sábado, 30 de janeiro de 2021

A luta de classes: uma história política e filosófica (Parte III), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-438-4

Tradução: Silvia de Bernardinis

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 400

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Ver Parte I




5. Entre trade-unionismo e populismo

O que torna mais grave a fragmentação das lutas de classes é a laceração que ocorreu entre luta anticapitalista na metrópole, nos países industrialmente mais desenvolvidos, e lutas que as ex-colônias são obrigadas a travar contra o neocolonialismo e a política das canhoneiras ou de aberta agressão atuada pelas grandes potências, hostis à ideia de abrir mão do domínio ou da hegemonia. É uma laceração explicitamente teorizada por um ilustre filósofo, que não poupa ironia em relação a uma tendência por ele considerada completamente equivocada: a luta de classes não teria mais como protagonistas “os capitalistas e o proletariado de todos os países”, mas se desenvolveria em um quadro internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa forma, a marxiana “crítica do capitalismo como tal” se reduz e se deforma em “crítica do imperialismo”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações capitalistas de produção[52]. Essa ironia e essa polêmica são realmente justificadas? Elas deveriam ter como alvo, em primeiro lugar, Marx: a atenção por ele dada à questão nacional é constante e, sobretudo, dá o que pensar a análise segundo a qual, em um país como a Irlanda, a “questão social” se apresenta como “questão nacional”.

Aos olhos de Žižek, no século XX o rebelde por excelência é Mao, que, porém, como vimos, mais clara e definidamente do que qualquer outro, afirma “a identidade entra a luta nacional e a luta de classes”. Com certeza é o momento em que a China é obrigada a enfrentar a tentativa de escravização levada adiante pelo imperialismo japonês (e, na Europa, pelo imperialismo alemão contra os eslavos e em particular contra a União Soviética). Mas a afirmação que acabamos de ver não é absolutamente uma astúcia tática, sugerida pelo fervor patriótico. Em 1963, em relação à luta dos afro-americanos pelos direitos civis e políticos, o líder chinês realça: “Em última análise, a luta nacional é uma questão de luta de classes”. É um ponto de vista reafirmado cinco anos depois: “A discriminação racial nos Estados Unidos é produto do sistema colonialista-imperialista. A contradição entre amplas massas do povo negro e a camarilha dirigente dos Estados Unidos é uma contradição de classe”[53]. Com certeza, ao falar de afro-americanos ficamos no interior de um único país, mas a conclusão seria diferente se analisássemos a opressão sofrida não por um povo de origem colonial, mas por um povo colonial em sentido estreito?

Para esclarecer o problema em questão, é útil refletir sobre um capítulo de história que também suscita o apaixonado interesse do filósofo que citei. Refiro-me à grande revolução (e à grande luta de classes) dos escravos negros de São Domingos-Haiti. Aos olhos de Žižek[54], ela retrocede “a uma nova forma de domínio hierárquico” só depois da morte de Jean-Jacques Dessalines, em 1806. Pois bem, concentremo-nos no período precedente: os escravos negros de São Domingos insurgem não contra o capitalismo como tal, mas contra o sistema escravista, que a metrópole capitalista destina aos povos coloniais. Isto é, desde o início, a revolução negra apresenta um componente de libertação nacional: a insurreição liderada por Toussaint Louverture liberta dos grilhões da escravidão não uma classe subalterna, mas o povo negro como um todo.

O componente de libertação nacional torna-se ainda mais explícito na segunda etapa da revolução. O poderoso Exército enviado por Napoleão sob o comando de Charles Leclerc (seu cunhado) propõe-se restabelecer ao mesmo tempo o domínio colonial da França e a escravidão negra, mas ele é derrotado pelos revolucionários que se apresentam como “Exército dos incas”, ou o “Exército indígena”, e gritam: “Maldito seja o nome da França! Ódio eterno à França!”[55]. A independência de facto reivindica agora também o reconhecimento de iure, e São Domingos é rebatizada de Haiti, com o significativo recurso a um nome que remete à época pré-colombiana. Em outras palavras, os revolucionários negros identificam-se com as primeiras vítimas do expansionismo colonial do Ocidente, propõem “ligar sua luta pela liberdade da escravidão com as primeiras batalhas dos povos indígenas contra os invasores espanhóis”[56].

Em conclusão, a revolução antiescravista é ao mesmo tempo uma revolução anticolonialista e acaba configurando-se como uma guerra de resistência e de libertação nacional. Seria absurdo definir como luta revolucionária de classe a primeira etapa desse processo e deixar de atribuir validade a essa caraterização em relação à segunda etapa; seria bastante singular considerar a insurreição para abolir a escravidão e o domínio colonial como luta revolucionária de classe e deixar de considerar como tal a resistência armada para impedir a restauração de uma e do outro. Em ambas as etapas, a questão nacional desenvolve um papel essencial e ambas são vistas favoravelmente por Žižek mesmo que ele ironize sobre a tendência de reduzir a luta de classes anticapitalista à luta anticolonialista e anti-imperialista.

No século XX, ocorre algo que pode ser comparado ao que acabamos de ver em São Domingos-Haiti e que tem seu lugar simbólico em Stalingrado, na batalha que inflige a derrota ao projeto hitleriano de colonizar e escravizar povos inteiros na Europa oriental. Não casualmente, os dois eventos comparados estimulam processos ideológicos parecidos. A contrarrevolução colonialista e escravista tentada por Napoleão adverte a necessidade de liquidar o conceito universal de homem ínsito na leitura feita pelos escravos de São Domingos da Proclamação dos Direitos do Homem de 1789; a Toussaint Louverture, que, como vimos, proclamou o princípio incondicionado de que, qualquer que seja a cor da pele, em nenhum caso um homem “pode ser propriedade de seu semelhante”[57], parece responder Napoleão: “Sou a favor dos brancos porque sou branco; não existe outra razão além dessa, mas essa é a boa”[58]. Ao pathos universalista ainda mais enfatizado que ressoa na Revolução de Outubro e no chamado aos escravos das colônias a romper seus grilhões, responde a teorização do UnderMan/Untermensch, do “sub-homem”: trata-se de uma categoria que, depois de ser formulada pelo autor estadunidense Lothrop Stoddard, sobretudo em função antinegra, preside à campanha hitleriana pela colonização da Europa oriental e pela escravização dos eslavos, como também pelo extermínio dos judeus, etiquetados junto com os bolcheviques como ideólogos e instigadores da desgraçada revolta das “raças inferiores”[59].

Tornou-se uma espécie de lugar-comum comparar a invasão napoleônica da Rússia com a invasão hitleriana da União Soviética. No entanto, seria mais pertinente comparar esta última com a expedição contra São domingos promovida por Napoleão – em ambos os casos, está em jogo a sorte do sistema colonial e do instituto da escravidão (mais ou menos camuflada); em ambos os casos, trata-se de uma luta de classes que é ao mesmo tempo uma guerra de resistência e de libertação nacional.

Devemos entender a simultânea presença da luta nacional como um elemento de contaminação da luta de classes? Observando cuidadosamente, trata-se de um problema e de um debate que percorrem em profundidade a história do movimento de inspiração socialista e comunista. Marx e Engels lamentam o fato de que os operários ingleses se empenham para melhorar suas condições de vida e para conquistar direitos políticos, mas não prestam atenção na independência da Irlanda, da Polônia ou da Índia. Mais tarde, ao polemizar contra o trade-unionismo e ao erguer o apoio aos movimentos de libertação nacional, considerados elemento essencial da consciência revolucionária de classe, Lenin é por sua vez acusado de abandonar o ponto de vista classista, de afundar a causa da emancipação do proletariado numa mixórdia indiferenciada e insípida[60]. Saltemos algumas décadas. Em 1963, evocando Lenin, o Partido Comunista Chinês reafirma: “No mundo atual, a questão nacional é uma questão de luta de classes”; o que exige uma “clara demarcação” entre “nações oprimidas” e imperialismo é “o ponto de vista marxista-leninista de classe”[61]. É uma polêmica contra os comunistas soviéticos, os quais por sua vez acusam os comunistas chineses de esquecer a luta de classes do proletariado na metrópole capitalista.

O perigo da fragmentação das lutas de classes está sempre à espreita. Com certeza, em 1963 era difícil assumir a atitude etiquetada no seu tempo por Lenin como trade-unionismo e considerar as revoluções anticoloniais que eclodem no Vietnã, na Argélia, na América Latina – e que são combatidas pelo imperialismo recorrendo a práticas genocidas – como estranhas à luta de classes. O atual quadro mundial parece mais favorável à retomada do trade-unionismo. Deve ser colocada nesse contexto a posição de Žižek? Na realidade, numa situação de crise teórica do marxismo, faz-se perceber também a tendência a fugir do desafio implícito na leitura árdua do entrelaçamento das contradições, a tendência que se poderia definir populista ao recuar para a leitura binária do conflito.”

