Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte
I
“O senso de justiça nos leva a promover
sistemas justos e a desempenhar neles a nossa parte quando acreditamos que os
outros, ou pelo menos um número suficiente deles, farão também a sua. Mas, em
circunstâncias normais, uma certeza razoável em relação a isso só pode ser
obtida se houver uma regra imperativa efetivamente aplicada. Supondo que o bem
público beneficie a todos, e que todos concordem com a sua produção, o uso da
coerção é perfeitamente racional do ponto de vista de cada indivíduo. Muitas
das atividades tradicionais do governo, na medida em que são justificáveis,
podem ser explicadas dessa forma. A necessidade da imposição das regras pelo
estado ainda existirá mesmo que todos sejam movidos pelo mesmo senso de
justiça. As propriedades características dos bens públicos essenciais
necessitam de consentimento coletivo, e todos precisam de uma garantia sólida
de que esse será mantido.
Um outro aspecto da natureza dos bens
públicos é o dos efeitos externos. Quando os bens são públicos e indivisíveis,
a sua produção causará benefícios e perdas para outros que talvez não tenham
sido considerados por aqueles que fornecem esses bens e que decidem quem deve
produzi-los. Dessa forma, no caso extremo, se apenas uma parte dos cidadãos
paga os impostos que devem cobrir os custos dos bens públicos, toda a sociedade
é mesmo assim beneficiada pelos bens fornecidos. No entanto, aqueles que
determinam essa arrecadação talvez não considerem esses efeitos, e portanto o
montante de gastos públicos é presumivelmente diverso do que seria se todos os benefícios
e perdas tivessem sido considerados. Os casos mais frequentes são aqueles em
que a indivisibilidade é parcial e o público menor. Alguém que se vacinou
contra uma doença contagiosa ajuda os outros e também a si mesmo; e embora essa
proteção possa não ter valor para essa pessoa em particular, ela pode ser
válida para a comunidade local, quando todas as vantagens forem consideradas.
E, é claro, há os casos notáveis de danos públicos, como quando as indústrias
provocam a poluição e a erosão do ambiente natural. Esses custos não são em
geral considerados pelo mercado, de modo que os bens produzidos são vendidos
por preços muito inferiores aos seus custos sociais marginais. Há uma
divergência entre a contabilidade privada e a social que o mercado deixa de
registrar. Uma tarefa essencial da lei e do governo é instituir as correções
necessárias.
Fica evidente, então, que a indivisibilidade
e o caráter público de certos bens essenciais, juntamente com os efeitos
externos e as tentações às quais eles dão origem, tornam necessária a aprovação
coletiva organizada e garantida pelo Estado. É uma visão superficial aquela que
considera que a regra política é fundada unicamente na propensão dos homens
para o egoísmo e à injustiça. Pois, mesmo entre homens justos, quando se trata
de bens indivisíveis em relação a um grande número de indivíduos, suas decisões
isoladas não conduzirão ao bem comum. Alguma aceitação coletiva é necessária e
todos querem assegurar que ela será honrada para que cada um se disponha a
fazer a sua parte. Em uma grande comunidade, não se garante o grau de confiança
mútua na integridade alheia que tornaria supérflua a coerção. Em uma sociedade
bem-ordenada, as sanções exigidas são indubitavelmente suaves, e podem nunca
vir a ser aplicadas. Ainda assim, a existência desses dispositivos é uma condição
normal da vida humana, mesmo nesse caso.”
“Por último, temos o setor de distribuição.
Sua tarefa é preservar uma justiça aproximativa das partes a serem distribuídas
por meio da taxação e dos ajustes no direito de propriedade que se fazem
necessários. Dois aspectos desse setor podem ser diferenciados. Em primeiro
lugar, ele necessita de vários impostos sobre heranças e doações, e fixa
restrições ao direito de legar. O propósito desses tributos e normas não é
aumentar a receita (liberar recursos para o governo), mas corrigir, gradual e
continuamente, a distribuição da riqueza e impedir concentrações de poder que
prejudiquem o valor equitativo da liberdade política e da igualdade equitativa
de oportunidades. Por exemplo, o princípio da tributação progressiva poderia
ser aplicado ao beneficiário. Isso encorajaria a ampla dispersão da propriedade
que é, ao que parece, uma condição necessária à manutenção das liberdades
iguais. A herança desigual de riqueza não é em si mesma mais injusta que a
herança desigual de inteligência. É verdade que a primeira é mais facilmente
sujeita ao controle social; mas o essencial é que, na medida do possível, as
desigualdades que se fundam em ambas satisfaçam o princípio da diferença.
