Editora: Unesp
ISBN: 978-85-393-0403-5
Tradução: Fernando
Costa Mattos
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 88
Sinopse: Segundo volume da Coleção Habermas, este texto reproduz um
discurso do filósofo proferido aproximadamente um mês depois do 11 de setembro
de 2001. Embora circunstancial, é de grande importância no conjunto da obra do
filósofo que, ao retomar o clássico tema fé e saber, adota uma nova expressão —
“pós-secular” — imprimindo mudanças em sua teoria da modernidade, presente em
suas obras posteriores.
“Apesar
de sua pequena dimensão e seu caráter circunstancial,
Fé e Saber ocupa lugar de destaque na vasta e complexa obra de Habermas.
O texto reproduz o discurso pronunciado na recepção do Prêmio da Paz concedido
pela Associação dos Comerciantes de Livros da Alemanha, cerca de um mês após o
acontecimento histórico de 11 de Setembro de 2001. Ocasião propícia para mais
uma vez traçar um panorama intelectual de época, exercitando a mediação
interpretadora típica da filosofia e, como se poderia esperar, colocando à
prova seu próprio pensamento. O diagnóstico de Habermas tem como mira principal
o tempo nascente de um novo milênio cuja situação cultural exibiria duas tendências
contrárias: de um lado, a propagação de imagens de mundo naturalistas; e, de
outro, a revitalização inesperada de comunidades de fé e tradições religiosas e
sua politização em escala mundial. Não chega a ser surpreendente, portanto, que
o presente ensaio conclua com o exemplo da engenharia genética para ilustrar a
atitude correta de uma filosofia racional e profana que, guardando distância da
religião, não se fecha às suas perspectivas. A diferença absoluta entre o
criador que dá forma à criatura, atribuindo-lhe ao mesmo tempo a capacidade de
autodeterminação — de acordo com o relato bíblico do Gênesis, “Deus
criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou” —, exprime bem a
autocompreensão normativa de uma responsabilidade simétrica entre pessoas
livres e iguais e serve de inspiração para uma moralidade política baseada na
ideia de dignidade humana.” (Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)
“No texto que se segue Habermas fala de uma modernidade com cabeça de
Jano e de uma secularização dominada por sentimentos ambivalentes. Com isso ele
pretende chamar a atenção para a dialética inconclusa de um movimento histórico
cuja autocompreensão é resultado de processos de aprendizagem. Permanecendo
aferrado à constelação pós-metafísica e secular do pensamento moderno,
Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização com
vistas a um questionamento do secularismo como visão de mundo. Não resta
dúvida de que a laicização da autoridade política é a viga mestra do processo
de secularização, do qual fazem parte a separação entre igreja e Estado, a
instauração do pluralismo religioso e a adoção do regime de tolerância mútua
entre credos e doutrinas divergentes. Mas a derrocada da unidade substancial
das sociedades tradicionais em torno das interpretações míticas e das imagens
religiosas e metafísicas de mundo — no seio das sociedades modernas desprovidas
de garantias metassociais, funcionalmente diferenciadas e culturalmente
heterogêneas — não quer dizer que a “destruição criadora” do processo de
secularização equivalha a um “jogo de soma zero” entre poderes mundano e
supramundano. E tampouco indica que o “impulso reflexivo” na direção do
descentramento e da autonomização das perspectivas de mundo passe ao largo da “profanação
do sagrado”, urdida inicialmente pelas grandes religiões surgidas na China, na
Índia e em Israel — o chamado “período axial” de Karl Jaspers, quando também
teve origem a filosofia na Grécia — em meados do primeiro milênio antes de
Cristo.
Isso mostra que o pensamento pós-metafísico, que
estabelece uma distinção rigorosa entre fé e saber, não se limita ao legado da
metafísica ocidental, mas considera as doutrinas religiosas como integrantes da
genealogia da razão, nutrindo-se de seu conteúdo normativo. A expressão “pós-secular”
não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da modernidade, o qual
permanece “secular” a despeito daquele prefixo “pós”, correspondendo a uma
mudança de mentalidade ou a uma alteração crítica do autoentendimento
secularista de sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião,
de sua relevante contribuição para a vida política, da necessidade de eliminar sobrecargas
mentais e psicológicas desmesuradas para os cidadãos crentes, e ainda do
imperativo de acomodação das vozes religiosas na esfera pública democrática. A “tradução
cooperativa de conteúdos religiosos”, defendida por Habermas em Fé e saber,
remete a uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos
mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como desacordos
razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de aprendizagem complementares.