[52] Slavoj Žižek, “Mao Tse-Tung, the Marxist Lord of Misrule”, introdução a Mao Tse-Tung, On Practice and Contradiction (Londres, Verso, 2007), p. 2 e 5.

[53] Mao Tse-Tung, On Diplomacy, cit., p. 379 e 439.

[54] Slavoj Žižek, Dalla tragedia alla farsa (2009) (Florença, Ponte alle Grazie, 2010), p. 159.

[55] Laurent Dubois, Avengers of the New World (Cambridge/Londres, The Belknap Press of Harvard University Press, 2004), p. 299.

[56] Ibidem, p. 292; idem, Haiti. The Aftershock of History (Nova York, Metropolitan, 2012), p. 18.

[57] Ver, neste volume, cap. 3, seção 2.

[58] Laurent Dubois, Avengers of the New World, cit., p. 261.

[59] Sobre a história da categoria de Under Man/Untermensch, cf. Domenico Losurdo, Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio critico (Turim, Bollati Boringhieri, 2002), cap. 27, seção 7; Il linguaggio dell’Impero. Lessico dell’ideologia americana (Roma/Bari, Laterza, 2007), cap. 3, seção 5.

[60] Ver, neste volume, cap. 4, seção 2.

[61] PCC (Partido Comunista Chinês), Die Polemik über die Generallinie der internationalen kommunistischen Bewegung (Berlim, Oberbaum, 1970), p. 238.

 

 

“Não só decisivas lutas de classes da história contemporânea acabaram configurando-se como lutas nacionais, como também elas foram e são travadas no plano econômico, além do militar.

O caso mais clamoroso é mais uma vez o da revolução dos escravos negros de São Domingos. Ela consegue infligir uma derrota ao Exército mais poderoso da época, o napoleônico. O país independente que surge dessa revolução, o Haiti, desenvolve uma função revolucionária que vai além de seus confins: impulsiona Simón Bolívar a abolir a escravidão na América Latina hispânica, ajudando-o na luta pela independência; inspira a revolta dos escravos negros em Demerara (atual Guiana) e na Jamaica; e estabelece relações com os abolicionistas britânicos. O primeiro país que aboliu o instituto da escravidão apresenta-se orgulhosamente como a terra da liberdade, e efetivamente a ele olham com esperança os escravos de Cuba ou do Sul dos Estados Unidos.

Justamente por isso, a luta do poder colonialista e escravista, cuja força é intata em nível mundial e que almeja neutralizar e liquidar o exemplo potencialmente incendiário do país governado por ex-escravos, não se esgota com a derrota do Exército enviado por Napoleão. Só que agora a cruzada para reestabelecer a incontestada supremacia branca recorre a novos métodos. Segundo Thomas Jefferson, é necessário – depois de isolá-los diplomaticamente – condenar à “inanição” os que ousaram desafiar e perturbar a ordem internacional. Ao rejeitar o reconhecimento da independência do Haiti, a França também deixa vislumbrar a ameaça de uma retomada da intervenção militar. Isso induz os dirigentes do país caribenho a aceitar, em 1825, um acordo que se revela catastrófico: em troca do reconhecimento da independência por parte do governo de Paris, eles se empenham a indenizar os colonos expropriados e privados de seu gado humano (os escravos negros). Haiti acaba endividando-se cada vez mais pesadamente – em 1898, metade do orçamento estatal é empregado para pagar o país credor e, em 1914, essa porcentagem sobe para 80%[62]. A espiral da crescente dependência econômica anula cada vez mais a formal independência política. Não há dúvidas: vitoriosa no plano militar, a revolução de São Domingos-Haiti sofre uma derrota no plano econômico; o povo e o país que haviam derrotado o Exército de Napoleão não conseguem pôr em discussão a divisão internacional do trabalho imposta pelo sistema colonialista. As consequências são graves, e não só pelo fato de que no interior do país pioram as condições de vida das massas populares; no plano internacional, o colapso do prestígio do país surgido com a revolução dos escravos negros deixa mais tranquilo o regime de white supremacy vigente no Sul dos Estados Unidos e, em última análise, o contexto mundial.

Uma réplica desse acontecimento se desenvolve no século XX, em duas etapas. Vejamos a primeira. Logo depois de outubro de 1917, Herbert Hoover, naquele momento alto representante da administração Wilson e mais tarde presidente dos Estados Unidos, agita de forma explícita a ameaça da “fome absoluta” e da “morte por inanição”, não só contra a Rússia soviética, mas contra os povos propensos a se contagiarem pela revolução bolchevique. Todos estão colocados diante de uma rude alternativa assim sintetizada por Gramsci já num artigo no Avanti! de 16 de dezembro de 1918: “Ou a bolsa ou a vida, ou a ordem burguesa ou a fome”. Olhemos para a segunda etapa. Saído extenuado pelo segundo conflito mundial, em maio de 1947, o país que até então era aliado dos Estados Unidos é colocado, pelo plano Marshall, diante de uma alternativa assim sintetizada por um estudioso estadunidense: se não querem renunciar aos créditos e às trocas comerciais dos quais necessitam com urgência, “os sovietes [devem] abrir sua economia aos investimentos ocidentais, seus mercados aos produtos ocidentais, suas cadernetas de poupança aos administradores ocidentais”, devem “aceitar a penetração econômica e mediática” dos países que se aprontam a constituir a Otan[63]. É a chantagem que já conhecemos: “Ou a bolsa ou a vida, ou a ordem burguesa ou a fome”. Com toda evidência, a luta econômica exerceu um papel não negligenciável na derrota final sofrida na Europa oriental pela Revolução de Outubro.

Mesmo a Revolução Chinesa, depois de enfrentar uma intervenção militar dos Estados Unidos, ainda que limitada, na guerra civil que se alastra no grande país asiático, deve confrontar-se com uma ofensiva desencadeada sobretudo pela frente econômica. Os expoentes da administração Truman são às vezes explícitos: é necessário criar as condições para que a China “sofra a chaga” de “um padrão de vida geral próximo ou abaixo do nível de subsistência”, do “atraso econômico” e de um “atraso cultural”; é necessário infligir “um custo pesado e bastante prolongado a toda a estrutura social” e criar, em última análise, “um estado de caos”, uma “situação econômica catastrófica” que estimule o “desastre” e o “colapso”. Sucedem-se os presidentes na Casa Branca, mas o embargo fica e inclui remédios, tratores e fertilizantes. No início dos anos 1960, um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, faz notar que, através dessa política, o desenvolvimento econômico da China atrasou pelo menos “dezenas de anos”. Se não a guerra econômica, a ameaça de guerra econômica não cessou nem na véspera do ingresso da China na Organização Mundial do Comércio. Ilustre cientista político estadunidense, Edwar Luttwak observou com satisfação: “Com uma metáfora, poder-se-ia afirmar que o bloqueio das importações chinesas é a arma nuclear que a América apontou contra a China”[64].”

[62] Laurent Dubois, Haiti. The Aftershock of History, cit., p. 7-8.

[63] S. F. Ambrose, “When the Americans Came Back to Europe”, International Herald Tribune, 20 maio 1997, p. 10.

[64] Sobre Bolívar e Jefferson, cf. Domenico Losurdo, Controstoria del liberalismo (Roma/Bari, Laterza, 2005), cap. 5, seção 8; sobre a guerra econômica contra a Rússia soviética e a República Popular Chinesa, cf. idem, Stalin. Storia e critica di una leggenda nera (Roma/Bari, Laterza, 2005), p. 196-7 e 288-9.

 

 

“Para conseguir uma genuína independência política, um país deve se livrar da pobreza.” (Deng Xiaoping70)

[70] Selected Works, cit., v. 3, p. 202.

 

 

“Contudo, com o perigo do chauvinismo sempre à espreita, é lícito ainda falar de questão nacional e, em determinadas circunstâncias, ligá-la e até mesmo identificá-la com a luta de classes? Em 1916, enquanto se alastrava uma carnificina imperialista travada em nome da “defesa da pátria”, sem hesitar, Lenin afirmava: “Em uma guerra efetivamente nacional, as palavras ‘defesa da pátria’ não são, de modo algum, um engano, e nós não somos contrários a essa guerra”[78]. Tratava-se de uma indicação preciosa, destinada a desenvolver um papel essencial nas lutas de resistência e de libertação nacional contra o Terceiro Reich e contra o domínio colonial em geral. Do lado oposto, os que, por analogia à Primeira Guerra Mundial, ridiculizavam a “defesa da pátria” e apelavam ao derrotismo acabavam de fato fazendo o jogo do Terceiro Reich ou do Império do Sol Nascente. É a confirmação de que substituir o fácil jogo das analogias à árdua “análise concreta da situação concreta” é só fonte de desastres.

