Editora: Companhia das
Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Hildegard
Fiest
Organização: Paul Veiny
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 648
Sinopse: Ver Parte I
4. Alta idade média ocidental
— Michel Rouche
“A IMPOSSÍVEL
DISTINÇÃO DO PÚBLICO E DO PRIVADO PELOS GERMANOS
Nessas tribos em que
o poder, ao mesmo tempo de origem mágica, divina e guerreira, é exercido pelo
rei, chefe de guerra eleito, e pelos guerreiros livres, o instável amálgama de
um heer-könig condenado a vencer para manter sua autoridade e a de
guerreiros fiéis se seu líder é o mais forte constitui o que se deve chamar de
“Estado” de um tipo novo, espécie de comunidade de pessoas militares sem
domicílio fixo nem duração garantida. O cimento dessa organização não é, como
em Roma, a ideia de salvação pública e de bem comum, porém, antes, a reunião de
interesses privados numa associação provisória automaticamente reconstruída
pela vitória.”
“CORPO VESTIDO,
CORPO NU,
CORPO DOMINADO, CORPO
ADORADO
Constatamos
inicialmente que o uso de roupas costuradas é geral, mas que elas continuam
muito amplas, presas por fíbulas e cintos. Não há diferença nenhuma entre os
galo-romanos e os francos. Todos usam uma camisa de linho até os joelhos e uma
túnica de mangas curtas ou compridas (é a atual biaude de Auvergne),
calças com faixas ajustadas às pernas pouco abaixo dos joelhos e botinas de
couro ou tamancos, segundo o nível social. As mulheres usam sobre a túnica um
vestido comprido até os calcanhares, aberto na frente ou erguido por uma
pequena corrente para que possam andar. Quando faz frio, acrescenta-se um
colete de couro ou de pele e principalmente um manto quadrado de lã — o sagum
—, jogado nas costas e puxado para a frente e preso por uma fíbula que une as
duas pontas sobre o ombro direito. Tudo que indica a diferença social é a
qualidade do tecido, o uso das armas e das joias. Nudez só existe em dois
casos: durante o banho e na hora de dormir.
Os banhos romanos
mantiveram-se durante algum tempo até nos mosteiros, reservando-se, porém, cada
vez mais aos enfermos. Restam os rios e as piscinas das estações termais, como
a de Aix, onde Carlos Magno adorava nadar com seus convidados, muitas vezes
mais de cem pessoas. Os príncipes carolíngios trocavam de roupa e tomavam banho
no sábado. Cada sexo tinha seus rituais e seus instrumentos de toalete presos
ao cinto: pente, fórfice e pinças de depilação.
Os francos, assim como seus reis, usam os cabelos compridos — os romanos
os cortam à altura da nuca —, deixando livres a nuca e a testa, e depilam o
rosto. Os escravos e os eclesiásticos, porém, devem raspar a cabeça, padres e
monges mantendo apenas uma coroa de cabelos ou, como os irlandeses, uma mecha
que vai de uma orelha à outra. O simbolismo é evidente: os cabelos longos
significam força, virilidade e liberdade. Se os escravos veem sua condição
assim indicada, os clérigos demonstram com isso que pertencem a Cristo. As
cabeleiras femininas permaneciam intactas e deviam ser elegantemente presas com
longos alfinetes. Tosar um rapaz ou uma moça livre custava 45 soldos conforme a
Lei Sálica, 42 para a jovem segundo a lei dos burgúndios. Ela estabelecia que
esse crime não seria punido se tivesse sido cometido fora de casa, em situação
de batalha da qual a mulher teria participado.
A lei dos
franco-sálios era terrível quanto aos delitos que envolviam toda a concepção
pagã do corpo: se um homem livre tocava a mão de uma mulher, devia pagar quinze
soldos; o braço até o cotovelo, trinta; acima do cotovelo, 35; e, se chegasse
ao seio, 45 soldos! O corpo feminino, portanto, constitui um tabu. Por quê? Os
textos de alguns penitenciais revelam que durante cerimônias pagãs a moça ou a
mulher se desnudava completamente a fim de provocar a fecundidade dos campos, a
chuva etc. Tocar uma mulher significava, portanto, atentar contra o processo da
vida. O homem e a mulher só podiam ficar nus num único lugar: aquele onde
procriavam, o leito. Então o nu era sagrado.
