Editora: Planeta
ISBN: 978-85-7665-320-2
Link para compra: Clique aqui
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 368
Sinopse: O
propósito deste livro, resultado de dez anos de investigação jornalística, é
resgatar e contar a história da corte lusitana no Brasil e tentar devolver seus
protagonistas à dimensão mais correta possível dos papéis que desempenharam
duzentos anos atrás. 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma
corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil
é o relato sobre um dos principais momentos históricos brasileiros.
“Em 1807, o imperador francês era o senhor
absoluto da Europa. Seus exércitos haviam colocado de joelhos todos os reis e
rainhas do continente, numa sucessão de vitórias surpreendentes e brilhantes.
Só não haviam conseguido subjugar a Inglaterra. Protegidos pelo Canal da
Mancha, os ingleses tinham evitado o confronto direto em terra com as forças de
Napoleão. (...) Fazia três anos que tinha se autodeclarado imperador dos
franceses. “Eu não sou herdeiro de Luís XIV”, escreveu ao seu ministro das
Relações Exteriores, Charles Maurice de Talleyrand, em maio de 1806. “Sou
herdeiro de Carlos Magno.” A comparação é reveladora de suas pretensões. Luís
XIV foi um dos mais poderosos reis da França. Carlos Magno, o fundador do Sacro
Império Romano, cujos domínios abrangiam a maior parte do continente europeu.
Ou seja, para Napoleão não bastava governar a França. Seu plano era ser o
imperador de toda a Europa. Na prática, esse título já lhe pertencia. Um ano
mais tarde, em 1808, com a virtual anexação da Espanha e de Portugal, ele
praticamente dobrou o tamanho do território original da França. Seus domínios
agora incluíam a Bélgica, a Holanda, a Alemanha e a Itália.
Ao longo de uma década, Napoleão travou
inúmeras batalhas contra os mais poderosos exércitos da Europa sem conhecer
nenhuma derrota. Uma dinastia de reis até então considerada imbatível, a dos
Habsburgos do Império Austro-Húngaro, fora batida repetidas vezes nos campos de
batalha. Russos e alemães tinham sido subjugados em Austerlitz e Jena, duas das
mais memoráveis batalhas das chamadas guerras napoleônicas. Reis, rainhas,
príncipes, duques e nobres foram expulsos de seus tronos e substituídos por
membros da própria família Bonaparte.
“Se lançarmos os olhos para a Europa de 1807,
veremos um extraordinário espetáculo”, escreveu o historiador pernambucano
Manoel de Oliveira Lima. “O rei da Espanha mendigando em solo francês a
proteção de Napoleão; o rei da Prússia foragido de sua capital ocupada pelos
soldados franceses; o [...] quase rei da Holanda, refugiado em Londres; o rei
das Duas Sicílias exilado de sua linda Nápoles; as dinastias da Toscana e
Parma, errantes; [...] o czar em Petersburgo; a Escandinávia prestes a implorar
um herdeiro dentro dos marechais de Bonaparte; o imperador do Sacro Império e o
próprio Pontífice Romano obrigados de quando em vez a desamparar seus tronos
que se diziam eternos e intangíveis”.
Nos últimos duzentos anos, mais livros foram
escritos sobre Napoleão do que sobre qualquer outra pessoa na História, com
exceção apenas de Jesus Cristo. Mais de 600 obras fazem referência direta ou
indireta a ele. Homem de ambição e vaidade desmedidas, inversamente
proporcionais a sua baixa estatura, de 1,67 metro, Napoleão gostava de chamar a
si mesmo de “Filho da Revolução”. Era um gênio militar por natureza, mas foi a
Revolução que lhe deu a oportunidade de demonstrar seus talentos nos campos de
batalha. Era, portanto, o homem certo, no lugar certo e na hora certa. Nascera
em 1769, filho de uma família da pequena nobreza da Córsega. Aos dezesseis anos,
ainda na adolescência, já era tenente do exército francês. Na escola militar
ganhou reputação como republicano e estabeleceu ligações com as futuras
lideranças revolucionárias.
Foram essas conexões que o puseram à frente
da artilharia na Batalha de Toulon, cidade rebelde defendida pelos ingleses, em
1793. Sua participação foi tão decisiva que nas oito semanas seguintes seria
promovido de capitão a general. Tinha só 24 anos. Três anos mais tarde, era
comandante do exército na Itália, onde se destacou pela bravura e pela ousadia
das manobras militares. Mais três anos, era o primeiro cônsul da França, cargo
que lhe dava poderes irrestritos. Em 1804, se autoproclamou imperador, aos 35
anos de idade.