Por outro lado, não existe categoria e não existe palavra de ordem que não sofra com as contaminações das lutas políticas e sociais. Ficou talvez imaculado o termo “democracia”? “Democrático” era o nome do partido que por longo tempo nos Estados Unidos lutou em defesa do instituto da escravidão e depois da white supremacy. É análogo o destino de palavras que, à primeira vista, pareceriam ser patrimônio incontestado da esquerda: revolução, socialismo, classe operária. E eis em 1933 a “revolução” do “Partido Nacional-Socialista dos trabalhadores alemães” dirigido por Hitler! As afinidades linguísticas podem também denotar o antagonismo, a luta cerrada que se desenvolve para interpretar em uma ou outra direção as palavras de ordem que, em determinada situação histórica, se impuseram à consciência comum ou à atenção geral.”

[78] LO, v. 23, p. 28.

 

 

Existe uma ofensiva político-ideológica que pretende demonizar Mao a partir da absolutização e da descontextualização de seus anos de governo mais infelizes. De um líder político que, morto em 1976, governou a China inteira a partir de 1948 e áreas mais ou menos extensas do imenso país a partir de 1928, só se consideram os anos do Grande Salto para Frente e da Revolução Cultural. Remove-se, assim, o essencial: “as conquistas sociais da era de Mao” consideradas num todo foram “extraordinárias”: elas implicaram a nítida melhora das condições econômicas, sociais e culturais e uma forte elevação da “expectativa de vida” do povo chinês. Sem esses pressupostos, não se pode compreender o prodigioso desenvolvimento econômico que sucessivamente libertou centenas de milhões de pessoas da fome e até mesmo da morte por inanição[94].

Em segundo lugar, os ideólogos do Ocidente calam o fato de que o Grande Salto é por diversos aspectos a tentativa desesperada de enfrentar um embargo devastador. Isso vale também em parte para a Revolução Cultural, ela mesma caraterizada pela ilusão de promover um rapidíssimo desenvolvimento econômico chamando à mobilização de massa e aos métodos adotados com sucesso na luta militar. Tudo isso sempre na esperança de pôr fim de vez às devastações da “guerra econômica”, atrás da qual se vislumbra a ameaça de uma guerra ainda maior. Em virtude dessas duas distorções, os corresponsáveis por uma tragédia, ou talvez seus principais responsáveis, assumem a atitude de juízes e emitem a sentença: Mao, o protagonista de uma épica luta de libertação nacional que derrota o projeto colonialista e escravista posto em marcha pelos imitadores asiáticos do Terceiro Reich, é colocado no mesmo plano de Hitler! É uma operação que visa a minar a autoestima tanto dos membros do Partido Comunista como dos cidadãos da República Popular Chinesa, no contexto de uma cruzada que deseja impor também em Pequim o poder da grande riqueza para liquidar uma anomalia considerada intolerável. É a combinação de pressão econômica e pressão político-ideológica que constitui a principal luta de classes que se desenvolve na China e em torno dela.

Para perceber esse fato é suficiente uma consideração elementar: o grande desenvolvimento industrial e tecnológico e a saída da “miséria” de “mais de 600 milhões de pessoas”[95], ou (segundo outros cálculos) de “660 milhões de pessoas”[96], não teriam sido possíveis se o projeto de regime change cultivado pelos Estados Unidos não tivesse sido derrotado; e o eventual sucesso desse projeto travaria agora o caminho aos ulteriores passos que se impõem no caminho da luta contra as duas desigualdades e, além disso, colocaria em perigo os resultados já conseguidos.

Certamente, não se pode ignorar a burguesia interna, em rápido crescimento, contra a qual, muitas vezes, entram em conflito os trabalhadores em luta por salários mais altos e melhores condições de trabalho e de vida, que conseguiram e estão conseguindo importantes resultados. Mas essas lutas não visam a derrubar ou pôr em discussão o poder político, aliás, muitas vezes, solicitam seu apoio a fim de vergar a arrogância e a resistência deste ou daquele patrão, deste ou daquele chefe local.

É uma atitude que muitas vezes surpreende o marxista ocidental. Ele chama os operários chineses a rejeitar todo compromisso com o poder estatal em sua luta sindical e acredita, assim, ser radical e até mesmo revolucionário. Na realidade, ele lembra o operário belga, Lazareviċ, que na Rússia soviética devastada pela guerra mundial e pela guerra civil estava pronto para denunciar como sinônimo de exploração toda tentativa do poder soviético de reorganizar o aparato industrial e econômico[97]. Obviamente a situação da China é bastante diferente. Contudo, os operários chineses – que muitas vezes são filiados ao Partido Comunista e que nessa qualidade preocupam-se, além de receber um salário mais alto, também em promover o desenvolvimento tecnológico das empresas nas quais trabalham e da nação da qual são membros – talvez tenham aprendido algo, de modo direto ou indireto, com o Que fazer?. Do corporativo “secretário de uma qualquer trade-union”, Lenin critica o fato de ele perder de vista a luta de emancipação em seus diversos aspectos nacionais e internacionais, tornando-se assim às vezes suporte de “uma nação que explora todo o mundo” (naquela época, a Inglaterra). Bastante diferente é a atitude do revolucionário “tribuno popular”, que deve saber olhar para o conjunto das relações políticas e sociais em âmbito nacional e internacional. O operário chinês, ainda que vagamente consciente do fato de que o desenvolvimento tecnológico de seu país torna mais difícil a “anexação econômica” (Lenin), isto é, a “agressão econômica” e o “jugo econômico” (Che Guevara) impostos pelo imperialismo aos países rebeldes, é muito mais próximo do “tribuno popular” (protagonista da luta de classes revolucionária) do que o marxista ocidental, preocupado só com o salário. Diversamente de seu suposto defensor, aquele operário, de alguma maneira, intui o fato de que os principais antagonistas da luta de classes na China e arredores são, de um lado, a burguesia estadunidense e ocidental e, do outro, um estrato político revolucionário que se autonomizou, mas que, diversamente do que ocorreu na Europa oriental, continua a desfrutar de grande prestígio pelo fato de encarnar com coerência a causa da emancipação nacional.

Ninguém pode prever qual será o resultado dessa luta. Não podem prevê-lo os capitalistas chineses, obrigados a confrontar-se com a política descrita então por Mao como total “expropriação política”, mas só parcial “expropriação econômica” da burguesia. A expropriação política de que se fala não é só a impossibilidade de transformar o poder econômico em poder político. Na realidade, é o próprio poder econômico da burguesia que sofre fortes condicionamentos políticos. É suficiente entrar numa empresa chinesa de propriedade privada para perceber o peso que mesmo em seu interior exercem o Partido Comunista e os trabalhadores comunistas organizados: eles estimulam a propriedade a reinvestir uma parte consistente dos lucros no desenvolvimento tecnológico da empresa, de modo a acelerar o desenvolvimento das forças produtivas e a modernização do país e a reduzir ou apagar o primeiro tipo de desigualdade; ou a propriedade é estimulada a usar uma parte dos lucros para intervenções de caráter social. Se ademais considerarmos o fato de que as empresas privadas dependem amplamente do crédito fornecido por um sistema bancário controlado pelo Estado, uma conclusão emerge: nas próprias empresas privadas o poder da propriedade privada é balançado e limitado por uma espécie de contrapoder. Os capitalistas chineses que não se adaptam a essa situação abandonam o país, mas têm dificuldade para transferir sua riqueza.

O resultado da luta em curso não pode ser previsto nem pelo Partido Comunista. Ele é consciente da necessidade de avançar na via da democratização, apesar da persistência e, por certos aspectos, do agravamento do cerco e da ameaça militar. Mas, apesar da imprecisão de seus traços, a democracia perseguida por Pequim não é aquela invocada pelo Ocidente, que por democracia entende, em última análise, a possibilidade para a burguesia chinesa de transformar finalmente o poder econômico em poder político. Por outro lado, é necessário considerar que no interior do Partido Comunista Chinês parecem enfrentar-se uma corrente puramente nacional, que considera concluído o processo revolucionário com a conquista dos objetivos nacionais (modernização, recuperação da integridade territorial e renascimento da China), e uma corrente com objetivos muito mais ambiciosos, que remetem à história e ao patrimônio ideal do movimento comunista.

Existe, de qualquer forma, uma questão que não pode ser posta em discussão. Com seu desenvolvimento – que continua sendo amplamente dirigido pelo poder político e que ainda hoje busca subordinar aos fins gerais a habitual caça ao lucro dos setores privados da economia –, a China é o país que mais do que qualquer outro põe em discussão a divisão internacional do trabalho imposta pelo colonialismo e pelo imperialismo e que promove o fim da época colombiana, um fato de alcance histórico enorme e progressivo.”

