreditar.
—
Mesmo?
—
Posso acreditar em coisas que são verdade e posso acreditar em coisas que não
são verdade. E posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou
não. Posso acreditar no Papai Noel, no coelhinho da Páscoa, na Marilyn Monroe,
nos Beatles, no Elvis e no Mister Ed. Ouça bem... Eu acredito que as pessoas
evoluem, que o saber é infinito, que o mundo é comandado por cartéis secretos
de banqueiros e que é visitado por alienígenas regularmente — uns legais, que
se parecem com lêmures enrugados, e uns maldosos, que mutilam gado e querem
nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro é um saco e que é demais, e
acredito que um dia a Mulher Búfalo Branco vai ficar preta e chutar o traseiro
de todo mundo. Também acho que todos homens não passam de meninos crescidos com
profundos problemas de comunicação e que o declínio da qualidade do sexo nos
Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in de um Estado ao
outro. Acredito que todos os políticos são canalhas sem princípios, mas ainda
assim melhores do que as outras alternativas. Acho que a Califórnia vai afundar
no mar quando o grande terremoto vier, ao mesmo tempo em que a Flórida vai se
dissolver em loucura, em jacarés, em lixo tóxico. Acredito que sabonetes
antibactericidas estão destruindo nossa resistência à sujeira e às doenças, de
modo que algum dia todos seremos dizimados por uma gripe comum, como aconteceu
com os marcianos em Guerra dos Mundos. Acredito que os melhores poetas do
século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que o jade é esperma de
dragão seco, e que há milhares de anos em uma vida passada eu era uma xamã
siberiana de um braço só. Acho que o destino da humanidade está escrito nas
estrelas, que o gosto dos doces era mesmo melhor quando eu era criança, que
aerodinamicamente é impossível pra uma abelha grande voar, que a luz é uma onda
e uma partícula, que tem um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e
que está morto ao mesmo tempo (apesar de que, se não abrirem a caixa algum dia
e alimentarem o bicho, ele no fim vai ficar só morto de dois jeitos), e que
existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio
universo. Acredito em um deus pessoal que cuida de mim e se preocupa comigo e
que supervisiona tudo que eu faço, em uma deusa impessoal que botou o universo
em movimento e saiu fora pra ficar com as amigas dela e nem sabe que estou
viva. Eu acredito em um universo vazio e sem deus, um universo com caos causal,
um passado tumultuado e pura sorte cega. Acredito que qualquer pessoa que diz
que o sexo é supervalorizado nunca fez direito, que qualquer um que diz saber o
que está acontecendo pode mentir a respeito de coisas pequenas. Acredito na
honestidade absoluta e em mentiras sociais sensatas. Acredito no direito das
mulheres à escolha, no direito dos bebês de viver, que, ao mesmo tempo em que
toda vida humana é sagrada, não tem nada de errado com a pena de morte se for
possível confiar no sistema legal sem restrições, e que ninguém, a não ser um
imbecil, confiaria no sistema legal. Acredito que a vida é um jogo, uma piada
cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e
aproveitar.”
“— Você precisa entender essa coisa de ser deus. Não é magia. E só ser
você, mas aquele você em que as pessoas acreditam. É ser a essência concentrada
e aumentada de si mesmo. É se transformar em trovão, ou no poder de um cavalo
galopante, ou em sabedoria. Você absorve toda a f é e fica maior, mais legal,
mais do que humano. Você cristaliza.
Ele
fez uma pausa.
—
Então, um dia esquecem que existe, não acreditam mais em você e não fazem mais
sacrifícios... não se importam, e quando você percebe, está misturando cartas
pra confundir quem passa na esquina da Broadway com a Rua 43.”
“— Então eu morri — disse Shadow.
Ele
estava se acostumando com a ideia.
—
Ou vou morrer.
—
Estamos a caminho do Salão dos Mortos. Eu pedi pra levar você até lá.
—
Por quê?
—
Você foi um bom trabalhador. Por que não?
—
Porque... — Shadow colocava os pensamentos em ordem. — porque eu nunca
acreditei em vocês. Porque eu não esperava isso. O que aconteceu com São Pedro
e os portões do Paraíso?
A
cabeça branca de bico comprido sacudiu de um lado para o outro, com gravidade.
—
Não faz a mínima diferença se você acreditava em nós ou não... Nós
acreditávamos em você.”
“— Eu me alimento de mortes que são dedicadas
a mim.”
“As pessoas acreditavam, Shadow pensou. É
isso que as pessoas fazem. Acreditam. E depois não se responsabilizam por suas
crenças; fazem coisas aparecer e depois não acreditam nas aparições. As pessoas
povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons e histórias. As pessoas
imaginam e acreditam, e é essa crença, essa crença sólida como a pedra, que faz
as coisas acontecerem.”
“Sentou-se em um morrinho gramado e olhou
para a cidade que o rodeava, e pensou que um dia precisaria voltar para casa.
Mas, primeiro, ele precisaria fazer uma casa para onde voltar. Ficou imaginando
se o que se entende como “casa” era a coisa em que um lugar se transformava
depois de um certo tempo ou se era uma coisa que se encontrava no final, se
você simplesmente caminhasse, esperasse e desejasse aquilo por tempo bastante.”