Assim, a herança é permissível contanto que as desigualdades resultantes tragam
vantagens para os menos afortunados e sejam compatíveis com a liberdade e com a
igualdade equitativa de oportunidades. Como já foi definido anteriormente, a
igualdade equitativa de oportunidades significa um certo conjunto de
instituições que assegura oportunidades semelhantes de educação e cultura para
pessoas semelhantemente motivadas e mantém as posições e os cargos públicos
abertos a todos, levando em conta as qualidades e esforços razoavelmente
relacionados com os respectivos deveres e tarefas. São essas instituições que
correm risco quando as desigualdades de riqueza excedem um certo limite; e, da
mesma forma, a liberdade política tende a perder o seu valor, e o governo
representativo só existirá nas aparências. Os tributos e as normas do setor de
distribuição devem evitar que esse limite seja ultrapassado. Naturalmente, onde
fixar esse limite é uma questão de juízo político guiado pela teoria, pelo bom
senso, e pela mera intuição, pelo menos em termos genéricos. Sobre esse tipo de
questão a teoria da justiça não tem nada a dizer. O seu objetivo é formular os
princípios que devem regular as instituições básicas.
A segunda parte do setor de distribuição é um
sistema de tributação que tem o intuito de arrecadar a receita exigida pela
justiça. O governo deve receber uma parte dos recursos da sociedade, para que
este possa fornecer os bens públicos e fazer os pagamentos de transferências
necessários para que o princípio da diferença seja satisfeito. Esse problema
pertence ao setor de distribuição, já que a carga tributária deve ser
partilhada de forma justa e esse setor tem por objetivo criar organizações
justas. Deixando de lado muitas dificuldades, vale a pena notar que uma
tributação proporcional sobre as despesas pode fazer parte do melhor sistema
tributário. Em primeiro lugar, ela é preferível a um imposto sobre a renda (de
qualquer tipo) ao nível dos preceitos da justiça baseados no senso comum, já
que impõe uma tributação sobre o quanto uma pessoa retira do estoque comum de
bens, e não sobre o quanto ela contribui (supondo-se aqui que a renda é ganha
de forma justa). Além disso, um imposto proporcional sobre o consumo total (por
exemplo, a cada ano) pode conter as isenções comuns para dependentes, e assim
por diante; todos são tratados de uma maneira uniforme (ainda na suposição de
que a renda é ganha de forma justa). Portanto, pode ser melhor usar a
tributação progressiva apenas quando ela é necessária para proteger a justiça
da estrutura básica com relação ao primeiro princípio da justiça e à igualdade
equitativa de oportunidades, e desse modo evitar acúmulos de propriedade e
poder, que provavelmente minarão as instituições correspondentes.”
“Desejo agora apresentar a formulação final
dos dois princípios da justiça para instituições. Em nome da completude,
fornecerei uma formulação total, que inclui as anteriores.
Primeiro Princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais
abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com
um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo Princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem
ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício
possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da
poupança justa, e
(b) sejam vinculadas a cargos e posições
abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da
Liberdade)
Os princípios da justiça devem ser
classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser
restringidas em nome da liberdade.
Existem dois casos:
(a) uma redução da liberdade deve fortalecer
o sistema total das liberdades partilhadas por todos;
(b) uma liberdade desigual deve ser aceitável
para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da
Justiça sobre a Eficiência e sobre o Bem-Estar)
O segundo princípio da justiça é lexicalmente
anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de
vantagens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da
diferença. Existem dois casos:
(a) uma desigualdade de oportunidades deve
aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor;
(b) uma taxa excessiva de poupança deve,
avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que
carregam esse fardo.”
