segunda-feira, 30 de maio de 2016

A violoncelista, de Michael Krüger

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3590-241-9

Tradução: Sergio Tellaroli

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 216

Sinopse: Aos cinquenta anos de idade, um músico erudito alemão tem um grande projeto: escrever uma ópera baseada na obra do poeta russo Ossip Mandelstam (1891-1938). Dinheiro não é problema, pois há tempos ele se dedica também a compor trilhas sonoras para seriados policiais de televisão. A música erudita contemporânea não lhe trouxe reconhecimento de público ou crítica, mas os seriados de TV garantiram-lhe fama, fortuna e estabilidade.

A calmaria de sua vida, porém, está prestes a ser abalada. Judit, a filha de 23 anos de Maria, uma ex-namorada húngara, bate à sua porta em Munique, onde pretende concluir os estudos de violoncelo.

Seduzido pela réplica perfeita de Maria, o músico é atormentado pelo desdém que ela demonstra por sua obra e pelas novas regras cotidianas impostas pela garota. Um ciúme doentio de Judit toma conta do seu dia-a-dia. É em torno desse estranho triângulo amoroso que se desenvolve a história contada em A violoncelista.

Michael Krüger explora com maestria o lado cômico desse imbróglio, ao mesmo tempo em que o emprega como pretexto para passar em revista os ideais políticos e artísticos da conturbada segunda metade do século XX.




“Começara a suar, pois era-me embaraçoso importunar homem tão importante, e tão completamente exausto da longa viagem, com meus farrapos de uma língua que apenas de longe, e somente pela melodia, lembrava o italiano, mas o escritor pareceu-me tão absorto no planejamento das horas restantes até o recital que não teve tempo de dedicar atenção àquele meu embaraço. Curiosa criatura. Ao contrário dos colegas alemães e do próprio Günter – de quem eu obtivera todos os detalhes sobre a vida do italiano –, ele parecia não se preocupar muito com sua obra. Odiava aparições, odiava recitais, jamais comparecia a homenagens se demandavam dele algum discurso, e recusava premiações. Tinha mais de sessenta anos e morava ainda com a mãe numa casa atrás do panteão. Ela cerzia suas meias, punha suas cartas no correio e atendia o telefone, lamentando que o filho – de pé e trêmulo ao seu lado – não estivesse em casa. Dormiam em quartos separados, mas sempre de porta aberta. Eu o considerava um grande humorista, um Gogol italiano; ele se via como um grande autor trágico, o que, afinal, prolongando as duas linhas o bastante, dava no mesmo.”

 

 

“Muitas vidas são consumidas para que uma dê certo, disse-me ele: aqui na Hungria, cem para uma.”

 

 

“Enquanto pensava numa boa razão para partir pela quarta vez à procura do edifício, um cão se juntou a mim, jovem e sarnento; as orelhas, apartadas de um modo singular, pareciam ter sido parafusadas dos dois lados da cabeça; um cão que evidentemente desejava tomar parte de meu destino. É certo que ele mantinha um olho na cestinha contendo o jantar, por entre cujas malhas largas entrevia-se o papel pardo de embrulho que envolvia não apenas o peixe e os legumes, mas também a linguiça que eu comprara para o ulterior café da manhã; mas seu outro olho, ou assim acreditei, apreendera meu problema: sua escura amizade dirigia-se apenas a mim, o soturno ascético. Como estivéssemos defronte à casa de Lukács, chamei-o György, o que pareceu tê-lo agradado, pois ele se pôs de imediato a abanar amistoso as orelhas estropiadas. Enquanto eu o alimentava com pedacinhos de linguiças que, apoiados nas patas traseiras e feito um aluno aplicado, ele deglutia sem fazer nenhum movimento reconhecível de mastigação, György contou-me sua terrível história, que, a despeito de todo o exagero de que somente um cão vadio é capaz, me agradou de tal maneira que não me restou alternativa senão lançar-lhe ainda goela abaixo a última pontinha de linguiça. Você está exagerando, György, disse eu, depois de ele haver afirmado conhecer cada gato-pingado daquele nobre bairro. Todo cachorro húngaro exagera, na hora decisiva da linguiça, mas seus exageros são desmedidos.”

 

 

“E, quando eu tentava me concentrar para, depois de todos os desaforos daquela noite, encontrar o sono, ali estava ela, sentada na beirada da cama, como que trazida pelo vento.

Você já está dormindo?, perguntou.

Não, respondi, estou pensando.

E no que pensa um homem à meia-noite?

Em nada.

Você é budista, para conseguir não pensar em nada?

Não, rebati, sou um cristão apaixonado pelo cansaço, perguntando-se que pecados cometeu para que a filha de vinte e dois anos de uma amiga húngara o atormente desta maneira.

Eu apenas disse a verdade, respondeu ela. E Maria concorda comigo. Disse que eu tenho de ficar de olho em você, do contrário você se arruína sozinho. Você precisa compor.

E como é que eu posso compor, Judit, se, de manhã até a tarde, tenho de ficar cavando jardim, pintando janelas, construindo poço e me deixando insultar?

Em Munique, você já não compunha. Ficava o dia inteiro sentado entre os livros, fazendo nada – essa é a verdade.

A verdade não existe, disse eu: pelo menos é o que dizem os inúteis dos livros!

Se seus livros dizem um absurdo desses, melhor não lê-los. É claro que existe a verdade da arte!

Muito bem, respondi cansado, mas ela se esconde atrás de muitas máscaras, e ninguém sabe quais.

Então, é seu dever atraí-la para fora. Com sua música.”