[94] Giovanni Arrighi, Adam Smith a Pechino. Genealogie del XXI secolo, cit., p. 406-7.

[95] Andrea Goldstein, BRIC. Brasile, Russia, India e Cina ala guida dell’economia globale (Bolonha, Il Mulino, 2011), p. 31.

[96] S. Roach, “Transforming Economic Structure Risky but Vital Task of Nation’s Future”, Global Times, 15 nov. 2012.

[97] Ver, neste volume, cap. 7, seção 1.

 

 

“Na realidade, observamos que Marx configurou a luta de classes como luta pelo reconhecimento, conduzida contra um sistema político-social que desumaniza e reifica uma massa infinita de indivíduos concretos, e denunciou a produção capitalista como “dilapidadora de homens”, responsável por um “‘desperdício’ de vida humana, digno de Timur-Tamerlão”, ou melhor, por um “ininterrupto rito sacrifical contra a classe operária”[29]. Desde que existe o capitalismo, “todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor” mais uma vez individual[30]. O que foge a Weil é o fato de que, em consequência da unidade entre homem e natureza e do papel decisivo desenvolvido pelo conhecimento no desenvolvimento das forças produtivas, a dilapidação e o desperdício de vidas humanas são ao mesmo tempo a dilapidação e o desperdício de riqueza material. Destruição capitalista das forças produtivas e destruição capitalista dos recursos humanos estão estritamente entrelaçadas, aliás, tornam-se uma única coisa. “A maior força produtiva” é o proletariado, a “própria classe revolucionária”[31]; obrigar os operários a uma morte precoce em consequência da sobrecarga de trabalho e de uma vida de pobreza significa também desgastar a riqueza social. Para dispor de “material humano sempre pronto para ser explorado”, o capitalismo condena “uma parte da classe operária a um ócio forçado”. É o exército industrial de reserva que, com sua concorrência, permite forçar a parte ocupada da classe operária a uma sobrecarga de trabalho[32]. E, mais uma vez, por um lado tanto o “ócio forçado” como a sobrecarga de trabalho comportam a humilhação e a degradação dos indivíduos concretos, dos homens de carne e osso, por outro lado constituem uma dissipação e uma destruição de recursos materiais. Trata-se de um processo que se manifesta em escala ainda mais ampla em ocasião das recorrentes crises de superprodução.”

[29] Ver, neste volume, cap. 3, seção 3 e cap. 1, seção 12.

[30] MEW, v. 23, p. 674 [ed. bras.: Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 720].

[31] Ibidem, v. 4, p. 181.

[32] Ibidem, v. 23, p. 661 e 665 [ed. bras.: ibidem, p. 707].

 

 

9. Para além do populismo

Quando observamos estudiosos que são leitores e prestigiosos intérpretes de Marx e Engels deslizarem no populismo, somos obrigados a colocar-nos uma pergunta: os dois autores do Manifesto Comunista são em absoluto estranhos ao modo de ver e de sentir aqui criticado? Em relação à primeira forma do populismo, não há dúvidas: a Marx se deve a crítica mais pungente da nostalgia por uma mítica “plenitude original”. Se analisarmos a segunda forma de populismo, chegamos a conclusões mais articuladas. Nesse caso, é necessário distinguir entre as diferentes variáveis do populismo de transfiguração dos oprimidos. Comecemos pela segunda: mesmo denunciando o martírio infligido ao povo irlandês pelo colonialismo britânico, bem longe de abandonar-se à celebração de uma essencialista alma “irlandesa”, os dois filósofos e militantes revolucionários realçam ao mesmo tempo o papel reacionário e antiabolicionista desenvolvido nos Estados Unidos, em ocasião da Guerra de Secessão, pelos migrantes de origem irlandesa.

Análogas considerações podem ser feitas em relação à terceira variável que pode assumir o populismo de transfiguração dos oprimidos. Denunciando a condição da mulher como “primeira opressão de classe”, não há dúvidas de que Marx e Engels deram forte impulso ao movimento feminista. O Manifesto Comunista condena fortemente não só a opressão, como também o processo de reificação que pesa sobre a mulher; ao mesmo tempo, porém, o texto não tem dificuldade em falar de “a exploração das crianças pelos seus próprios pais”, sem excluir a mãe[82]. Não existe lugar para o essencialismo: assim como para os povos oprimidos, para as mulheres também não faz sentido explicar sua condição remetendo a uma presumida natureza longamente vilipendiada, mas da qual agora, invertendo o tradicional juízo de valor, é necessário reconhecer e celebrar a superioridade moral. Trata-se de analisar e de pôr em discussão uma divisão do trabalho historicamente determinada que envolva respectivamente a submissão colonial ou semicolonial e a escravidão ou a segregação doméstica.

Convém fazer mais algumas observações em relação à primeira variação do populismo de transfiguração dos oprimidos, a variável orientada a transfigurar as classes subalternas. Em seus escritos juvenis, contrapondo-se aos que tocam o alarme para a nova invasão dos bárbaros, Marx e Engels tendem a atribuir ao proletariado a capacidade de adquirir facilmente uma consciência revolucionária madura, uma espécie de imunidade dos “preconceitos nacionais”, da tacanhez de espírito e do ódio chauvinista, além de uma nobreza de espírito completamente ausente nas classes proprietárias. Todavia, desde o início prevalece marcadamente a atenção reservada à concreta análise histórica e social: fala-se de “nobreza de espírito” mesmo para a nobreza polonesa, que sacrifica seus interesses de classe ou de estrato por causa da libertação nacional; assim como do lado oposto não se esconde a depravação do lumpemproletariado, de uma classe na qual o sistema capitalista ameaça continuamente impelir indivíduos e camadas da classe operária.

Pelo contrário, pode-se colher um resíduo de populismo na visão segundo a qual, na sociedade comunista, o Estado seria destinado a extinguir-se. Já realcei o caráter completamente irrealista dessa espera. Pode-se agora acrescentar uma ulterior consideração: não se compreende por que a absorção do Estado na sociedade civil deveria constituir um progresso. Historicamente, medidas entre si tão diferentes, como a introdução da escolaridade obrigatória no Ocidente, a proibição do sati (o suicídio “voluntário” das viúvas) na Índia, o fim da segregação das escolas no Sul dos Estados Unidos, foram todas resultado de uma imposição do Estado sobre a sociedade civil. Hoje, em certos países islâmicos a emancipação das mulheres é mais fácil de ser promovida pelo Estado do que pela sociedade civil. É verdade que, quando Marx e Engels auspiciam a absorção do Estado na sociedade civil, pensam numa sociedade civil liberada do antagonismo de classe. Contudo, no discurso deles está presente certa idealização da sociedade civil (pensada em contraposição ao poder) e, nesse sentido, um resíduo de populismo.

É esse resíduo de populismo que explica os deslizamentos na leitura binária do conflito, na qual às vezes caem os dois filósofos e militantes revolucionários. Sim, quando analisam um acontecimento histórico concreto (por exemplo, a luta pela redução da carga horária de trabalho ou a Guerra de Secessão), Marx e Engels repetidamente chamam atenção para as múltiplas contradições e para o papel às vezes progressivo desenvolvido pelo Estado e até mesmo pelo Estado burguês. Isto é, estamos nos antípodas do populismo. Todavia, em ocasião da Comuna de Paris, Marx vê a contraposição entre “contraorganização internacional do trabalho” e “conspiração cosmopolita do capital”. Sobretudo, o Manifesto reduz “em breve” a luta de classes à luta entre “opressores e oprimidos”. Se tomarmos essa fórmula agitadora ao pé da letra, é claro que não estamos muito distantes da visão (populista) tão cara a Weil da história como “luta dos que obedecem contra os que comandam”. Na realidade, considerando o pano de fundo e a elaboração mais geral de Marx e Engels, persuade mais uma interpretação diferente. Podemos com certeza dizer que as épicas lutas de classes desenvolvidas em Valmy, Porto Príncipe, Paris (em junho de 1848), Gettysburg e Stalingrado viram a contraposição de oprimidos e opressores. Mas isso é verdadeiro só em última análise; ou seja, levando em conta a absoluta centralidade e urgência daquilo que, cada vez, está em jogo (os destinos respetivamente do Antigo Regime, da escravidão negra nos Estados Unidos, da nova escravidão colonial que o Terceiro Reich estava decidido a impor contra os eslavos), todas as outras contradições, todas as outras relações de coerção tornavam-se (naquele determinado momento histórico) absolutamente secundárias.”

[82] MEW, v. 4, p. 478 [ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 55].