Ora, o nu cristão
tinha um significado muito diferente. Até o começo do século VIII, homens e
mulheres eram batizados nus na piscina octogonal contígua a toda catedral, na
noite do sábado santo. Nus como Adão e Eva na Criação, saíam da água, mortos
para o pecado e ressuscitados para a vida eterna. A nudez constituía então uma
afirmação de sua condição de criatura boa mas dependente de Deus, antes do
pecado ou sem este. O nu cristão representa um ser criado; o nu pagão, um ser
procriador. O desaparecimento do batismo por imersão na época carolíngia
suscitou a retomada, podemos dizer, do simbolismo pagão e deu à nudez um
significado sexual e genital que ela não tinha. Já no século VI foi preciso
desaparecer com os crucifixos em que Cristo figurava nu como todos os escravos
condenados ao mesmo suplício. Um padre de Narbonne um dia teve uma visão desse
Cristo que lhe pediu que o vestisse. De fato, era a época em que, em Bizâncio,
se difundia o Crucificado vestido numa longa túnica, o colobium.
Obviamente a sensibilidade da época começava a recusar esse espetáculo que
parecia indecente e até perigoso, pois Cristo corria o risco de ser adorado
pelas mulheres como um deus da fertilidade, à maneira de Príapo ou, mais tarde
entre os vikings, de Freyr, cujas representações em postura itifálica não
deixavam dúvida sobre sua função. Assim, o corpo vestido, banhado, penteado,
enfeitado acabava sendo adorado. Para que não se tornasse idolatrado era
preciso vesti-lo. São Bento tanto compreendera isso que em sua regra recomendou
aos monges que dormissem vestidos. “Cada qual terá um leito para dormir” e “se
possível for todos dormirão num mesmo local”, “para que […], ao soar o sinal,
se levantem sem demora e se apressem em consagrar-se à obra de Deus.” A noite
do monge também deve ser consagrada, mas, nesse caso, ao amor de Deus pela
oração.
Como sempre, essa
adoração pagã do corpo inevitavelmente comporta seu contrário: o ódio e o medo
do corpo. De fato, a Lei Sálica é obrigada a castigar o estupro e a castração.
Mais adiante veremos o que acontece com o estupro, mas é curioso observar que
nem a lei romana nem a dos burgúndios punem esse ato, enquanto Carlos Magno foi
obrigado a acrescentar um artigo suplementar contra os que praticavam a
castração, obrigando-os a pagar uma multa de cem a duzentos soldos, que subia
para seiscentos se o castrado fosse um antrustião. Assim, o costume não
havia desaparecido no século VIII, e no inconsciente coletivo dos francos a
castração equivalia à morte, mesmo prevendo-se nove soldos para o médico que
cuidasse da vítima. Os escravos ladrões podiam ser castrados, mas em geral eram
açoitados, sendo às vezes torturados nos casos litigiosos. A lei romana previa
a tortura para todos os criminosos condenados. Os relatos de Gregório de Tours
revelam o extraordinário grau de sadismo que se manifestava no carrasco e na
multidão. Abriam-se as chagas dos supliciados que acabavam de cicatrizar, chamava-se
um médico para tratar do infeliz a fim de “poder torturá-lo num suplício ainda
mais longo”. Gregório conseguiu livrar o diácono Ricou da pena de morte, mas
não da tortura:
Nenhum objeto,
nenhuma peça de metal pôde suportar tantos golpes como esse miserável. Com
efeito, desde a terceira hora do dia [nove da manhã] ele ficou pendurado numa
árvore, com as mãos atadas às costas, e até a nona hora, quando o estenderam
sobre um cavalete, foi submetido a golpes de bastão, chicote e correias duplas,
desferidos não só por uma ou duas pessoas, e sim por todos que puderam se
aproximar de seus miseráveis membros.
Tais práticas
continuaram na época carolíngia enquanto o sistema de ordálio, de origem pagã,
parece mais usual que antes. A provação mais conhecida consistia em fazer o
acusado caminhar descalço sobre nove relhas de arado incandescentes. A
divindade protegeria o inocente de qualquer queimadura e este só tinha de
apresentar as plantas dos pés róseos como ameixas para ser liberado. Assim,
Deus passava através dos corpos puros, mas recusava qualquer contato com o
corpo maculado pelo homicídio. E essa concepção pagã perdurou no cristianismo
até o século XII, apesar de alguns bispos mas graças ao arcebispo Hincmar de
Reims.”