Napoleão promoveu uma transformação na arte
da guerra. Seus exércitos se moviam com mais rapidez e agilidade do que
qualquer outro. Sempre tomavam a ofensiva e assumiam as posições mais
vantajosas no campo de batalha, surpreendendo o inimigo que, muitas vezes, se
retirava ou se rendia sem trocar um só tiro. Em dezembro de 1805, na véspera da
Batalha de Austerlitz, a mais memorável de suas vitórias, parte das tropas que
comandou percorreu mais de cem quilômetros em apenas dois dias – isso numa
época em que não havia caminhões, tanques motorizados, aviões ou helicópteros
para transportar homens e equipamentos. A grande mobilidade de homens, cavalos
e canhões permitia que seus exércitos surpreendessem o inimigo com manobras
inesperadas em batalhas que, às vezes, já pareciam perdidas. Essas táticas
inesperadas foram devastadoras para os inimigos, habituados a manobras lentas e
convencionais.” (...)
Napoleão gabava-se de conseguir repor as
perdas nos campos de batalha ao ritmo de 30.000 soldados por mês. Em 1794, a
França contava com 750.000 homens treinados, equipados e altamente motivados
para a defesa das ideias difundidas pela Revolução. Isso lhe deu um exército em
escala nunca vista desde o Império Romano. O imperador era um general prático,
frio e metódico. O que importava para ele era o resultado do conjunto de suas
forças e não o destino individual do soldados que tombavam pelo caminho. Suas
batalhas eram planejadas de forma meticulosa. Não dividia o comando com
ninguém. “Na guerra, um general ruim é melhor do que dois bons”, dizia. Era
carismático e capaz de inflar rapidamente o ânimo de seus oficiais e soldados.
“O moral e a opinião do exército são meia batalha ganha”, afirmava. (...)
No auge do seu poder, Napoleão despertava
medo e admiração tanto nos seus inimigos quanto nos seus admiradores. Lord
Wellington, que em 1815 o derrotou definitivamente em Waterloo, dizia que, no
campo de batalha, Napoleão sozinho valia por 50.000 soldados. O escritor
François René de Chateaubriand, que era seu adversário, o definiu como “o mais
poderoso sopro de vida humana que já tinha passado pela face da Terra”.
Foi esse homem que o indeciso e medroso D.
João, príncipe regente de Portugal, teve de enfrentar em 1807.”
“‘Na guerra entre a França e a Inglaterra,
Portugal fazia o papel do marisco na luta entre o rochedo e o mar’ assinalou o
historiador brasileiro Tobias Monteiro.”
“No dia 6 de novembro, a esquadra inglesa
apareceu na foz do Rio Tejo, em território português, com uma força de 7000
homens. Seu comandante, o almirante Sir Sidney Smith (o mesmo oficial que havia
bombardeado Copenhague dois meses antes), tinha duas ordens, aparentemente
contraditórias. A primeira, e prioritária, era proteger o embarque da família
real portuguesa e escoltá-la até o Brasil. A segunda, caso a primeira não
acontecesse, era bombardear Lisboa.”
“A riqueza de Portugal era resultado do
dinheiro fácil, como os ganhos de herança, cassinos e loterias, que não exigem
sacrifício, esforço de criatividade e inovação, nem investimento de longo prazo
em educação e criação de leis e instituições duradouras. Numa época em que a
Revolução Industrial britânica começava a redefinir as relações econômicas e o
futuro das nações, os portugueses ainda estavam presos ao sistema extrativista
e mercantilista, sobre o qual tinham construído sua efêmera prosperidade três
séculos antes. Baseava-se na exploração pura e simples das colônias, sem que
nelas fosse necessário investir em infraestrutura, educação ou melhoria de
qualquer espécie. “Era uma riqueza que não gerava riqueza”, escreveu a
historiadora Lilia Schwarcz. “Portugal se contentava em sugar suas colônias de
maneira bastante parasitária.” Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico
Raízes do Brasil, mostrou que no Brasil colônia se tinha aversão ao trabalho.
Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista era explorar rapidamente toda
a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro:
“O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que
custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”.
A dependência da economia extrativista fez
com que a manufatura nunca se desenvolvesse em Portugal. Tudo era comprado de
fora. “A tendência de a abundância de riquezas naturais enfraquecer as
instituições e solapar o desenvolvimento sustentado das nações é quase uma
maldição”, apontou a economista Eliana Cardoso, Ph.D. pelo Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT) e professora visitante da Fundação Getúlio
Vargas em São Paulo. “Os países cuja economia se assenta principalmente sobre o
comércio de produtos naturais são levados [...] a cometer uma série de erros e
desmazelos que impedem a modernização da sociedade.”