A luta de classes: uma história política e filosófica (Parte II), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-438-4

Tradução: Silvia de Bernardinis

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 400

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Ver Parte I



2. Guerra e retomada do idealismo da práxis

O que tornou ainda mais difícil a construção de uma ontologia do ser social foi um acontecimento que teve papel decisivo na história da fortuna de Marx e Engels. No curso da Primeira Guerra Mundial, os diversos Estados em luta, mesmo aqueles de mais consolidada tradição liberal, apresentaram-se como Moloch sangrentos, decididos a sacrificar milhões de homens no altar da defesa da pátria e na realidade da competição imperialista pela hegemonia mundial. Tamanho horror não poderia deixar de levantar e radicalizar ulteriormente a tese, aliás, a espera mais ou menos messiânica, da extinção do Estado; parecia completamente insatisfatório qualquer programa político que se detivesse aquém da reivindicação de uma ordem social desprovida de aparato estatal e militar.

É um clima espiritual que, junto com os grandes intelectuais, atinge por algum tempo também personalidades políticas de primeiro plano. Ao publicar Estado e revolução enquanto se alastra a carnificina bélica e na véspera da revolução chamada a pôr fim à mesma, Lenin formula a tese de que o proletariado vitorioso “precisa unicamente de um Estado em via de extinção”[8]. Três anos depois, em um momento em que é forte a esperança de um alastrar-se da revolução no Ocidente, o líder revolucionário, que habitualmente se distingue por um realismo e uma lucidez fora do comum, abandona-se a uma previsão bastante próxima da ficção política: “A geração, cujos representantes têm hoje cerca de cinquenta anos, não pode pensar em ver a sociedade comunista. Até lá, terá desaparecido. Mas a geração que hoje tem quinze anos verá a sociedade comunista e construirá ela mesma essa sociedade”[9]. Do futuro comunista, que aqui parece de fácil alcance, faz parte também a extinção do Estado como tal.

A retórica patriótica e os ódios nacionais, em parte “espontâneos”, em parte sabiamente atiçados, desbocaram em um horror sem precedentes. Era imperiosa a exigência de acabar com tudo isso; eis, então, a emergência em certos setores do movimento comunista a um internacionalismo irrealista orientado a liquidar as diversas identidades nacionais como simples preconceitos.

O que provocou a catástrofe foram a competição pela conquista das colônias, dos mercados e das matérias-primas, a busca ao lucro e, em última análise a auri sacra fames. Em 1918, o jovem Bloch[10] assim sintetizava as expectativas messiânicas do tempo: os sovietes realizariam a “transformação do poder em amor” e edificariam um mundo liberado de vez de “toda economia privada”, de toda “economia do dinheiro” e, com ela, da “moral mercantil que consagra tudo que de mais malvado há no homem”. Em pouco tempo, a trágica experiência do primeiro conflito mundial reforçava ulteriormente e de forma bastante definida a tendência ao idealismo da práxis; agora era a mesma consciência moral que impunha a negação do caráter de ser social ao Estado, à nação, ao mercado, às estruturas e às relações consideradas responsáveis pela infâmia que se consumou entre 1914 e 1918 e que ameaçava repetir-se (e que de fato se repetiu) em breve.

À luz de tudo isso, a advertência já observada no último Lukács de não perder de vista a objetividade do ser social contém um tom autocrítico. Nos anos da juventude, em 1922, ele mesmo não o havia levado em conta, quando escreveu: “O núcleo do ser é visto como devir social, o ser pode aparecer como produto da atividade humana, até agora com certeza inconsciente, e esta última pode por sua vez aparecer como o elemento determinante da transformação do ser”[11]. Nesse caso também transparece o idealismo da práxis, embora a luta de classes do proletariado tenha tomado o lugar do empenho a liquidar os “vínculos das coisas em si”.

O idealismo da práxis é pertinaz. Ainda em 1936-1937, Trotski retoma e reafirma a previsão de ficção política que já observamos em Lenin: “A geração que conquistou o poder, a velha guarda, inicia a liquidação do Estado; a geração seguinte completará essa tarefa”. No horizonte da Rússia soviética, porém, não se vislumbra nada que torne crível essa perspectiva. Mesmo em relação ao dinheiro, não há traço de sua “progressiva deterioração”; ao contrário, ele não perdeu de forma alguma “sua potência mágica”; nem a “constrição estatal” e tampouco a “constrição monetária” apresentam rachaduras. Permanecem, portanto, firmemente de pé as características centrais de uma “sociedade dividida em classes, que não pode determinar as relações entre os homens, a não ser pela ajuda de fetiches religiosos ou laicos, pondo-os sob a proteção do mais temível, o Estado, com um grande punhal entre os dentes”[12]. Os “grilhões das coisas em si” de Fichte permanecem consistentes e resistentes. Só resta visar, através da luta de classe, à “burocracia” que está no poder e que obstaculiza a realização do programa originário.

 

3. A difícil passagem da práxis à teoria

Sim, o idealismo da práxis é pertinaz; todavia, ele é pontualmente desmentido pela prática de governos, pela práxis em andamento. O novo poder soviético agita a bandeira da extinção do Estado. Entretanto, em junho de 1919, Gramsci atribui àquela “aristocracia de estadistas” representada pelos bolcheviques o mérito de ter salvado o Estado russo da dissolução à qual parecia condenado pela catástrofe da guerra mundial, da guerra civil e das ambições e das manobras do imperialismo[13]. O Estado russo salvo pelos defensores da extinção do Estado! A reação de um leitor anarquista de L’Ordine Nuovo é de escândalo, ele observa que é a própria Constituição soviética que empenha-se para a instauração de uma ordem em cujo âmbito “não haverá mais divisões de classe nem poder do Estado[14]. Efetivamente, é clara aos bolcheviques a divergência da práxis em relação à teoria, mas é a práxis que demonstra maior lucidez. A práxis, a luta de classes revolucionária, impede um país já prostrado de se precipitar em uma guerra de todos contra todos, em um ciclo interminável de balcanização e fragmentação anárquica, de violências e vinganças privadas; por consequência, impede a permanência de um poder mais ou menos feudal nesta ou naquela área de um país de dimensões continentais e o impasse ou o fracasso da edificação da nova ordem.

Em uma importante intervenção (“melhor menos, mas melhor”), que confirma sua grandeza como homem de Estado, publicada na Pravda de 4 de março de 1923, Lenin lança palavras de ordem bastante significativas: “melhorar nosso aparato estatal”, empenhar-se na “edificação do Estado”, “construir um aparato [estatal] realmente novo, que realmente mereça o nome de socialista, de soviético” (enfrentando uma tarefa desafiadora que requer “muitos, muitíssimos anos”), aperfeiçoar o “trabalho administrativo”, fazendo tudo isso sem deixar de aprender com “os melhores modelos da Europa ocidental”[15]. De novo, a práxis invocada e parcialmente atuada está mais do que nunca em contradição com a teoria, sendo muito mais madura que ela. Talvez emergissem os primeiros, vagos elementos de reconsideração mesmo na teoria: não só é silenciado ou projetado em um futuro remoto o fim da extinção do Estado, como também emerge a consciência de que negligenciar a tarefa da edificação de um Estado novo significa, em última análise, prolongar a sobrevivência do velho aparato estatal czarista: “Devemos apagar qualquer indício daquilo que a Rússia czarista e seu aparato burocrático e capitalista deixaram em tão ampla medida como herança para nosso aparato”[16]. Todavia, a teoria da extinção do Estado como objetivo remoto da luta de classes revolucionária não é posta em discussão.

Contudo, em A ideologia alemã (e em outros textos de Marx e Engels) podemos ler que o Estado é também a “forma de organização” com que os indivíduos da classe dominante garantem a si próprios[17]. E não se compreende por que essa função deveria se tornar desnecessária no âmbito de uma “classe dominante” diferente, ou de uma sociedade diferente, que afinal de contas é sempre constituída por indivíduos entre os quais continuam obviamente a existir a possibilidade e a realidade de desacordos, tensões e conflitos. As primeiras dúvidas sobre a extinção do Estado são formuladas enquanto a guerra civil entre os bolcheviques (em parte latente, em parte manifesta) e o grande terror fazem sentir tragicamente a ausência de uma “forma de organização”, através da qual os membros do partido e da sociedade podem garantir a si próprios. Expressando-se com prudência e com a consciência de andar num campo minado, ao enumerar as funções do Estado socialista, além das tradicionais de defesa do inimigo de classe no plano interno e internacional, em 1938, Stalin teoriza uma “terceira função, isto é, o trabalho de organização econômica e o trabalho cultural e educativo dos órgãos de nosso Estado”, um trabalho finalizado com o “objetivo de desenvolver os embriões da economia nova, socialista, e de reeducar os homens no espírito do socialismo”. Tem razão o grande jurista Hans Kelsen quando realça imediatamente a “mudança radical da doutrina desenvolvida por Marx e Engels”[18]. Trata-se, todavia, de uma mudança que de alguma forma esconde a si mesma e que, portanto, não produz uma virada real. Não sendo a tese da extinção do Estado explicitamente posta em discussão, continua eludida a questão relativa aos mecanismos jurídicos e institucionais capazes de dar certeza da garantia recíproca entre os indivíduos. Na história do “socialismo real”, o problema do governo da lei, da rule of law, emerge muito mais tarde, com Deng Xiaoping[19] na direção da China, depois de uma Revolução Cultural, também animada pela convicção do caráter “formal” e escassamente significativo de uma norma jurídica destinada, de qualquer forma, a desaparecer junto com o Estado.

