quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A palavra nunca, de Eric Nepomuceno

Editora: Editora da UFSCar / Francisco Alves

ISBN: 978-85-2650-356-4

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 160

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Sinopse: As histórias de A Palavra Nunca trazem uma força e uma originalidade que capturam, de imediato, a atenção do leitor. São histórias que pedem, convidam uma leitura atenta. Eric Nepomuceno prefere, em seus contos, desarticular a realidade, partindo de dentro dela. Prefere dizer menos e sugerir mais. Sua literatura bebe em outras fontes. A longa e intensa convivência com seus colegas da América espanhola se traduz numa influência indireta, e se reflete em contos de temática não muito comum na nossa literatura. Aparece, então, uma literatura abrangente, que não é só do Brasil ou dos demais países latino-americanos, mas do mundo todo. São contos intensos, tensos: trata-se de resultado de um trabalho de grande apuro, no qual não se mede as palavras. O que nos impressiona em Nepomuceno é o modo de narrar, o modo de conduzir o texto, de nos envolver no conteúdo. Nestes contos de A Palavra Nunca, Eric Nepomuceno mostra mais uma vez sua capacidade de capturar a essência das histórias.

Conforme observou o crítico chileno Jaime Valdivieso, na literatura de Eric Nepomuceno acontece ‘o contrário do que acontece nas matemáticas: o mais é menos, e o menos é mais. A ordem dos fatores altera o produto. Tendo por base uma linguagem direta, ele consegue nos submergir numa atmosfera que nasce do centro da realidade, uma realidade que se quebra, se fragmenta, dispersa em múltiplas direções’.



TELEFUNKEN

Pelo buraco redondo coberto com o pano amarelinho que fica bem no meio da caixa de madeira com o nome Telefunken escrito em letrinhas brancas sai a voz de uma mulher brava. Tem que ser brava porque tem a voz fininha e vive brava. A mãe tem a voz fininha e vive brava.

Essa gente que canta no rádio não muda de assunto. É sempre essa coisa de amor pra cá, amor pra lá, e não falam em outra coisa. E falam cantando claro, porque são cantores e tudo, e tem uma porção de gente diferente. É fácil perceber isso porque as vozes são diferentes e porque eles cantam em uma porção de línguas.

Outro dia mesmo tinha um homem gordo cantando em alemão. Eu sei que era alemão porque a mãe disse, e sei que era um homem gordo porque tinha um vozeirão, igual ao Miguel Italiano, que é gordo. Mas acho que o Miguel Italiano não vai cantar no rádio nunca, porque eu nunca vi ele cantando. Acho que ele não deve gostar de cantar.

Quando eu era pequeno, achava que dentro do rádio tinha uns homens e umas mulheres bem pequeninos, e que a gente fazia a voz deles sair dando umas voltas no ponteiro. 

A gente quando é pequeno pensa numa porção de bobagens. Agora que eu cresci um pouco, quer dizer, que sou muito maior do que quando eu era pequeno, sei como é isso do rádio. Os homens e mulheres em outra casa, longe daqui, e a voz deles vem pela tomada. A gente liga o fio do rádio na tomada, e daí aparece a voz deles. Por isso é que tem tanto fio na rua: a luz e o rádio vêm pelos fios que estão pendurados nos postes. 

A gente até que tem um rádio bacana em casa, e a mãe às vezes põe uma toalhinha em cima dele e um vasinho com uma flor dentro, e depois passa um pano para tirar o pó; quando eu crescer e tiver uma casa e uma mulher, vou logo pedir pra ela cuidar bem do rádio, igual a mãe.

Eu vou querer um rádio parecido com o nosso. Só não quero de madeira escura: vou querer um rádio branco. Não sei se isso é bom; rádio branco deve ser que nem calça branca: suja muito. Por isso, é melhor não deixar ninguém chegar perto do rádio.

Vou gostar tanto do meu rádio que se minha mulher tiver um filho que nem minha mãe teve eu, vou dizer para ela não deixar ele mexer no rádio.

A gente casando sempre pega filho. Quer dizer, a vizinha Eulália casou há muito tempo, minha mãe disse outro dia não sei para quem que a Eulália leva mais de dez anos de casada, e eu nem tenho dez anos ainda, por isso não sei quando ela casou, mas dez anos é muito.

A vizinha Eulália não é mãe de ninguém. Vai ver que eu caso e minha mulher também não vira mãe de ninguém. Porque eu sei que se minha mulher virar mãe, morro depois de dois meses.

Aqui em casa aconteceu isso: eu nasci e meu pai morreu dois meses depois. A mãe vive falando para todo mundo que foi só eu nascer para meu pai morrer. E diz também, quando fica brava, que eu sou um peste endiabrado, e coisa bonita isso não deve ser, porque ela diz também “coisa ruim” para mim. A mãe vive brava.

Eu acho melhor não ter filho nenhum, senão eu morro depois de dois meses e minha mulher vai dizer “coisa ruim” para ele e ele vai ficar triste e não vai querer nem ouvir rádio nem nada, porque eu gosto de ouvir rádio mas de repente aparece uma mulher com a voz fininha e eu lembro da mãe. E fico pensando que está cheio de gente de voz fininha pelo mundo e deve ser tudo gente brava.

O Ivan não tem rádio mas o Ivan tem pai. Ele disse para mim que o pai tem uma voz grossa e conversa com ele, mas não é gordo. 

Eu acho que preferia ter pai do que ouvir rádio. Mas não sei isso direito, porque eu gosto tanto de ouvir rádio e de repente arranjava um pai bravo, daí não sei. 

O Ivan quando vem aqui em casa fica ouvindo rádio comigo e ele sabe ler mais depressa e fala Telefunken mais depressa do que eu. 