“Os numerosos
processos de pessoas que receberam um milagre, redigidos às centenas tanto na
época merovíngia como na carolíngia por monges médicos que sabiam expressar um
diagnóstico à maneira de Hipócrates, permitem-nos delinear um quadro da saúde
da população bastante revelador dos sofrimentos do período. Em qualquer região
da Gália onde se encontram os grandes centros de peregrinação, é impressionante
constatar, entre as curas, 41% de doentes afetados por paralisia, fraqueza
física ou atrofia, 19% de cegos, 17% de enfermos de males diversos, 12,5% de
loucos e possuídos, e, enfim, 8,5% de mudos, surdos-mudos e surdos. A
importância das paralisias se explica pelas carências alimentares já
assinaladas, notadamente as avitaminoses que provocam polineurites, tracomas ou
glaucomas, e muitas vezes o raquitismo entre as crianças, numerosas no meio dos
infelizes que frequentam os adros dos santuários. A falta de higiene devida ao
abandono dos aquedutos, ao consumo de água parada, à multiplicação das zonas
pantanosas quando se abandonam as terras cultivadas provoca inumeráveis
poliomielites, cujos efeitos deformadores e paralisantes conhecemos, o
paludismo ou febre quarta e todas as febres paratífícas. Um número considerável
de crianças aleijadas por acidentes perinatais ou pós-natais permite perceber e
compreender o quanto deviam ser usuais a mortalidade infantil e a das
parturientes. Os casais e as mulheres que vêm implorar o fim de sua
esterilidade ou o final feliz de um parto mostram como a procriação chega às
raias da obsessão. Isso nos leva às doenças psicossomáticas e mentais. Muitas
neuroses explicam algumas paralisias, como as mãos fechadas a ponto de as unhas
penetrarem na carne das palmas, e numerosas deficiências sensoriais. Mas a isso
se somavam neuroses histéricas com desdobramento da personalidade, estados
maníacos acompanhados de logorreias muitas vezes de origem alcoólica. Os monges
médicos descrevem bastante bem as manias agudas ou depressivas ligadas à
epilepsia e que colocavam, para os religiosos, o problema das possessões diabólicas.
Nesses casos, acreditando firmemente em tais fenômenos, os autores dos
processos de comprovação de milagres consideram os possuídos como doentes
infectados mental e fisicamente por Satanás. Ressaltam o fato de que a expulsão
do demônio se acompanha de emissões de humores viciados, sanguinolentos ou
purulentos, às quais se seguem exalações pestilentas. Assim, todos esses corpos
enfermos eram corroídos pelo sofrimento e dominava-os uma culpa surda, preço
inevitável das idas e vindas entre a adoração e a execração da carne. Pelo
lugar concedido às vestes e aos cabelos, pelo tabu relativo à nudez, pelo gosto
mórbido da castração e da tortura, pelas doenças orgânicas e pelos sintomas
maníaco-depressivos, o estudo do corpo e das sensações que provoca revela,
pois, que essa humanidade superestimava os valores de força, procriação e saúde
física e moral, provavelmente porque lhe eram indispensáveis num mundo
instável, ameaçador e incompreensível.”
“Golpes e feridas
levam à morte. Nessas últimas etapas que conduzem ao assassinato, devemos
primeiro nos convencer de que tais atos são proporcionais à população da época
e, portanto, bem mais comuns que hoje em dia. Haja vista a cansada indiferença
de um Gregório de Tours em seus relatos, os protestos horrorizados de Teodulfo,
bispo de Orléans, e de Hincmar, arcebispo de Reims, em cujas poesias e sermões
percebemos como a violência é cotidiana. Que os leigos se matem ainda passa;
mas o que dizer dos clérigos revoltados contra seu bispo, o que pensar das
freiras do mosteiro de Santa Cruz de Poitiers que maltratam sua abadessa e seu
bispo, perturbam um concílio a ponto de dissolvê-lo, reúnem “um bando de
assassinos, feiticeiros e adúlteras” e assaltam o próprio mosteiro? Pierre
Riché cita, no século IX, o caso de um bispo de Mans que, descontente com seus
clérigos, mandava castrá-los. Carlos Magno precisou interferir e depor esse
louco furioso. Mas nos enganaríamos se atribuíssemos todos esses atos a um desvio
mental. São práticas agressivas habituais, como o assassinato do arcebispo
Foulque de Reims, no começo do século X, por instigação do conde de Flandres.
Os velhos sábios proprietários da Lei Sálica desfiam uma verdadeira litania dos
golpes e feridas indenizados por uma multa, o wergeld, ou ouro do homem.