Em segundo lugar, a Revolução de Outubro e a luta de classes do proletariado russo e mundial deveriam pôr em movimento um processo que terminaria não dando espaço às identidades e às fronteiras nacionais. Sobre esse ponto, a contradição entre teoria e práxis é anterior à conquista do poder por parte dos bolcheviques. “Os operários não têm pátria”, proclama o Manifesto Comunista[20]; mas depois os próprios autores identificam-se com as lutas nacionais dos povos oprimidos, pondo-as no centro da agitação da Associação Internacional dos Trabalhadores. No plano mais propriamente teórico, é Marx quem realça o fato de que em um país como a Irlanda, a “questão social” se configura como “questão nacional”. Depois de outubro de 1917, em um momento em que a onda revolucionária parece a ponto de espalhar-se na Europa (e no mundo inteiro), ao assumir o cargo de comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, Trotski resume com precisão a perspectiva que parece vislumbrar-se no horizonte: “Emitirei alguns decretos revolucionários aos povos do mundo e depois fecharei as portas”[21]. Com uma humanidade unificada em âmbito planetário, o primeiro ministério que resultaria desnecessário seria aquele que normalmente preside às relações entre os diversos Estados. Não é diversa a atitude de Lenin, que, concluindo o I Congresso da Internacional Comunista, declara: “A vitória da revolução proletária em todo o mundo é garantida. Está próxima a hora da fundação da república mundial dos sovietes”[22]. Alguns meses depois, em 4 de janeiro de 1920, o líder soviético realça que o problema de “estabelecer a fronteira entre os Estados hoje” deve com certeza ser enfrentado, mas “provisoriamente – já que nós almejamos sua abolição completa”; travada até o fim, a luta de classes revolucionária resultaria na fundação da “República federativa soviética mundial”[23].

Entretanto, Lenin é impelido pelas necessidades concretas da luta de classes, pela defesa da Rússia soviética e pela edificação da nova sociedade a usar o tom patriótico. Rejeitando indiretamente as acusações de traição nacional dirigidas aos bolcheviques pelos defensores da continuação a qualquer preço da guerra, em outubro de 1921 ele observa que com Brest-Litowsk “a Rússia, embora mutilada, pôde sair da guerra imperialista e saiu menos mutilada do que sairia se tivesse continuado”[24]. Alguns meses depois (março de 1922), o líder soviético convida nestes termos seus colaboradores e seus seguidores a demonstrar concretude: “O camponês dirá: ‘Sois bravíssima gente, têm defendido a nossa pátria, por isso obedecemos; mas, se não sabem administrar, vão embora’”[25]. No que diz respeito a Stalin, ele já trava sua luta pela paz imediata e pela revolução bolchevique agitando palavras de ordem nacional, isto é, denunciando como expressão de arrogância imperial e neocolonial a pretensão da Entente de obrigar a Rússia a continuar a guerra. Contudo, é com certa surpresa que em 1929 Stalin[26] aponta um fenômeno em grande parte inesperado pelos protagonistas da Revolução de Outubro: “A estabilidade das nações é de tamanho colossal!”.

Mais importante ainda do que esses indiretos reconhecimentos teóricos à ideia de nação e de pátria são os resultados efetivamente originados pela ação de governo. Em 1927, Benjamin[27] põe em evidência “o forte senso nacional que o bolchevismo desenvolveu em todos os russos, sem distinção”. A conclusão a que chega Trotski, dez anos depois, é ainda mais eloquente[28]: na URSS difunde-se um “novo patriotismo soviético”, um sentimento “certamente muito profundo, sincero e dinâmico” pelo fato de que ele não implica a opressão das “nacionalidades atrasadas” não russas, mas seu respeito e sua participação nos “benefícios” do total desenvolvimento econômico e cultural.

O “patriotismo soviético” (e, na realidade, sobretudo russo) desenvolve, além do mais, um papel decisivo na derrota infligida pela URSS ao projeto hitleriano de colonizar e escravizar os povos da Europa oriental. Em síntese, a luta de classes revolucionária que, a partir da conquista do poder, deveria inaugurar um processo destinado a resultar no desaparecimento do Estado e da nação marca, na realidade, a emergência de uma “aristocracia de estadistas” e de um patriotismo que salvam o Estado e a nação de uma catástrofe de dimensões monstruosas.

Isso não é tudo. Junto com as identidades nacionais, as identidades linguísticas também estavam destinadas a desaparecer na onda da formação de uma comunidade mundial unificada até mesmo no plano linguístico, em seguida à superação das velhas culturas e das velhas línguas, que tinham imprimido sobre si o estigma de uma sociedade dividida em classes e que, portanto, não poderiam sobreviver por muito tempo ao colapso do capitalismo – não eram poucos aqueles que assim argumentavam na Rússia soviética. Nesse caso, a contraposição entre teoria e práxis era particularmente clamorosa. Assim que conquistaram o poder, os bolcheviques empenhavam-se em um programa de alfabetização maciça que implicava a difusão do russo entre amplas massas até então incapazes de ler e escrever. Aquilo que acontecia em relação às minorias nacionais era de particular importância. Em 1936-1937, Trotski traçava um balanço eloquente.

A instrução é dada atualmente na URSS em pelo menos oitenta línguas. Para a maioria desses idiomas, foi necessário criar o alfabeto ou substituir alfabetos asiáticos demasiado aristocráticos por alfabetos latinizados, mais acessíveis para as massas. Aparecem jornais em igual número, permitindo aos pastores nômades e aos cultivadores primitivos conhecer os elementos da cultura.[29]

Contudo, é tão tenaz a visão de tipo milagroso de uma luta de classes capaz de gerar um mundo totalmente novo que, um ano antes de sua morte, em 1952, Stalin ainda se sente obrigado a intervir polemicamente. Não, é necessário reconhecer os limites da luta de classes. A língua “não é criada por uma classe qualquer, mas por toda a sociedade, por todas as classes da sociedade, através dos esforços de centenas de gerações. É criada para satisfazer as necessidades não de uma classe qualquer, mas de toda a sociedade, de todas as classes da sociedade”. Afirmar que a língua não está acima do conflito social pode parecer mais “classista” e mais revolucionário. Na realidade, é veleidade perder de vista o fato de que a língua “constitui o produto de uma série inteira de épocas” e que a pretensão de inventar uma língua proletária ex novo, esquecendo mais uma vez a marxiana “atividade anterior” da língua, perde de vista o fato de que ela é “meio de comunicação entre os homens”[30]. A indevida dilatação do âmbito da luta de classe compromete a comunicação intersubjetiva e liquida a dimensão da universalidade, que é constitutiva da marxiana luta de classes como luta pelo reconhecimento.

Sim, em tempos bastante rápidos, a práxis consegue lucidez, mas a necessária operação de adaptar a teoria à práxis revela-se de extrema dificuldade e carregada de contradições e lacerações muitas vezes trágicas.

 

4. A dura descoberta do mercado

Mesmo em relação ao mercado, podemos notar a habitual discrepância entre teoria e práxis. Mas neste último caso o quadro é mais complexo. Por um lado, reapresenta-se a dialética já analisada. Relançando o aparato econômico e produtivo de um país em colapso e onde às vezes a única forma de troca é constituída pelo escambo, de fato o poder soviético amplia o mercado – e amplia-o ulteriormente quando promove uma campanha em vasta escala para a industrialização e a urbanização. Pode-se fazer uma consideração de caráter geral: nas sociedades prevalentemente atrasadas e semifeudais em que os partidos comunistas chegaram ao poder, o desenvolvimento da economia e das forças produtivas implicou também a extensão das relações mercantilistas, e, de qualquer forma, o advento de um autêntico mercado nacional. Mas tudo isso no plano teórico correspondeu à demonização do mercado, particularmente viva nos países entre os quais continua a advertir-se o choque da Primeira Guerra Mundial. Ainda na véspera de sua morte, Stalin[31] é obrigado a empenhar-se em uma difícil batalha ideológica: “Não se pode identificar a produção mercantil com a produção capitalista. São duas coisas diferentes”. Mais de trinta anos depois, Deng Xiaoping[32] realça: “Não existe uma fundamental contradição entre socialismo e economia de mercado. O problema é como desenvolver da forma mais eficaz as forças produtivas”. Aquilo que diferencia o socialismo não é a planificação como tal, que é um instrumento usado às vezes pelos mesmos países capitalistas; o mercado também é um instrumento a que um país de orientação socialista pode recorrer.