“Respeitar um outro como uma pessoa moral é
tentar entender, do seu ponto de vista, seus objetivos e interesses e
apresentar-lhe ponderações que o capacitem a aceitar os limites impostos à sua
conduta. Uma vez que um outro deseja, vamos supor, regular suas ações segundo
princípios aceitáveis para todos, ele deveria estar a par dos fatos pertinentes
que explicam as limitações que deverá a aceitar para agir nesse sentido. O
respeito também se mostra por meio da disposição para prestar pequenos favores
e cortesias, não por causa de seu valor material, mas porque são uma expressão
apropriada de nossa percepção das aspirações e sentimentos de uma outra pessoa.
A razão para o reconhecimento desse dever está no fato de que, embora as partes
na posição original não estejam interessadas nos interesses dos outros, elas
sabem que no convívio social precisam da garantia da estima de seus consócios.
Sua autoestima e sua confiança no valor de seu próprio sistema de objetivos não
pode suportar a indiferença e muito menos o desprezo dos outros. Todos,
portanto, se beneficiam com o fato de viverem numa sociedade na qual se pratica
o respeito mútuo. O preço a ser pago pelo interesse próprio é comparativamente
menor do que o apoio recebido ao senso de valor pessoal.
Um raciocínio semelhante sustenta os outros
deveres naturais. Considere-se, por exemplo, o dever da ajuda mútua. Kant
sugere, e outros autores o acompanham nesse ponto, que o fundamento para a
proposta desse dever consiste na possibilidade de surgirem situações em que
precisamos da ajuda dos outros, e o não reconhecimento desse princípio
equivaleria a nos privarmos de sua assistência. Embora em ocasiões especiais
tenhamos de fazer coisas que não são do nosso interesse, é provável que
lucremos no conjunto, pelo menos a longo prazo e em circunstâncias normais. Em
cada caso particular o ganho da pessoa que precisa de ajuda supera em muito a
perda dos que são chamados a prestá-la; e supondo que as probabilidades de vir
a beneficiar-se não são muito menores do que as de ter de oferecer ajuda, o
princípio é claramente do nosso interesse. Mas esse não é o único argumento a
favor do dever de ajuda mútua, nem mesmo o mais importante. Uma razão
suficiente para adotar esse dever é seu efeito genérico sobre a qualidade de
vida. O conhecimento público de que estamos vivendo numa sociedade em que
podemos contar com a assistência dos outros em circunstâncias difíceis é por si
só um grande valor. Não faz muita diferença que, na prática, nunca venhamos a
precisar dessa assistência e que ocasionalmente sejamos solicitados a
prestá-la. O balanço dos ganhos, interpretado em termos estritos, talvez não
seja importante. O valor básico do princípio não é medido pela ajuda que de
fato recebemos, mas sim pelo senso de segurança e confiança nas boas intenções
dos outros homens e pelo fato de sabermos que podemos contar com eles em caso de
necessidade. Na verdade, basta apenas imaginar como seria a sociedade, se a
rejeição desse princípio fosse publicamente notória. Assim, embora os deveres
naturais não sejam casos especiais fundados em um único princípio (pressuposto
do qual parti), não há dúvida de que razões semelhantes sustentam muitos deles,
quando se consideram as atitudes subjacentes que representam. Tão logo tentemos
imaginar a vida numa sociedade na qual ninguém tem o menor desejo de agir
segundo esses deveres, percebemos que ela expressaria uma indiferença, se não
um desdém pelos seres humano, que tornaria impossível o senso de nosso próprio
valor.”
“O princípio básico do direito internacional
é um princípio de igualdade. Povos independentes organizados como estados têm
certos direitos iguais básicos. Esse princípio é análogo ao dos direitos iguais
dos cidadãos num regime constitucional. Uma consequência dessa igualdade das
nações é o princípio da autodeterminação, o direito de um povo de resolver seus
próprios assuntos sem a intervenção de forças exteriores. Outra consequência é
o direito da autodefesa contra uma agressão, incluindo-se o direito de formar
alianças defensivas para proteger esse direito. Um outro princípio é o dever
cumprir tratados, desde que sejam consistentes com os outros princípios que
regem as relações internacionais. Assim, tratados para a autodefesa,
interpretados adequadamente, gerariam obrigações, enquanto acordos para
cooperar numa agressão injustificada seriam nulos ab initio.