Quando eu casar vou comprar um rádio branco e ficar ouvindo as histórias que contam de noite. E daí, se minha mulher pegar um filho e eu achar que só levo mais dois meses de vida, pego e vendo o rádio para não deixar para ele.

Se minha mulher pegar um filho e eu achar que só tenho dois meses de vida, levo o rádio comigo.”

(1973)

 

 

AS CARTAS

Agora, já não. Mas teve uma época em que escrevíamos cartas. Era um tempo bom, e me lembro. Jamais pude vencer a memória: ela continua viva, e devolve as coisas quando quer. Devolve, por exemplo, o tempo das cartas.

Eram cartas estranhas, escritas por uma moça estranha. Eu recortava trechos das cartas da moça, e depois colava esses trechos em folhas de papel, e depois ia recortando as folhas e colando os recortes em outras folhas, armando mosaicos. No fim, não sabia mais em que ordem tinham sido recortadas, e do mosaico nasciam outras cartas, que eu então respondia.

De tudo o que ela me escreveu naqueles meses todos fiz cartas que falavam de ruas e esquinas, igrejas e rostos e luzes, e uma desesperança infinita aparecia de vez em quando, principalmente nos trechos em que surgiam coisas que não fizemos nunca. As cartas que armei das cartas que ela me mandou nos devolveram a areais sem fim e a noites de chuva, nos devolveram a quartos de janelas abertas e nos devolveram a camas desconhecidas, e nas cartas que armei das cartas que ela me escreveu venci batalhas em que eu era sempre jovem e percorri laranjais com meu avô e bosques de eucalipto em tardes de um outono sem chuvas.

Um dia fiquei esperando. Foi minha, a última carta: a resposta não chegou nunca.

Era um mês de maio em Madri e eu queria armar uma estranha carta definitiva onde caminharíamos juntos, cheios de preguiça, perseguindo um sol esbranquiçado em esquinas de ruas com nomes como os das ruas da infância: ruas que se chamavam da Amargura, do Peixe Voador, dos Perigos, da Lua.

Passou um tempinho e mandei duas linhas para o endereço de sempre, dando o nome de uma cidade da fronteira e um número de telefone.

Certa madrugada ela chamou. Pedi a ela que fosse me ver na fronteira. Das cartas, não dissemos nada: seu tempo começava a ser morto e não se fala de tempos mortos. Pedi a ela que fosse até a fronteira e ela não viajou daquela vez, nem viajou nas outras, quando eu chamava por telefone no meio da noite.

Um dia, disse: “Penélope quis ser Ulisses, não conseguiu.”

Nos vimos muitos meses depois, almoçamos e dissemos que tudo ia bem, e depois ela pediu que fôssemos até sua casa. Eu queria nascer e crescer dentro dela.

Deixei-a caminhar na minha frente e era bom ver seu caminhar. Eu diminuía o passo para vê-la mergulhar no meio das pessoas. De repente, em uma esquina, ela parou e deu a volta para ver onde eu tinha ficado. Atrás dela ficou o sol e jogou uma luz estranha em seus cabelos e atravessou, impune, sua saia. Ela sorriu à minha espera.

Ainda sorria quando cheguei ao seu lado. Continuamos caminhando um pouco mais. E então ela disse: “Foi bom ver você.”

E eu entendi que nunca mais. Quando voltei para a fronteira, recortei as folhas onde tinha colado os recortes de outras folhas com recortes das cartas, e armei enfim uma carta cheia de fúria e tristeza, que naquela mesma tarde pus no correio.

Isso tudo aconteceu pouco antes do verão, aquele verão de chuva e caminhadas pela praia, caminhadas solitárias, aquele mesmo verão em que eu estava caminhando pela praia quando Eduardo chegou correndo para dizer que ela tinha disparado uma pequena Beretta contra o queixo.”

(1982)

 

 

“Foi mais ou menos naquela época, há uns dez ou doze anos, que passei a dedicar uma atenção cada vez maior a meus gestos, minha maneira de escolher a roupa, de apurar com cuidado quase místico as gravatas, aparar com rigor os cabelos, de reparar cuidadosamente no ciclo de cada camisa para evitar repetições, falhas imperdoáveis.

Descobri, enfim, que a elegância pode ser, mais do que qualquer outra coisa, a melhor defesa, o disfarce mais eficaz para a decadência.”

(1982)

Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-325-2989-3

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 160

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Sinopse: Maria e Arthur se encontram em Paris no início de 1968. Ela estuda filosofia na Sorbonne, ele é poeta e artista de rua. Juntos vivem os excessos daqueles anos de revoluções e utopias e fogem da ditadura no Brasil, divididos entre o deslumbramento pelo que o Velho Mundo lhes oferece e a permanente sensação de que são intrusos na grande festa que é Paris. Maria passa o dia lendo Descartes e tenta seguir à risca as orientações do professor de filosofia sobre métodos de simetria e perfeição na condução de sua vida. Arthur é um libertário, idealista e sonhador, inimigo da rotina e artista nato. A realidade do Brasil, imerso numa ditadura violenta, é a sombra que permeia a relação dos dois, e também o apartamento ao lado, onde outro brasileiro, conhecido como “Marechal”, reúne estrangeiros que passam pelo mesmo problema em seus países e articulam um modo de resistir ao poder brutal das armas. Duas vezes ganhadora do prêmio Jabuti, Luciana Hidalgo narra em seu segundo romance uma história de amor, sonhos e desilusões, tendo como pano de fundo um período conturbado da história, tanto na Europa quanto no Brasil, com uma prosa poética e potente. Neste livro, a autora reforça outra característica sua, bem presente nas obras anteriores: a identificação com aqueles que vivem à margem, os que se opõem ao sistema e não se permitem levar a vida certinha que lhes oferecem, os que lutam contra injustiças e pagam com a própria vida, os chamados loucos, com suas realidades essencialmente próprias, personagens sempre capazes de proporcionar uma rica literatura.




