Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-403-2
Tradução: Rubens Enderle
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 392
Sinopse: Ver Parte
I
(Refere-se ao livro III)
“Marx viu claramente que a consolidação do sistema de crédito tinha
profundas consequências para o “capital comum da classe”, como já havia
afirmado no capítulo 22 e na introdução geral ao capital comercial. Eu não
saberia enfatizar o suficiente essa ideia. Ela reposiciona a circulação do
capital monetário como uma espécie de sistema nervoso central que orienta os
fluxos de capital que reproduzem o capital em geral. Além disso, implica uma socialização
do capital que sinaliza uma mudança radical em seu caráter. Empresas de capital
aberto, por exemplo, facilitam o surgimento de capitais coletivos e associados
que, por um lado, permitem uma vasta extensão na escala, abrangência e forma
dos empreendimentos capitalistas e, por outro, abrem caminho para um mercado
mundial no qual o trabalho associado e os direitos de propriedade coletiva
seriam cada vez mais comuns. Marx pensava até que as empresas de capital
aberto, em razão de seu caráter associativo, poderiam tornar-se a base para uma
transição para um modo de produção não capitalista. Hoje, isso parece estranho,
se não absolutamente equivocado, mas na época havia razões interessantes para
se considerar tal possibilidade.
As possibilidades
positivas e negativas inerentes ao advento do sistema de crédito capitalista
estavam incorporadas, diz Marx, na pessoa do banqueiro francês Isaac Péreire,
que possuía “o agradável caráter misto de vigarista e profeta” (C3, 573). Por
isso, peço permissão para fazer uma pequena digressão (como Marx faz no
capítulo 36) sobre esse “caráter”.
Os
irmãos Péreire – Isaac e Émile – se formaram no espírito do utopismo
saint-simoniano da França dos anos 1830 e, durante o Segundo Império
(1852-1870), puseram algumas dessas ideias utópicas em prática, em especial as
que diziam respeito ao poder dos capitais associados. Saint-Simon (1760-1825) –
cujo “gênio e mente enciclopédica” Marx admirava muito, segundo Engels (C3,
740) – procurou aconselhar o rei. Enviou-lhe muitas cartas sugerindo maneiras
de melhorar a vida coletiva e evitar aquelas mudanças violentas ilustradas
pelas Revolução Francesa, cujos excessos Saint-Simon julgava repugnantes. Ele
foi provavelmente um dos primeiros pensadores a propor algo semelhante ao que
hoje seria a União Europeia. Se alguém tivesse lhe dado ouvidos, duas guerras
mundiais poderiam ter sido evitadas. Ele propôs formas racionais e
representativas de governo que legislariam em benefício de todas as classes,
sob um comando monárquico benevolente. Enfatizou também a importância da
conciliação de capital e trabalho (que incluía artesãos e empresários
capitalistas) para realizar projetos e obras públicas de larga escala (e, em
certa medida, planejados) que contribuiriam para o bem-estar de todos. Para
isso, era necessário que as pequenas quantidades de capital monetário,
dispersas na sociedade, fossem reunidas numa forma associada.
Luís
Bonaparte, que se autoproclamou imperador em 1852 após um golpe de Estado em
1851, era fã das ideias de Saint-Simon, tendo sido chamado muitas vezes de
“Saint-Simon a cavalo”. Luís concebeu projetos de grande escala para pôr em
movimento o capital e o trabalho não empregados após o crash e os
movimentos revolucionários de 1848. Os irmãos Péreire desempenharam um importante
papel nisso. Eles criaram novas instituições de crédito e juntaram pequenas
quantidades de capital nas formas associadas que Saint-Simon defendia e, assim,
acabaram dominando o mundo das finanças no Segundo Império. Controlando as cédulas
de crédito, eles participaram ativamente da grande missão de Haussmann de
absorver o capital e o trabalho excedentes mediante a reconstrução e a
transformação de Paris. Construíram edifícios residenciais e novas lojas de
departamentos, ao mesmo tempo que monopolizaram os serviços públicos (como a
iluminação a gás) e as novas estruturas de transporte e comunicação da cidade.