Esses princípios definem quando uma nação tem
uma causa justa numa guerra ou, na expressão tradicional, o seu jus ad bellum. Mas há também princípios
que regulam os meios que uma nação pode usar ao promover uma guerra, o seu jus in bello. Mesmo numa guerra justa,
certas formas de violência são rigorosamente inadmissíveis; e quando o direito
de um país em relação à guerra é questionável e incerto, as restrições dos
meios que se podem usar são muito mais severas. Atos que, quando necessários,
são permissíveis numa guerra de legítima defesa, podem ser categoricamente
excluídos numa situação mais duvidosa. O objetivo da guerra é uma paz justa, e
portanto os meios empregados não devem destruir a possibilidade da paz ou
estimular um desprezo pela vida humana que põe em risco a nossa segurança e a
da humanidade. A condução da guerra deve ser moderada ajustando-se a esse
objetivo. Os representantes de estados reconheceriam que a melhor forma de
servir aos seus interesses nacionais, vistos a partir da posição original, está
no reconhecimento dessas limitações dos meios bélicos. Isso acontece porque o
interesse nacional de um estado justo se define pelos princípios da justiça que
já foram reconhecidos. Portanto, uma nação nessas condições visará acima de
tudo à manutenção e à preservação de suas instituições justas e das condições
que as tornam possíveis. Não a move o desejo de poder internacional ou a glória
nacional; nem tampouco ela fomenta a guerra visando a uma vantagem econômica ou
à expansão territorial. Esses objetivos são contrários à concepção da justiça
que define o interesse legítimo de uma sociedade, por mais preponderantes que
eles possam ter sido na conduta concreta dos estados. Aceitando-se esses
pressupostos, então, parece razoável supor que as proibições tradicionais, que
incorporam os direitos naturais que protegem a humanidade, seriam escolhidas.”
“A
teoria constitucional da desobediência civil repousa unicamente sobre uma
concepção da justiça. Até os aspectos da publicidade e não-violência se explicam
com base nisso. E o mesmo vale para a explicação da objeção de consciência,
embora ela exija uma elaboração maior da doutrina contratualista. Em nenhum
momento se fez referência a princípios que não fossem políticos; concepções
religiosas e pacifistas não são essenciais. Embora os praticantes da
desobediência civil tenham muitas vezes sido motivados por convicções dessa
espécie, não há necessariamente nenhuma ligação entre elas e a desobediência
civil. Pois essa forma de ação política pode ser entendida como um modo de
recorrer ao senso de justiça da comunidade, uma invocação dos princípios
reconhecidos da cooperação entre iguais. Sendo um apelo à base moral da vida
cívica, é um ato político e não religioso. Apoia-se em princípios da justiça
ditados pelo senso comum, cuja obediência pode ser mutuamente exigida entre os
homens, e não em afirmações religiosas de fé e amor, para as quais eles não
podem pedir a aceitação de todos. Não quero dizer, naturalmente, que concepções
não políticas não tenham validade. Elas podem, de fato, confirmar o nosso
julgamento e sustentar nossas ações em rumos que são tidos como justos por
outros motivos. Todavia, não são esses princípios, mas sim os princípios da
justiça, os termos básicos da cooperação social entre pessoas livres e iguais,
que fundamentam a constituição. A desobediência civil como foi definida não
exige uma fundamentação sectária, mas decorre da concepção pública da justiça
que caracteriza a sociedade democrática. Entendida assim, a concepção da
desobediência civil faz parte da teoria do governo livre.