A expressão é bastante significativa: só o ouro consegue impedir que corra
sangue. Por isso cada caso está previsto, do mais perigoso — aquele em que o
assassino tenta atingir o outro com uma flecha envenenada — até o golpe
suficiente para arrancar sangue. Três murros custam nove soldos de multa; uma
mão, um pé, uma orelha ou um nariz decepados, bem como um olho vazado, cem
soldos; se a mão ou o polegar não forem totalmente arrancados, a soma será
inferior. A fastidiosa aritmética se complica, pois um indicador cortado — dedo
que serve para esticar o arco — vale 35 soldos, enquanto o mindinho custa
somente quinze. Pior ainda, alguns chegam ao ponto de arrancar a língua do
adversário, “de tal modo que ele não possa falar”: cem soldos de multa. É fácil
perceber a causa de tamanha violência: vingança! Pois para que se dar ao
trabalho de realizar uma “operação cirúrgica” tão difícil, entre os urros do
infeliz e com a ajuda de amigos que o seguram, senão por um desejo profundo de
anular a parte do corpo que prejudicou o agressor? Apenas esse desejo explica
tal atitude, já que é mais fácil matar sozinho outro homem — o que custa o
mesmo preço, exceto no caso de antrustiões e de convivas do rei. Cada
assassinato é codificado segundo a condição social do morto, sendo as multas
pagas pelo criminoso à família da vítima rigorosamente iguais tanto para um
franco como para um romano. Tudo que conta é sua posição na hierarquia social,
homem do rei ou simples homem livre. Pela terceira vez deparamos com essa
curiosa prática franca: a morte para o ladrão, a multa para o assassino. Ela
ainda é mais surpreendente quando sabemos que entre os romanos e os burgúndios
todo assassinato é passível da pena de morte. Apenas o homicídio em legítima
defesa acarreta, entre os burgúndios, o pagamento da metade da indenização à
família da vítima, variando conforme sua condição: nobre, livre ou de nível
social inferior. Devemos levar mais longe nossa explicação sobre a vingança,
“essa vingança de um parente a que chamamos faida”, como diz Réginon de Prüm.
Cometido um
assassinato, a linhagem da vítima tinha o imperioso dever religioso de vingar
essa morte, fosse no culpado, fosse num membro de sua parentela. E esta, por
sua vez, devia fazer a mesma coisa. Toda a educação para a agressividade
culminava nessas intermináveis vinganças privadas que às vezes se prolongavam
durante séculos e que conhecemos desde Gregório de Tours, no século VI, até
Raoul Glaber, no XI. De fato era absolutamente vergonhoso não vingar a família.
Sabendo da própria boca do assassino que seus pais foram degolados, o jovem
Sicário, apesar de romano, declarou a si mesmo: “Se não vingo a morte de meus
pais, não mais mereço o nome de homem, porém o de fraca mulher”. E de imediato
corta com uma serra a cabeça do outro adormecido. Depois do assassinato de
Chilperico, o rei Gontran exclama: “Não devemos nos considerar homens se não
somos capazes de vingar tal morte neste ano!”. Ainda uma vez, o homicídio
equivale a virilidade. Ninguém reprova o ato de matar. Mais, este se torna
hábito. “Se alguém encontrar numa encruzilhada um homem que seus inimigos
deixaram sem pés nem mãos […] e o liquidar, será punido em cem soldos.” Assim
também, “se alguém tirar a cabeça de um homem que seus inimigos espetaram numa
estaca sem a concordância de outro […] será punido em quinze soldos”. Realmente
eram muito graves esses atos, incompreensíveis para nós hoje em dia. Em ambos
os casos a vítima fora assim exposta em público num lugar sagrado — encruzilhada
ou estaca de cerca — para significar a execução religiosa de uma vingança
privada. A interferência de um terceiro desencadeava outra série de vinganças.
Três parentelas passavam então a envolver-se na mesma faida! Esses casos eram
tão complicados que a rainha Brunehaut só encontrou um jeito de resolvê-los:
mandar seus sectários massacrarem a machadadas os membros de duas famílias
envolvidas numa faida e previamente embriagados por ela!
No entanto havia,
como ressalta Sylvie Desmet, um meio muito simples de interromper a cadeia de
vinganças: a indenização, o wergeld. Pois cada ferimento, cada pessoa
era literalmente “etiquetada” com um valor bem preciso em soldos de ouro;
bastava a parentela exigir o preço do homem, ou o ouro do homem, e a do
assassino aceitar pagá-lo para terminar a vingança privada. Numa sociedade em
que a vida humana não conta, em que só importa o dano sofrido, tal solução
evidentemente era sedutora, pois, tendo em vista as enormes quantias em jogo,
seguia-se um enriquecimento imediato. Contudo, muitas vezes a capacidade era
varrida pelo ódio, pelo medo de ser tido na conta de covarde ou de mulher.