Mas o boom dos anos 1850 e início dos anos 1860, assim como a lendária
rivalidade entre os Péreires e a conservadora casa bancária dos Rothschilds (tema
principal do romance O dinheiro, de Zola), chegaram ao fim com o colapso
financeiro de 1867, que destruiu o império do crédito especulativo dos
Péreires. É bem possível que Marx tivesse essa rivalidade em mente quando
escreveu:
O sistema monetário é essencialmente católico, e
o sistema de crédito, essencialmente protestante. “Os escoceses odeiam o
dinheiro.” Como dinheiro, a existência monetária das mercadorias tem uma
existência puramente social. É a fé que traz a salvação. A fé no valor
monetário como espírito imanente das mercadorias, fé no modo de produção e sua
disposição predestinada, fé nos agentes individuais de produção como mera
personificação do capital que se autovaloriza. Mas o sistema de crédito não é
mais emancipado do sistema monetário como base do que o protestantismo das
bases do catolicismo. (C3, 727)
Rothschild
(sendo judeu) acreditava no “catolicismo” do ouro como base monetária, ao passo
que os Péreires (também judeus) depositavam sua fé no papel. Quando veio o colapso,
o papel se mostrou sem valor, ao passo que o ouro jamais perdeu o brilho, e até
cintilou mais hipnoticamente do que nunca.
A
tensão entre cédulas de crédito e mercadorias-dinheiro (como o ouro) é
onipresente nesses capítulos. Marx trata explicitamente dessa questão bem mais
adiante, no meio de um capítulo bastante vago sobre o metal precioso e a taxa
de câmbio:
É precisamente o desenvolvimento do sistema de
crédito e bancário que, por um lado, procura pôr todo o capital monetário a
serviço da produção, enquanto, por outro, reduz a um mínimo a reserva de metal
numa dada fase do ciclo, no qual ele não pode mais desempenhar as funções que
lhe são delegadas – é esse elaborado sistema de crédito e bancário que torna
supersensível o organismo inteiro.
Por meio
da garantia de conversibilidade das notas bancárias, a reserva de metal
funciona “como o eixo de todo o sistema de crédito”. A estrutura que surge é a
seguinte:
o banco central é o pivô do sistema de crédito.
E a reserva de metal é, por sua vez, o pivô do banco. A mutação do sistema de
crédito em sistema monetário é necessária [...]. Uma certa quantidade de metal,
insignificante em comparação com a produção total, é reconhecidamente o pivô do
sistema. Por isso, abstraindo da terrível exemplificação desse seu caráter de
pivô nas crises, o que se tem é esse belo dualismo teórico. (C3, 706)
Se
mesmo a pretensão de uma base de metal ou de mercadoria para o sistema de
crédito e monetário global foi abandonada no começo dos anos 1970 (embora os
chamados “gold bugs”, que defendem o retorno ao padrão-ouro, ainda sejam
abundantes), a ideia de uma estrutura hierárquica de pivôs (cuja centro seria o
dólar americano) para o sistema financeiro global ainda parece uma concepção
apropriada. É mais verdadeiro hoje do que na época de Marx que:
o crédito, sendo [...] uma forma social de
riqueza, desloca o dinheiro e usurpa sua posição. É a confiança no caráter
social da produção que faz com que a forma-dinheiro dos produtos apareça como
algo meramente evanescente e ideal, como uma mera noção. Mas tão logo o crédito
é abalado, e essa é uma fase regular e necessária no ciclo da indústria
moderna, supõe-se que toda riqueza real é efetiva e repentinamente transformada
em dinheiro, em ouro e prata – uma demanda insana, mas que surge
necessariamente do próprio sistema. E o ouro e a prata necessários para
satisfazer essa imensa demanda atingem o valor de alguns milhões no cofre do
banco. (C3, 708)
Mas
antes Marx apresenta um tratamento ainda mais rico dessas relações: “Faz parte
das bases da produção capitalista o fato de que o dinheiro confronta as
mercadorias como uma forma autônoma de valor, ou que o valor de troca precisa
ter uma forma autônoma em dinheiro”. A mercadoria-dinheiro, como equivalente
universal, é essa forma autônoma. O que ocorre quando a moeda de crédito e as
operações de crédito substituem a mercadoria-dinheiro?