Uma diferença entre o constitucionalismo
medieval e o moderno está no fato de que, no primeiro, a supremacia da lei não
era garantida por controles institucionais estabelecidos. O controle sobre o
governante que em suas sentenças e leis contrariava o senso da justiça da
comunidade restringia-se, em sua essência, ao direito de resistência da
sociedade em seu todo ou em parte. Até mesmo esse direito parece não ter sido
interpretado como um ato da coletividade; um rei injusto era simplesmente
deposto. Assim, a Idade Média não dispunha das ideias básicas do governo
constitucional moderno, a ideia do povo soberano com autoridade suprema e a
institucionalização dessa autoridade por meio de eleições e parlamentos, e outras
formas constitucionais. Praticamente da mesma forma que a concepção moderna de
governo institucional se desenvolve a partir da medieval, assim também a teoria
da desobediência civil suplementa a concepção puramente legal da democracia
constitucional. Ela tenta formular os fundamentos com base nos quais se pode
discordar da autoridade democrática legítima de maneiras que, embora
sabidamente contrárias à lei, expressam uma fidelidade a essa mesma lei e um
recurso aos princípios políticos fundamentais de um regime democrático.”
“Numa sociedade democrática, portanto,
sabe-se reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos
princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Não pode haver
nenhuma interpretação legal ou socialmente aprovada desses princípios que
moralmente tenhamos sempre de aceitar, nem mesmo quando a interpretação é da
corte suprema de justiça ou do legislativo. De fato, cada função
constitucional, o legislativo, o executivo e o judiciário, apresenta a sua
interpretação da constituição e dos ideais políticos que a informam. Embora o
judiciário possa ter a última palavra na solução de qualquer caso particular,
ele não está imune a poderosas influências políticas que podem forçar a revisão
de sua interpretação da constituição. O judiciário apresenta a sua doutrina por
meio de arrazoados e argumentações; sua concepção da constituição deve, se
quiser perdurar, persuadir a maior parte dos cidadãos sobre a sua solidez. O
tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o
legislativo, mas sim o eleitorado como um todo. Quem pratica a desobediência
civil recorre por uma via especial a esse corpo. Não há perigo de anarquia
desde que haja uma harmonia adequada nas concepções de justiça dos cidadãos e
se respeitem as condições do recurso à desobediência civil. Está implícito que
no sistema de um governo democrático os homens podem conseguir esse
entendimento e honrar esses limites quando as liberdades políticas básicas são
mantidas. Não há como evitar inteiramente o perigo das lutas causadoras de
divisões, da mesma forma que ninguém pode excluir completamente a possibilidade
de uma profunda controvérsia científica. Todavia, se a desobediência civil
justificada aparentemente ameaçar a concórdia cívica, a responsabilidade não
recai sobre os que protestam, mas sim sobre aqueles cujo abuso de autoridade e
poder justifica essa oposição. Pois empregar o aparato coercitivo do Estado
para manter instituições evidentemente injustas é por si só uma forma de força
ilegítima que os homens, no devido tempo, têm direito a rechaçar.”
“À primeira vista, pode parecer estranho que
venhamos a ter o desejo de agir segundo uma concepção do justo e da justiça.
Como é possível que princípios morais conquistem a nossa afeição? Na justiça
como equidade, há várias respostas para essa pergunta. Em primeiro lugar, os
princípios morais necessariamente têm um certo conteúdo. Como são escolhidos
por pessoas racionais para o julgamento de reivindicações concorrentes, eles
definem modos já aceitos de promover os interesses humanos. As instituições e
as ações são avaliadas com base na garantia que dão a esses objetivos; e
portanto princípios inúteis, por exemplo, o de que não se deve olhar para o céu
às terças-feiras, são rejeitados como restrições incômodas e irracionais. Na
posição original, as pessoas não têm motivos para reconhecer padrões desse
tipo. Mas, em segundo lugar, também acontece que o senso de justiça é um
prolongamento do amor pela humanidade. Já observei anteriormente, que a benevolência
fica sem rumo quando os muitos objetos de seu amor se opõem uns aos outros. É
necessário que os princípios da justiça a orientem. A diferença entre o senso
de justiça e o amor pela humanidade é que este último é supererrogatório, indo
além das exigências morais, e não invocando as isenções permitidas pelos
princípios de obrigação e dever naturais. Porém, está claro que os objetos
desses dois sentimentos estão intimamente ligados, sendo definidos em grande
parte pela mesma concepção da justiça. Se um deles parece natural e
inteligível, o mesmo acontece com o outro. Além disso, sentimentos de culpa e
indignação são gerados pelos danos e privações injustificadamente causados aos
outros por nós mesmos ou por terceiros, e nosso senso de justiça fica ofendido
da mesma maneira. O conteúdo dos princípios da justiça explica esse fato.