 

 

“Não era desagradável estar sozinho de novo. Desaparecem os afazeres que surgem quando duas ou mais pessoas vivem juntas, silenciam os chamados em voz alta, o ruído de passos, as eternas perguntas e admoestações. Eu trabalhava, alimentava os animais, saía para passear. Quando alguém é obrigado a providenciar seus próprios passatempos, ocorre-lhe coisas que não vêm à tona em meio a um grupo de pessoas. Muitos preferem buscar companhia, outros suportam bem a vida de cônjuge, e outros, ainda, encontram prazer em sentar-se ao lado das demais pessoas em jogos de futebol ou apresentações teatrais. Há aqueles que acham perfeitamente natural exercer seu domínio sobre os outros. E há aqueles que precisam ajudar os outros o tempo todo. Somente poucos, porém, são capazes de ficar sozinhos de fato. E, sendo eles tão poucos, são alvos de suspeita.”

terça-feira, 24 de maio de 2016

Tudo que você não soube – Fernanda Young

Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-00-0220-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136
Sinopse: Alguém que comete um ato monstruoso é necessariamente um monstro? Início da década de 1980, a era dos yuppies e da geração new wave. Uma personagem principal, sem nome, disposta a contar tudo que o pai, à beira da morte, não sabia sobre a vida dela. Até os seus piores pecados.



“Mas um livro é um livro. Precisa ser entendido como um todo, mas apreciado por partes.”


“Pois bem, pai, esse é um exemplo do quanto esse empreendimento é complicado. Refiro-me a contar minha vida para você. Se o faço, é porque me é uma necessidade; não de expurgar ou de esclarecer algo em mim mesma; não, não é com o pensamento voltado à ilusão “cabeça” da autoanálise que me esmero nessas páginas; mas porque você está morrendo e não me conhece. E eu faço questão de que vá para o inferno sabendo como foi paga sua passagem. Foi com isso que me tornei, por sua culpa, uma pessoa que se sente insuportavelmente sozinha o tempo todo. Posso me cercar por multidões, pulando carnaval, que morro de solidão ali no meio. Não há companhia, ou emoção coletiva, ou comoção nacional, que me livre de estar só. Festas acontecem ao meu redor, sem que eu nunca me estabeleça como integrante. Pelo contrário, odeio quietinha todas elas, as festas, porque não suporto qualquer manifestação de felicidade. Odeio férias, odeio os feriados, odeio mesas grandes em pizzarias. Detesto Natal, tenho raiva do verão, fujo de aniversários. Tudo isso, paizinho, eu devo a você.”


“Com certeza eu não me permitiria o vexame de tentar provar nada para os meus filhos.”


“Odeio sonhar por causa disso: nós vemos como estamos internamente. Não dá para disfarçar diante de um sonho. Através das mudanças dos delírios sem nexo, revelamos uma radiografia das nossas partes internas, implacável, em que cada mancha, mesmo após mil lavagens, pode ser detectada, gritante, no lençol que encobre as nossas verdades.”


“A mais cruel das rejeições é a de mãe e pai.”


“Um imbecil letrado é algo dantesco. Mil vezes os imbecis ignorantes, mil vezes os analfabetos.”


“Todo segredo requer mentiras.”


“– Eu acho que perdão precisa ser pronunciado: perdão – disse a mulher.
– Não concordo, acho até meio ridículo esse negócio do perdão em voz alta. O gesto do perdão é maior do que um papo-cabeça. Um perdão num diálogo pode ser mais falso do que um perdão insinuado. Há, nessas conversas, uma grande dose de teatro. A dramaturgia do leito de morte, principalmente, de um pai distante, tende a ser cínica e mentirosa.
– Eu te conheço e sei que você não gosta de conversas dessa ordem, que nós chamamos de debater relação.
– Nada a ver.
– Tudo a ver. Você evita conversas intensas, sempre evitou. Não creio que faça isto por frieza, mas por total constrangimento. Somos casados há anos e todas as nossas crises foram resolvidas no silêncio. Silêncio que pode até ser menos vexaminoso, mas nos deixa sempre à beira de um abismo. Que existe, mas que a gente contorna. Até que um dia tropeçamos nesta elegância do não-debate e caímos lá embaixo. Então eu pergunto: para que nos terá servido a intimidade? Para nada. Porque não fomos capazes de nos expor.
– O teatro tem o seu valor.
– Tem, os diálogos têm a sua verdade, mesmo que os termos desta psicanálise de revista feminina nos tornem, todos, personagens ridículos.
O marido olhou para mim, como quem diz: “pirou”. Notei que seu rosto estava mais vermelho do que deveria estar. Pensei em pegar a minha bolsa e deixá-los ali, com suas misérias, indo resolver as minhas. Devo confessar que concordo com ela, mas sou como ele: acho um saco certas sentimentalidades. Nesses debates, estilo sincerão, o que mais me irrita é que todo mundo tem razão. Então, resolvi dizer isso:
– Eu acho que todo mundo tem razão. Este é o ponto que torna a discussão infundada. Não a de vocês, todas. Acho até que nunca participei de uma conversa tão sensata quanto esta, mesmo porque me identifico com ambas as partes. O que comprova que nada disso faz sentido. Se eu conversasse com meu marido, ou melhor, ex-marido, nós dois estaríamos certos. Ele, em ir, eu, em odiá-lo por ir. É isto que me desanima.
– E se nós dois tivéssemos conversado, todas as vezes que estivemos à beira de algum abismo, é bem provável que um de nós já tivesse empurrado o outro lá embaixo.
– Discordo. Eu não sou uma maluca que quer ficar debatendo cada sensação conflitante. Mas nós passamos por coisas sérias, que se tornaram maiores, porque não foram excretadas da nossa mente. Não é, papai?
– Eu não quero me meter nisso.
– Não vai se meter em nada. Estou falando em teoria.
– Em teoria, os homens têm vergonha desse troço de conversa. Entendo que às vezes elas são necessárias. Mas existem certas deficiências que o tempo traz para as relações, que palavras apenas pioram. Certos assuntos que sabemos, mas se não falarmos sobre, podemos fingir que ninguém percebeu.
– Mas qual é a vantagem de fingir que não há o problema?
– Quando ele é insolúvel, a vantagem é que você não terá que resolver algo que não tem como ser resolvido.
– Tipo o quê?
– Tipo o fim do amor. Para os mais jovens, o fim do amor pode ser resolvido com o término do casamento. Inclusive, acho isso uma grosseria... Isso que não entendo nesse assunto de abismo... Desculpa, filha, mas abismo é viver. Não estamos à beira dele, estamos nele. E todo mundo age como se fosse um herói por contornar crises, por meio do debate, ou não. Todo mundo vai fazer análise, justamente para não olhar para a pessoa ao lado e dizer: eu tenho vontade de vomitar quando escuto os teus passos. E isso não se diz numa conversa. Você não pode virar para a mãe de seus filhos e falar: “Olha, eu não te odeio, te desejo tudo de melhor, mas eu não te amo mais”, sem que isso venha cheio de acusações. Quando, no fundo, no fundo, amor não dura. E nem venham me falar que o que não dura é paixão. A ideia do amor está lá, faz parte de nossa cultura, essa tal transformação do amor. Podemos dizer: eu não te amo como te amei, mas esse amor se transformou, e eu amo ver televisão com você, eu amo saber que, se eu tiver um treco e ficar todo cagado, você me limpará. Isso é que é indiscutível. O amor não se transforma, ele se esgota, e a gente vai levando, por vários motivos. E, saibam, muitos desses motivos não são nada nobres.”