Em épocas de pressão, quando o crédito se retrai
ou seca completamente, o dinheiro confronta-se absolutamente com as mercadorias
como o único meio de pagamento e a verdadeira existência do valor. Daí a
desvalorização geral das mercadorias, a dificuldade e até a impossibilidade de
transformá-las em dinheiro, isto é, em sua própria forma puramente fantástica.
A
alusão à teoria do fetichismo é inequívoca. Em segundo lugar, “a própria moeda
de crédito só é dinheiro na medida em que representa absolutamente dinheiro
real”. Com a evasão de moeda para o exterior, a conversibilidade do crédito em
dinheiro “torna-se problemática”:
Por isso, são necessárias medidas coercitivas, o
aumento da taxa de juro etc. a fim de garantir [...] a conversibilidade [...].
Uma desvalorização da moeda de crédito (para não falar de uma completa perda de
seu caráter monetário, que é, de resto, puramente imaginário) destruiria todas
as relações existentes. O valor das mercadorias é assim sacrificado para
assegurar a existência fantástica e autônoma desse valor em dinheiro. [...]
Essa é a razão por que mercadorias no valor de muitos milhões precisam ser
sacrificadas por alguns milhões em dinheiro. Isso é inevitável na produção
capitalista, e constitui uma de suas belezas. [...] Enquanto o caráter social
do trabalho aparece como a existência monetária da mercadoria e, por
conseguinte, fora da produção real, as crises monetárias, independentemente das
crises reais ou como uma intensificação destas últimas, são inevitáveis. (C3,
648-9)
Foi
isso que aconteceu na depressão de 1930? E essa é a “inevitabilidade” que o
keynesianismo se esforçou para corrigir?
Embora
essa tensão entre crédito e dinheiro “real” já tivesse sido há muito tempo
identificada:
é apenas com esse sistema que surge a forma mais
notável e grotesca dessa contradição e desse paradoxo absurdo, porque (1) no
sistema capitalista a produção para o valor de uso direto, para o próprio uso
do produtor, é abolida quase completamente, de modo que a riqueza existe apenas
como um processo social expresso como o entrelaçamento da produção e da
circulação; e (2) porque, com o desenvolvimento do sistema de crédito, a
produção capitalista se esforça constantemente para superar essa barreira
metálica – barreira que é tanto material como imaginária – à riqueza e ao seu
movimento, porém volta sempre a bater a cabeça contra ela. (C3, 707-8)
Assim,
a forma das mercadorias-dinheiro é um obstáculo à expansão que as moedas de
crédito superam e evitam, mas em certo ponto a qualidade e a confiabilidade das
moedas de crédito podem ser validadas apenas por sua capacidade de troca por
mercadorias-dinheiro.
Uma
das coisas mais difíceis para todos os analistas (inclusive Marx) é a
compreensão da diferença entre a riqueza que circula no sistema financeiro e
de crédito e a produção de riqueza supostamente “real”. A relação entre Wall
Street e Main Street (ou, como dizem os ingleses, entre a City e a High Street)
intriga a todos. Os argumentos habituais sobre o que fazer com o euro são uma
excelente demonstração das confusões reinantes. O que Marx sugere é que um
sistema monetário baseado puramente em mercadorias-dinheiro age como uma barreira
ao avanço da acumulação do capital, porque há uma quantidade limitada de
dinheiro à disposição. Há um perigo claro e constante daquilo que hoje chamamos
de “repressão financeira”, que ocorre quando não há dinheiro suficiente (de
nenhum tipo) para fazer circular o volume crescente de mercadorias que são
produzidas à medida que avança a acumulação do capital. As moedas de crédito se
tornam, portanto, não só necessárias, mas cruciais para a expansão contínua do
capitalismo. À primeira vista, há elementos que sugerem (embora, pelo que sei,
isso nunca tenha sido estudado empiricamente) que a história da acumulação do
capital tenha acontecido paralelamente a uma acumulação de moedas de crédito e
dívidas concomitantes. Apenas desse modo o capital pode ser acumulado
“ilimitadamente”. Mas se a acumulação do capital depende de uma acumulação
paralela de moedas de crédito e instrumentos de crédito, então ela produz
necessariamente um monstro fetichista à sua imagem e semelhança, baseado na fé,
na confiança e na expectativa, e que periodicamente escapa do controle. As
moedas de crédito não substituem, simplesmente, a moeda metálica: elas colocam
o sistema monetário e a concepção de moeda num plano totalmente novo, que mais
abrange do que elimina os fetichismos implícitos no sistema de crédito. Crédito
“espuma”, bolhas de ativos, booms e colapsos especulativos são o preço
que o capital tem de pagar por se libertar temporariamente das restrições da
mercadoria-dinheiro.