Até aqui estamos tratando do já conhecido problema da adaptação da teoria à prática. Mas agora se apresenta também o problema inverso, Marx conhece muito profundamente o mundo da economia para ignorar o fato de que sem competição não é possível promover o desenvolvimento das forças produtivas. A Crítica do Programa de Gotha esclarece que o socialismo é fundado na retribuição em base ao trabalho fornecido, que, porém, é por definição “desigual”[33]. Mas na Rússia soviética a práxis não consegue conformar-se à teoria – o horror da Primeira Guerra Mundial e o colapso da economia ulteriormente acentuado pela guerra civil criaram um terreno favorável para a difusão de uma visão populista do socialismo (criticada pelo Manifesto Comunista) em nome de um “rude igualitarismo” fundado no “ascetismo universal” e coato.

Lenin logo percebe a necessidade de uma virada, mas não chega a um acerto de contas no plano teórico. Com certeza, a reflexão autocrítica contida em uma intervenção, Para o quarto aniversário da revolução, é significativa.

Transportados pelo entusiasmo e tendo despertado o entusiasmo popular – antes genericamente político e depois militar –, nós esperávamos, diretamente na base desse entusiasmo, executar também as tarefas econômicas não menos importantes do que as políticas e militares [...]. Não diretamente através do entusiasmo, mas com a ajuda do entusiasmo nascido da grande revolução, baseando nisso o estímulo pessoal, o interesse pessoal, o cálculo econômico, construam primeiro uma sólida ponte que, em um país de pequenos camponeses, através do capitalismo de Estado, leve ao socialismo.[34]

Em todo caso, no campo econômico, não há como confiar por um longo período no entusiasmo de massas organizadas militarmente, é necessário, mais cedo ou mais tarde, tocar no “interesse pessoal”. Infelizmente, essa importante aquisição teórica é neutralizada pelo persistente uso da linguagem militar: é necessário abrir mão do “sistema do ataque”, da “ofensiva”, para “retirar-se”, e, no conjunto, parece como se essa retirada fosse um remédio tático de breve duração[35].

Por muito – talvez demasiado – tempo, os países de orientação socialista continuaram confiando seu desenvolvimento econômico no entusiasmo revolucionário e no ardor patriótico. Mas se trata de disposições de espírito que implicam uma particular intensidade emotiva e que, portanto, por definição, não podem ser permanentes. O apelo ao espírito de sacrifício e até mesmo ao heroísmo pode constituir a exceção, certamente não a regra. Poder-se-ia dizer, citando Bertolt Brecht: “Triste de um povo que ainda precisa de heróis”. Os heróis são necessários para a passagem do estado de exceção à normalidade e são heróis só na medida em que conseguem garantir a passagem à normalidade; isto é, os heróis são tais à medida que conseguem se tornar desnecessários a si próprios. É um “comunismo” bastante estranho aquele que pressupõe uma continuidade ao infinito, ou quase, do espírito de sacrifício e de renúncia.

Historicamente aconteceu que, com o embaçamento no passar do tempo do entusiasmo revolucionário e do ardor patriótico, volvem, em formas cada vez mais graves, os problemas que emergiram nos dias seguintes à Revolução de Outubro. Perdura também a anarquia nos locais de trabalho, tranquilamente desertados por seus dependentes, os quais, mesmo quando estão fisicamente presentes, parecem todavia empenhados em uma espécie de greve branca, que, aliás, é tolerada; essa é a impressão, entre desorientação e admiração, das delegações operárias e sindicais em visita à URSS dos últimos anos.

É um problema que atinge a história do “campo socialista” como um todo. Ainda na China, que começa a deixar para trás o maoísmo, no setor público continuam vigorando hábitos que assim foram relatados por um jornalista ocidental: “Até o último auxiliar [...], se quiser, pode decidir não fazer absolutamente nada, ficar em casa por um, dois anos e continuar recebendo o salário no fim do mês”[36]. Vamos, então, a Cuba. Em outubro de 1964, Che Guevara[37] é obrigado a constatar: “Vejamos ainda o problema do absenteísmo”. Essa formulação é errônea ou ilusória, faz pensar que o problema está a ponto de ser solucionado. Na realidade, com o passar dos anos, o apelo à consciência revolucionária encontra um eco cada vez mais flébil. Cuba procurou com tenacidade evitar o recurso ao mercado e aos incentivos materiais por causa dos elementos de desigualdade que isso implica na retribuição do trabalho, mas no final teve de aceitar a realidade. Raul Castro, então, dirige a seus compatriotas o apelo a “eliminar para sempre a noção de que Cuba é o único país no mundo onde se pode viver sem trabalhar”[38].

A verdadeira virada acontece com a chegada de Deng Xiaoping à direção da China; ele traça um balanço ponderado: “A iniciativa não pode ser estimulada sem instrumentos econômicos. Um pequeno número de pessoas avançadas pode responder à chamada moral, mas uma abordagem desse tipo só pode ser utilizada por breve tempo”[39]. Na história do socialismo, é a partir desse momento que se toma consciência da apreciação pela Ideologia alemã do mercado (e da competição) como motor do desenvolvimento das forças produtivas – “por meio da concorrência universal” e do mercado, a grande indústria “obrigou todo indivíduo à mais extrema aplicação de suas energias”[40].

Em termos filosóficos, a descoberta da objetividade do ser social resultou particularmente árdua no campo econômico. Por demasiado tempo, trincheirando-se atrás de uma atitude idealista, o movimento comunista resistiu antes de render-se à evidência de que, por mais vitoriosa que seja a luta revolucionária, ele nada tem a ver com a criação ex nihilo do “homem novo”, movido apenas por nobres ideais, completamente indiferente ao interesse material.”

[8] LO, v. 25, p. 380.

[9] Ibidem, v. 21, p. 284.

[10] Ernst Bloch, Geist der Utopie (1918) (Frankfurt, Suhrkamp, 1971), p. 298.

[11] György Lukács, Storia e coscienza di classe (1922) (7. ed. Milão, Sugarco, 1988), p. 26.

[12] Leon Trotski, Schriften. Sowjetgesellschaft und stalinistische Diktatur (orgs. H. Dahmer et al., Hamburgo, Rasch und Röhring, 1988), p. 853 e 757-8 [ed. it.: La rivoluzione tradita, Roma, Samonà e Savelli, 1968, p. 148 e 61].

[13] Ver, neste volume, cap. 7, seção 4.

[14] Antonio Gramsci, L’Ordine Nuovo: 1919-1920 (orgs. V. Gerratana e A. Santucci, Turim, Einaudi, 1987), p. 56-7. A carta do anarquista pode ser lida no n. 8 de L’Ordine Nuovo.

[15] LO, v. 33, p. 445-50.

[16] Ibidem, v. 33, p. 458.

[17] MEW, v. 3, p. 62 [ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 75].

[18] Domenico Losurdo, Stalin. Storia e critica di una leggenda nera (Roma, Carocci, 2008), p. 68 e 122.

[19] Deng Xiaoping, Selected Works (Pequim, Foreign Language Press, 1992-1995), v. 3, p. 166-7.

[20] MEW, v. 4, p. 479 [ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p. 56].

[21] Eduard H. Carr, La rivoluzione bolscevica (1950) (4. ed., Turim, Einaudi, 1964), p. 814.

[22] LO, v. 28, p. 479.

[23] Ibidem, v. 30, p. 261 e 265.

[24] Ibidem, v. 33, p. 47.

[25] Ibidem, v. 33, p. 264.

[26] Joseph Stalin, Werke (Hamburgo, Roter Morgen, 1971-1973), v. 11, p. 38.

[27] Walter Benjamin, Immagini di città (Turim, Einaudi, 2007), p. 44.

[28] Leon Trotski, Schriften. Sowjetgesellschaft und stalinistische Diktatur, cit., p. 856 e 862-3 [ed. it.: La rivoluzione tradita, cit., p. 151 e 156].

[29] Ibidem, p. 863 [ed. it.: ibidem, p. 157].

[30] Joseph Stalin, Il marxismo e la linguistica (1950) (Milão, Feltrinelli, 1968), p. 21 e 23.

[31] Idem, Problemi economici del socialismo nell’URSS (1952) (Milão, Cooperativa Editrice Distributrice Proletaria, 1973), p. 23.

[32] Deng Xiaoping, Selected Works, cit., v. 3, p. 151 e 203.