“(No meio da fuga desesperada da corte de
Portugal), apareceu a rainha Maria I, de 73 anos. Para o povo português
aglomerado no cais para assistir à partida, a presença da rainha era uma grande
novidade. Devido aos seus acessos de loucura, fazia dezesseis anos que D. Maria
I vivia reclusa no Palácio de Queluz e não era vista nas ruas de Lisboa.
Enquanto seu coche se aproximava do porto em disparada, ela teria gritado ao
cocheiro: “Mais devagar. Vão pensar que estamos fugindo!”.”
“A população da colônia era analfabeta, pobre
e carente de tudo. Na cidade de São Paulo de 1818, já no governo de D. João VI,
apenas 2,5% dos homens livres em idade escolar eram alfabetizados. A saúde era
absurdamente precária. “Mesmo nos centros mais importantes da costa era
impossível encontrar um médico que tivesse feito um curso regular”, conta
Oliveira Lima, baseando-se nos relatos do comerciante inglês John Luccock, que
a partir de 1808 viveu dez anos no Rio de Janeiro. “As operações mais fáceis
costumavam ser praticadas pelos barbeiros sangradores e para as mais difíceis
recorria-se a indivíduos mais presunçosos, porém no geral igualmente ignorantes
de anatomia e patologia.” A autorização para fazer cirurgia e clinicar era dada
mediante um exame perante o juiz comissário, ele próprio um ignorante da
ciência da Medicina. Os candidatos eram admitidos nessa prova se comprovassem
um mínimo de quatro anos de prática numa farmácia ou hospital. Ou seja,
primeiro se praticava a Medicina e depois se obtinha a autorização para
exercê-la.(...)
O pesquisador carioca Nireu Cavalcanti
encontrou no Arquivo Nacional documentos que ajudam a dar uma noção do que era
a saúde e a medicina no Rio de Janeiro na época de D. João VI. São inventários
post-mortem de dois médicos, que relacionam os bens deixados pelos falecidos.
Um deles, do cirurgião-mor Antônio José Pinto, falecido em 1798, inclui esta
assustadora relação de “instrumentos cirúrgicos”: um serrote grande, um serrote
pequeno, uma chave de dentes, duas facas retas, duas tenazes, uma unha de
águia, dois torniquetes uma chave inglesa e uma tesoura grande. O outro
inventário do boticário Antônio Pereira Ferreira, morto também em 1798, serve
para dar uma ideia de como era o sortimento de uma farmácia da época. A lista
inclui cascas, emplastos, fungos, minerais, óleos, raízes, sementes e um item
chamado “animais e suas partes”, com ”óleo humano”, “lixa de lagarto”, “olhos
de caranguejos brutos”, “raspas de ponta de veado” e “dentes de javali”.”
“Observada do mar, enquanto os navios se
aproximavam do porto, o Rio de Janeiro era uma cidadezinha tranquila, de
aparência bucólica, perfeitamente integrada ao esplendor da natureza que a
cercava. De perto, a impressão mudava rapidamente. Os problemas eram a umidade,
a sujeira e a falta de bons modos dos moradores. “Vistas de fora, as casas têm
a mesma aparência de limpeza que observamos nas residências dos melhores
vilarejos da Inglaterra”, relatou em 1803 o oficial da Marinha britânica James
Tuckey. “A boa impressão, contudo, desvanece à medida que nos aproximamos. Logo
que se metem os pés para dentro, constata-se que a limpeza não passa de um
efeito da cal que reveste as paredes exteriores e que, nos interiores, habitam
a sujeira e a preguiça. As ruas, apesar de retas e regulares, são sujas e
estreitas, ao ponto de o balcão de uma casa quase se encontrar com o da casa em
frente.
