terça-feira, 31 de março de 2020

A ideologia alemã (Parte III) – Karl Marx e Friedrich Engels

Subtítulo: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-073-7
Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano
Introdução: Emir Sader
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 616
Sinopse: Ver Parte I



Na atividade revolucionária, o transformar a si mesmo coincide com o transformar as circunstâncias.”


“Quando o burguês de mentalidade estreita diz para os comunistas: ao suprimirdes a propriedade, isto é, minha existência como capitalista, como proprietário de terras, como fabricante, e a vossa existência como trabalhadores, suprimis a minha e a vossa individualidade; ao tornardes impossível que eu explore a vós, trabalhadores, e embolse meus lucros, juros ou rendimentos, tornais impossível que eu exista como indivíduo. – Portanto, quando o burguês explica aos comunistas: ao suprimirdes a minha existência como burguês, suprimis a minha existência como indivíduo – quando, dessa maneira, ele, na qualidade de burguês, identifica-se consigo mesmo como indivíduo –, então se pode, ao menos, mostrar reconhecimento pela franqueza e pelo descaramento. Para o burguês, este é realmente o caso: ele só acredita ser indivíduo na medida em que é burguês.
Mas o absurdo só começa a se tornar solene e sagrado no momento em que os teóricos da burguesia entram em cena e conferem a essa afirmação uma expressão universal, ao identificar também teoricamente a propriedade do burguês com a individualidade e ao querer justificar logicamente essa identificação.”


“A única razão pela qual o cristianismo quis nos libertar do domínio da carne e dos “anseios como fator de impulsão” foi o fato de encarar nossa carne, nossos anseios como algo estranho a nós; a única razão por que ele quis nos salvar da determinação natural foi o fato de considerar nossa própria natureza como não pertencente a nós. Pois se eu próprio não sou natureza, se meus anseios naturais, se minha naturalidade como um todo não faz parte de mim mesmo – e isto é a doutrina do cristianismo –, então toda determinação pela natureza, tanto pela minha própria naturalidade quanto pela assim chamada natureza exterior, se me afigurarão como determinação por algo estranho, como grilhão, como coerção que me é infligida, como heteronomia em oposição à autonomia do espírito.”


“A organização comunista atua de maneira dupla sobre os anseios que produzem as condições atuais no indivíduo: uma parte desses anseios, a saber, aquela que existe sob todas as condições e que é transformada apenas em sua forma e tendência pelas distintas condições sociais, também só é transformada sob essa nova forma social quando lhe são dados os meios para o seu desenvolvimento normal; uma outra parte, em contrapartida, a saber, aqueles anseios que devem sua origem tão somente a uma determinada forma social, a determinadas condições de produção e intercâmbio, é totalmente privada de suas condições vitais. Ora, quais são os anseios que, sob a organização comunista, serão transformados e quais os que serão desfeitos é algo que só se pode decidir de forma prática, pela transformação dos “anseios” reais, práticos, e não mediante comparações com condições históricas. (...)
Os comunistas nem cogitam em abolir essa fixidez de seus anseios e necessidades, como Stirner, no seu mundo fantasioso, imputa a eles e a todos os demais seres humanos; eles apenas almejam uma organização da produção e do intercâmbio que lhes possibilite a satisfação normal de todas as suas necessidades, isto é, limitada apenas pelas próprias necessidades.”


Até aqui a liberdade foi definida pelos filósofos de maneira dupla; por um lado, como poder, como domínio sobre as circunstâncias e relações nas quais vive um indivíduo – por todos os materialistas; por outro lado, como autodestinação, estar-livre do mundo real, como liberdade meramente imaginária do espírito – por todos os idealistas, especialmente os alemães.”