Finalmente, a interpretação kantiana desses princípios demonstra que, ao agirem
de acordo com eles, os homens expressam a sua natureza de seres racionais
livres e iguais. Como fazer isso constitui parte do seu bem, o senso de justiça
tem como objetivo o seu bem-estar de uma forma ainda mais direta. Apoia as
ordenações que possibilitam que todos expressem sua natureza comum. De fato,
sem um senso de justiça comum ou coincidente, o civismo não pode existir. O
desejo de agir de maneira justa não é, portanto, uma forma de obediência cega a
princípios arbitrários sem relação com objetivos racionais.”
“Vale lembrar três elementos que entram na
operação das leis psicológicas, ou seja, uma preocupação incondicional com o
nosso próprio bem, uma consciência clara dos fundamentos dos preceitos e ideais
morais (auxiliada por explicações e instruções, e pela possibilidade de
oferecer justificativas precisas e convincentes), e o reconhecimento de que os
que seguem esses preceitos e ideais, fazendo a sua parte nas ordenações
sociais, não apenas aceitam essas normas, como também expressam, em sua vida e
em seu caráter, formas de bem humano que inspiram a nossa admiração e estima. O
senso de justiça resultante será tanto mais forte quanto mais esses três
elementos forem realizados. O primeiro reaviva o senso de nosso próprio valor,
fortalecendo nossa tendência a retribuir na mesma moeda, o segundo apresenta a
concepção moral de modo que ela possa ser prontamente entendida, e o terceiro
mostra a adesão a ela como algo atraente. Podemos supor, portanto, que a mais
estável concepção da justiça é aquela que é evidente para o nosso entendimento,
congruente com o nosso bem, e fundada não na abnegação, mas na afirmação do eu.”
“Na visão contratualista, as noções de
autonomia e objetividade são compatíveis: não há antinomia entre a liberdade e
a razão. Tanto a autonomia quanto a objetividade são caracterizadas de um modo
consistente por uma referência à posição original. A ideia da situação inicial
é central para toda a teoria, e outras noções básicas são definidas suas
condições. Assim, agir de forma autônoma é agir segundo princípios que
aceitaríamos na qualidade de seres racionais livres e iguais, e que devemos
entender desse modo. Além disso, esses princípios são objetivos. São os
princípios que gostaríamos que todos (inclusive nós mesmos) seguissem se
assumíssemos juntos o ponto de vista geral adequado. A posição original define
essa perspectiva, e as suas condições também incorporam as condições da
objetividade: suas estipulações expressam as restrições impostas pelos
argumentos, que nos forçam a considerar a escolha de princípios desembaraçados
da singularidade das circunstâncias concretas em que nos encontramos. O véu de
ignorância impede que modelemos nossa visão moral de acordo com nossos
interesses e vínculos particulares. Não analisamos a ordem social a partir de
nossa situação, mas assumimos um ponto de vista que todos podem adotar em pé de
igualdade. Nesse sentido, consideramos nossa sociedade e nosso lugar dentro
dela de forma objetiva: partilhamos com os outros um ponto de vista comum, e
não fazemos nossos julgamentos assumindo um viés pessoal. Assim, nossos
princípios e convicções morais são objetivos, na medida em que foram atingidos
e testados através da adoção desse ponto de vista geral e através da avaliação
dos argumentos a seu favor mediante as restrições expressas na concepção da
posição original. As virtudes de julgamento, tais como a imparcialidade e a
ponderação, são as qualidades máximas do intelecto e da sensibilidade que nos
possibilitam o bom desempenho dessas tarefas.