Se sobre o cidadão de fé recai a exigência de uma consciência reflexiva que
relacione suas convicções com o fato do pluralismo, deixe às ciências
institucionalizadas as decisões referentes ao saber mundano e torne as
premissas igualitárias de uma moral universalista dos direitos humanos compatíveis
com seu credo; o cidadão secular assume, por seu turno, as pressões adaptativas
da situação pós-secular, na qual se atualiza a questão kantiana de como
assimilar a herança semântica das tradições religiosas sem obliterar a
fronteira entre os universos da fé e do saber.
Ressalta-se aqui o exemplo de “uma
desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das verdades de fé”.
Para Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente
agnóstica e receptiva diante da religião, ou seja, que se oponha a uma
determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis sem,
com isso, comprometer sua autocompreensão secular. É uma opção metodológica cogente
para um tipo de pensamento que, lidando com a força especial das tradições
religiosas no trato de intuições morais profundas e na articulação daquilo que
falta ou que se perdeu, não pretende despi-las de possíveis conteúdos
racionais, nem desvalorizá-las como resíduos arcaicos de uma figura do espírito
superada pelas ciências, mas ainda assim insiste nas diferenças cruciais entre a
fé e o saber como modalidades essencialmente distintas do ter algo por verdadeiro.
Nesse sentido, a história do cristianismo é particularmente rica na ilustração
desse trabalho conflituoso de apropriação racional e transformadora dos
conteúdos religiosos veiculados pelas comunidades de crentes, sendo impensável
a modernidade ocidental sem a dupla herança da espiritualidade
judaico-cristã e da racionalidade grega, isto é, sem a permanente e produtiva
relação de tensão entre a fé (religiosa) de Jerusalém e o saber (filosófico)
de Atenas.”
(Luiz Bernardo Leite Araujo — Apresentação)
“Apesar
de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é um fenômeno exclusivamente
moderno. O que chama particularmente a atenção nos terroristas islâmicos é a
assincronia entre os motivos e os meios. Reflete-se nisso a assincronia entre
cultura e sociedade nos países natais desses terroristas, algo que só se
constitui em decorrência de uma modernização acelerada e fortemente
desenraizadora. Aquilo que em condições mais favoráveis poderia ser vivido,
entre nós, como um processo de destruição criadora,
não oferece por lá qualquer compensação perceptível para a dor que acompanha o
declínio das formas de vida tradicional. Nesses países, a perspectiva de uma
melhoria das condições materiais de vida é apenas uma perspectiva. O mais
decisivo é que se bloqueia, por meio dos sentimentos de degradação, a
transformação espiritual que se expressaria politicamente na separação entre
religião e Estado. Também na Europa, que a história levou séculos para tornar
sensível à cabeça de Jano da modernidade, a “secularização” continua a ser
dominada por sentimentos ambivalentes — como se percebe na disputa em torno da
engenharia genética.
Há
ortodoxias endurecidas tanto no Ocidente como no Oriente Médio e no Extremo
Oriente; entre cristãos e judeus, como entre muçulmanos. Quem quer evitar uma
guerra de culturas precisa ter em mente a dialética inconclusa do nosso próprio
processo ocidental de secularização. A “guerra contra o terror” não é uma
guerra, e no terrorismo também se expressa um choque desastrosamente silencioso
de dois mundos que precisariam desenvolver uma linguagem comum, para além da
violência muda dos terroristas e dos mísseis. Em vista de uma globalização
imposta por meio de mercados sem limites, muitos de nós têm a esperança de um
retorno do político sob outra forma — não a forma hobbesiana original de um
Estado de segurança globalizado, ou seja, com dimensões de polícia, serviço
secreto e forças militares, mas a de um poder mundial de configuração
civilizadora. No momento não nos resta muito mais do que a pálida esperança em
alguma astúcia da razão — e um pouco de autorreflexão. Pois aquela ruptura muda
cinde também a nossa própria casa. Nós só conseguiremos aferir adequadamente os
riscos de uma secularização que saiu dos trilhos em outros lugares, se tivermos
claro o que significa a secularização em nossas sociedades pós-seculares.”