Essas
restrições, no entanto, reaparecem em fases de crise. O volume das obrigações
de crédito ultrapassa periodicamente o da produção real de valor (mas esta pode
ser medida); então, as mercadorias-dinheiro (as representantes do valor), no
curso de uma crise financeira, fazem a insanidade das moedas de crédito cair na
realidade. Essa é a disciplina da moeda forte real, que conecta Wall Street a
Main Street. É o “catolicismo” da base monetária em ação. A propósito, a
referência religiosa reflete a longa proscrição dos juros pela Igreja católica
(regra que continua válida na lei islâmica, e que a Igreja católica abandonou
apenas no século XIX). A famosa distinção de Martinho Lutero entre os males da
usura e a legitimidade de uma taxa de juros “justa” foi essencial para o
movimento protestante romper com Roma.
O que
é tão crucial no sistema de crédito é sua capacidade de ultrapassar qualquer
barreira monetária à acumulação e lançar-se num mundo de crescimento ilimitado.
Existem possibilidades ilimitadas de criação de papel-moeda (cédulas de
crédito). Foi o que aconteceu na bolha imobiliária de 2001 nos Estados Unidos.
Os preços estavam subindo, e todo mundo estava tirando vantagem dos valores
crescentes dos ativos imobiliários – e, quanto mais se tirava vantagem, mais os
preços subiam. Os imóveis funcionavam como caixas automáticos, sem limite de saque,
até que as pessoas se deram conta de que o preço dos imóveis havia subido muito
acima da renda. E houve o crash. Aconteceu a mesma coisa no boom
fundiário do Japão, nos anos 1980. Quando há um crash, a liquidez dos
proprietários (disposição de moeda forte real) é a única coisa que importa. Na
medida em que essa liquidez é insuficiente, as execuções hipotecárias, as
perdas e as desvalorizações de ativos vão se acumulando.
Que
importância geral isso tem hoje em dia? A base metálica do sistema monetário
mundial foi formalmente abandonada no início dos anos 1970. Isso parece tornar
o pensamento de Marx irrelevante. Ele não disse que o “dinheiro, na forma de
metal precioso, permanece a base da qual o sistema de crédito jamais
pode se libertar”? O ouro ainda cumpre um papel residual importante, é claro.
Quando a fé no papel-moeda e na moeda de crédito é abalada, surgem preços em
ouro, como se viu nos últimos anos. Uma minoria ainda sente que o ouro é a
maneira mais segura de acumular valores monetários reais. Hoje, existe uma
abundância de anúncios sobre a segurança dos investimentos em ouro. Talvez haja
alguma verdade nisso (e nós nos odiaremos se não tivermos investido em ouro caso
seu preço triplique nos próximos cinco anos!). Mas há pouca probabilidade de
retornarmos ao padrão-ouro. A sabedoria convencional diz que isso seria um
desastre para a expansão contínua do mercado mundial, e mergulharia o mundo
numa depressão permanente. A economia mundial situa-se no plano da economia de
crédito, e não pode abandoná-lo.