“A limpeza da cidade estava toda confiada aos
urubus”, escreveu o historiador Oliveira Lima. Alexander Caldcleugh, um
estrangeiro que viajou pelo Brasil entre 1819 e 1821, ficou impressionado com o
número de ratos que infestavam a cidade e seus arredores. “Muitas das melhores
casas estão de tal forma repletas deles que durante um jantar não é incomum
vê-los passeando pela sala”, afirmou. Devido à pouca profundidade do lençol
freático, a construção de fossas sanitárias era proibida. A urina e as fezes
dos moradores, recolhidas durante a noite, eram transportadas de manhã para
serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto
nas costas. Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de
amônia e ureia, caía sobre a pele e, com o passar do tempo, deixava listras
brancas sobre suas costas negras. Por isso, esses escravos eram conhecidos como
“tigres”. Devido à falta de um sistema de coleta de esgotos, os “tigres”
continuaram em atividade no Rio de Janeiro até 1860 e no Recife até 1882. O
sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de ”tigres” e seu
baixo custo retardou a criação das redes de saneamento nas cidades litorâneas
brasileiras.” (...)
Convidado para um desses jantares na casa de
uma família rica, Luccock surpreendeu-se ao descobrir que cada pessoa deveria
comparecer com a própria faca, “em geral larga, pontiaguda e com cabo de
prata”. À mesa, observou que “os dedos são usados com tanta frequência quanto o
próprio garfo”. Mais do que isso, era comum uma pessoa se servir do prato do
vizinho com as mãos. “Considera-se como prova incontestável de amizade alguém
servir-se do prato de seu vizinho; e, assim, não é raro que os dedos de ambos
se vejam simultaneamente mergulhados num só prato”, anotou. A refeição era
acompanhada “de uma espécie de vinho fraco”, que era bebido em copos, em vez de
taças. Devido ao efeito do álcool, ao final todos os convivas se tornavam
barulhentos. “Exagera-se a gesticulação [...] e desfecham punhadas no ar, de
faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e
faces escapem ilesos”, observou o inglês. “Quando facas e garfos se acham em
repouso, ficam em cada uma das mãos, em posição vertical e descansando sobre a
extremidade do cabo. Quando dela não se tem mais necessidade, limpa-se
ostensivamente a faca na toalha de mesa e devolve-se à bainha por detrás das
costas”.”
“Príncipe regente e, depois de 1816, rei do
Brasil e de Portugal, D. João tinha medo de siris, caranguejos e trovoadas.
Durante as frequentes tempestades tropicais do Rio de Janeiro, refugiava-se em
seus aposentos na companhia do roupeiro predileto, Matias Antônio Lobato. Ali,
com uma vela acesa, ambos faziam orações a santa Bárbara e são Jerônimo até que
cessassem os trovões. Certa vez, foi picado por um carrapato na fazenda de
Santa Cruz, onde passava o verão. O ferimento inflamou e causou febre. Os
médicos recomendaram-lhe banho de mar. Como temia ser atacado por crustáceos,
mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas
da Praia do Caju, nas proximidades do Palácio de São Cristóvão. A caixa era uma
banheira portátil com dois varões transversais e furos laterais por onde a água
do mar podia entrar. O rei permanecia ali dentro por alguns minutos, com a
caixa imersa e sustentada por escravos, para que o iodo marinho ajudasse a
cicatrizar a ferida.
Esses mergulhos improvisados na Praia do
Caju, a conselho médico, são a única notícia que se tem de um banho de D. João
nos treze anos em que permaneceu no Brasil. Quase todos os historiadores o
descrevem como um homem desleixado com a higiene pessoal e avesso ao banho.
“Era muito sujo, vício de resto comum a toda a família, a toda a nação”,
afirmou Oliveira Martins. “Nem ele, nem D. Carlota, apesar de se odiarem,
discrepavam na regra de não se lavarem.” A relutância da corte portuguesa em
tomar banho contrastava com os costumes da colônia brasileira, onde o cuidado
com o asseio pessoal chamava a atenção de quase todos os viajantes que por aqui
passaram nessa época. “Apesar de certos hábitos que aproximam da vida selvagem
os brasileiros da classe baixa, qualquer que seja a sua raça, é para notar que
todos eles são notavelmente cuidadosos com a limpeza do corpo”, escreveu o
inglês Henry Koster, que morou no Recife entre 1809 e 1820.”
“Os dois mundos que se encontraram no Rio de
Janeiro em 1808 tinham vantagens e carências que se complementavam. De um lado,
havia uma corte que se julgava no direito divino de mandar, governar,
distribuir favores e privilégios, com a desvantagem de não ter dinheiro. De
outro, uma colônia que já era mais rica do que a metrópole, mas ainda não tinha
educação, refinamento ou qualquer traço de nobreza. (...)
D. João precisava do apoio financeiro e
político dessa elite rica em dinheiro porém destituída de prestígio e
refinamento. Para cativá-la, iniciou uma pródiga distribuição de honrarias e
títulos de nobreza que se prolongaria até seu retorno a Portugal, em 1821.