“O que leva uma mãe a foder com a vida da filha? Inveja, será? É uma possibilidade. Mas que tipo de mãe sentiria inveja da própria filha? Que monstro seria esse? Respondo: qualquer mãe. Todas elas. Todas as mães sentem um pouco de inveja das suas filhas. É horrível dizer isso? É. Mas é melhor do que ser cínica.
Tente imaginar, pai, o susto que é ser uma garota. Na rua, somos cantadas, em casa, somos reprimidas. Querem-nos belas, mas nos agridem se tentamos. Somos violentadas sob a capa do afeto. Parece discurso feminista, eu sei. Mas não há como evitar: ser menina é um problema. Mais um. Principalmente, para as meninas que nascem aqui no Brasil, uma país onde a mulher, além da obrigação de ser bonita, tem a obrigação de ser a dona da alegria. Aqui, mulher tem que fazer comida e fazer charme. Tem que ter coragem e bunda. Tem que saber sambar e saber o seu lugar. Uma barbárie. Aposto que você nunca tinha pensado sobre isso, tinha? Nenhum homem pensa. Eu penso. Sobre como nos querem festivas e subjugadas. Efusivas e caladas. Dadas e reservadas. O Brasil é macho, muito macho. É o pau-brasil, o bumba-meu-boi, o saci-pererê, o berimbau, o futebol e o caralho a quatro. E as meninas brasileiras são criadas para seguirem em frente sem perceber o quanto são ridicularizadas. Aqui é pior que na China, na Índia, países onde as mulheres são oficialmente inferiorizadas. Aqui, se disfarça. Somos enganadas, levadas a crer que ser menina é isso mesmo: tomar na bunda sorrindo. Metáfora forte demais? Não, nem é metáfora.
E eu não tenho inveja da minha filha? Tenho! E eu tenho a chance de fazer uma diferença positiva, dentro do destino ingrato que a aguarda, ao admitir meus sentimentos mesquinhos. Estou com quase 40 e ela é adolescente – é óbvio que eu sinto inveja. E assumo que isto afeta a minha relação com ela. Acho importante que minha filha saiba disso. Ela vai logo ficar sabendo que o tempo, para uma mulher, é uma merda. Os homens envelhecem e ficam mais maduros, as mulheres envelhecem e ficam desesperadas. Temos essa fraqueza, e uma mãe deve ensinar a filha a lidar com isso. Hoje, enquanto ela floresce, eu murcho. E ela tem a sorte de eu pertencer a uma geração mais esclarecida, então posso dar tudo aquilo que não recebi. Sei reconhecer e elogiar suas habilidades, pois não fui reconhecida nem elogiada. Tenho plena consciência de que é necessário cumprir aquilo que prometemos – coisa recente entre as famílias brasileiras. Aprendi com a vida e sei que se deve ensinar o que se aprende, não o que nos ensinam. Sei que pintar o cabelo acaba com o brilho e que devemos adiar esse recurso ao máximo. Sei que não é bom raspar as pernas muito cedo, porque depois você vira um arame farpado ambulante. Sei que começar a fumar é um vacilo, pois se trata do vício mais difícil de se largar. Sei que, enquanto somos jovens, temos mais facilidade para aprender línguas. Sei que não vale a pena contar com homem nenhum em momento nenhum. Mas que ela pode contar comigo, mesmo sabendo que eu tenho inveja dela. Como não cobiçar a vida de uma menina que terá tudo o que eu não tive? A inveja talvez seja, ao lado do amor que sinto, um dos poucos sentimentos não-destrutivos em mim. Já que não a alimento, mas a reconheço e a torno útil. Não aguento essa hipocrisia da negação sistemática da inveja. Por que as pessoas são assim? Por que não admitem que mentem, que fingem e às vezes morrem de raiva da felicidade alheia? Eu fujo de gente que afirma não se irritar com nada. São, sem dúvida nenhuma, os mais perigosos. Porque não pensam naquilo que sentem e, sem pensar, agem. São como crianças, acreditam que um pensamento errado já é algo criminoso, então abafam suas mentes numa vaga letargia disfarçada de cuca fresca. Dizem-se calmos. Na verdade, estão atrapalhando o mundo e a natureza com seus comportamentos antinaturais. Não existe o bem-estar completo, e isto definiu o ser humano. Gente que não se incomoda com nada é o atraso da humanidade. Assim como gente que diz não sentir ciúmes é o viés do amor. Prefiro arder. Prefiro sentir a ser. Sinto inveja, mas não sou invejosa. Sei que as sensações antecedem as ações, e é a ação que vale. Sendo essa consciência a única forma de nos frear antes do abuso. É o desejo de dar uma surra num filho que impede a surra. Sente-se vontade de estrangular um bebê que chora a noite toda, e imaginar essa hipótese é que nos faz ver que um filho é a coisa mais importante da vida. Eu morro de inveja, quando vejo minha filha sair linda, para encontrar os amigos; mas não infernizarei a vida dela, como a minha mãe fez comigo. Irei, isto sim, melhorar, entendendo o que sinto, porque eu não sou o que sinto.”