Mas
se o “pivô” metálico do sistema monetário desaparece, o que o substitui? A
resposta são os bancos centrais mundiais, combinados com as autoridades
reguladoras estatais (um “nexo Estado-finanças”, como eu o chamo). Juntos, eles
formam o “pivô” do sistema monetário e de crédito global. Para Marx, esse pivô
era o Banco da Inglaterra; para nós, é o Federal Reserve Bank dos Estados
Unidos (juntamente com o Tesouro norte-americano) e os outros bancos centrais e
autoridades reguladoras, como as da Inglaterra, do Japão e da União Europeia. O
resultado, no entanto, é a substituição de um mecanismo regulador que se baseia
na produção de mercadorias reais (ouro e prata) por uma instituição humana. O
julgamento humano é a única disciplina exercida sobre a criação de crédito. Mas
essa instituição humana faz a coisa certa? O foco principal tem de ser, então,
como os bancos centrais são estruturados e regulados, e como são formuladas
políticas dentro do aparato estatal para lidar com os excessos periódicos que ocorrem
nesse sistema de crédito.
Se o
banco central e as autoridades reguladoras são mal estruturados, ou se baseiam
numa teoria econômica errônea (como o monetarismo), a política pode se implicar
profundamente nos processos de formação e/ou resolução de crises. Muitos
consideram que a política do banco central teve um papel importante na
exacerbação da grande depressão de 1930 (como a desastrosa decisão de Winston
Churchill, quando era ministro das Finanças, de reinstituir o padrão-ouro na
Inglaterra em 1920). Hoje, muitos dizem que as políticas de Bernanke estão
conduzindo os Estados Unidos numa direção totalmente errada, e que o período em
que Alan Greenspan esteve no comando do Federal Reserve, que na época parecia
tão maravilhoso, teve um papel importante no crash devastador de
2007-2008. É claro que, hoje, investiga-se amplamente a ideia de que uma falha
regulatória tenha afetado os acontecimentos recentes, e alguns consideram que
uma melhor estrutura regulatória seria uma resposta importante à crise dos
Estados Unidos, e mesmo do mundo. Mas de que nos serve um Banco Central Europeu
que se encarrega de manter a inflação sob controle, sem nenhuma consideração
pelo desemprego, e que consequentemente parece paralisado diante da resposta
que deve dar à crise da dívida grega, sem promover uma austeridade debilitante
e cada vez mais profunda? As instituições humanas são falíveis e sujeitas a
todo tipo de força social e opinião conflituosa. Elas criam um mecanismo
regulatório muito distinto daquele que prevalece quando as mercadorias-dinheiro
ainda operavam como o pivô no qual a política do banco central tinha de girar.
Mesmo
na época de Marx, a falibilidade das instituições financeiras e suas políticas
tiveram um papel importante. Marx cita como principal exemplo o “equivocado”
Bank Act britânico de 1844. Essa legislação dividia o Banco da Inglaterra em
“um Departamento de Emissão e um Departamento Bancário” (C3, 688). O primeiro
se ocupava dos títulos da dívida pública e da reserva de metais, e emitia
papel-moeda lastreado nessas reservas. Ele emitia notas (que eram muito mais
convenientes para propósitos de comércio) em troca de ouro e, em contrapartida,
as cédulas prometiam “pagar ao portador” em ouro, se necessário (nas notas
inglesas, essa promessa de pagamento ao portador ainda pode ser encontrada).
Desse modo, eu poderia levar a qualquer momento as notas ao banco e receber de
volta o valor equivalente em ouro. As cédulas eram, em suma, “conversíveis”. (A
suspensão da conversibilidade foi, portanto, uma opção política e, de fato, já
havia ocorrido na Inglaterra em dado momento durante as Guerras Napoleônicas.)
A outra parte do banco descontava as letras de câmbio, expedia cheques, emitia
títulos e atuava em negócios bancários convencionais. A legislação de 1844
criou uma barreira de proteção entre essas duas partes, mas em 1848 uma crise
de confiança atingiu a última delas. Houve uma corrida aos bancos, à medida que
as pessoas perdiam a confiança no papel comercial e nos títulos públicos.