A construção que abriga a Sorbonne é bonita e marrom. Os prédios em Paris são todos de um bege amarronzado, quase preto, como se deprimidos pela poeira do progresso. Rodeada por tons pastéis, Maria conclui: a mudança recente de cidades, Rio-Paris, tem sido, antes de tudo, uma mudança de cor.

Em volta, pessoas passam em trajes escuros, introspectivas. Talvez o inverno exija mesmo certo luto, pela ausência do sorriso fácil dos trópicos, pela morte do calor, que é um pouco a morte do calor humano, o baixo índice de humanidade.”

 

 

Arthur aproveita para contar vantagens, peripécias, andanças pelo mundo. Ele se pretende um herói expatriado a rodar por continentes, girar nos calcanhares, atravessar oceanos. Mas aí, ao lado de Maria, parece pequeno diante de tantas histórias, geografias e solidões que insinua. Tudo bem, pensa ela, a verdade agora não tem a menor importância.”

 

 

Maria ao volante, ele lê:

– O deserto é aquele em que se fala para o vazio, mas não se cala, aquele aonde se retira o santo, o perseguido pelos demônios, o doente da humanidade, o sôfrego de Deus. O deserto é onde não corre o tempo, e é, no entanto, o domínio do Tempo. Ele abole a história e a bússola, o cronômetro aqui não terá muito o que marcar. No deserto, homens em caravanas desconhecem o norte e o sul, têm a sabedoria de nunca chegar a parte alguma. O vento apaga e enterra diariamente pegadas e traços. Um punhado de areia que se joga para o alto modifica o deserto.”

 

 

Para ele, pouco importa Maria em sua pré-história, raízes ou heranças. Importa o destino que compõem os dois a cada frase que silenciam, na memória que recalcam. Fatos familiares se perdem no caminho de um até o outro. Eles se inventam aí onde faltam.

Ela aceita o método de Arthur, convincente e conveniente. Falam pouco do passado, enterrado num cemitério de famílias. Basta criar um futuro dissociado da genealogia, os dois concordam. Jogam uma pá de cal no pretérito, desprezam vícios de gerações. Ingenuamente se acreditam maiores do que tudo aquilo que os formou.

Ele faz isso sozinho há mais tempo, petulante, chutando todo e qualquer risco. E ela o acompanha, avessa aos abusos do passado. Afinal, ninguém escolhe a infância e é quase uma obrigação apagá-la, inventar outra no lugar. Pais manipulam filhos como marionetes no seu teatro doméstico, restando aceitar os papéis que lhes cabem. Até que a adolescência chega, estraga o espetáculo, e vai cada um para o seu lado. É o que ela pensa, mas não fala. Odeia se mostrar pessimista (mesmo quando é).”

 

 

“(...) sem notar o quanto Arthur aos poucos se torna o seu método, nada cartesiano, pouco confiável, o antimétodo. Divaga cada vez menos sobre si mesma, mais sobre ele. Um defeito disso a que chamam paixão?, ela se questiona, jovem demais para compreender que se trata afinal da maior qualidade disso a que chamam paixão. Distrair-se do eu com um outro, quem não quer.”

 

 

“Para apagar a impressão do sonho ruim, ela acende a luz e um cigarro que pouco fuma. Enquanto a brasa cresce, pensa em Arthur: por onde anda, a que velocidade. Está a cada dia mais impressionada com ele, isto é, com eles.

Já percebeu, são muitos os tipos que o habitam e, somados, o totalizam. Tem o que escreve e o que flana, o que passa o dia entre castelos de areia e o que fabrica teorias sólidas sobre tudo, o que acorda ao seu lado e não volta, o que dorme com ela e na madrugada se manda.

É até divertido assistir a eles, aos daimons que o circundam, soprando maus conselhos em seus ouvidos. O que um cala o outro diz, o que um guarda o outro revela. Mas a pior disputa é, sem dúvida, entre o que persegue um método e o que endoidece.

Verdade seja dita: cada louco monta a sua própria lógica, é o cristo da sua religião, o napoleão da sua guerra íntima. Maria, perdida entre tanta imaginação e tanto ímpeto, às vezes se pergunta se ele não seria assim meio doido. Mas em volta outros vivem também dessa forma, intensos, à margem dos sistemas, e tem até quem os rotule: hippies. Arthur odeia ser chamado assim, por isso mantém o cabelo reto, que o distinga.”

 

 

“– Milico é milico em qualquer lugar do mundo: inimigos em tempos de guerra, cúmplices e conspiradores em tempos de paz. Eu é que não me iludo.”

 

 

“(...) Concordam os dois, todo estrangeiro se corrompe um pouco todos os dias. Quando, por exemplo, pede une baguette s’il vous plaît na padaria, forçando os músculos do rosto para acertar as vogais internas da língua francesa e agradar o padeiro (que pouco liga). Quando adota códigos sociais que não os seus contra a vontade. Quando fala pela primeira vez uma gíria estrangeira, fingindo uma intimidade com a linguagem que não tem, nunca terá, soando artificial e colonizado.

Maria passou por tudo isso. Como todo recém-chegado, logo viu que quanto mais rápido se adaptasse ao novo país, mais integrada estaria, o que de imediato significaria: menos solidão. E tome mimetismo, mudança gradual das roupas, do estilo das roupas, das cores das roupas, até se misturar sem ser notada e só então ser bem-vinda, até mesmo querida, por gentilhommes como Luc. Nesse longo processo, forasteiros como ela podem não perder totalmente a identidade, mas se corrompem.”