Ainda aí a sociedade era ameaçada em seu equilíbrio se um homem não se
comportava como homem. Também, com muita frequência, não se utilizava a
indenização, e a vingança prosseguia cada vez mais bela.
Ainda mais:
constituía uma obrigação. Lembremo-nos daqueles banquetes nos quais as pessoas
se associavam, os conjurados prestavam juramento de matar este ou aquele ou de
defender seus companheiros em qualquer circunstância. Os redatores que no final
do século VIII acrescentaram um capítulo à Lei Sálica sabiam disso. Sentiram a
necessidade de esclarecer “que quando a lei foi escrita os francos não eram
cristãos. Por causa disso prestam juramento com a mão direita e sobre as
armas”. Aceitaram, mais tarde, a maneira cristã de jurar. Mas o velho
comportamento desencadeado sob o signo da morte ameaçadora não podia
desaparecer rapidamente. Sempre era possível o reflexo de desembainhar a
espada. Os burgúndios puniam tal gesto com multa, e no entanto a violência
entre eles parecia menor, pois suas leis se referiam sobretudo a questões de
dentes quebrados a murros. A mão e a arma formavam, pois, uma coisa só; nada
refreava o ato instintivo de sangrar o outro. O reflexo e a vontade são uma só
e mesma coisa, porque, principalmente entre os francos — mas isso se difundiu
nas outras populações —, a palavra e a ação constituem também uma coisa única.
Por quê? O estudo das injúrias nos provará. A injúria torna a violência
obrigatória.
Pode parecer
irrisório e lastimável o fato de um legislador se rebaixar ao nível de taxar os
insultos que todos se lançavam. Mas tratava-se da honra de cada um, ofensor e
ofendido. Não responder significava aceitar a autenticidade do qualificativo
infamante. Lançar uma acusação obscena era o único meio de um fraco aviltar e
rebaixar um poderoso. Tudo isso procedia de uma crença íntima na eficácia da
palavra. Os romanos limitavam-se a punir a ofensa proferida em público. Para os
germanos, o insulto sempre é destrutivo porque se volta para as virtudes
privadas que o ideal social e a moral paga preconizam. O cúmulo da desonra é o
qualificativo de prostituída: 45 soldos. Novamente deparamos com essa obsessão
pela pureza das mulheres, das quais nunca se deve suspeitar. Depois vêm, de
acordo com uma ordem reveladora porém com tarifas de apenas três soldos, vários
insultos que desacreditam os homens. Só a acusação de pederastia acarreta uma
multa de quinze soldos. Segue-se-lhe imediatamente o termo concagatus,
que só podemos traduzir pelo velho adjetivo medieval conchiê*. A
associação por proximidade dessas duas injúrias revela como, num mundo ao mesmo
tempo guerreiro e rural, o homossexual masculino não é mais o honrado
“penetrador” de antigamente, mas um ignóbil “vira-bosta” impuro. Quanto às
virtudes reclamadas, são a probidade, pois os outros insultos são chamar alguém
de raposa, traidor e delator, e a coragem física, pois é ignóbil proclamar que
alguém jogou o escudo no campo de batalha para fugir ou qualificá-lo de
poltrão. Reencontramos aqui a conivência com o mundo animal e seus vícios. Todo
esse quadro do imaginário injurioso constitui a prova de uma mentalidade
pré-lógica individualista, em que o ódio é criador de males e o inconsciente coletivo
secreta sentimentos que engendram a destruição da honra alheia. Ninguém
discordará de que a palavra pode causar mal, porém, para as pessoas da Alta
Idade Média, ela operava uma verdadeira transmutação psicossomática. A réplica
era, portanto, obrigatória e a violência inevitável.”
*: Termo
registrado pela primeira vez por volta de 1150, nas obras de Wace; significa:
sujar, cobrir de lixo, ultrajar, desonrar. (FBN)
“Os momentos de crise
de civilização sempre são favoráveis ao surgimento de individualidades místicas
que cristalizam os receios e as esperanças secretas de cada um.”
“Não esqueçamos que o
cosmo pagão, sem origem nem fim, é presa de forças perpetuamente renovadas.
Amedrontado com a danação — mais tarde, não agora —, o visionário levava a
imaginação de cada um para fora do pesadelo incessantemente recomeçado —
primavera, verão, outono, inverno, nascimento, crescimento, colheita ou razia,
morte — e, ao mesmo tempo, quebrava o mito pagão do eterno retorno com a visão
de um tempo linear irreversível.”