domingo, 15 de maio de 2016

Guerra Civil: uma história do universo Marvel – Stuart Moore

Editora: Novo Século

ISBN: 978-85-4280-412-6

Tradução: Michele Gerhardt MacCulloch

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 398

Sinopse: Nessa versão em prosa da graphic novel, Stuart Moore adapta uma das histórias mais famosas do universo Marvel para um livro de tirar o fôlego.

Homem de Ferro e Capitão América são dois membros essenciais para os Vingadores, a maior equipe de super-heróis do mundo. Quando uma trágica batalha deixa um buraco na cidade de Stamford, matando centenas de pessoas, o governo americano exige que todos os super-heróis revelem sua identidade e registrem seus poderes.

Para Tony Stark – o Homem de Ferro – é um passo lamentável, porém necessário, o que o leva a apoiar a lei. Para o Capitão América, é uma intolerável agressão à liberdade cívica.

Assim começa a Guerra Civil.



“Agora, porém, Tony começava a notar que alguma outra coisa o incomodava. Thor não havia sido apenas seu amigo; o deus do trovão era o eixo, o centro dos Vingadores. Tony e Capitão eram homens cheios de força de vontade, cada um com seus pontos fortes e fracos: o Capitão era guiado pelo coração e pelo instinto, Tony pela fé no poder da indústria e da tecnologia. Muitas vezes depois que a equipe foi fundada, eles quase foram aos tapas por causa de alguma estratégia ou sacrifício. E todas as vezes, Thor levantou aquela voz retumbante que não deixava espaço para discussões. Ele os lembrava de suas responsabilidades ou ria da tolice deles, e sua risada gigantesca sempre os unia. Ou, então, ele apenas se colocava atrás dos dois e dava tapinhas em suas costas, com tanta força que quase fundia a armadura de Tony em sua pele. (...)

Tony sofrera por Thor no último mês. A dor e a frustração que sentiam foi motivo de discussão entre Os Vingadores: após dezenas, centenas de batalhas juntos, o amigo e companheiro deles aparentemente morrera sozinho, em uma guerra disputada bem longe dali, em algum outro plano de existência totalmente diferente. Os Vingadores não apenas estavam impotentes para ajudar o amigo, como provavelmente não poderiam sequer ter percebido a batalha que tirou a vida dele.”

 

 

“Aranha se debruçou sobre uma intricada máquina, uma treliça de vidro e metal. Ben franziu a testa.

– Melhor não mexer nisso.

– Foi mal. Reed não vai gostar?

– Pior. Ele vai passar vinte minutos explicando o que ela faz.”

 

 

“No momento em que Tony Stark subiu na tribuna, sentiu um frio na barriga. Olhou em volta, confuso. Já havia participado de dezenas de coletivas ali, na sala de imprensa principal da Stark Enterprises.

De repente, ele se deu conta: É isso. A última vez que a sala de imprensa ficou tão cheia assim foi há dois anos, quando – impulsivamente e sem planejar – revelou ao mundo o segredo da sua vida: que ele era o Homem de Ferro.

Tony limpou a garganta e se aproximou do microfone.

– Já estivemos aqui antes?

Uma onda de risos encheu a sala. Tony

– Geralmente, quando estou de pé na frente de um grupo de pessoas, começo com estas palavras: Meu nome é Tony. E eu sou alcoólatra.

A multidão riu novamente, um pouco nervosa. Pelo menos, não são hostis.

– Isso aqui é diferente, claro. Mas estranhamente similar. – Ele fez uma pausa de efeito, tomando um gole de sua água com gás. – Uma das primeiras coisas que se aprende durante a recuperação é que você tem de jogar limpo com as pessoas, em todos os níveis. Comecei esse processo dois anos atrás. A minha identidade como Homem de Ferro é de conhecimento público, assim como meus impostos, minha história familiar e o histórico detalhado de meus dolorosos fracassos pessoais. A minha vida não é apenas um livro aberto; é praticamente um texto eletrônico com código aberto com licença da Creative Commons – mais risos.