[33] MEW, v. 19, p. 20-1 [ed. bras.: Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, cit., p. 30-1].

[34] LO, v. 33, p. 43-4.

[35] Ibidem, v. 33, p. 76 e 254-5.

[36] Em Francesco Sisci, La differenza tra la Cina e il mondo. La rivoluzione degli anni Ottanta (Milão, Feltrinelli, 1994), p. 102.

[37] Ernesto Guevara, Scritti, discorsi e diari di guerriglia. 1959-1967 (org. L. Gonsalez, Turim, Einaudi, 1969), p. 1.364.

[38] Roberto Livi, “La riforma di Raul”, Il Manifesto, 3 ago. 2010, p. 8.

[39] Em Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the transformation of China (Cambridge-MA/Londres, Harvard University Press, 2011), p. 243.

[40] MEW, v. 3, p. 60 [ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 60].

 

 

“Se esse era o quadro do país na liderança (em declínio), vejamos agora o quadro do país na liderança (em ascensão) do mundo capitalista. Nesse mesmo período, no Sul dos Estados Unidos, desapareceu o instituto da escravidão, mas os “velhos senhores dos Sul”, os “senhores barões” dos quais falava Marx[44], continuavam exercendo um poder absoluto sobre os negros. Estes últimos não só resultam privados dos direitos políticos, como também dos direitos civis: estão expostos a um regime de terrorista white supremacy que às vezes os condena ao linchamento, a uma lenta e interminável tortura e agonia, que constitui, ao mesmo tempo, um espetáculo para uma multidão (de homens, mulheres, crianças da comunidade branca) em festa e exultante.

Esse é o mundo posto em discussão pela Revolução de Outubro. O que colapsa entre 1989 e 1991 não é, então, o “Antigo Regime” ou a “antiga ordem”; os derrubados são os herdeiros ou os epígonos do novo regime, isto é, da nova ordem revolucionária que, entretanto, nunca superou o estado de precariedade. Pode-se considerar estavelmente vitoriosa uma revolução só quando a classe protagonista, depois de atravessar um período mais ou menos longo de conflitos e contradições, de tentativas e erros, consegue expressar a forma política duradoura de seu domínio. É um processo de aprendizagem que para a burguesia francesa vai de 1789 até 1871; somente depois dessa data – realça Gramsci –, ao realizar a república parlamentar baseada no sufrágio universal (masculino), ela encontra a forma política de seu domínio. Em uma sociedade moderna, o domínio se revela duradouro desde que se saiba combinar hegemonia e coerção, que se saiba trazer claramente à tona o momento da coerção e da ditadura só em situações de crise aguda.

Por circunstâncias objetivas e responsabilidades subjetivas, a revolução iniciada em 1917 não foi capaz de produzir esse resultado. Em um país como a Rússia, ao quebrar os grilhões do Antigo Regime, a nova ordem realizou uma gigantesca difusão da instrução e da cultura e uma extraordinária mobilidade social, pondo as bases para uma sociedade civil que se tornou cada vez mais exigente até que não pôde mais se reconhecer em uma ordem fossilizada. Nesse sentido, aquilo que ocorreu entre 1989 e 1991 é resultado do sucesso e, ao mesmo tempo, da derrota do projeto comunista.”

[44] MEW, v. 31, p. 128.

 

 

Não é a presumida mudança de paradigma que caracteriza a situação que se configurou a partir da crise e do colapso do “campo socialista”. Aliás, a contraposição entre paradigma da redistribuição (cujo intérprete seria o movimento operário) e paradigma do reconhecimento (que encontraria sua encarnação em primeiro lugar no movimento feminista) é, ao contrário, o sintoma da real mudança ocorrida. Para compreender essa transformação é necessário não perder de vista uma questão sobre a qual chamei atenção diversas vezes. Vários são os sujeitos da luta de classes e multíplices são as lutas pelo reconhecimento e pela emancipação. Não existe uma preestabelecida harmonia entre eles: por razões objetivas e subjetivas, podem intervir incompreensões e lacerações. Os momentos mais altos da história que se originou a partir do Manifesto Comunista foram aqueles nos quais se fugiu da fragmentação, de modo que as diversas lutas confluíram em uma única poderosa onda emancipadora.

Entretanto, mais do que a regra, isso representa a exceção. Não existe luta de classes, por mais progressiva que seja, que não possa ser instrumentalizada pelo poder dominante e que, portanto, não possa ser inserida no âmbito de um projeto global de cunho conservador ou reacionário. Não se trata de um fenômeno novo, mas ele ganhou ênfase e adquiriu um novo valor qualitativo com o desencantamento dos êxitos das revoluções do século XX e com a desorientação teórica que isso originou.”

 

 

“Essas múltiplas contradições, que refletem uma complexa situação objetiva, ainda antes de ser o resultado das manobras do poder dominante, se recompõem e são levadas à unidade só em ocasiões privilegiadas, em presença de válidas sínteses teóricas ou pela influência de grandes revoluções ou de maduros projetos revolucionários e, mesmo nesse caso, não deixam de sofrer oscilações e dificuldades de diferente natureza. Enquanto se alastra o primeiro conflito mundial, se por um lado Lenin chama o proletariado do Ocidente a insurgir contra a burguesia e a transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária, por outro lado ele saúda as lutas e as guerras de libertação nacional travadas pelos “povos coloniais” e pelos “países oprimidos” em geral e chama atenção para a permanente condição de “escrava doméstica” a que é submetida a mulher[47], não por acaso excluída dos direitos políticos junto com os “pobres” e com o “estrato inferior propriamente proletário[48]. As três frentes da luta de classes nesse caso convergem.

Em um intervalo de aproximadamente uma década, a partir das áreas rurais Mao[49] promove uma revolução que, no âmbito da radical renovação nacional e social da China, entende pôr em discussão também o “poder marital”, o ulterior “pesado grilhão” que prende as mulheres junto com os outros que estrangulam o conjunto do povo chinês.

Outras vezes, a unificação das diversas frentes de luta de classes é mais difícil. Com certeza, mesmo por Frantz Fanon, “a liberdade do povo argelino se identifica [...] com a libertação da mulher, com seu ingresso na história”. Não se trata só de uma declaração de princípio. Já a participação ativa na guerra partisan faz com que a mulher não seja mais uma “menor”, ainda mais que tal participação põe em discussão a segregação sexual e a “virgindade-tabu”; em todo caso, “o velho medo da desonra se torna completamente absurdo em face da tragédia vivida pelo povo”[50]. É necessário, todavia, não perder de vista outro aspecto da questão:

Os responsáveis pela administração francesa na Argélia, prepostos a destruir a originalidade do povo e encarregados pelas autoridades de desagregar a qualquer custa as formas de existência que podem evocar qualquer realidade nacional, concentram seu maior esforço sobre o uso do véu, concebido nesse caso como símbolo da mulher argelina [...]. A agressividade do ocupante, e, portanto, suas esperanças, decuplicam-se a cada rosto descoberto [...]. A sociedade argelina, a cada véu tirado, parece aceitar a submissão à escola do patrão e decidir de mudar seus hábitos, sob a direção e a proteção do ocupante.[51]

Nesse objetivo e determinado contexto, pelo menos no imediato, a luta de libertação pode entrar em conflito com a emancipação da mulher. E esse risco se tornou claramente mais saliente hoje, quando, no Oriente Médio, após a crise do comunismo e do marxismo, os partidos de orientação religiosa exercem a direção dos movimentos de libertação e de resistência nacional. No passado, as potências coloniais (e a própria Itália de Mussolini) promoveram sua expansão em nome da emancipação da escravidão ainda vigente na África, salvo impor depois o trabalho coato em formas ainda mais odiosas, e não mais contra uma determinada classe, mas contra a população indígena como um todo. Nos nossos dias, o projeto colonialista agita às vezes, sem sucesso, a bandeira da emancipação da mulher, mas tendo como alvo não países como a Arábia Saudita – onde a segregação e a escravidão doméstica da mulher persistem em sua forma mais rígida e mais obtusa –, mas países que se rebelam em relação ao Ocidente, como o Irã, onde a discriminação contra as mulheres ainda é dura e odiosa, mas onde, de qualquer forma, foi corroída em medida considerável (as moças constituem a maioria da população universitária e desfrutam de uma acentuada mobilidade social).”

[47] LO, v. 23, p. 31 e 70.

[48] Ibidem, v. 25, p. 433 e v. 22, p. 282.

[49] Mao Tse-Tung, Opere scelte, cit., v. 1, p. 41-3.

[50] Frantz Fanon, Scritti politici. L’anno V della rivoluzione algerina (2001) (Roma, DeriveApprodi, 2007), v. 2, p. 94-6.

[51] Ibidem, p. 40 e 44-5.