“A inferioridade da
mulher e da criança deve-se à onipresença da violência privada. Esta última era
indispensável num país onde a natureza incompreensível sempre ameaçava o homem.
Ele julgava decifrar na luta feroz pela vida à qual se entregavam os animais um
convite para cultivar a agressividade em si mesmo e proteger a fecundidade na
mulher. A caça era, pois, o momento privilegiado para assimilar as leis da
sobrevivência — ou melhor, a única lei, a do mais forte. Consequência natural,
o roubo, autoafirmação, e o incêndio, autocompensação, fazem parte de uma
contínua agressividade cuja origem sexual não se percebia. Com efeito, a lei da
sobrevivência impunha a faida como um dever religioso para manter a linhagem. O
sangue devia correr em troca daquele que devia se perpetuar. A morte constituía
uma temida necessidade, porque remetia o indivíduo ao mundo subterrâneo, um
mundo com suas leis privadas que as práticas funerárias não deviam transgredir.
Assim, um vínculo profundo unia a violência, o sexo e a morte. A violência era
normal, até obrigatória. Em compensação, temia-se tanto o sexo e a morte que se
tornava necessário rodeá-los de proibições. Com suas fobias em relação a
insultos, o imaginário pagão confirma que uma sexualidade de sangue pura, uma
coragem física feita de probidade podem afastar uma morte ruim. O sangue não
deve ser nem poluído nem sugado, mas simplesmente derramado. Em contrapartida,
a transferência dos cemitérios para os arredores da igreja, tornando a morte pública,
procura livrá-la de seus tabus. O imaginário cristão então pode responder à
angústia referente ao sexo e à morte com seu deslocamento para o além. Para
tanto, as visões utilizam uma pedagogia moralizante pessimista ou uma
perspectiva mística otimista.”
“Acreditar na loucura
do amor é já vivê-la.”
“(...) Isso prova que
os monges e os padres são tidos por privilegiados mediadores que, através de
seus laços pessoais com a divindade, podem ser muito úteis tanto para a vida
cotidiana como para a do além. Esses homens, que criaram espaços sagrados,
mosteiros, igrejas, terras de asilo, que são os guardiães das relíquias dos
santos, os portadores de livros sagrados e que se abstêm de sexo, afastaram-se
do resto da população. Assim, de maneira mais ou menos consciente, alimentam a
confusão entre sacer e sanctus, entre tabu e santificado.
Ademais, no final da época carolíngia, o retorno voluntário do clero à velha
pedagogia do medo e do temor, única eficaz contra uma violência desenfreada,
acentuou a impressão de que a Igreja era detentora do sagrado.
Assim, para obter a
salvação pessoal, era preciso apoderar-se dela. Raciocínio simplista que está
na origem do que se chamou a “Igreja privada”, Eigenkirche. Desde os
primórdios da missão na Gália, os aristocratas germanos ajudaram os
recém-chegados concedendo-lhes terras e bens necessários para fundar os
primeiros edifícios do culto. Mas em sua mente continuaram considerando-se
proprietários da nova igreja, patronos do título e titulares. Para eles nada
era mais fácil que tirar um escravo dos campos, libertá-lo para satisfazer as
leis eclesiásticas e manter sua formação sacerdotal. O grande proprietário
tinha então seu padre pessoal, o qual, através de preces e missas, lhe obteria
a vida eterna. Os príncipes protetores dos mosteiros e dos bispados faziam o
mesmo cálculo mais ou menos consciente. O sistema da “Igreja privada”
transformava os padres em domésticos, principalmente no norte, em Francie. Como
diz amargamente Jonas de Orléans: “Existem padres tão pobres e tão desprovidos
de dignidade humana, tão desprezados por alguns leigos que estes não só os
tomam como intendentes e contadores de seus bens (evidentemente porque são os
únicos que sabem ler e escrever), mas ainda se servem deles como domésticos
leigos e não os admitem como convivas a sua mesa”. Esse domínio dos grandes
leigos sobre o clero foi tal que chegou a uma intensa degradação ao longo do
século X e provocou a reforma gregoriana, verdadeira liberação do clero. No
final do século IX só alguns leigos piedosos, como Girard de Vienne ou Géraud d’Aurillac,
tinham percebido o perigo. Fundaram mosteiros isentos de toda autoridade leiga.
Mas Géraud era um dos raros nobres de sua época que tiveram uma vida pessoal de
oração mesmo permanecendo no mundo. Enquanto se vestia, ao levantar-se da cama,
recitava os salmos;
à mesa, mandava ler textos bíblicos que comentava e explicava para os hóspedes.