“Secularização na sociedade pós-secular
A
palavra “secularização” teve, a princípio, o significado jurídico de uma
transferência compulsória dos bens da Igreja para o poder público secular. Esse
significado foi transmutado para o surgimento da modernidade cultural e social
como um todo. Desde então, apreciações opostas têm sido associadas à “secularização”,
conforme se coloque em primeiro plano ora a bem sucedida domesticação da autoridade eclesiástica pelo poder mundano, ora o
ato de apropriação ilícita. De acordo
com primeira leitura, modos de pensar e formas de vida religiosas são substituídos por equivalentes racionais,
em todo caso superiores; de acordo com a outra leitura, as formas modernas de
vida e pensamento são desacreditadas
como bens furtados ilegitimamente. O modelo da substituição sugere uma
interpretação otimista e progressista para uma modernidade desencantada; o
modelo da apropriação forçada, uma interpretação teórica para o que seria a
ruína de uma modernidade desamparada. As duas explicações cometem o mesmo erro.
Elas consideram a secularização um jogo de soma zero entre, de um lado, as
forças produtivas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo e, de
outro, os poderes conservadores da religião e da Igreja. Um só pode ganhar à
custa do outro, e isto segundo as regras liberais de um jogo que favorece as forças
motrizes da modernidade.
Essa
imagem não é adequada a uma sociedade póssecular que se ajusta à sobrevivência
de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante. Não é
levado em conta o papel civilizador de um senso comum [Commonsense] democraticamente esclarecido que, em meio aos ânimos
exacerbados da luta cultural, funciona como um terceiro partido, pavimentando
seu próprio caminho entre a ciência e a religião. É certo que, do ponto de
vista do Estado liberal, só merecem o predicado “razoáveis” as comunidades
religiosas que, segundo seu próprio
discernimento, renunciam à imposição violenta de suas verdades de fé, à
pressão militante sobre as consciências de seus próprios membros, e tanto mais
à manipulação para atentados suicidas1. Esse discernimento se deve a
uma tríplice reflexão dos fiéis sobre a sua posição em uma sociedade
pluralista. Primeiramente, a consciência religiosa tem de assimilar o encontro
cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. Em segundo lugar,
ela tem de adaptar-se à autoridade das ciências, que detêm o monopólio social
do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se às premissas do Estado
constitucional, que se fundam em uma moral profana. Sem esse impulso reflexivo,
os monoteísmos acabam por desenvolver um potencial destrutivo em sociedades
impiedosamente modernizadas. A expressão “impulso reflexivo” [Reflexionsschub] dá a falsa impressão de
um processo concluído e realizado unilateralmente. Na verdade, porém, esse
trabalho reflexivo dá um novo passo a cada conflito que irrompe nos campos de
batalha da esfera pública democrática.”
1
Rawls, Politischer Liberalismus, p.
132-141; Forst, Toleranz, Gerechtigkeit, Vernunft, p. 144-161.
“É
claro que o senso comum, que produz tantas ilusões sobre o mundo, tem de ser
esclarecido sem reservas pelas ciências. Mas as teorias científicas que
penetram o mundo da vida deixam intacto, em seu cerne, o quadro do nosso saber
cotidiano, no qual se constitui a autocompreensão de pessoas capazes de falar e
agir. Quando aprendemos algo novo sobre o mundo, e sobre nós como seres no
mundo, modificase o conteúdo de nossa autocompreensão. Copérnico e Darwin
revolucionaram a imagem geocêntrica e antropocêntrica do mundo. Mas a
destruição da ilusão astronômica sobre a órbita das estrelas deixou menos
sinais no mundo da vida que o fim da ilusão biológica sobre o lugar do homem na
história natural. Os conhecimentos científicos parecem inquietar tanto mais
nossa autocompreensão, quanto mais próximos eles nos deixam diante do nosso
próprio corpo.”