“Na história real, aqueles teóricos que consideravam o poder como o fundamento do direito formavam a oposição frontal àqueles que encaravam a vontade como a base do direito – uma oposição que São Sancho também pôde conceber como a que existe entre realismo (criança, antigo, negro etc.) e idealismo (adolescente, moderno, mongol etc.). Se o poder é suposto como a base do direito, como fazem Hobbes etc., então direito, lei etc. são apenas sintomas, expressão de outras relações nas quais se apoia o poder do Estado. A vida material dos indivíduos, que de modo algum depende de sua mera “vontade”, seu modo de produção e as formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a base real do Estado e continuam a sê-lo em todos os níveis em que a divisão do trabalho e a propriedade privada ainda são necessárias, de forma inteiramente independente da vontade dos indivíduos. Essas condições reais de modo algum foram criadas pelo poder do Estado; elas são, antes, o poder que o cria. Os indivíduos que dominam nessas condições, abstraindo do fato de que seu poder deve se constituir como Estado, têm de conferir à sua vontade condicionada por essas condições bem determinadas uma expressão geral como vontade do Estado, como lei – uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal são a prova mais cabal.
Assim como não depende de sua vontade ou arbitrariedade idealista o fato de seus corpos serem pesados, tampouco depende dela impor a sua própria vontade na forma da lei, pondo-a, ao mesmo tempo, fora do alcance da arbitrariedade pessoal de cada indivíduo entre eles. Seu domínio pessoal deve se constituir simultaneamente como um domínio médio. Seu poder pessoal se apoia em condições de vida que se desenvolvem como condições comuns a muitos, cuja continuidade eles, na condição de dominadores, devem afirmar contra outras e, ao mesmo tempo, como válidas para todos.
A expressão dessa vontade condicionada por seu interesse comum é a lei.
Justamente a imposição dos indivíduos independentes uns dos outros e da sua própria vontade, que sobre essa base é necessariamente egoísta em seu comportamento recíproco, torna necessária a autorrenúncia na lei e no direito, autorrenúncia como exceção, autoafirmação de seus interesses na média dos casos (que, em consequência, não é considerada como autorrenúncia por eles, mas só pelo “egoísta em acordo consigo mesmo”). O mesmo vale para as classes dominadas, de cuja vontade tampouco depende a existência da lei e do Estado. Por exemplo, enquanto as forças produtivas não tiverem se desenvolvido a ponto de tornar supérflua a concorrência e, por essa razão, reiteradamente provocarem a concorrência, as classes dominadas quererão algo impossível se tiverem a “vontade” de eliminar a concorrência e, junto com ela, Estado e lei. Aliás, só mesmo na imaginação dos ideólogos essa “vontade” surge antes que as condições tenham evoluído a ponto de poder produzi-la. Depois que as condições evoluíram o suficiente para produzi-la, o ideólogo pode imaginar essa vontade como algo simplesmente arbitrário e, consequentemente, identificável em todas as épocas e sob todas as circunstâncias.
Assim como o direito não procede da pura arbitrariedade, tampouco procede dela o crime, isto é, a luta do indivíduo isolado contra as condições dominantes. Ao contrário, ele está nas mesmas condições que aquele domínio.
Os mesmos visionários que vislumbram no direito e na lei o domínio de uma vontade universal independente para si mesma conseguem ver no crime a simples quebra do direito e da lei. Portanto, não é o Estado que subsiste por meio da vontade dominante, mas o Estado que procede do modo de vida material dos indivíduos tem também a forma de uma vontade soberana. Se esta perde o domínio, então se modificou não só a vontade, mas também a existência e a vida material dos indivíduos, e só por causa disso a sua vontade.
É possível que direito e lei se “perpetuem”267 mas, nesse caso, eles não são mais dominantes e sim nominais, do que as histórias do antigo direito romano e do direito inglês fornecem exemplos notáveis. Já vimos anteriormente como, entre os filósofos, pôde surgir, mediante a separação entre as ideias e os indivíduos que lhes serviam de base e suas condições empíricas, um desenvolvimento e uma história das simples ideias. Da mesma maneira se pode, aqui, separar, por sua vez, o direito de sua base real, com o que então se consegue extrair uma “vontade soberana” que se modifica diferentemente nas diferentes épocas e que em suas criações, as leis, possui uma história própria, independente. Desse modo, a história política e burguesa se dissolve ideologicamente numa história do domínio de leis sucessivas. Esta é a ilusão específica de juristas e políticos, a qual Jacques le bonhomme132 adota sans façon (sem rodeios).
Ele nutre a mesma ilusão que, por exemplo, Frederico Guillerme IV, que também considera as leis como simples ideias repentinas da vontade soberana e, em consequência, sempre acha que elas fracassam diante do “Algo tosco” do mundo. Praticamente nenh[uma] de sua[s] manias totalmente inofensivas conseguiu ir além dos limites de uma mera ordem de gabinete. Ele que tente ordenar 25 milhões de empréstimo, a centésima parte da dívida pública da Inglaterra, e verá de quem é a vontade de sua vontade soberana. A propósito, mais tarde também descobriremos que Jacques le bonhomme se vale das quimeras e fantasmagorias de seu soberano e co-berlinense como documentos para tecer, a partir deles, a trama de suas próprias esquisitices teóricas sobre direito, lei, crime etc. Mas isso não nos deve causar admiração, porque até mesmo a fantasmagoria da Vossische Zeitung268 repetidamente lhe “apresenta” algo, como, por exemplo, o Estado de direito. O exame mais superficial da legislação, por exemplo da legislação para os pobres em todos os países, mostra rá o quanto os dominadores avançaram quando imaginaram poder impor algo mediante sua simples “vontade soberana”, isto é, apenas como querentes.”
132 Jacques le bonhomme [Jacó, o tonto]: assim os camponeses eram depreciativamente chamados pelos nobres franceses (e Marx alcunha Max Stiner depreciativamente).
267 Segundo o Fausto, 1ª parte, 2ª cena, em que Goethe escreve: “Lei e direito se perpetuam como uma doença eterna”.
268 Mais antigo jornal berlinense, representava os interesses da burguesia liberal.


“Os mesmos ideólogos que puderam imaginar que direito, lei, Estado etc. se originaram de um conceito geral, tal como, em última instância, do conceito do homem, e que teriam sido desdobrados por causa desse conceito, é natural que os mesmos ideólogos possam imaginar também que os crimes sejam cometidos por pura petulância contra um conceito, que os crimes em termos gerais não sejam nada mais que zombaria contra conceitos e que só seriam punidos para proporcionar satisfação aos conceitos violados. (...) Na história do direito, pode-se constatar que, nas épocas mais antigas e rudimentares, essas condições individuais e factuais constituíam exatamente, em sua forma mais crassa, o direito. Com o desenvolvimento da sociedade burguesa, ou seja, com a evolução dos interesses pessoais em interesses de classe, as relações jurídicas se modificaram e civilizaram a sua expressão. Não foram mais concebidas como individuais, mas como universais. Ao mesmo tempo, a divisão do trabalho transferiu para as mãos de poucos a conservação dos interesses conflitantes dos indivíduos singulares, o que provocou também o desaparecimento da imposição bárbara do direito. (...)
O quanto as condições jurídicas estão associadas ao desenvolvimento desses poderes efetivos, desenvolvimento originado da divisão do trabalho, é fato que pode ser reconhecido já a partir da evolução histórica do poder dos tribunais e da lamúria dos feudalistas em reação à evolução do direito. (Ver, por exemplo, Monteil, loc. cit. , XIVe, XVe siècle.278) Exatamente na época entre o domínio da aristocracia e o da burguesia, quando colidiram os interesses de duas classes, quando o intercâmbio comercial entre as nações europeias começou a ganhar importância e, em consequência, a própria relação internacional assumiu um caráter burguês, o poder dos tribunais começou a ter mais relevância, chegando ao seu ápice sob o domínio burguês, para o qual essa divisão consumada do trabalho é incontornavelmente necessária. É totalmente indiferente o que os servos da divisão do trabalho, os juízes, e até mesmo os professores juris[1] imaginam sobre isso.”
278 Referência à obra Histoire des français des divers états ou histoire de France aux cinq derniers siècles (Paris, 1847, 10 v.), de Amans-Alexis Monteil.
[1] professores de ciência jurídica


“Trata-se do velho devaneio de que o Estado desmoronará por si mesmo assim que todos os seus membros saírem dele e de que o dinheiro perderá sua validade quando todos os trabalhadores se recusarem a recebê-lo. Já na forma hipotética dessa frase se expressa a fantastiquice e a impotência do desejo piedoso. Trata-se da velha ilusão de que depende unicamente da boa vontade das pessoas modificar as relações vigentes e de que as relações vigentes são ideias. A transformação da consciência, separadamente das relações, tal como é operada pelos filósofos como vocação, isto é, como negócio, é, ela própria, um produto das relações vigentes e delas faz parte. Esse idealizado soerguimento acima do mundo é a expressão ideológica da impotência dos filósofos diante do mundo. Suas fanfarronices ideológicas são desmentidas diariamente pela práxis.”