Uma consequência de tentarmos ser objetivos,
estruturando nossas concepções e juízos morais a partir de um ponto de vista
partilhado, é a maior probabilidade de chegarmos a um acordo. De fato, em
circunstâncias iguais, preferimos a descrição da situação inicial que introduz
a maior convergência possível de opiniões. É em parte por esse motivo que
aceitamos as restrições impostas por um ponto de vista comum, já que não é
sensato esperar que nossas visões se alinhem quando são afetadas pelas
contingências de nossas circunstâncias diversas.”
“A avaliação da autoestima como talvez o
principal bem primário enfatizou a grande importância que damos ao modo como os
outros nos consideram. Mas, em uma sociedade bem-organizada, a necessidade de status é satisfeita pelo reconhecimento
público das instituições justas, juntamente com a vida interna plena e diversificada
das várias comunidades de interesses, que as liberdades iguais possibilitam. A
base da autoestima em uma sociedade justa não é, portanto, a renda dos
indivíduos, mas a distribuição publicamente defendida de direitos e liberdades
fundamentais. E, sendo essa distribuição igual, todos têm um status semelhante e garantido quando se
reúnem para conduzir as questões comuns da sociedade num sentido mais amplo.
Ninguém se sente inclinado a buscar, fora da afirmação constitucional da
igualdade, outros meios políticos de garantir o seu status. Por outro lado, os homens também não estão dispostos a
aceitar uma liberdade que fique aquém da igualdade. Em primeiro lugar, isso os
colocaria em desvantagem e enfraqueceria a sua posição política. Também teria o
efeito de estabelecer publicamente a sua inferioridade, definida pela estrutura
básica da sociedade. Essa posição inferior na vida pública seria de fato
humilhante, destruindo a autoestima. E assim, aceitando uma liberdade que não
fosse igual, o indivíduo poderia perder dos dois lados. Isso tenderá a ser
especialmente verdadeiro à medida que a sociedade se tornar mais justa, já que
os direitos iguais e as atitudes públicas de respeito mútuo têm um lugar
essencial, mantendo o equilíbrio político e garantindo aos cidadãos o seu
próprio valor. Assim, enquanto as diferenças sociais e econômicas entre os
vários setores da sociedade, entre os grupos que podemos considerar
incomparáveis entre si, não tendem a gerar animosidades; as dificuldades
resultantes da desigualdade cívica e política, e da discriminação étnica e
cultural, não podem ser facilmente aceitas. Quando é a posição de cidadania
igual que satisfaz a necessidade de status,
a precedência das liberdades iguais é absolutamente necessária. Tendo sido
escolhida uma concepção da justiça que visa à eliminação da importância das
vantagens sociais e econômicas relativas como base para a autoconfiança dos
homens, é essencial que a prioridade da liberdade seja solidamente mantida.
Em uma sociedade bem-ordenada, então, a
autoestima é garantida pela afirmação pública do status de cidadania igual para todos; permite-se que distribuição
de bens materiais tome seu próprio curso, de acordo com a justiça procedimental
pura regulada por instituições básicas justas, que diminuem os limites das
desigualdades, impedindo assim o surgimento da inveja desculpável.”
“O contraste entre uma teoria teleológica e a
doutrina contratualista pode expressar-se da seguinte forma intuitiva: a
primeira define o bem de forma pontual, por exemplo, como uma qualidade ou um
atributo da experiência mais ou menos homogêneo, e o considera como uma
grandeza extensiva, que deve ser maximizada em relação a alguma totalidade; ao
passo que a segunda se move na direção oposta, identificando uma sequência de
formas estruturais cada vez mais específicas de conduta correta, cada uma sendo
abrangida pela forma anterior, e dessa maneira trabalhando a partir de uma
estrutura geral para o todo até chegar a uma determinação cada vez mais
definida de suas partes. O utilitarismo hedonista é o exemplo clássico do
primeiro procedimento, e o ilustra com notável simplicidade. A justiça como
equidade exemplifica a segunda possibilidade. Assim, a sequência de quatro
estágios formula uma sequência de acordos e normas impositivas destinada a
construir, em várias fases, uma estrutura hierárquica de princípios, padrões e
regras, que, quando consistentemente aplicados e obedecidos, conduzem a uma
constituição definida para a ação social.”