 

 

Ah, a juventude. É toda feita de instantes assim: certezas absolutas, conclusões inéditas, grandes epifanias em minutos e que, minutos depois, valem nada. Importa nelas apenas a grande descoberta, ou melhor, a doce ilusão da grande descoberta.”

terça-feira, 30 de setembro de 2025

A batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e revolução no século XX (Parte II), de Jones Manoel

Editora: Ruptura

ISBN: 978-65-981805-2-2

978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 304

SinopseVer Parte I



 

“A tática de ação da burguesia e de seus intelectuais é bem simples: potencializar todos os erros e todas as contradições, superdimensionando-os, abstraindo-os de sua historicidade concreta e pautando uma abordagem moralista e demonizadora; aliado a isso, sempre ocultar ou embelezar a situação pré-revolucionária e o mundo capitalista hodierno que cerca o país socialista. Um exemplo clássico: a fome na China socialista. A China foi um país destruído por 100 anos de colonialismo, ao longo dos quais mais de 80 milhões de pessoas foram mortas em decorrência das ações das potências liberal-imperialistas.

Os comunistas, sem experiência na gestão de uma economia nacional, num país destruído pela guerra e pelo colonialismo, cercado, isolado e atacado, precisam construir o socialismo, garantir a autonomia produtiva e melhorar a qualidade de vida do povo trabalhador. Além disso, sofrem bloqueios econômicos, sabotagens e agressões múltiplas. Numa situação de perigo constante, buscam medidas para acelerar o desenvolvimento das forças produtivas, ficando menos vulneráveis ao imperialismo. Essas medidas na China, por uma série de fatores, abarcam equívocos e provocam fome. A partir desse momento, desaparece toda história, política, geopolítica e pressões imperialistas, e a fome é exibida como fruto de um elemento intrínseco da ideologia ou uma simples perversão patológica do líder totalitário34.

Nesse quadro, a ideologia dominante cria uma pressão permanente em duas frentes: uma contra o marxismo e o socialismo no geral e outra contra qualquer simpatia ou apoio a cada experiência socialista concreta – em nosso exemplo, a China maoísta. O intelectual ou organização socialista terão que responder constantemente às caricaturas, calúnias e narrativas simplificadoras do anticomunismo. No entanto, aquele marxista que diz “olha, sou marxista, mas não tenho nada a ver com isso” passa a receber mais espaço, atenção pública e conquista a medalha de honra de “marxista, porém respeitável”.

Cria-se assim um marxismo que apoia todas as revoluções, menos as vitoriosas; defende todos os revolucionários, menos os que exerceram o poder.”

34 Para um balanço desse mecanismo ideológico da classe dominante na apresentação dos problemas e contradições do socialismo, conferir o livro de Domenico Losurdo, Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. Editora Revan, 2009.

 

 

“Se tudo deu errado no século XX, se todas as experiências socialistas se resumem a reinos de terror e à ausência de democracia socialista, não precisamos aprender nada com a história, mas “voltar a Marx”, recuperar a pureza da proposta marxista dada de uma vez para sempre nos escritos e, no máximo, aprender com os marxistas que nunca exerceram o poder e morreram no martírio. Podemos ler e reivindicar Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Mariátegui e, até certo ponto, “Che” Guevara, mas não podemos fazer o mesmo com Mao Zedong, Ho Chi Minh, Fidel Castro, Thomas Sankara, Kim Il Sung, Josip Broz Tito etc.

Os que exerceram o poder são considerados bárbaros, dogmáticos, pouco dialéticos, sem refinamento teórico e filosófico. Já outros, respeitados em universidades e até citados positivamente nos aparelhos ideológicos da classe dominante – como é o caso de Antônio Gramsci –, são tomados como uma espécie de antítese total de um passado que deve ser superado. Nessa chave de leitura, Rosa Luxemburgo é apresentada como a negação de tudo que deu errado, um novo começo, o início de um “socialismo democrático”.”

 

 

“Na modernidade burguesa, antes da era do imperialismo, a única tendência teórico-política no “Ocidente”, o centro dinâmico da economia mundial, que tentou negar radicalmente o colonialismo e suas formas ideológicas de justificação – no plano teórico desde seu surgimento, e no plano político imediato no processo de amadurecimento –, foi o materialismo histórico. (...)

Vamos trabalhar a nossa tese em três pontos. Primeiro, Marx e Engels, ao contrário de toda tradição dominante de sua época, negaram qualquer paradigma naturalista e racialista na construção de sua crítica da economia política e teoria social centrada no conflito de classes. A análise marxiana é radicalmente histórica. Quando Marx diz em Trabalho Assalariado e Capital, por exemplo, que um negro é apenas um negro e que ele só se torna escravo em condições históricas determinadas, a afirmação é não uma coisificação do negro, mas uma negação radical de qualquer “racismo científico”63 (ou naturalização racialista da escravidão), chamando atenção para as condições histórico-concretas do desenvolvimento do tráfico de seres humanos escravizados na lógica mercantil64 – Marx e Engels também combateram as explicações psicopatológicas dos processos sociais, tendência em voga nos pensadores do século XIX para “explicar” os processos revolucionários.

Hoje, foi quase banido da história um dado básico da cultura ocidental hegemônica até a primeira metade do século XX. Qual dado? A leitura racial da sociedade não era privilégio da Alemanha Nazista (nunca é demais lembrar que o regime de segregação racial nos Estados Unidos durou oficialmente até 1965), mas sim uma corrente de muita força no “Ocidente”, tendo inclusive servido de espelho para as classes dominantes locais de toda periferia, a ponto de existirem, nos quatro cantos do mundo, regimes de supremacia racial ou Estados com políticas eugenistas. A própria palavra “racismo” não tinha uma conotação negativa: significava a “justa” e “necessária” separação entre as raças para evitar a degradação da “raça branca”, “ariana” etc. Quando, em 1936, a União Soviética criminalizou o racismo e reforçou a política cultural, educacional e científica de igualdade racial, ela estava isolada.