“Os homens não se libertaram, em cada época, na mesma medida de seu ideal de homem, mas sim de acordo com o que as forças produtivas existentes lhes prescreviam e permitiam. No entanto, todas as libertações que ocorreram até agora tiveram como base forças produtivas limitadas, cuja produção insuficiente para a totalidade da sociedade só possibilitava o desenvolvimento na medida em que uns satisfaziam suas necessidades à custa de outros e, assim, adquiriam – a minoria – o monopólio do desenvolvimento, enquanto os outros – a maioria –, devido à luta constante pela satisfação das necessidades mais essenciais (isto é, até a criação de forças produtivas novas, revolucionárias), viam-se excluídos de todo desenvolvimento. Assim, a sociedade, até hoje, desenvolveu-se sempre no quadro de um antagonismo que, na Antiguidade, se dava entre homens livres e escravos, na Idade Média entre a nobreza e os servos e que, nos tempos modernos, opõe a burguesia e o proletariado. É isto que explica, por um lado, a maneira anormal, “desumana”, pela qual a classe oprimida satisfaz suas necessidades, e, por outro lado, a limitação no interior da qual se desenvolve o intercâmbio e, com ele, toda a classe dominante; de modo que essa limitação do desenvolvimento consiste não apenas na exclusão de uma classe como também na estreiteza da classe excludente, e que o “inumano” se encontra igualmente na classe dominante.”


Os indivíduos, sempre e em todas as circunstâncias, “partiram de si mesmos”, mas como eles não eram únicos no sentido de não precisar estabelecer relações uns com os outros, e como suas necessidades – portanto, sua natureza – e o modo de satisfazer essas necessidades os conectavam uns aos outros (relação entre os sexos, troca, divisão do trabalho), então eles tiveram de estabelecer relações. Ademais, como eles não firmaram relações como puros Eus, mas como indivíduos num determinado estágio de desenvolvimento de suas forças produtivas e necessidades, e como essas relações, por seu turno, determinaram a produção e as necessidades, então foi justamente o comportamento pessoal – individual – dos indivíduos, seu comportamento uns em relação aos outros como indivíduos que criou as relações existentes e que diariamente volta a criá-las. Eles firmaram relações uns com os outros tal como eram; partiram “de si mesmos” tal como eram, indiferentemente de qual “visão de vida” possuíam. Essa “visão de vida”, mesmo a visão estrábica dos filósofos, naturalmente só podia ser determinada por sua vida real. Daí se segue, certamente, que o desenvolvimento de um indivíduo é condicionado pelo desenvolvimento de todos os outros, com os quais ele se encontra em intercurso direto ou indireto, e que as diferentes gerações de indivíduos que entram em relações uns com os outros possuem uma conexão entre si, que a existência física das últimas gerações depende da existência de suas predecessoras, que essas últimas gerações, recebendo das anteriores as forças produtivas e as formas de intercâmbio que foram acumuladas, são por elas determinadas em suas próprias relações mútuas. Em poucas palavras, é evidente que um desenvolvimento sucede e que a história de um indivíduo singular não pode ser de modo algum apartada da história dos indivíduos precedentes e contemporâneos, mas sim é determinada por ela.”


“A transformação do comportamento individual no seu contrário, num comportamento meramente relativo a coisas, a diferenciação de individualidade e casualidade por parte dos próprios indivíduos, é, como já indicamos, um processo histórico que, em diferentes estágios de desenvolvimento, assume formas cada vez mais agudas e universais. Na época presente, o domínio das relações materiais sobre os indivíduos, o esmagamento da individualidade pela casualidade, atingiu sua forma mais aguda e universal e, com isso, designou aos indivíduos existentes uma missão bem determinada. Ele deu aos indivíduos a missão de, no lugar do domínio das relações dadas e da casualidade sobre os indivíduos, instaurar o domínio dos indivíduos sobre a casualidade e sobre as relações dadas. Ele não colocou a exigência, como Sancho* o imagina, de que “Eu Me desenvolva” – o que todo indivíduo fez até aqui sem precisar do bom conselho de Sancho – mas sim exigiu, antes, que o indivíduo venha a se libertar de uma forma de desenvolvimento bem determinada. Essa missão, posta pelas atuais relações, coincide com a missão de organizar a sociedade de forma comunista.
Já mostramos acima que a superação da autonomização das relações em face dos indivíduos, da sujeição da individualidade sob a casualidade, da subsunção de suas relações pessoais a relações gerais de classe etc. é condicionada, em última instância, pela superação da divisão do trabalho. Também mostramos, além disso, que a propriedade privada só pode ser superada sob a condição de um desenvolvimento universal dos indivíduos, pois universal são o intercâmbio e as forças produtivas que eles encontram dados e que só podem ser apropriados por indivíduos universalmente desenvolvidos, isto é, feitos para o livre manejo de suas vidas. Mostramos que os indivíduos atuais têm de superar a propriedade privada porque as forças produtivas e as formas de intercâmbio se desenvolveram a tal ponto que, sob o domínio da propriedade privada, se transformaram em forças destrutivas e porque a oposição entre as classes foi levada ao seu ponto máximo. Por fim, mostramos que a superação da propriedade privada e da própria divisão do trabalho é a organização dos indivíduos sobre a base dada pelas atuais forças produtivas e pelo atual intercâmbio mundial.
No interior da sociedade comunista, da única sociedade na qual o desenvolvimento original e livre dos indivíduos não é uma fraseologia, esse desenvolvimento é determinado justamente pela conexão entre os indivíduos, uma conexão que em parte consiste em pressupostos econômicos, em parte na solidariedade necessária ao livre desenvolvimento de todos, e, finalmente, no modo de atuação universal dos indivíduos sobre a base das forças produtivas existentes. Trata-se aqui, portanto, de indivíduos num determinado estágio histórico de desenvolvimento, e de forma alguma de quaisquer indivíduos fortuitos, mesmo sem levar em conta a necessária revolução comunista, que é, ela própria, uma condição geral para o seu livre desenvolvimento.”
*: Referência jocosa a Max Stiner.