– Mas existe uma coisa que as pessoas que não têm o meu… problema… costumam não entender. Um alcoólatra não busca ajuda quando as coisas estão indo bem para ele. Alguns de nós precisam chegar ao fundo do poço. Outros chegam a um ponto em que o estilo de vida, os efeitos cumulativos sobre si mesmos e sobre outras pessoas ficam pesados demais para suportar. Ainda assim, alguns experimentam um momento de clareza. Um breve e vívido lampejo de seu futuro, do destino terrível que espera por ele se não mudar.

– Senhoras e senhores, Stamford (quando o combate dos Novos Guerreiros contra um grupo de vilões resultou em mais de novecentas mortes de civis) o acidente que foi o meu momento de clareza. Tem muita coisa na minha vida das quais me envergonho, mas tenho muito orgulho da minha carreira como super-herói. Salvei milhares de vidas, coloquei centenas de criminosos perigosos atrás das grades e impedi dezenas de catástrofes antes que elas sequer pudessem acontecer. Fundei os Vingadores, a primeira equipe de super-heróis do mundo, cuja longa história de bons trabalhos fala por si.

– Não, não, não aplaudam. Não quero o aplauso de vocês hoje; não é por isso que estou aqui. Porque outra lição que aprendi é que decidir não tomar o primeiro gole não é o fim da jornada de um alcoólatra em direção à luz. É apenas o primeiro passo.

– E para mim, para a comunidade super-humana, da qual me orgulho fazer parte, a minha decisão de ir a público, de revelar os detalhes da minha vida para vocês, foi o Primeiro Passo. Hoje é o próximo passo.

Ele fez uma pausa, a garganta seca. Seu olhar correu pela sala, analisando o mar de repórteres, escrevendo e digitando furiosamente em seus dispositivos eletrônicos.

– Super-humanos, meta-humanos, heróis, vilões. Como quer que vocês os chame, eles se proliferaram enormemente na última década. Alguns nasceram com habilidades físicas e mentais superiores; outros recebem seus poderes por meio de acidentes. Outros, como eu, desenvolveram meios tecnológicos de melhorar seus dons naturais. Outros, sem nenhum poder de verdade, fazem justiça com as próprias mãos, vestindo fantasias e saindo nas ruas. E outros ainda, são seres alienígenas, total ou parcialmente humanos.

– Vivemos em um mundo assustador e incerto. Guerras estouram no Oriente Médio e em outros lugares; o medo do terrorismo ainda não acabou. Em todo o país, famílias enfrentam a ameaça de ruína financeira, de não realizar o Sonho Americano que sempre foi a promessa desta nação. O Sonho que tem sido tão bom pra mim, pessoalmente.

– Então, estou aqui hoje, um homem, para prometer a vocês: eu farei o que puder para tornar o mundo um pouco menos assustador. Não posso resolver a economia mundial, e não posso fazer muito a respeito de ataques nucleares ou biológicos. Mas eu posso, e vou, resolver o problema das armas super-humanas de destruição em massa.

– De hoje em diante, qualquer homem, mulher ou alienígena que for para as ruas ou para os céus tentar usar seus dons naturais ou artificiais em um cenário público, deve seguir os seguintes passos. Primeiro, deve se registrar on-line no Departamento de Segurança Nacional, um processo rápido e simples. Entre as informações requeridas estão: o verdadeiro nome e endereço do solicitante, informações para contato 24 horas, nível de experiência e extensão das habilidades super-humanas, se tiver.

– Esse formulário será rapidamente avaliado por mim e pelo Secretário de Defesa – o secretário assentiu. – Dependendo da nossa avaliação, várias coisas podem acontecer depois. A pessoa pode ser aprovada para atividade meta-humana sob os termos da Lei de Registro de Super-humanos. Ela receberá um contrato severo, informando sobre as diretrizes de comportamento apropriado, e um distintivo emitido pela S.H.I.E.L.D. Essa pessoa também receberá um salário de acordo com sua experiência e habilidade, além de plano de saúde, tudo isso supervisionado pelo governo federal e pela S.H.I.E.L.D.

Tony fez uma pausa para respirar.

– Se o solicitante não tiver muita experiência, ele receberá uma licença condicional, que o permitirá que exercer suas habilidades depois, e só depois, de ter concluído um curso intensivo de oito semanas em um dos vários centros de treinamento que serão estabelecidos pela S.H.I.E.L.D. Esses centros são ultrassecretos e ficam longe de qualquer grande centro urbano, assim não haverá nenhum perigo para a população civil durante o processo de treinamento. Uma vez que o solicitante tiver concluído o curso, ele será avaliado por um conselho formado por super-heróis experientes. Se for considerado responsável e competente no uso de seus poderes, uma licença total será emitida. Caso contrário, ele terá a opção de retomar o curso de treinamento ou se aposentar.

– É claro que haverá aqueles solicitantes que mostrarão ser um perigo real ou potencial para o público, seja por imprudência, falta de moral ou pela natureza incontrolável de seu poder. A eles será negada a oportunidade de praticar suas habilidades. Acreditamos que isso seja justo. Um homem pode possuir o conhecimento de como construir uma bomba atômica, mas isso não lhe dá o direito de montar uma no meio da Times Square – Tony fez uma pausa. – Acreditem em mim, descobri isso aos nove anos.

O grupo riu. Está dando certo, pensou Tony. Eles estão realmente me apoiando.

– Vou responder a algumas perguntas agora, depois tenho uma surpresa para vocês. Mas antes que façam qualquer pergunta, quero lembrar-lhes que nada disso é decisão minha. É a lei; foi apropriadamente votada pelo Congresso e assinada pelo presidente. Ele me pediu, pessoalmente, para supervisionar a implementação da Lei de Registro de Super-humanos, e eu aceitei. É meu privilégio e dever em vários aspectos.”