“O
senso comum está entrelaçado, portanto, com a consciência de pessoas que podem
tomar iniciativas, cometer erros e corrigi-los. Em oposição às ciências, ele afirma
a sua estrutura perspectivística de maneira muito própria. Por outro lado, essa
mesma consciência de autonomia, que não é compreensível de forma naturalista, funda
a distância em relação a uma tradição religiosa de cujos conteúdos normativos,
contudo, também nos nutrimos. Com a exigência de justificativas racionais, o esclarecimento
científico parece, por seu turno, trazer para o seu lado um senso comum que
firmou seu lugar no edifício — construído segundo o direito racional — do Estado
constitucional democrático. Evidentemente, também o direito racional
igualitário tem raízes religiosas — raízes naquela revolução do modo de pensar
que coincide com a ascensão das grandes religiões mundiais. Mas essa
legitimação do direito e da política nos termos do direito racional se alimenta
de fontes da tradição religiosa há muito tempo profanadas. Ao contrário da
religião, o senso comum democraticamente esclarecido mantém-se sobre bases que
são aceitáveis não somente para os membros de uma comunidade religiosa. É por isso que o Estado liberal continua
a despertar a suspeita, entre os fiéis, de que a secularização ocidental possa
ser uma via de mão única em que a religião será marginalizada.
A
liberdade religiosa tem como contrapartida, de fato, uma pacificação do pluralismo
das visões de mundo cujos custos se mostraram desiguais. Até aqui, o Estado
liberal só exige dos que são crentes entre seus cidadãos que dividam a sua
identidade, por assim dizer, em seus aspectos públicos e privados. São eles que
têm de traduzir as suas convicções religiosas para uma linguagem secular antes
de tentar, com seus argumentos, obter o consentimento das maiorias. É assim
que, quando querem reclamar o estatuto de portador de direitos fundamentais
para os óvulos fecundados fora do corpo materno, os católicos e protestantes
procuram hoje (talvez prematuramente) traduzir a imagem e semelhança a Deus da
criatura humana para a linguagem secular do direito constitucional. Mas a
procura por argumentos voltados à aceitabilidade universal só não levará a
religião a ser injustamente excluída da esfera pública, e a sociedade secular
só não será privada de importantes recursos para a criação de sentido, caso o
lado secular se mantenha sensível para a força de articulação das linguagens
religiosas. Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente
fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido
como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitar também a
perspectiva do outro.”
“A política
liberal não deve externalizar o persistente conflito sobre a autocompreensão
secular da sociedade, ou seja, deslocando-o para a cabeça dos religiosos. O
senso comum democraticamente esclarecido não é algo singular, mas algo que
descreve a constituição mental de uma esfera pública com muitas vozes. As maiorias seculares não devem chegar a
conclusões, em questões desse tipo, antes de dar ouvidos à objeção dos
oponentes que se sentem lesados em suas convicções religiosas; elas devem
considerar essa objeção como uma espécie de veto suspensivo e verificar o que
podem aprender com isso. No que diz respeito à origem religiosa de seus
fundamentos morais, o Estado liberal deveria contar com a possibilidade de que,
diante de desafios inteiramente novos, a “cultura do comum entendimento humano”
(Hegel) possa não alcançar o nível de articulação da história de seu próprio
surgimento. A linguagem do mercado penetra hoje todos os poros, forçando todas
as relações entre seres humanos a encaixar-se no esquema de uma orientação
autorreferente de acordo com as próprias preferências. No entanto, o vínculo
social que se prende ao reconhecimento recíproco não se ajusta aos conceitos do
contrato, da escolha racional e da maximização da utilidade.8
Por
isso Kant não queria deixar o dever categórico desaparecer sob a onda do
interesse autoesclarecido. Ele ampliou a liberdade de arbítrio de modo a
abarcar a autonomia e, com isso, forneceu o primeiro grande exemplo — após a
metafísica — de uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora das
verdades de fé. A autoridade dos mandamentos divinos tem um eco na validade
incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar. Com o seu
conceito de autonomia, Kant certamente destrói a representação tradicional da nossa
filiação divina.9 Mas ele só percebeu as consequências mais banais
dessa deflação esvaziante através de uma apropriação
do conteúdo religioso. Sua tentativa de traduzir o mal radical da linguagem bíblica
para a linguagem da religião racional pode parecer-nos pouco convincente. Tal
como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós
ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o
moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo
caído segue seu curso calamitoso — seja nos bens invertidos da ação monstruosa,
seja também no incontornável ímpeto de vingança que o segue de perto.”
8 Honneth,
Kampf um Anerkennung.