O termo “racismo” só passou a ter uma conotação universalmente negativa ao final da Segunda Guerra Mundial, depois da vitória da União Soviética sobre o nazismo e o início da revolução anticolonial no mundo – acontecimento que também marcou o abandono das teorias sociais chave explicitamente racistas. O materialismo histórico, na época de Marx e Engels, não combatia apenas o idealismo e outras formas filosóficas burguesas. Batia de frente com as teorias racistas. Este trecho clássico de Marx, se lido no seu contexto histórico, revela uma revolução teórico-política:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (MARX, Contribuição à crítica da economia política, 2008 [1859], p. 47.

Note a ausência de qualquer paradigma de determinismo racial, climático ou psicopatologizante. Hoje é normal e trivial explicar as relações sociais a partir do estudo de relações sociais construídas historicamente, porém não era no período de Marx e Engels. O materialismo, expresso no trecho anterior, não é apenas o sintoma de uma luta contra o idealismo, mas também contra paradigmas racializantes, como o de um dos pensadores mais prestigiados da Europa no século XIX, o liberal Herbert Spencer (contemporâneo de Marx e Engels e famoso pelo chamado “darwinismo social”).

O segundo aspecto é que Marx e Engels são críticos do colonialismo. Essa crítica ao colonialismo opera em duas dimensões. Eles foram defensores da emancipação nacional da Irlanda e Polônia, os dois principais símbolos europeus da política colonial (importante destacar que, mesmo “brancos” – numa perspectiva biológica –, esses povos eram racializados e tratados como não brancos pelo colonialismo do período). Essa defesa da Polônia e da Irlanda, inclusive, é feita contra membros da Internacional dos Trabalhadores que consideravam, assim como alguns “marxistas” posteriores, que essas lutas nacionais eram desvios da luta de classes.”

63. “Em 1883, o mesmo ano da morte de Marx, vê a luz na Áustria um livro de Ludwig Gumplowicz que, já pelo título (Der Rassenkampf, “A luta de raças”), se contrapõe à tese da luta de classes como chave de leitura da história. Três décadas antes de Gumplowicz, na França, Arthur Gobineau publicou seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, uma obra cujo título também fala por si só. E, nesse mesmo período, na Inglaterra, Benjamin Disraeli argumenta de modo análogo, enunciando a tese de que a raça “a chave da história” e que “tudo é raça e não há outra verdade”, e “é somente uma coisa, o sangue que define e constitui uma raça. O ciclo histórico inteiro, que vai desde a conquista da América até as guerras do ópio e a ascensão e o triunfo do Império Britânico” (LOSURDO, A luta de classes, 2015, p. 45).

64. Ver MARX, Para a crítica da economia política, 1982.

 

 

“O que a África é hoje, como tudo na história, é fruto da luta de classes. O neocolonialismo, aliado das burguesias locais, venceu a luta contra os projetos revolucionários liderados por comunistas e as plataformas nacionalistas que buscavam, ainda que de forma limitada, controlar as riquezas nacionais e combater o “atraso” e a miséria criados e reproduzidos pelo imperialismo. O fato de vários ex-revolucionários terem assumido o papel de gestores da barbárie neocolonial não mostra a incapacidade do socialismo africano, mas o nível de vitória que o capitalismo conseguiu.

Nesse ponto, como antes, preciso perguntar: Você já ouviu falar da história de Thomas Sankara e da Revolução em Burkina Faso ou mesmo do líder de Gana, Kwame Nkrumah, citado anteriormente? Um famoso pensador, muitos anos atrás, escreveu um livro de título chamativo: Como a Europa subdesenvolveu a África? O autor dessa obra, Walter Rodney, provavelmente não discordaria de uma continuidade das suas reflexões que levasse o título “Como o neocolonialismo mantém o subdesenvolvimento na África?

A narrativa anticomunista que apresenta os revolucionários como assassinos, obcecados pelo poder, seres antiéticos e desumanos visa esconder que, na maioria dos países, especialmente na periferia do sistema capitalista, os comunistas lutaram para tornar realidade os mais elementares princípios da dignidade humana. Na luta pela paz, independência nacional, direitos trabalhistas, democracia política, saúde, educação, igualdade para mulheres, reforma agrária, soberania nacional, combate à fome, uso das riquezas naturais em benefício do povo, defesa do meio ambiente e afins, lá estavam os comunistas.

O que é comunismo? É também um projeto político que atuou como agente democrático e tentou garantir a milhões de seres humanos o direito de desfrutar das melhores conquistas da humanidade. Só com o comunismo é que milhões puderam ter acesso à escola pública, estado laico, igualdade jurídica, fim da escravidão e servidão, reconhecimento como cidadão, emprego, comida etc.

O tempo histórico não é homogêneo e uniforme. Em 1930, em Paris, o movimento operário fazia a crítica do direito burguês, mostrando que a igualdade de todos perante a lei significa legitimar e ocultar as desigualdades socioeconômicas do capitalismo. No Vietnã colonizado pela França, os camponeses não tinham igualdade perante a lei, não tinham Estado de direito e não eram considerados seres humanos. Das selvas e centros urbanos do Vietnã, liderados pelos comunistas, esses camponeses gritavam: queremos ser seres humanos, queremos ser cidadãos, queremos conquistar nossa pátria.

A modernidade, a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos, em suma, as bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade nunca foram universais. Nunca foram para todos os povos e regiões do globo. O capitalismo, sem desconsiderar toda sua complexidade, sempre teve dois polos centrais: o mundo formado por países coloniais, semicoloniais e dependentes e os países centrais do sistema burguês.

E no primeiro polo do capitalismo, no século XX, os comunistas tiveram um papel democrático, civilizatório, humanista e modernizador fundamental. Quem conta a história dos direitos humanos e da democracia “esquecendo” desse fato está mentindo.”