 

 

“Capitão tossiu, depois fez uma careta. Tudo doía: seu rosto, seus braços, suas pernas. Tony realmente lhe maltratara.

Falcão terminou de colocar a atadura e deu um passo atrás.

– Você parece uma múmia que acabou de fugir da tumba – disse o homem alado. – Mas ainda lhe sobraram alguns dentes.

– E tenho a intenção de usá-los – respondeu o Capitão.”

 

 

“Outro raio. Reed virou-se para olhar para Thor, majestoso e cruel no centro da carnificina.

Chuva pingava de seus cabelos louros, mal o tocando.

– Thor – chamou Reed. – Pode parar. O esquadrão de limpeza da S.H.I.E.L.D. assume daqui.

– Peter – disse Tony. – Os prisioneiros ficam por sua conta. Precisamos fazer uma lista deles antes…

– CUIDADO!

Tony levantou a cabeça – tarde demais. Golias agigantava-se sobre eles, com pelo menos seis metros de altura – Sue nunca o tinha visto tão alto. O grito de dor de Golias enchia o ar; ele não tinha nenhuma proteção contra a frequência das ondas. Mas segurava sobre a cabeça um enorme tonel químico, pingando um líquido verde.

Com um uivo de agonia, ele jogou sua carga em cima do Homem de Ferro.

Adaga – olhos arregalados em agonia – disparou uma saraivada de raios. O tonel atingiu o Homem de Ferro; os raios atingiram o tonel; e o tonel explodiu formando uma enorme bola de fogo.

Mulher-Hulk, foi atingida pela bola de fogo, gritou e correu, sua roupa estava em chamas. Viúva Negra se apressou para ajudá-la.

As chamas estavam altas, chamuscando um helicóptero da S.H.I.E.L.D. que pairava sobre a fábrica. A aeronave se inclinou, girou no céu – e atingiu Miss Marvel, que estava em pleno voo. Ela berrou, assustada, e caiu no solo.

Meu Deus, pensou Sue. Será que eles mataram Tony?

Lentamente, a bola de fogo diminuiu. E, no seu centro, agachado e apoiado em um joelho, apareceu a silhueta do Homem de Ferro.

– Estou bem – a voz de Tony soou no transmissor de Sue. – Só um pouco queimado.

E então, ela notou: os gemidos em sua orelha cessaram.

A bola de fogo não matou Tony, mas desativou a frequência de ondas. A Resistência estava se levantando: Gavião Arqueiro, Falcão, Tigresa, Adaga e os Jovens Vingadores.

Capitão América levantou um braço e gritou:

Atacar!

Em seguida, ele tombou pra frente e caiu no chão.

Mais uma vez, o mundo explodiu em trajes correndo e golpes poderosos. Homem-Aranha encarou Célere, seus tentáculos se esforçando para pegar o adolescente a toda velocidade. Falcão alçou voo, bombardeando o Coisa em um mergulho. Gavião Arqueiro tentava acertar uma flecha na Viúva Negra; ela contra -atacava lançando seus ferrões no herói, que se esquivava.

Miss Marvel levantou devagar do chão da fábrica, recuou ao tentar se apoiar no braço ferido. Seus olhos estavam vermelhos de fúria.

Capitão América estava deitado imóvel, de cara com o concreto. Falcão gritou para Gavião Arqueiro:

– Gavião! Pegue o Capitão. Temos que tirá-lo daqui!

Sue virou-se para Reed e implorou:

– Reed, temos que acabar com isso!

Sue teve a impressão de ver uma faísca de medo nos olhos dele.

– Eu já desativei o Thor.

– Como assim, desativou?

Tony Stark veio andando trôpego, sua armadura estalando. A explosão o havia danificado.

– Reagrupar – ordenou Tony. – Temos de…

Mas Golias virou o seu enorme corpo na direção dos Vingadores reunidos. Abaixou-se, agarrou o chão embaixo de seus pés e puxou. Eles tombaram e voaram. Rajadas de poder por todo lado; Miss Marvel se debatia no ar. Homem-Aranha lançou uma teia que agarrou-se a uma viga rachada.

Thor virou-se para assistir ao caos. Raios brilhavam.

Falcão mergulhou do céu, carregando Gavião Arqueiro, que apontou para o corpo imóvel do Capitão.

Lentamente, o deus do trovão pegou seu martelo.

Golias virou-se para ele.

– Prepare-se para o retorno mais breve da história, Thor.

Não, pensou Sue. Oh, não

O martelo de Thor brilhou, com mais intensidade que nunca. Com um estrondo ensurdecedor, raios emanaram dele, avançando pelo ar…

… e atingiu diretamente o peito de Golias.

Havia sangue, raios e chuva, e o corpo de seis metros de altura de Golias caiu para trás no muro dos fundos da fábrica. Aterrissou quebrando plástico, metal e concreto.

Ainda invisível, Sue rastejou até ele. Não se importava com o que Reed pensava. Não se importava se a S.H.I.E.L.D. a pegasse. Não se importava se Thor lançasse mais raios, fazendo dela outra vítima.

Tocou a mão gelada de um metro de comprimento de Golias, viu fumaça saindo do buraco onde antes ficava o coração dele. Ela soube: Golias estava morto.

A chuva continuava caindo com força. Mas as batalhas haviam cessado. Miss Marvel segurava o próprio braço, estremecendo de dor. Mulher-Hulk estava caída, as queimaduras cobriam metade de seu corpo. Homem de Ferro ainda estava ajoelhado, sem equilíbrio, tentando reiniciar seus sistemas criticamente danificados.