O
Departamento Bancário sofreu uma escassez de ouro, enquanto o Departamento de
Emissão era inundado com esse metal:
A separação do banco em dois departamentos
independentes retirou o poder dos diretores de dispor livremente da totalidade
de seus meios disponíveis em momentos decisivos, de modo que podiam ocorrer
situações em que o Departamento Bancário se defrontava com a falência e, ao
mesmo tempo, o Departamento de Emissão dispunha de muitos milhões em ouro
[...]. E assim o Bank Act de 1844 empurrou todo o mundo do comércio à erupção
de uma crise, retirando da circulação um estoque de notas bancárias e, com
isso, acelerando e intensificando a crise. E por meio dessa intensificação da
demanda por acomodação monetária [...] ele leva a taxa de juros em tempos de
crise a um nível até então inédito.
O
paralelo com o que aconteceu com a taxa de juro sobre os títulos gregos na
crise de 2011 é notável:
Assim, em vez de eliminar as crises, [o Banco da
Inglaterra] as intensifica a ponto de ruir ou o mundo inteiro da indústria, ou
o Bank Act. Em duas ocasiões, 25 de outubro de 1847 e 12 de novembro de 1857, a
crise atingiu seu pico; então o governo, suspendendo o Act de 1844, liberou o
banco da restrição sobre a emissão de notas e, em ambas as ocasiões, isso foi
suficiente para deter a crise. (C3, 689)
Não
entendo que, nessa passagem, Marx esteja dizendo que o Bank Act de 1844 foi a
causa de uma crise, e sim que ele serviu para intensificar e acelerar uma crise
que surgiu por outras razões (quais eram Marx não diz). Mas que tipo de arranjo
institucional é esse que não pode responder de maneira adequada à inevitabilidade
de crises periódicas? Essa foi, certamente, a pergunta fundamental feita ao
Banco Central Europeu durante as crises de dívida em que afundaram não só
Grécia, mas também Irlanda, Portugal, Espanha e Itália ao longo de 2001.
Descrever o Bank Act de 1844 como “equivocado” é inferir que Marx acreditava na
possibilidade de um Bank Act que não exacerbasse crises. Instituições bancárias
e de crédito poderiam ser suficientemente flexíveis para acomodar variações na
produção e nos preços e, ainda mais importante, nos sentimentos dos
investidores. Mas seria possível criar instituições financeiras que pudessem
deter as contradições que estão na base da formação da crise? Para os
keynesianos, esse era o Santo Graal da política pública. Marx acreditava que
isso não era possível. “Leis bancárias ignorantes e confusas, como aquelas de
1844-1845, podem intensificar a crise monetária. Mas nenhuma legislação
bancária pode abolir as crises” (C3, 621).”
“Qual é o sentido, então, do abandono completo e formal do lastro da
moeda de crédito nas mercadorias-dinheiro a partir do início dos anos 1970
(essa medida já havia sido informalmente aplicada pelas políticas keynesianas
após os anos 1930)? É difícil dizer qual seria a posição de Marx diante desses
eventos contemporâneos. Certamente, ele teria se alinhado muito mais aos keynesianos
do que aos monetaristas (pois critica reiteradamente a teoria quantitativa da
moeda tal como foi desenvolvida por Ricardo). Mas não penso que ele acreditasse
que as tendências de crise do capitalismo pudessem ser contidas, muito menos
superadas, por reformas financeiras. Creio que uma leitura cuidadosa desses
capítulos sustenta tal ponto de vista. É importante colocar essas questões aqui
porque, com a análise do crédito, Marx parece conduzir seu conceito de capital
a uma dimensão radicalmente diferente.
A
loucura evidente, ainda que periódica, que toma conta do sistema financeiro
leva à questão: por que diabos uma sociedade tolera isso? A resposta de Marx é
muito clara. O crédito é absolutamente essencial quando se trata de acomodar em
termos monetários o estímulo expansionista da acumulação perpétua de capital. A
barreira constituída pela base metálica (e por notas conversíveis em ouro) tem
de ser superada, uma vez que a quantidade de ouro e de prata não só é
inadequada, porque relativamente inflexível em relação a flutuações na produção
de mercadorias, como é insuficiente, porque finita. Além do mais, o caráter
especulativo de todas as formas de investimento de capital (que pressupõe que a
expansão na forma de mais mais-valor será produzida ao final do dia) está
inelutavelmente embutido na circulação de capital monetário portador de juros.