 

 

“O mito da democracia e da liberdade estadunidense é tão forte que é imune aos fatos. Em novembro de 2019, o site G1⁷⁹, da Rede Globo, noticiou um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) apontando que os Estados Unidos têm mais de 100 mil crianças presas em campos para imigrantes. O mundo tem 330 mil crianças detidas por razões de imigração, estando quase um terço delas, portanto, nos Estados Unidos. Ainda segundo a matéria do G1, esse país é o único do mundo a não ratificar a Convenção dos Direitos da Criança; para completar o quadro, Stephen Miller, assessor sênior da Casa Branca e responsável pela política de imigração do governo Trump, teve e-mails vazados pelo jornal The Guardian80 expondo todo seu racismo e supremacismo branco.

Recapitulando: 100 mil crianças presas em campos para imigrantes em situação degradante, acumulando várias denún- cias, inclusive da ONU, de abusos sexuais, maus-tratos e ausência de condições básicas de higiene, resultado de uma política co- mandada por um notório racista e supremacista branco de um país que é o único do mundo a não assinar a Convenção dos Direitos da Criança. Já pensou se fosse Cuba, Venezuela, China ou Coreia do Norte a fazer o mesmo?”

79. Mais de 100 mil crianças estão retidas pela imigração dos Estados Unidos, diz estudo da ONU, G1, [S.I.], 18 nov. 2019, Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/18/mais-de-100-mil-criancas-estao-retidas-pela-imigracao-dos-estados-unidos-diz-estudo-da-onu.ghtml>. Acesso em 30 dez. 2023.

80. MUDDE, Cas. “Stephen Miller is no outlier. White supremacy rules the Republican party”. The Guardian, [S. I.], 16 nov. 2019. Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2019/nov/22/stephen-miller-bannon-interview-immigration-america>.

 

 

“A realidade, porém, é bem eloquente: estamos diante de um genocídio, um extermínio que, embora bem mais dilatado no tempo, foi mais sanguinário que a Solução Final de Adolf Hitler para os judeus. Estamos trabalhando com o “dado” de quase 18 milhões de pessoas exterminadas.

O terrível desse genocídio se vê nos números. Em 1620, a população nativa era de 18 milhões, foi reduzida a 600 mil em 1800 e chegou a 250 mil em 1900. Em 2008, o censo demográfico dos Estados Unidos mostrou uma população de aproximadamente 325 milhões de habitantes. Entre esses, 75,1% brancos, oriundos de imigrações europeias, enquanto os nativos representavam 0,13% da população, algo como 2,5 milhões, quando no início do século XVII eram 18 milhões. Os dados revelam tudo, diz o livro sobre o maior genocídio (FILHO, Maior genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas, 2019).

Uma gigantesca parcela da população estadunidense não vivia, concretamente, sob um regime constitucional de democracia burguesa, mas sim sob um Estado de exceção permanente, com objetivos e práticas genocidas concretizadas com sucesso. Não se trata apenas de apontar que a população indígena era privada dos direitos políticos, como votar e ser eleito, e dos direitos civis; estamos falando de algo mais grave: eles não eram sequer considerados seres humanos pelo Estado criado pelos pais fundadores.85

Nos Estados Unidos, os peles-vermelhas eram retratados de forma cada vez mais repugnante à medida que o processo de sua aniquilação da face da Terra avançava com maior impiedade. A guerra discriminatória e de aniquilação das populações coloniais, externas ou internas às metrópoles, é justificada com o recurso à sua desumanização (LOSURDO, Revolução de outubro e democracia no mundo**, 2017).

Alguém pode argumentar que esse desejo de extermínio é algo pré-moderno, vigente em todo mundo na época, apelando a um suposto “contexto histórico”. Porém, a ideologia de extermínio dos indígenas é algo de antes da nossa era contemporânea? Theodore Roosevelt, 26º presidente dos Estados Unidos, afirmava que “não chego ao ponto de dizer que índio bom é índio morto, mas creio que seja o caso de nove em cada dez. E não gostaria de indagar muito a fundo sobre o décimo” (LOSURDO, 2017).

Essas palavras foram proferidas por Roosevelt em 1886 e, ainda que tenhamos indícios de uma mudança de posição posterior, são significativas. Thomas Jefferson, o terceiro presidente, falava em “eliminar” os indígenas. Jefferson também catalogava os povos originários dessa forma: “estes selvagens sem piedade, cujo modo bem conhecido de fazer a guerra é massacrar tudo, sem distinção de idade, de sexo, nem de condição” (DUCLOS, O império da cultura do ódio e dos delírios paranoicos, 2003). O general Philip Sheridan, um dos mais famosos da história dos Estados Unidos, defendia, na metade do século XIX, a “aniquilação, obliteração e completa destruição” dos indígenas (ROSS, How American Racism Influenced Hitler, 2018).

O nível de brutalidade na política de extermínio foi tanto que um famoso personagem da história do século XX tomava o extermínio estadunidense como grande exemplo para seu projeto. Esse líder era Adolf Hitler. (...)

O Estado racial estadunidense, como se sabe, não se restringiu a práticas de domínio total contra os indígenas. É fundamental sempre lembrar que existe uma lenda muito popular de que o liberalismo, no Brasil, seria mais autoritário e antidemocrático do que o “verdadeiro liberalismo”, o da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Os que divulgam essa visão, cobrando um “verdadeiro liberalismo” no Brasil ou uma imitação do liberalismo dos países imperialistas, parecem esquecer, ou ignorar propositalmente, que a escravidão não foi extinta com a Revolução Americana. A Constituição Americana sanciona a escravidão, e o regime presidencialista do país esteve organicamente ligado a essa instituição de máxima opressão e exploração: depois da fundação da República estadunidense, por 32 anos, a presidência foi ocupada por proprietários de escravos.

O sentido intrínseco da ligação entre fundação da república, liberalismo e escravidão é bem colocado por Losurdo:

A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desde sucesso: ‘o total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330 mil no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do século XIX’. O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo do poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal (LOSURDO, Contra-história do liberalismo, 2006, p. 47).