9 O
prefácio à primeira edição de A religião
nos limites da simples razão começa com a frase: “Na medida em que está fundada
no conceito do ser humano como um ser livre que, justamente por isso, prende-se
a si mesmo, através de sua razão, em limites incondicionados, a moral não
precisa nem da ideia de um outro ser sobre ele, para reconhecer seus deveres, nem
de um outro motivo que não a própria lei”. (Kant, Die Religion..., p.649.)
“A história da filosofia alemã desde Kant pode ser compreendida como um
processo judicial em que são tratadas essas questões de partilha da herança. A
helenização do cristianismo havia conduzido a uma simbiose entre a religião e a
metafísica, Kant volta a separá-las. Ele traça um limite preciso entre a fé moral da
religião raciona e a fé revelada positiva, que teria conduzido a um
melhoramento da alma, mas, “com seus amuletos, estatutos e prescrições”, teria
acabado por tornar-se “uma amarra”.10 Para Hegel, isso é puro “dogmatismo
do Esclarecimento”. Ele zomba da vitória de Pirro de uma razão que, como os
bárbaros vencedores que se subordinam ao espírito da nação vencida, só mantém “a
supremacia no que diz respeito à dominação exterior”.11 No lugar de
uma razão que traça limites, aparece uma
razão que toma para si. Hegel faz da
morte do filho de Deus na cruz o centro de um pensamento que quer incorporar o
conteúdo positivo do cristianismo. O tornar-se homem de Deus simboliza a vida
do espírito filosófico. Também o Absoluto tem de externalizar-se no outro de si
mesmo, pois ele só tem a experiência de si como poder absoluto quando se
reelabora a partir da dolorosa negatividade da autolimitação. Assim, com
efeito, os conteúdos religiosos são superados
na forma do conceito filosófico. Mas Hegel sacrifica a dimensão histórica de
salvação do futuro em nome de um processo do mundo que gira em torno de si mesmo.
Os discípulos de Hegel rompem com o fatalismo
dessa desesperadora antevisão de um eterno retorno do mesmo. Eles não querem
mais superar a religião no pensamento, mas sim realizar os seus conteúdos
profanados através do esforço solidário. Esse pathos de uma efetivação dessublimadora do reino de Deus na Terra
move a crítica à religião desde Feuerbach e Marx até Bloch, Benjamin e Adorno: “Nenhum conteúdo teológico permanecerá
sem modificação; todos terão de passar pela prova e transformar-se em conteúdos
seculares, profanos”.12 Nesse meio tempo, o curso da história havia
tratado de mostrar que a razão se vê sobrecarregada com esse projeto. Na medida
em que, com isso, a razão acaba por desesperar-se
consigo mesma, Adorno se socorreu, mesmo que para fins estritamente
metodológicos, do ponto de vista messiânico: “a única luz que o conhecimento
possui é aquela que a redenção faz brilhar sobre o mundo”.13 A esse
Adorno se aplica a frase que Horkheimer cunhou para a teoria crítica como um
todo: “Ela sabe que Deus não existe, mas ainda assim acredita nele”.14
Sob outras premissas, Jacques Derrida (também deste ponto de vista um merecido ganhador
do Prêmio Adorno) adota hoje uma posição semelhante. Ele só quer conservar do messianismo
“o mais mínimo elemento messiânico, que tem de estar despido de tudo”.15
Evidentemente, a região limítrofe entre a
filosofia e a religião é um terreno minado. Uma razão que desmente a si mesma cai facilmente na tentação de
simplesmente tomar para si a autoridade e o gesto de um sagrado desessencializado,
tornado anônimo.”
12 Adorno, Vernunft und Offenbarung, p.20.
13 Adorno, Minima Moralia, p.480.
14 Horkheimer, Gesammelte Schriften, v.14, p.508.
15 Derrida, Glauben und Wissen, p.33; cf. também Derrida, Den Tod Geben.
“Na
controvérsia sobre como lidar com os embriões humanos, por exemplo, muitas
vozes se remetem a Moisés I,27: “Deus
criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou”. Não é preciso
acreditar que Deus, que é amor, atribui a Adão e Eva um ser livre semelhante ao
seu, para compreender o que significa algo ser criado à imagem de algo. O amor
não pode existir sem o reconhecer-se em um outro, a liberdade não pode existir
sem o reconhecimento recíproco.”