Apenas nos seus oito primeiros anos no Brasil, D. João outorgou mais títulos de
nobreza do que em todos os trezentos anos anteriores da história da monarquia
portuguesa. Desde sua independência, no século XII, até o final do século
XVIII, Portugal tinha computado dezesseis marqueses, 26 condes, oito viscondes
e quatro barões. Ao chegar ao Brasil, D. João criou 28 marqueses, oito condes,
dezesseis viscondes e quatro barões. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, além
desses títulos de nobreza, D. João distribuiu 4048 insígnias de cavaleiros,
comendadores e grã-cruzes da Ordem de Cristo, 1422 comendas da Ordem de São
Bento de Avis e 590 comendas da Ordem de São Tiago. “Em Portugal, para fazer-se
um conde se pediam quinhentos anos; no Brasil, quinhentos contos”, escreveu
Pedro Calmon. “Indivíduos que nunca usaram esporas foram crismados cavaleiros,
enquanto outros que ignoravam as doutrinas mais triviais do Evangelho foram transformados
em comendadores da Ordem de Cristo”, acrescentou John Armitage.”
“Numa outra decisão pitoresca, D. João VI
declarou guerra contra os índios botocudos que infernizavam a vida de
fazendeiros e colonos na Província do Espírito Santo. Segundo o relato do
inglês John Mawe, “o príncipe regente publicou uma proclamação na qual convida
os índios a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se
viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão
reconhecidos e, como os outros vassalos, gozarão da proteção do Estado; mas, se
persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do príncipe terão ordem de
lhes fazer guerra de extermínio”. De Londres, Hipólito da Costa ironizou a
medida num editorial do Correio Braziliense: “Há muito tempo não leio um
documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua
Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da
Nação dos Botocudos”.”
“Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil,
navios negreiros vindos da costa da África despejavam no Mercado do Valongo
entre 18.000 e 22.000 homens, mulheres e crianças por ano. Permaneciam em
quarentena, para serem engordados e tratados das doenças. Quando adquiriam uma
aparência mais saudável, eram comercializados da mesma maneira como hoje
boiadeiros e pecuaristas negociam animais de corte no interior do Brasil. A
diferença é que, em 1808, a “mercadoria” destinava-se a alimentar as minas de
ouro e diamante, os engenhos de cana-de-açúcar e as lavouras de algodão, café,
tabaco e outras culturas que sustentavam a economia brasileira.
O desembarque, a compra e a venda de escravos
faziam parte da rotina da colônia brasileira havia quase três séculos. Para os
estrangeiros que, pela primeira vez, foram autorizados a visitar o Brasil
depois da chegada da corte, era sempre uma visão constrangedora.
O cônsul inglês James Henderson, descreveu
assim o desembarque dos escravos no porto do Rio de Janeiro:
Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível
das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às
outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e
esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada
a esse tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até os
depósitos onde ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueleto
ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser
incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os
portugueses chamam de sarna.
Um terceiro relato é o do diplomata inglês
Henr Chamberlain. Ele conta como era a compra de um escravo no Valongo:
Quando uma pessoa quer comprar um escravo, ela visita os diferentes
depósitos, indo de uma casa a outra, até encontrar aquele que lhe agrada. Ao
ser chamado, o escravo é apalpado em várias partes do corpo, exatamente como se
faz quando se compra um boi no mercado. Ele é obrigado a andar, a correr, a
esticar seus braços e pernas bruscamente, a falar, a mostrar a língua e os
dentes. Esta é a forma considerada correta para avaliar a idade e julgar o
estado de saúde do escravo.”
“Na África, cerca de 40% dos negros escravizados morriam no percurso entre as zonas de captura e o litoral. Outros 15% morreriam na travessia do Atlântico, devido às péssimas condições sanitárias nos porões dos navios negreiros. As perdas eram maiores nas cargas que vinham de Moçambique e outras regiões da África oriental. Da costa atlântica, uma viagem até o Brasil durava entre 33 e 43 dias. De Moçambique, no Oceano Índico, até 76 dias. Por fim, ao chegar ao Rio de Janeiro, entre 10% e 12% dos desembarcados pereciam em depósitos, como os do Mercado do Valongo, antes de serem vendidos. Em resumo, de cada cem negros capturados na África, só 45 chegavam ao destino final. Significa que, de dez milhões de escravos vendidos nas Américas, quase outro tanto teria morrido no percurso, num dos maiores genocídios da história da humanidade.”