Grandes pensadores liberais e admiradores da República americana, como o francês Alexis de Tocqueville, no seu clássico livro A democracia na América, não só legitimavam o extermínio dos indígenas87 como consideravam, sem problemas, a República como democrática, a despeito da escravidão. Tocqueville registra que existe igualdade e liberdade no âmbito da comunidade branca, mas muitos imigrantes, indígenas e negros não desfrutavam dessa liberdade. Emerge como claro: a democracia estadunidense é um regime de base racial, uma democracia para o povo dos senhores, como diria Domenico Losurdo.

Registrar a convivência da democracia burguesa nos Estados Unidos com a escravidão é pouco. É necessário destacar ainda que, no plano das relações internacionais, o império do Norte atuava como uma força de contrarrevolução no nível do continente americano, buscando manter ou restabelecer a escravidão. Em meados do século XIX, a escravidão foi restabelecida no Texas, depois do território ser roubado do México pelos Estados Unidos.88

A antiga colônia francesa de São Domingos, o Haiti, conseguiu realizar sua revolução, acabar com a escravidão, o domínio dos proprietários de escravo e libertar-se do colonialismo francês. O pequeno país proclamou que, a partir daquele momento, todos os seres humanos seriam iguais e ninguém poderia ser propriedade de outrem. Desafiado pela Revolução Haitiana, foi por esse motivo que, em 28 de fevereiro de 1806, o presidente estadunidense Thomas Jefferson proibiu todo e qualquer comércio com o Haiti. A intenção era suprimir essa república de negros livres.89

A escravidão só foi extinta com a guerra civil Americana, conhecida como Guerra de Secessão de 1861-1865. Durante a guerra, o governo de Abraham Lincoln, representando os interesses da burguesia industrial nortista e valendo-se de expedientes de Estado de exceção contra os proprietários de escravos do Sul, proclamou a abolição da escravidão. No período, como mostra Domenico Losurdo90, muitos liberais apoiaram os Confederados do Sul, vendo neles os verdadeiros representantes do liberalismo, da defesa da propriedade privada, contra o “jacobinismo” de Lincoln. Enquanto isso, Marx e Engels se colocaram como firmes apoiadores da luta contra a escravidão e apontavam as vacilações da União na luta contra os latifundiários escravagistas:

Colocando-se abertamente a favor da emancipação dos escravos, Marx e Engels não se eximiram de criticar, através da imprensa, as tendências conciliadoras e tendentes à capitulação existente no próprio campo republicano nortista. Em artigos como ‘A destituição de Frémont’, ‘Crítica dos assuntos americanos’ e ‘Crise na questão escravista’, ‘Tratado contra o comércio de escravos’ e ‘Manifestações abolicionistas na América’, Marx condenava de forma contundente a indecisão e as vacilações dos círculos moderados do Partido Republicano do Norte dos Estados Unidos, sua inclinação para estabelecer compromissos com a oligarquia escravista do Sul e seu Partido Democrata. Subjaz nesses escritos o reconhecimento das limitações sócio-históricas da burguesia estadunidense, que a tornavam incapaz de realizar a ‘democracia americana’ em sua plenitude – decantada anos antes por liberais europeus da estirpe de Alexis de Tocqueville –, concorrendo para a manutenção de uma ‘república contaminada’ (defiled republic) na sociedade e no sistema político estadunidense pela vigência da 'instituição nefanda'. Para Marx e Engels, a maneira consequente e radical de travar a guerra era através da proclamação de seu caráter abolicionista, emancipador e antioligárquico, de modo a mobilizar as massas de condição livre e aqueles que ainda permaneciam escravos para o desenvolvimento de uma guerra popular e revolucionária (FERREIRA, Crítica Marxista, 2017, p. 121).

Durante a Guerra de Secessão, a guarda civil, formada também por pessoas negras, ex-escravos, apoiada pela ditadura “jacobina” do Norte, conseguiu criar um clima de liberdade para a população negra como nunca antes visto. Pela primeira vez na história, os negros e negras dos Estados Unidos passaram a desfrutar de algo próximo de um Estado de direito e direitos civis.91 Com a vitória da União, ocorreu, afinal, a conciliação com os Confederados do Sul. A despeito do caráter de mobilização popular do exército antiescravista, a guerra buscava, essencialmente, dobrar as resistências do latifúndio e afirmar a hegemonia do capital industrial e bancário nortista. Garantida essa hegemonia, a burguesia nortista permitiu o estabelecimento de uma nova forma de domínio sobre a população negra.

Quando termina o período da reconstrução americana e as tropas nortistas deixam totalmente os estados do Sul, em 1877, os proprietários brancos recuperaram seu poder político e acabaram com o pouco de liberdade política até então desfrutada pelos negros. Rapidamente, uma série de leis segregacionistas começaram a tomar corpo entre 1890 e 1910 – inicialmente no Norte e não no Sul –, configurando o regime de segregação racial Jim Crow.92 Esse sistema de apartheid, oficialmente, durou até 1965. Proibia não só direito de votar e ser eleito aos negros em vários estados, como criava um regime de desumanização total e alijamento de direitos básicos, como educação, saúde, transporte e emprego.