“Embora nossa decisão de preservar nosso
sentimento de justiça possa ser racional, podemos no fim sofrer uma perda muito
grande ou até mesmo ser arruinados por ela. Como já vimos, uma pessoa justa não
se dispõe a fazer certas coisas, e portanto, face a circunstâncias malignas,
ela pode decidir arriscar-se a morrer em vez de agir injustamente. Mas embora
seja até verdade que, em nome da justiça, um homem pode perder a sua vida ao
passo que outro continuaria vivendo, o homem justo procede, consideradas todas
as circunstâncias, da forma que mais deseja; nesse sentido, ele não é derrotado
pelo infortúnio cuja possibilidade já estava em suas previsões. A questão é
semelhante à dos riscos do amor; de fato, dela constitui apenas um caso especial.
Aqueles que se amam, ou que criam fortes vínculos com pessoas e formas de vida,
ao mesmo tempo se tornam passíveis de ruína: o seu amor os transforma em reféns
do infortúnio e da injustiça dos outros. Amigos e amantes correm grandes riscos
para se ajudarem mutuamente; e os integrantes de uma família estão dispostos a
fazer o mesmo. Essa disposição faz parte de seus afetos tanto quanto qualquer
outra inclinação. Amando, nos tornamos vulneráveis: é impossível amar e, ao
mesmo tempo, impunemente ponderar se devemos amar ou não. E os melhores amores
não são os que ferem menos. Quando amamos, aceitamos os riscos do sofrimento e
da perda. Em vista de nosso conhecimento genérico do curso provável da vida,
não consideramos que esses riscos sejam tão grandes a ponto de nos fazerem
parar de amar. Se ocorrerem maldades, elas serão objeto de nossa aversão, e
resistiremos àqueles cujas maquinações as causaram. Se estamos amando, não
lamentamos nosso amor. Ora, se essas características se verificam no amor,
sendo o mundo como é, ou como muitas vezes é, então, a fortiori, elas também se verificarão nos amores de uma sociedade
bem-organizada, e também no seu senso de justiça. Pois, em uma sociedade onde
os outros são justos, o nosso amor nos expõe principalmente aos acidentes da
natureza e às contingências das circunstâncias. E o mesmo se aplica ao
sentimento de justiça que se liga a essas afeições. Tomando como ponto de
referência a ponderação de motivos que nos leva a afirmar nosso amor, sendo as
circunstâncias como são, parece que deveríamos estar prontos, a partir da
maioridade, a manter nosso senso de justiça nas condições mais favoráveis de
uma sociedade justa.”
“Portanto, a fim de realizarmos nossa
natureza, não temos outra alternativa a não ser planejar a preservação de nosso
senso de justiça como o fator determinante de nossos outros objetivos. Esse
sentimento não se pode concretizar se estiver vinculado a alguma condição e se
for ponderado em relação a outros objetivos apenas como mais um desejo entre
outros. É um desejo de, acima de tudo, agir de certas maneiras, um esforço que
traz em si sua própria prioridade. Outros objetivos podem ser alcançados
através de um plano que permite um lugar para cada um deles, já que a sua
satisfação é possível independentemente de seu lugar na ordenação. Mas o mesmo
não acontece com o senso do justo e da justiça; e portanto agir de forma errada
sempre tende a gerar sentimentos de culpa e vergonha, emoções causadas pelo
fracasso de nossos sentimentos morais reguladores. Sem dúvida, isso não
significa que a realização de nossa natureza como seres racionais e livres seja
em si mesma uma questão de tudo ou nada. Ao contrário, a medida de nosso
sucesso na expressão de nossa natureza depende da coerência de nossa conduta,
que obedece ao nosso senso de justiça como um elemento definitivamente
regulador. O que não podemos é expressar a nossa natureza seguindo um plano que
considera o senso de justiça apenas como um desejo a ser ponderado em relação a
outros. Pois esse sentimento revela o que a pessoa é, e comprometê-lo não é
alcançar liberdade plena do eu, mas sim ceder às contingências e casualidades
do mundo.”