Para os filósofos, uma das tarefas mais difíceis que há é a de descer do mundo do pensamento para o mundo real. A realidade imediata do pensamento é a linguagem. Assim como os filósofos autonomizaram o pensamento, também tiveram de autonomizar a linguagem num reino próprio. Este é o segredo da linguagem filosófica, na qual os pensamentos, como palavras, possuem um conteúdo próprio. O problema de descer do mundo dos pensamentos para o mundo real se converte no problema de descer da linguagem para a vida.
Mostramos que a autonomização dos pensamentos e das ideias é uma consequência da autonomização das condições e relações pessoais dos indivíduos. Mostramos que a ocupação sistemática exclusiva com esses pensamentos por parte dos ideólogos e filósofos e, desse modo, a sistematização desses pensamentos é uma consequência da divisão do trabalho e que, principalmente, a filosofia alemã é uma consequência das condições pequeno-burguesas alemãs. Os filósofos teriam somente de dissolver sua linguagem na linguagem comum, da qual ela foi abstraída, para reconhecer que ela é a linguagem deturpada do mundo real e dar-se conta de que nem os pensamentos nem a linguagem constituem um reino próprio; que eles são apenas manifestações da vida real.”


A estreiteza nacionalista é repulsiva onde quer que apareça, mas particularmente na Alemanha ela se torna asquerosa, porque aqui vem acompanhada da ilusão de se estar acima da nacionalidade e de todos os interesses reais, e nessa versão é lançada no rosto daquelas nacionalidades que admitem abertamente que sua estreiteza nacionalista está baseada em interesses reais.”


Até o momento, os homens sempre fizeram representações falsas de si mesmos, daquilo que eles são ou devem ser. Eles organizaram suas relações de acordo com suas representações de Deus, do homem normal e assim por diante. Os produtos de sua cabeça tornaram-se independentes. Eles, os criadores, curvaram-se diante de suas criaturas. Libertemo-los de suas quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais eles definham. Rebelemo-nos contra esse império dos pensamentos.”


“A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica.”


Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo.”

A ideologia alemã (Parte II), de Karl Marx e Friedrich Engels

Subtítulo: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-073-7

Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano

Introdução: Emir Sader

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 616

Sinopse: Ver Parte I



“Enquanto na vida comum qualquer lojista sabe muito bem a diferença entre o que alguém faz de conta que é e aquilo que ele realmente é, nossa historiografia ainda não atingiu esse conhecimento trivial. Toma cada época por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina sobre si mesma.”

 

 

“O processo seguinte na expansão da divisão do trabalho foi a separação entre a produção e o comércio, a formação de uma classe particular de comerciantes, uma separação que nas cidades históricas tradicionais (com os judeus, entre outras coisas) foi herdada do passado e que não tardou a aparecer nas cidades de formação recente. Com isso, estava dada a possibilidade de uma ligação comercial para além dos círculos mais próximos, uma possibilidade cuja realização dependia dos meios de comunicação existentes, do estado de segurança pública alcançado no país e condicionado pelas relações políticas (ao longo de toda a Idade Média, como se sabe, os comerciantes viajavam em caravanas armadas) e pelas necessidades mais ou menos desenvolvidas das regiões acessíveis ao comércio, necessidades estas que eram condicionadas pelo correspondente grau de cultura de cada região.

Com o comércio constituído numa classe especial, com a expansão do comércio por meio dos comerciantes para além dos arredores mais próximos da cidade, surgiu prontamente uma ação recíproca entre a produção e o comércio. As cidades estabelecerama ligação umas com as outras, novas ferramentas foram levadas de uma cidade para outra e a separação entre produção e comércio provocou rapidamente uma nova divisão da produção entre as diversas cidades, que passaram cada qual a explorar um ramo industrial predominante. A limitação inicial à localidade começou gradualmente a desaparecer.

Depende exclusivamente da extensão do comércio se as forças produtivas obtidas numa localidade, sobretudo as invenções, perdem-se ou não para o desenvolvimento posterior. Na medida em que ainda não existe comércio para além da circunvizinhança imediata, cada invenção tem de ser feita separadamente em cada localidade, e meros acasos, tais como irrupções de povos bárbaros, até mesmo guerras habituais, são o bastante para fazer com que um país com forças produtivas e necessidades desenvolvidasaa seja forçado a recomeçar tudo novamente a partir do início. No começo da história, toda invenção tinha de diariamente ser realizada de novo e em cada localidade, de forma independente. A prova de quão pouco as forças produtivas desenvolvidas, até mesmo no caso em que o comércio tenha atingido uma relativa extensão, estão salvas de uma destruição total é-nos fornecida pelos fenícios, cujas invenções desapareceram em sua maior parte e por longo tempo a partir do momento em que essa nação viu-se excluída do comércio pela conquista de Alexandre e pela decadência que daí se seguiu. Assim também se deu na Idade Média, com a pintura sobre vidro, por exemplo. Somente quando o intercâmbio torna-se intercâmbio mundial e tem por base a grande indústria, quando todas as nações são levadas à luta da concorrência, é que está assegurada a permanência das forças produtivas já alcançadas.”

a saindo de seu isolamento.

aa suficientes para fazer com que uma massa de forças produtivas e de invenções adquiridas (um país com forças produtivas e necessidades desenvolvidas) possa durar muito tempo.

 

 

“A transformação, pela divisão do trabalho, de forças (relações) pessoais em forças reificadas não pode ser superada arrancando-se da cabeça a representação geral dessas forças, mas apenas se os indivíduos voltarem a subsumir essas forças reificadas a si mesmos e superarem a divisão do trabalho.a Isso não é possível sem a comunidadeb. É somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-se possível. Nosc sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal existia apenas para os indivíduos desenvolvidos nas condições da classe dominante e somente na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, em que se associaram até agora os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo tempo, porque era uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe dominada, não apenas uma comunidade totalmente ilusória, como também um novo entrave. Na comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade na e por meio de sua associação.

Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo “puro”, no sentido dos ideólogos. Mas no decorrer do desenvolvimento histórico, e justamente devido à inevitável autonomização das relações sociaisd no interior da divisão do trabalho, surge uma divisão na vida de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre a sua vida pessoal e a sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às condições a ele correspondentes. (Não se deve entender isso como se, por exemplo, o rentista, o capitalista etc. deixassem de ser pessoas, mas sim no sentido de que sua personalidade é condicionada e determinada por relações de classe bem definidas; e a diferença torna-se evidente apenas na oposição a uma outra classe e, para os próprios indivíduos, somente quando entram em bancarrota.) No estamento (e mais ainda na tribo) esse fato permanece escondido; por exemplo, um nobre continua sempre um nobre e um roturier[1] continua um roturier, abstração feita de suas demais relações; é uma qualidade inseparável de sua individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe, a contingência das condições de vida para o indivíduo aparecem apenas juntamente com a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a concorrência e a luta dos indivíduos entre si é que engendram e desenvolvem essa contingência enquanto tal.

Por conseguinte, na representação, os indivíduos são mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque suas condições de vida lhes são contingentes; na realidade eles são, naturalmente, menos livres, porque estão mais submetidos ao poder das coisas. A diferença com o estamento aparece sobretudo na oposição da burguesia ao proletariado. Quando o estamento dos burgueses urbanos, as corporações etc., surgiu diante da nobreza rural, sua condição de existência – a propriedade mobiliária e o trabalho artesanal, que já existiam de forma latente antes de sua separação dos laços feudais – apareceu como algo positivo, que se impunha contra a propriedade feudal da terra e, por isso, assumiu primeiramente, a seu modo, uma forma feudal.

Sem dúvida, os servos fugitivos consideraram sua servidão anterior como algo acidental à sua personalidade. Mas, com isso, apenas fizeram o que faz toda classe que se liberta de um entrave e, então, libertaram-se não como classe, mas isoladamente. Além disso, eles não saíram do âmbito do sistema de estamentos, mas apenas formaram um novo estamento e conservaram, em sua nova situação, o seu modo de trabalho anterior, elaborando-o na medida em que o libertavam de seus entraves anteriores, que não correspondiam mais ao desenvolvimento já alcançado.

Entre os proletários, ao contrário, suas próprias condições de vida, o trabalho e, desse modo, todo o conjunto das condições de existência da sociedade atual tornaram-se para eles algo acidental, sobre o qual os proletários isolados não possuem nenhum controle e sobre o qual nenhuma organização social pode lhes dar algum controle, e a contradição entre [...] a personalidade do proletário singular e sua condição de vida que lhe foi imposta, o trabalho, é revelada para ele mesmo, sobretudo porque ele é sacrificado desde a juventude e porque, no interior de sua classe, é desprovido da chance de alcançar as condições que o coloquem na outra classe.”

a (Feuerbach: ser e essência).

b e sem o pleno e livre desenvolvimento dos indivíduos que ela implica.

c aparentes.

d históricas.

[1] retalheiro, vulgar

 

 

“Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava limitada por um instrumento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instrumento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsumidos à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as apropriações anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subsumida a um único instrumento de produção; na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão na condição de ser subsumido a todos.

A apropriação é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Ela só pode ser realizada por meio de uma união que, devido ao caráter do próprio proletariado, pode apenas ser uma união universal, e por meio de uma revolução na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social e que, por outro, desenvolva o caráter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da apropriação; uma revolução na qual, além disso, o proletariado se despoje de tudo o que ainda restava de sua precedente posição social.

Somente nessa fase a autoatividade coincide com a vida material, o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais e à perda de todo seu caráter natural; e, assim, a transformação do trabalho em autoatividade corresponde à transformação do restrito intercâmbio anterior em intercâmbio entre os indivíduos como tais. Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos, acaba a propriedade privada. Enquanto na história anterior uma condição particular aparecia sempre como acidental, agora se tornou acidental o isolamento dos próprios indivíduos, a aquisição privada particular de cada um.

Os indivíduos que não estão mais subsumidos à divisão do trabalho foram representados pelos filósofos como um ideal sob o nome “o homem”, e todo esse processo que aqui expusemos foi apreendido como o processo de desenvolvimento “do homem”, de modo que “o homem” foi, em cada fase histórica, furtivamente introduzido por sob os indivíduos precedentes e apresentado como a força motriz da história. O processo inteiro foi, então, apreendido como processo de autoalienação “do homem”, e isso ocorreu essencialmente porque o indivíduo médio da fase posterior foi sempre introduzido sub-repticiamente na fase anterior e a consciência posterior nos indivíduos da fase anterior.a Com essa inversão, que desde o início abstrai das condições reais, foi possível transformar a história inteira num processo de desenvolvimento da consciência.”

 

 

“A burguesia, por ser uma classe, não mais um estamento, é forçada a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, e a dar a seu interesse médio uma forma geral. Por meio da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado se tornou uma existência particular ao lado e fora da sociedade civil; mas esse Estado não é nada mais do que a forma de organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no exterior como no interior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses. A autonomia do Estado tem lugar atualmente apenas naqueles países onde os estamentos não se desenvolveram completamente até se tornarem classes, onde os estamentos já eliminados nos países mais avançados ainda exercem algum papel e onde existe uma mistura; daí que, nesses países, nenhuma parcela da população pode chegar à dominação sobre as outras. Este é especialmente o caso da Alemanha. O exemplo mais acabado do Estado moderno é a América do Norte. Todos os modernos escritores franceses, ingleses e americanos declaram que o Estado existe apenas em função da propriedade privada, de tal modo que isso também foi transmitido para o senso comum.

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e que sintetiza a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo, o direito é reduzido novamente à lei.”

 

 

Não se pode esquecer que o direito, tal como a religião, não tem uma história própria.”

 

 

“Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois lados não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens, história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas, quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história.”

 

 

Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via puramente empírica.

O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza. Naturalmente não podemos abordar, aqui, nem a constituição física dos homens nem as condições naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e outras condições já encontradas pelos homens.b Toda historiografia deve partir desses fundamentos naturais e de sua modificação pela ação dos homens no decorrer da história.

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material.

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.”

b Essas condições implicam não apenas a organização originária, natural, dos homens, em particular as diferenças entre as raças, mas também todo o seu ulterior desenvolvimento ou não desenvolvimento até os dias de hoje.