É importante destacar que o regime de segregação racial não era apenas uma política estatal. A mitologia liberal gosta de imaginar regimes de exceção como um Estado total, o “Grande Irmão” de George Orwell, que controla toda uma sociedade indefesa; em suma, a velha e gasta oposição liberal entre Estado versus indivíduo ou sociedade. A dominação racial-classista nos Estados Unidos se configura como um complexo orgânico e dinâmico de brutalidade, violência e desumanização que articula Estado e sociedade civil com fronteiras sempre mais turvas, com a interação entre as formas legais e ilegais de opressão, de acordo com a conjuntura histórica. Vejamos alguns aspectos dessa dominação:

Por mais brutais e sangrentos que fossem os distúrbios raciais, ficavam atrás dos linchamentos e das mortes por fogo. Em 1918, 64 negros foram linchados; em 1919, o número subiu para 83. Talvez o ato mais brutal tenha sido o ocorrido em Valdosta, no estado da Geórgia, em 1918. Mary Turner, uma mulher negra grávida, foi enforcada numa árvore, embebida com gasolina e queimada. Quando se balançava na corda, um homem da multidão puxou uma faca e abriu seu ventre. Seu filho caiu. Deu dois gemidos fracos – e recebeu como resposta um pontapé de um valentão, no momento em que a vida era triturada nessa forma tão minúscula (JONES, Racismo e preconceito, 1973, p. 15).

E:

Notícias dos linchamentos eram publicadas em folhetos locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistir ao linchamento, as crianças das escolas podiam ter seu dia livre. O espetáculo podia incluir castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros de arma de fogo. As lembranças a serem adquiridas podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até as genitálias das vítimas, bem como cartões ilustrados do evento (WOODWARD, 2010, p. 317).

Note, os linchamentos eram públicos, anunciados como eventos sociais de fundamental importância, com o conhecimento e a aprovação, oficial ou oficiosa, das autoridades do poder público. Nos Estados Unidos, um negro não deveria apenas temer a polícia, a força repressiva do Estado, mas todo e qualquer branco: o branco podia estuprar uma mulher negra e nada iria acontecer; espancar um negro e nada iria acontecer; matar e torturar com requintes de crueldade um negro e nada iria acontecer. Em caso de reação, em legítima defesa, o negro poderia esperar a prisão, pena de morte ou a morte pura e simples por linchamento. A situação da população negra, em vários estados do Sul e com formas diferentes e um pouco menos brutais no Norte, expressa-se objetivamente como a negação total da condição de ser humano, sujeito de direito e portador de direitos civis.”

84. Domenico Losurdo, Guerra e Revolução, 2017, p. 59.

85. Designação conferida a John e Samuel Adams, George Washington, Thomas Jefferson, George Clymer, Benjamin Franklin, George Tylor e George Rea, signatários da Declaração de Independência ou redatores da Constituição dos Estados Unidos, onze anos mais tarde.

86. “A interpretação hitlerista da Revolução Bolchevique como projeto judaico não era nada exótica. Winston Churchill e Woodrow Wilson entendiam-na da mesma forma, pelo menos no início. O correspondente do Times de Londres via nos judeus a força principal da conspiração bolchevique mundial. Pouco habitual era a conclusão insistente e sistemática de Hitler, segundo o qual a Alemanha poderia ganhar poder global eliminando os judeus da Europa Oriental e derrubando sua suposta fortaleza soviética. [...] Uma segunda América seria criada na Europa, depois que os alemães aprendessem a ver os outros europeus como viam os nativos americanos e os africanos, e a considerar o maior país da Europa como uma frágil colônia judaica” (ibidem, p. 36).

87 “Muito embora o vasto país que acabamos de descrever fosse habitado por numerosas tribos indígenas, podemos dizer com justiça que, na época do descobrimento, ainda não constituía mais que um deserto. Os índios ocupavam-no, mas não o possuíam. É pela agricultura que o homem se apropria do solo, e os primeiros habitantes da América do Norte viviam do produto da caça. Seus preconceitos implacáveis, suas indômitas paixões, seus vícios e, mais ainda talvez, suas virtudes selvagens entregavam-nos a uma destruição inevitável. A ruína desses povos começou no dia em que os europeus abordaram em suas costas; sempre continuou desde então; acaba de se consumar em nossos dias. A Providência, colocando-os no meio das riquezas do novo mundo, parecia ter-lhes concedido destas apenas um curto usufruto; de certa forma, eles só estavam ali entrementes. Aquelas costas, tão bem-preparadas para o comércio e para a indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississippi, aquele continente inteiro aparecia então como o berço ainda vazio de uma grande nação” (Alexis de Tocqueville, A democracia na América. Livro I: leis e costumes, p. 33).

88 Domenico Losurdo (entrevista), “A luta para romper o monopólio da tecnologia é revolucionária“, Revista Opera, 28 jun. 2019.

89 Vijay Prashad, Estrela vermelha sobre o terceiro mundo, p. 29.

90 Losurdo, Contra-história do liberalismo, p. 107-33.

91. Cabe destacar, contudo, que Lincoln, pessoalmente, estava longe de uma posição antirracista ou algo similar a isso. Sua declaração é reveladora: “não sou, nem nunca fui favorável a algo que pudesse provocar, de qualquer forma, a igualdade social e política entre as raças branca e a negra; não sou, nem nunca fui favorável à transformação de negros em eleitores ou jurados, ou à sua aceitação para cargos públicos [...]. A isso acrescentarei que existe uma diferença física entre a raça negra e a branca que, segundo creio, para sempre impedirá que as duas raças vivam em condições de igualdade social e política” (Lincoln apud James M. Jones, Racismo e preconceito, p. 4).

92 “As Leis de Jim Crow foram criadas no Norte, não no Sul. Portanto, a atitude ambivalente dos nortistas com relação aos negros tem sido um pouco obscurecida pela comparação evidentemente favorável com as atitudes sulistas diante dos negros. No entanto, como hoje se vê claramente, os negros do Norte nunca foram admitidos na corrente principal da vida norte-americana” (JONES, 1973, p. 9). O termo tem origem na personagem satírica do ator Thomas Rice, “Jim Crow”, que ridicularizava o povo negro por meio de estereótipos. A expressão tornou-se uma forma pejorativa de se referir às pessoas negras. No final do século XIX, quando os estados do Sul dos Estados Unidos aprovaram leis de segregação racial, estas ficaram conhecidas como Leis Jim Crow.