Em suma, a primazia da vida interior acarretava uma santificação das relações
interpessoais entre leigos e clérigos. Porém a ausência de vida interior
acentuava a sacralização do clero e a privatização da Igreja. Finalmente, uma
cristianização incompleta da vida privada acarretava um retrocesso ao sagrado
pagão. Assim se explica que a Alta Idade Média termine por volta do ano 1000
com o desejo dos grandes de se apoderarem dos segredos do clero e das receitas
do sagrado para aplacar uma angústia que o exercício do poder político, enfim
totalmente privatizado, não permite aliviar.
Assim, apesar de
tudo, a cristianização, embora mais forte na época carolíngia que nos tempos
merovíngios, não conseguiu eliminar esse conglomerado de crenças subjetivas que
chamei de sagrado pagão. O saber pré-lógico, as intuições femininas, as receitas
mágicas, poções, filtros e outros giram em torno das mesmas obsessões: o amor,
a morte, o além. Os esforços de cristianização tentaram afastar o medo das
forças más transferindo-se para o diabo a fim de libertar a consciência
pessoal. Porém essa lenta passagem de uma consciência exterior ao homem a uma
consciência interior mais pessoal permanece incompleta. A prática dos
sacramentos, como o batismo e a eucaristia, não continua isenta de um certo
toque de crença mágica. A penitência e o casamento foram provavelmente os meios
mais eficazes de cristianização da vida privada. Com certeza, os penitenciais,
em seu decorrer cronológico do século VI ao XI, revelam um incontestável
progresso na consciência moral. Provam uma verdadeira intransigência com relação
ao homicídio, à poligamia, ao divórcio, e reclamam igualdade de todos os leigos
diante do pecado, assim como certa igualdade da mulher perante o homem.
Ademais, privilegiam o ser em relação ao ter. Nisso contradizem completamente
as leis germânicas e permitiram profundas transformações do comportamento
pessoal e social. No interior do casamento, a abrupta reivindicação de
indissolubilidade e de uma ordem natural nas relações sexuais ia contra recusas
veementes das quais uma das menores foi o caso Lotário-Theutberge. Entretanto,
o corpo episcopal tinha perfeita consciência dos pesados comprometimentos que
os penitenciais permitiam estabelecer com as crenças pagãs, pois inutilmente
tentou impedi-las. Com demasiada frequência, a conscientização do pecado aparentava-se
mais à de um delito ou de uma impureza material que à de uma recusa do amor
divino. A penitência automática mantinha a relação religiosa no nível de um
contrato de igual para igual. A aceitação dos motivos pagãos de recusa de
certas práticas levava a contradições com o Evangelho. Enfim, a
não-consideração da intenção (exceto nos casos de ódio) deixava a consciência
na total ignorância dos motivos do ato. Havia progresso, pois agora era julgado
o resultado, em lugar do prejuízo sofrido, mas esse progresso demandava outro,
que só ocorreu com a obra de Pedro
Abelardo.
A consciência pessoal
emerge lentamente, pois, da ação contraditória da Igreja. Essa mistura de
intransigência e comprometimento explica o fato de o amor e a morte passarem,
ao longo de dez séculos, do sagrado pagão aos segredos cristãos, sem
desaparecer a mentalidade primitiva. Toda aculturação necessita, na verdade,
dessa mistura de rigorismo e laxismo. O filósofo Jacques Maritain utilizou em
seu último livro o conceito de “ajoelhar-se perante o mundo” para designar essa
maneira ambígua da Igreja de respeitar os valores não cristãos capitulando
diante deles. Tornando-se proprietária do sagrado pagão, a Igreja da Alta Idade
Média como que brincou com fogo sob o risco de se queimar, porém libertou os
indivíduos para que se tornassem eles mesmos.
A criação da
interioridade pela prece, pela solidão e pelo silêncio constituía o único meio
de dessacralizar a relação subjetiva com Deus. Aqui a ambiguidade não é mais
admissível. A ascese deve substituí-la, a do corpo e a do coração, pelo
trabalho manual e intelectual, pelo jejum e pela oração. Bento de Nursia
introduziu uma verdadeira revolução mental generalizando a lectio divina
e a leitura em geral. Assim como o escriba solitário diante de seu pergaminho,
o homem em oração se impõe uma verdadeira violência trabalhando o cérebro e o
coração sem cessar para abrir seu entendimento ao apelo de alguém. O prestígio
do monge que reza, unido à sacralização em geral do clero criada pelas
severidades dos penitenciais a ele relativos e à sacralização do livro em
particular, leva a uma inversão de situação, pois então os grandes leigos se
apoderam desses vestíbulos do além que eram os mosteiros e as igrejas. Aquele
que ora ou o padre tornavam-se um meio mágico de assegurar-se o paraíso. O
progresso interior, descoberta individual e intransmissível, transformava-se em
receita vulgar.”