 

 

“O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados (em determinadas relações de produção), que são ativos na produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica (que se atém simplesmente aos fatos reais) tem de provar, em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio.c

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diantea, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciênciab.

Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas condições. Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos48, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas.

Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As fraseologias sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos homens.

Se separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão de seus estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser classificadas. A dificuldade começa, ao contrário, somente quando se passa à consideraçãoa2 e à ordenação do material, seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à exposição real.

A eliminação dessas dificuldades é condicionada por pressupostos que não podem ser expostos aqui, mas que resultam apenas do estudo do processo de vida real e da ação dos indivíduos de cada época.”

c As representações que esses indivíduos produzem são representações, seja sobre sua relação com a natureza, seja sobre suas relações entre si ou sobre sua própria condição natural. É claro que, em todos esses casos, essas representações são uma expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização social e política. A suposição contrária só seria possível no caso de, além do espírito dos indivíduos reais e materialmente condicionados, pressupor-se ainda um espírito à parte. Se a expressão consciente das relações efetivas desses indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a sua realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo limitado de atividade material e das suas relações sociais limitadas que daí derivam.

a e, na verdade, os homens tal como são condicionados pelo modo de produção de sua vida material, por seu intercâmbio material e por seu desenvolvimento ulterior na estrutura social e política.

b a consciência desses indivíduos práticos, atuantes.

48 O empirismo idealista (Berkeley, Hume, Mach, Avenarius etc.) sustenta, em oposição ao empirismo materialista (Bacon, Hobbes, Locke, os materialistas franceses do século XVIII etc.), que a natureza (cognoscível) constitui a origem da experiência. (N. T.)

a2 do material histórico, à pesquisa da estrutura real, fática, das diferentes camadas.

 

 

A ignorância não é um argumento.” (Spinoza)

 

 

“A atitude do burguês para com as instituições de seu regime é como a atitude do judeu para com a lei; ele as transgride sempre que isso é possível em cada caso particular, mas quer que todos os outros as observem. Se todos os burgueses, em massa e ao mesmo tempo, transgredissem as instituições burguesas, eles deixariam de ser burgueses – um comportamento que, naturalmente, eles não pensam em adotar e que de forma alguma é algo que dependa de seu querer ou de seu proceder. O burguês corrompido transgride as leis do casamento e secretamente comete o adultério; o comerciante transgride a instituição da propriedade quando, pela especulação, pela falência etc., priva outrem da propriedade; o jovem burguês, quando o pode, torna-se independente de sua própria família e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a família permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as bases sobre as quais a burguesia erigiu seu domínio, porque essas instituições, em sua forma burguesa, são as condições que fazem do burguês um burguês, assim como a lei constantemente transgredida faz do judeu religioso um judeu religioso. Essa relação do burguês com suas condições de existência adquire uma de suas formas universais na moralidade burguesa. Não se pode absolutamente falar de “a” família. Historicamente, a burguesia dá à família o caráter da família burguesa, que tem o tédio e o dinheiro como elementos unificadores e que já traz em si a dissolução burguesa da família, dissolução que não impede a própria família de continuar a existir. À sua imunda existência corresponde, na fraseologia oficial e na hipocrisia geral, o seu conceito sagrado. Onde a família é realmente dissolvida, como no proletariado, dá-se justamente o contrário do que diz “Stirner”. Aí não existe absolutamente o conceito de família, sendo possível, porém, nele encontrar ocasionalmente uma inclinação para a vida familiar que se baseia em relações extremamente reais. No século XVIII, o conceito de família foi dissolvido pelos filósofos porque a família realmente existente estava já em vias de dissolução nos estágios mais elevados da civilização. Dissolveu-se o vínculo interno da família, as partes que formam o conceito de família, por exemplo: a obediência, a piedade, a fidelidade conjugal etc.; mas o corpo real da família, a relação de propriedade, a atitude de exclusão em relação a outras famílias, a coabitação forçada – relações determinadas pela existência dos filhos, pela estrutura das cidades modernas, pela formação do capital etc. – continuaram a existir, embora com muitas alterações, porque a existência da família é tornada necessária por sua conexão com o modo de produção, o qual é independente da vontade da sociedade burguesa.”

A ideologia alemã (Parte I) – Karl Marx e Friedrich Engels

Subtítulo: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-073-7
Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano
Introdução: Emir Sader
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 616
Sinopse: A ideologia alemã é considerada por muitos estudiosos a obra de filosofia mais importante de Marx e Engels. Escrita entre os anos 1845-1846, representa a primeira exposição estruturada da concepção materialista da história e é o texto central dos autores acerca da religião. Nela eles concluem um acerto de contas com a filosofia de seu tempo – tanto com a obra de Hegel como com os chamados “hegelianos de esquerda”, entre os quais Ludwig Feuerbach. Esse ajuste passou antes pelos Manuscritos econômico-filosóficos, por A sagrada família, por A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, para alcançar em A Ideologia alemã sua primeira formulação articulada como método próprio de análise.
A crítica – quase toda em tom sarcástico – dos dois filósofos ridiculariza o idealismo alemão e articula as categorias essenciais da dialética marxista (como trabalho, modo de produção, forças produtivas, alienação, consciência), constituindo assim um novo corpo teórico. A tradução dos capítulos I e II, respectivamente dedicados à polêmica com Feuerbach e Bruno Bauer, baseia-se na edição da Mega-2 (Marx-Engels Gesamtausgabe), texto que foi antecipado no Marx-Engels Jahrbuch. Nessa nova edição, os manuscritos de Marx e Engels aparecem em sete seções, ordenadas cronologicamente, e são reproduzidos tal como foram deixados pelos autores. A nova organização do volume revoluciona a forma como até então A ideologia alemã foi lida e interpretada, principalmente no que diz respeito a seu primeiro capítulo, que Marx e Engels deixaram inacabado.
Fora da Alemanha, é a primeira vez que as sete partes do manuscrito de Marx e Engels sobre Feuerbach são apresentadas ao leitor como textos independentes, em sua fragmentação originária, sem sofrer as montagens mais ou menos arbitrárias que os diversos editores (desde a edição de Riazanov, em 1926) imputaram à obra.
Esse tratamento editorial esmerado levou à descoberta de que Marx e Engels, até o fim de 1845, não haviam concebido o plano de escrever A ideologia alemã, pelo menos não com esse título. Foi a partir de um artigo de Marx intitulado “Contra Bruno Bauer” que, em novembro de 1845, nasceram os manuscritos que, meses mais tarde, dariam corpo ao projeto inacabado de A ideologia alemã. Esse artigo, inédito no Brasil, compõe a nova edição da Boitempo Editorial, assim como uma série de anexos (apêndice, índices, cronologia, notas filológicas) preparados especialmente para esta publicação e atualizados com base nos mais recentes estudos sobre essa fundamental obra.



“Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.
O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico.
A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social –, social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social – modo de cooperação que é, ele próprio, uma “força produtiva” –, que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a “história da humanidade” deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas. (...) Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades e do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens – uma conexão que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma “história”, sem que precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos.”


“Somente depois de já termos examinado momentos, aspectos das relações históricas originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”.a Mas esta também não é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre, desde o início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens.aa Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado; é, desse modo, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural)b – e, por outro lado, a consciência da necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam constitui o começo da consciência de que o homem definitivamente vive numa sociedade. Esse começo é algo tão animal quanto a própria vida social nessa fase; é uma mera consciência gregária, e o homem se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no homem, sua consciência toma o lugar do instinto ou de que seu instinto é um instinto consciente.c Essa consciência de carneiro ou consciência tribal obtém seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da população, que é a base dos dois primeiros. Com isso, desenvolve-se a divisão do trabalho, que originalmente nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho que, em consequência de disposições naturais (por exemplo, a força corporal), necessidades, casualidades etc. etc.d, desenvolve-se por si própria ou “naturalmente”. A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual.e a partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras”. Mas mesmo que essa teoria, essa teologia, essa filosofia, essa moral etc. entrem em contradição com as relações existentes, isto só pode se dar porque as relações sociais existentes estão em contradição com as forças de produção existentes.”
a o homem tem também, entre outras coisas, “espírito”, e que esse “espírito” “se exterioriza” como “consciência”.
Os homens têm história porque têm de produzir sua vida, e têm de fazê-lo de modo determinado: isto é dado por sua organização física, tanto quanto sua consciência.
aa Minha relação com meu ambiente é a minha consciência.
Onde existe uma relação, ela existe para mim; o animal não se “relaciona” com nada e não se relaciona absolutamente. Para o animal, sua relação com outros não existe como relação.
b precisamente porque a natureza ainda se encontra pouco modificada historicamente.
c Vê-se logo, aqui: essa religião natural ou essa relação determinada com a natureza, é condicionada pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda parte, a identidade entre natureza e homem aparece de modo que a relação limitada dos homens com a natureza condiciona sua relação limitada entre si, e a relação limitada dos homens entre si condiciona sua relação limitada com a natureza.
d Os homens desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real.
e Primeira forma dos ideólogos, sacerdotes, coincide.


“A propriedade já tem seu embrião, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão na família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade, que aqui, diga-se de passagem, corresponde já à definição dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força de trabalho alheia.”


É precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal, tais como os laços de sangue, a linguagem, a divisão do trabalho em escala ampliada e demais interesses – e em especial, como desenvolvere-mos mais adiante, fundada sobre as classes já condicionadas pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um desses aglomerados humanos e em meio aos quais há uma classe que domina todas as outras. Daí se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., não são mais do que formas ilusórias – em geral, a forma ilusória da comunidade – nas quais são travadas as lutas reais entre as diferentes classes (algo de que os teóricos alemães sequer suspeitam, muito embora lhes tenha sido dada orientação suficiente nos Anais franco-alemães e n’ A sagrada família), e, além disso, segue-se que toda classe que almeje à dominação, ainda que sua dominação, como é o caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga forma de sociedade e a superação da dominação em geral, deve primeiramente conquistar o poder político, para apresentar seu interesse como o interesse geral, o que ela no primeiro instante se vê obrigada a fazer. É justamente porque os indivíduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles não guarda conexão com seu interesse coletivo, que este último é imposto a eles como um interesse que lhes é “estranho” e que deles “independe”, por sua vez, como um interesse “geral” especial, peculiar; ou, então, os próprios indivíduos têm de mover-se em meio a essa discordância, como na democracia. Por outro lado, a luta prática desses interesses particulares, que se contrapõem constantemente e de modo real aos interesses coletivos ou ilusoriamente coletivos, também torna necessário a ingerência e a contenção práticas por meio do ilusório interesse “geral” como Estado.”


O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento (devem ser julgadas segundo a própria realidade efetiva) resultam dos pressupostos atualmente existentes.”


“Finalmente, da concepção de história exposta acima obtemos, ainda, os seguintes resultados: 1) No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) – e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, que também pode se formar, naturalmente, entre as outras classes, graças à percepção da situação dessa classe; 2) que as condições sob as quais determinadas forças de produção podem ser utilizadas são as condições da dominação de uma determinada classe da sociedadea, cujo poder social, derivado de sua riqueza, tem sua expressão prático-idealista na forma de Estado existente em cada caso; é essa a razão pela qualb toda luta revolucionária dirige-se contra uma classe que até então dominou; 3) que em todas as revoluções anteriores a forma da atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolução comunista volta-se contra a forma da atividade existente até então, suprime o trabalho e supera a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes, pois essa revolução é realizada pela classe que, na sociedade, não é mais considerada como uma classe, não é reconhecida como tal, sendo já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades etc., no interior da sociedade atual e 4) que tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade.”
a cada fase de desenvolvimento das forças de produção serve de base à dominação de uma determinada classe da sociedade.
b No último estágio da sociedade burguesa.