E, como vimos repetidas vezes ao longo do Livro II de O capital, os
caprichos dos tempos distintos de curso (do capital fixo, em particular) só
podem ser acomodados por meio de um sistema de crédito ativo; a liberação de
“capital morto” de tesouros que seriam utilizados de outra maneira desempenha
um papel crítico, acelerando a acumulação, ao invés de retardá-la. (...)
Superficialmente,
o sistema de crédito parece ser sem lei, caótico e descontrolado em sua
capacidade de incubar febres especulativas e colapsos periódicos. Isso era
esperado, porque o juro, na linguagem dos Grundrisse,
é uma particularidade, e é regulado (se é, de fato) por outras particularidades
– especialmente, como vimos, pela oferta e pela demanda de capital monetário,
além da competição entre diferentes frações do capital. Ele se restringe,
portanto, a ser acidental, sem lei e conjuntural. Ele também depende da fé. A
psicologia disso tudo, como Keynes tratará de enfatizar (e Zola descreve de
modo brilhante), torna-se crucial. Para Marx, no entanto, essa questão se
coloca de maneira bem diferente. Ele pergunta como os capitais e os
capitalistas poderiam funcionar se ficassem presos aos fetichismos inerentes às
formas superficiais do capital. Uma vez que se perdem no labirinto de seus
próprios construtos fetichistas, como podem os capitalistas identificar as
raízes de seus dilemas e, mais ainda, encontrar uma saída? Essa é, suspeito eu,
a “confusão” que Marx queria apresentar. Desvendá-la depende de uma compreensão
mais profunda da categoria de capital fictício, da qual tratarei brevemente.
Marx
também sugere que a tendência à superprodução e superacumulação de capital – ou
aquilo a que ele mais tarde se refere como uma “pletora” de capital –,
anteriormente identificada com traços fundamentais das leis gerais do movimento
do capital, atua como um gatilho, ou mesmo como causa subjacente das crises de
confiança que periodicamente abalam o sistema de crédito. O “catolicismo” da
base monetária, no qual o valor real é representado pela mercadoria-dinheiro
(ouro e prata), é considerado por Marx o teste decisivo de realidade imposto às
febres especulativas. Assim, mesmo quando as mercadorias-dinheiro – os metais
preciosos – são desobrigadas de seu papel mediador como representações de
valor, Marx dificilmente concordaria em tirar do valor seu papel central como
árbitro das leis de movimento do capital. A questão da relação entre os poderes
imateriais – porém objetivos – do valor e as eflorescências do sistema de
crédito passa então para o primeiro plano da preocupação teórica.
Embora
não apresente respostas definitivas, Marx tem insights nesses capítulos
que poderiam ser elaborados subsequentemente. Entre eles, destaca-se o papel
das formas fictícias e especulativas de capital na configuração (“disrupção”
seria o termo mais adequado) das leis efetivas de movimento da acumulação do
capital, em oposição às leis gerais desse movimento. Mas as relações entre Wall
Street e Main Street são hoje tão opacas e controversas quanto na época de
Marx.”
“O que Marx procura é uma espécie de
radiografia dessa natureza interna que elucide como e por que a loucura
contraditória do sistema de crédito tem necessariamente de ser engendrada. O
que explica o fato de que as contradições fundamentais e subjacentes do capital
assumem sempre a forma de crises financeiras e comerciais? Para esclarecer
isso, ele exclui o sistema de crédito e a circulação de capital portador de
juros do estudo da acumulação e da circulação do capital no Livro II, tentando
compreender o que há na circulação e na acumulação do capital que torna tão
necessários o crédito e o funcionamento “autônomo e independente” do capital
monetário. Com base no Livro II, em suma, temos de entender por que o capital
não pode existir sem um sistema de crédito, por que uma acumulação de riqueza é
necessariamente acompanhada de uma acumulação de dívidas e por que a
contradição fundamental entre valor e sua representação monetária internaliza a
não equivalência infinita e necessária entre oferta e demanda no interior de um
sistema capitalista de produção de mais-valor.”