“Do Estado,
propriedade privada, à Igreja privada o círculo se fecha. Do político ao
religioso, a Alta Idade Média é a época forte das individualidades, da recusa
do abstrato e dos grandes horizontes, dos pequenos grupos e das comunidades de
calorosa afetividade. A instintividade constitui o valor primeiro: voracidade,
rapacidade são as duas mamas de um mundo ávido de viver e gozar. O corpo e o
coração estão em desacordo. A natureza parte para o assalto da cultura. O
animal fascina o homem. O corpo é venerado, mutilado ou torturado. Só a
violência permite sobreviver. A morte está atrás de todos.
Não se trata
absolutamente de uma visão romântica, passada pelo crivo do Grande
dicionário histórico de Louis Moreri, sobre o sangue, o ouro e a púrpura de
nossas origens. Consideremos antes a Idade Média nosso inconsciente coletivo e
a grande fase de dissimulação de nossas paixões espontâneas, aquela em que a
recusa de toda estrutura pública desnuda os impulsos de cada um e permite uma
nova educação do homem. Foi um combate entre duas religiões, pagã e cristã, a
propósito da família, do sexo e da morte.
A obsessão dos povos
que entraram na Gália e a transmitiram aos galo-romanos girava em torno da
sobrevivência. Tal obsessão, legada pelos solos pobres e pelas florestas da
Europa, impunha o dever de reduzir o homem à arte de matar e a mulher à de
procriar. A sexualidade constituía, pois, um instrumento de construção da
sociedade que era preciso utilizar em conformidade com os ensinamentos da
natureza: lei do mais forte, pureza da mãe e da esposa. O amor, essa loucura
destrutiva, devia ser banido. Era necessário captar as boas forças do cosmo
misterioso e rechaçar seus maus impulsos. A morte era tão perigosa quanto o
sexo, pois pertencia a outra parte do cosmo, ao subterrâneo invisível. Entre os
dois a violência constituía uma obrigação para dominar um e apaziguar a outra.
Assim se podiam formar, como bandos inquietos de feras aspirando o ar que
veicula o cheiro do caçador, essas parentelas endogâmicas que enterravam os
mortos nos confins de suas propriedades.
A essa religião do
medo devia responder a da esperança. E ela responde, ao mesmo tempo de muito
perto e de muito longe, na simpatia e na hostilidade. Aceitou toda a
religiosidade pagã com relação à criança, à pureza do casamento, mas logo
procurou quebrar a parentela para impor o casamento monogâmico. Compondo com o
sagrado pagão, a Igreja das Gálias desviou-o para os sacramentos. Operou
principalmente importantes transferências entre os dois setores: público e
privado. Contra a angústia da morte, deslocou os defuntos para colocá-los à
vista de todos, ao redor dos vivos. Contra o medo da punição, transferiu a
penitência da praça pública para o ouvido do padre. Enfim, ao homem que só
experimentava o sentimento de sua existência diante de um mundo hostil no
interior de um grupo armado, ofereceu a loucura do eremita isolado ou o
silêncio do monge em seu oratório. Quaisquer que fossem as ambiguidades
profundas da ação da Igreja sobre a vida privada, essa lenta aculturação
pontilhada de fracassos — o mais patente dos quais era o do Império Carolíngio
— levava ao desprendimento, à autonomia de cada ser humano em relação a seu
ambiente. Do medo do mundo, passando pelo desprezo ao mundo, o homem em breve
partiria para a conquista do mundo.”
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5. Bizâncio: séculos X-XI — Évelyne
Patlagean
“Na mesma época o
discurso ascético apresenta novidades no tom, a despeito das referências que
sempre é possível encontrar. Já falamos de Simeão, o Novo Teólogo, e sua
reivindicação de uma relação pessoal com o Espírito Santo na solidão da cela.
Sua ascese se apresenta tão pouco inovadora que encontra um ponto de partida
numa frase do tratado de João da Escada (Climacos) sobre a vida contemplativa.
Durante uma estada junto aos seus, ele descobre na biblioteca da família um
exemplar dessa obra muito lida do século VII e aí encontra que “não mais sentir
é fazer a alma morrer, é a morte do espírito antes da do corpo”.”