A S.H.I.E.L.D. sobrevoava, assistindo com frios olhos mecânicos.

Todos eles permaneciam imóveis, fitando o corpo de seis metros de um herói que ousou desafiar a Lei de Registro de Super-humanos.

Sue não sentia nada. Só frio. Só conseguia pensar em uma coisa, a única que vinha à sua mente, a frase que Tony Stark pronunciara em sua famosa coletiva de imprensa: “Stamford foi meu momento de clareza”.

Este, ela percebeu, é o meu.”

 

 

“Capitão escolheu as palavras com cuidado.

– E você está disposto a deixá-los impunes por isso?

Adaga fez uma careta.

– Eles podem fazer o que quiser agora. Thor está do lado deles.

– Aquele não era Thor – afirmou Capitão. – Era algum Frankenstein que eles construíram para o exército de super-heróis deles. Você não conhecia Thor, garota. Não pense… nem por um momento… que ele teria assassinado um homem bom como Bill Foster.”

terça-feira, 10 de maio de 2016

A Cidade de Deus (Livros VI-VIII), de Santo Agostinho

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian

ISBN: 978-9723105438

Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 270

Sinopse: Ver Parte I


“É fácil crer que se deu uma resposta quando na realidade o que se quis foi não estar calado. Que é que há de mais palavroso do que a vacuidade? E lá por que ela pode, se quiser, gritar mais alto do que a verdade — nem por isso terá mais poder que a verdade.”

 

 

“A realidade é que nunca seremos capazes de lhe agradecer a dádiva de sermos, de vivermos, de contemplarmos o Céu e a Terra, de possuirmos inteligência e razão para procurarmos Aquele que todos estes bens criou. E todavia, acabrunhados pelo peso dos nossos pecados, desviados da contemplação da sua luz, cegos pelo amor das trevas, ou seja, da iniquidade, não fomos completamente abandonados — mas enviou-nos o seu Verbo, o seu único Filho, que, na sua carne de nós assumida, nasceu e sofreu para que soubéssemos quanto Deus amou o homem e ficássemos purificados de todos os pecados por esse sacrifício sem igual e, com a caridade do Espírito Santo, difundida em nossos corações, chegássemos ao eterno descanso e inefável doçura da sua contemplação. Que corações, que línguas poderão ter a pretensão de lhe prestarem condignas ações de graças?”

 

 

“Ao tratarmos da chamada teologia natural, temos que lidar, não com quaisquer homens (pois já não se trata da teologia fabulosa ou civil, isto é, a do teatro e a da cidade, das quais uma exalta ostensivamente os crimes dos deuses e a outra põe a descoberto os seus mais criminosos desejos, desejos, portanto, mais de demônios maléficos do que de deuses), mas é com filósofos que devemos discutir, com aqueles cujo nome proclama o amor da sabedoria.

Ora se a Sabedoria é Deus por quem tudo foi feito, como o demonstraram a autoridade divina e a verdade, verdadeiro filósofo é o que ama a Deus. Mas porque a própria coisa assim chamada não existe em todos os que se gabam deste nome (realmente nem todo aquele que se diz filósofo é por isso amigo da verdadeira sabedoria).”

 

 

“Cedam estas duas teologias — a fabulosa e a civil — aos filósofos platônicos que reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas, fonte luminosa da verdade, dispensador da felicidade eterna. Cedam ainda a tão grandes pensadores que chegaram a conhecer um Deus tão grande, esses outros filósofos cujo pensamento, escravo do corpo, não admite para a natureza senão origens corpóreas: a água, segundo Tales; o ar, segundo Anaxímenes; o fogo, segundo os estoicos; segundo Epicuro, os átomos, isto é, corpúsculos, pequeníssimos, indivisíveis e imperceptíveis; e tantos outros que não vale a pena citar, para quem os corpos, simples ou compostos, inanimados ou vivos mas, todavia, corpos, são causas e princípios das coisas. Realmente, alguns deles, tais como os epicuristas, acreditaram que as coisas vivas podiam ser produzidas por coisas não vivas; outros pensaram que é do vivo que provêm os vivos e os não vivos, mas que todo o corpo provém de outro corpo. Quanto aos estoicos, consideraram o fogo, um dos quatro elementos que constituem o mundo visível, como dotado de vida e de sabedoria e consideraram-no como tendo fabricado o Mundo, de maneira que, segundo eles, era realmente um deus.

Estes e outros que tais não conseguiram elevar o seu pensamento acima dos fantasmas que os seus corações, submetidos aos sentidos carnais, imaginaram. Realmente, tinham dentro de si o que não viam e imaginavam que viam fora de si o que não viam, embora, na realidade, não o vissem, mas apenas o imaginassem. E isto, realmente, à vista do pensamento, já não é corpo: é antes a imagem do corpo. E a faculdade que vê na alma a imagem dum corpo não é nem esse corpo nem a imagem desse corpo: e ela que vê e julga se essa imagem é bela ou disforme, é, sem a menor dúvida, melhor do que a imagem julgada. Esta faculdade é a inteligência do homem, a natureza da alma racional que, sem dúvida, não é um corpo, pois que esta imagem do corpo quando é percebida e apreciada no ato do pensamento, já não é ela mesma um corpo. Ela não é, portanto, nem terra, nem água, nem ar, nem fogo; não é nenhum destes quatro corpos chamados os quatro elementos de que vemos ser composto o mundo corpóreo. Ora se a nossa alma não é um corpo, como é que será um corpo Deus criador da alma?