“Essa concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produçãoe a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas da consciência – religião, filosofia, moral etc. etc.f – e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos). Ela não tem necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações idealistas; não é a crítica, mas a revolução a força motriz da história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria. Essa concepção mostra que a história não termina por dissolver-se, como “espírito do espírito”, na “autoconsciência”, mas que em cada um dos seus estágios encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns com os outros; relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um caráter especial – que, portanto, as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias. Essa soma de forças de produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos representam como “substância” e “essência do homem”, aquilo que eles apoteosaram e combateram; um fundamento real que, em seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens, não é nem de longe atingido pelo fato de esses filósofos contra ele se rebelarem como “autoconsciência” e como o “Único”. Essas condições de vida já encontradas pelas diferentes gerações decidem, também, se as agitações revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão fortes o bastante para subverter as bases de todo o existente, e se os elementos materiais de uma subversão total, que são sobretudo, de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro, a formação de uma massa revolucionária que revolucione não apenas as condições particulares da sociedade até então existente, como também a própria “produção da vida” que ainda vigora – a “atividade total” na qual a sociedade se baseia –, se tais elementos não existem, então é bastante indiferente, para o desenvolvimento prático, se a ideia dessa subversão já foi proclamada uma centena de vezes – como o demonstra a história do comunismo.
Toda concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base real da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico.
A história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. Daí que tal concepção veja na história apenas ações políticas dos príncipes e dos Estados, lutas religiosas e simplesmente teoréticas e, especialmente, que ela tenha de compartilhar, em cada época histórica, da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época se imagina determinada por motivos puramente “políticos” ou “religiosos”, embora “religião” e “política” sejam tão somente formas de seus motivos reais, então o historiador dessa época aceita essa opinião. A “imaginação”, a “representação” desses homens determinados sobre a sua práxis real é transformada na única força determinante e ativa que domina e determina a prática desses homens. Quando a forma rudimentar em que a divisão do trabalho se apresenta entre os hindus e entre os egípcios provoca nesses povos o surgimento de um sistema de castas próprio de seu Estado e de sua religião, então o historiador crê que o sistema de castas é a força que criou essa forma social rudimentar. Enquanto os franceses e os ingleses se limitam à ilusão política, que se encontra por certo mais próxima da realidade, os alemães se movem no âmbito do “espírito puro” e fazem da ilusão religiosa a força motriz da história. A filosofia hegeliana da história é a última consequência, levada à sua “mais pura expressão”, de toda essa historiografia alemã, para a qual não se trata de interesses reais, nem mesmo políticos, mas apenas de pensamentos puros, os quais, por conseguinte, devem aparecer a São Bruno como uma série de “pensamentos” que devoram uns aos outros e, por fim, submergem na autoconsciência; e, de modo ainda mais consequente, a São Max Stirner, que não sabe nada da história real, o curso da história tem de aparecer como uma mera história de “cavaleiros”, salteadores e fantasmas, de cujas visões ele naturalmente só consegue se salvar pela “profanação”a. Tal concepção é verdadeiramente religiosa, pressupõe o homem religioso como o homem primitivo do qual parte toda a história e, em sua imaginação, põe a produção religiosa de fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e da própria vida.”
e Feuerbach.
f explicando a sociedade civil em suas diferentes fases e em seu reflexo prático-idealista, o Estado, assim como o conjunto dos diversos produtos e formas teóricas da consciência, da religião, da filosofia, da moral etc. etc.
a A assim chamada historiografia objetiva consiste precisamente em conceber as condições históricas independentes da atividade. Caráter reacionário.


“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal (ideológica) das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. Por exemplo, numa época e num país em que o poder monárquico, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pela dominação, onde portanto a dominação está dividida, aparece como ideia dominante a doutrina da separação dos poderes, enunciada então como uma “lei eterna”.”


“Ora, se na concepção do curso da história separarmos as ideias da classe dominante da própria classe dominante e as tornarmos autônomas, se permanecermos no plano da afirmação de que numa época dominaram estas ou aquelas ideias, sem nos preocuparmos com o modo (as formas, as condições) de produção nem com os produtores dessas ideias, se, portanto, desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc.b A própria classe dominante geralmente imagina isso.
Essa concepção da história, comum a todos os historiadores principalmente desde o século XVIII, deparar-se-á necessariamente com o fenômeno de que as ideias que dominam são cada vez mais abstratas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A classe revolucionária, por já se defrontar desde o início com uma classe, surge não como classe, mas sim como representante de toda a sociedade; ela aparece como a massa inteira da sociedade diante da única classe dominante.aa Ela pode fazer isso porque no início seu interesse realmente ainda coincide com o interesse coletivo de todas as demais classes não dominantes e porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se desenvolver como interesse particular de uma classe particular. Por isso, sua vitória serve, também, a muitos indivíduos de outras classes que não alcançaram a dominação, mas somente na medida em que essa vitória coloque agora esses indivíduos na condição de se elevar à classe dominante.
Quando a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, ela tornou possível a muitos proletários elevar-se acima do proletariado, mas isso apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe instaura sua dominação somente sobre uma base mais ampla do que a da classe que dominava até então, enquanto, posteriormente, a oposição das classes não dominantes contra a classe então dominante torna-se cada vez mais aguda e mais profunda. Por meio dessas duas coisas estabelece-se a condição de que a luta a ser travada contra essa nova classe dominante deva propor-se, em contrapartida, a uma negação mais resoluta e mais radical das condições até então existentes do que a que puderam fazer todas as classes anteriores que aspiravam à dominação.
Toda essa aparência, como se a dominação de uma classe determinada fosse apenas a dominação de certas ideias, desaparece por si só, naturalmente, tão logo a dominação de classe deixa de ser a forma do ordenamento social, tão logo não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou “o geral” como dominante.”
Uma vez que as ideias dominantes são separadas dos indivíduos dominantes e, sobretudo, das relações que nascem de um dado estágio do modo de produção, e que disso resulta o fato de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas diferentes ideias “a ideia” etc. como o dominante na história, concebendo com isso todos esses conceitos e ideias singulares como “autodeterminações” do conceito que se desenvolve na história.c Assim o fez a filosofia especulativa.”
b A própria classe dominante tem, em média, a representação de que seus conceitos dominaram e os diferencia das representações dominantes de épocas precedentes apenas porque os apresenta como verdades eternas. Esses “conceitos dominantes” terão uma forma tanto mais geral e abrangente quanto mais a classe dominante precisar apresentar seus interesses como os interesses de todos os membros da sociedade.
a (A universalidade corresponde 1. à classe contra o estamento, 2. à concorrência, ao intercâmbio mundial etc., 3. à grande quantidade de membros da classe dominante, 4. à ilusão do interesse comum. No começo, essa ilusão é verdadeira. 5. Ao engano dos ideólogos e à divisão do trabalho.)
c É, desse modo, também natural que todas as relações dos homens possam ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, do homem.