Que estes filósofos cedam, portanto, aos platônicos. Cedam-lhes também os que se envergonharam de dizer que Deus é um corpo, mas nem por isso deixam de pretender que as nossas almas são de natureza idêntica à d’Ele. Não se sentem chocados com a mobilidade tão grande da alma, que não se poderá atribuir, sem incorrer em impiedade, à natureza de Deus. Dirão: é pelo corpo que a natureza da alma está sujeita a mudanças; por si mesma ela é imutável. Poderiam dizer também: é pelo corpo que a alma é ferida porque esta por si mesma é invulnerável. Na verdade, o que não está sujeito a mudança, nada o pode mudar; por isso é que o que pode mudar por intermédio do corpo, alguma coisa o pode mudar e, então, já não pode em rigor chamar-se imutável.”

 

 

Pensamento de Platão acerca da chamada filosofia física.

Estes filósofos que, pela sua fama e glória, vemos colocados merecidamente acima dos demais, compreenderam que Deus não é corpo e por isso é que, na busca de Deus, transcenderam todos os corpos. Compreenderam que em Deus Soberano nada é mutável, e por isso é que, na procura de Deus Soberano, transcenderam toda a alma e todo o espírito mutável. Compreenderam, além disso, que em todo o ser que muda, toda a forma que o faz ser o que é, qualquer que seja a sua natureza e os seus modos, não pode ela própria existir senão por Aquele que é verdadeiramente porque é imutavelmente. E daí que, quer seja o corpo do Mundo inteiro, a sua estrutura, as suas propriedades, o seu movimento regular, os seus elementos escalonados do Céu à Terra e todos os corpos que ele encerra;

quer seja toda a vida: a que sustenta e mantém o ser, como nas árvores; a que, além disso, possui sensibilidade, como nos animais; a que acrescenta a tudo isto a inteligência, como nos homens; ou a que, sem necessidade de mantimentos, se mantém, goza de sentimentos e de inteligência, como nos anjos,

não pode manter o seu ser senão d’Aquele que simplesmente é. Para Ele, efetivamente, ser não é uma coisa e viver outra, como se pudesse ser sem viver; para Ele viver não é uma coisa e compreender outra, como se pudesse viver sem inteligência; para Ele compreender não é uma coisa e ser feliz outra, como se pudesse ter inteligência sem a beatitude. Mas para Ele viver, compreender, ser feliz, tudo isso para Ele é ser.

Devido a esta imutabilidade e a esta simplicidade, os platônicos compreenderam que Deus fez todos os seres e por nenhum pôde ser feito. Realmente observaram que tudo o que existe é corpo ou vida, que a vida é coisa superior ao corpo, que a forma do corpo é sensível e a da vida é inteligível. Puseram, portanto, a forma inteligível acima da forma sensível. Ora nós chamamos sensível ao que pode ser percebido pela vista e pelo tato do corpo; inteligível ao que pode ser captado pelo olhar do espírito. Não há efetivamente beleza corpórea quer na estrutura do corpo, nos seus traços por exemplo, quer num movimento, como é o canto, que não tenha o espírito por juiz. Mas este espírito não poderia ser juiz, se nele não houvesse essa beleza mais perfeita, sem o volume da massa, sem o ruído da voz, sem a extensão do lugar e do tempo. Quanto ao próprio espírito, se, também ele, não fosse mutável, um não seria melhor do que outro ao ajuizar acerca da beleza sensível: nem o mais vivaz, o mais esperto, o mais exercitado ajuizaria melhor do que o mais lento, o menos esperto, o menos exercitado — e até o próprio espírito, embora uno, ao evoluir ajuíza melhor depois do que antes de se desenvolver. Não há dúvida de que é mutável o que é capaz de mais e de menos. Daí facilmente concluírem homens engenhosos, doutos e experientes nestas matérias, que a primeira forma não se encontra nos seres em que ela se evidencia mutável. A seus olhos o corpo e a alma aparecem com mais ou menos forma, de maneira que se lhes chegasse a faltar toda a forma, deixariam totalmente de ser. Viram, pois, que existe um ser no qual reside a primeira forma, imutável e, consequentemente, incomparável; julgaram muito justamente que é aí que se encontra o princípio das coisas, o qual não poderá ter sido feito e pelo qual tudo terá sido feito.

Assim, é o próprio Deus que lhes desvenda o que de Deus pode ser conhecido, quando a inteligência deles perscruta, através das Escrituras, as suas perfeições invisí­veis, o seu eterno poder e a sua divindade (Rom. I, 19-20) — Ele por quem todos os seres, mesmo os visíveis e temporais, foram criados. Fica exposto assim o que se refere à parte chamada física, isto é, a natural.

 

 

“Segundo Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a virtude — o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e procura imitá-lo: não há outra causa que possa torná-lo feliz. Também não hesita em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se torna feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo simples fato de que se goza do que se ama, (muitos de fato são infelizes por amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem — quem senão o mais desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o nome de Deus. Por isso é que diz que filósofo é o que ama a Deus; e porque a filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz.”

 

 

“Realmente, a respeito do único e verdadeiro Deus construtor do mundo, muitas coisas Hermes Trismegisto diz que correspondem à verdade; e não compreendo como é que tal cegueira do coração o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos deuses que (é ele que o confessa) pelos homens foram feitos, e a deplorar a supressão futura desta sujeição — como se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem do que ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a verdade é que é mais fácil a um homem deixar de ser homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do que às suas obras tornarem-se deuses pelo culto que um homem lhes presta. Realmente, a um homem de tão elevada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à categoria dos brutos do que a obra do homem ser preferida à obra de Deus feita à sua semelhança, isto é, ao próprio homem. É precisamente por isso que o homem se afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que ele próprio fez.”