Editora: Martin Claret
ISBN: 978-85-7232-559-2
Tradução: Jean Melville
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 264
Sinopse: Último
trabalho da fase positivista de Nietzsche, A Gaia Ciência traz um estilo
mais leve, mas sem perder o conteúdo crítico de outros títulos da mesma época.
Nele o autor expõe seus conceitos sobre arte, moral, história, política,
conhecimento, ilusão e verdade em 383 aforismos.
Pela primeira vez aborda a questão do eterno retorno, da
morte de Deus e cita Zaratustra, que será o protagonista de uma obra posterior,
Assim falou Zaratustra.
Esses conceitos, que já se insinuavam em suas obras
anteriores continuavam a ser desenvolvidos neste e nos demais trabalhos, sempre
de forma a valorizar os valores da Grécia Antiga e criticando a moral cristã.
“Continua verdadeiro o velho ditado: o
espírito orgulhoso, o pavão e o cavalo são os três animais mais orgulhosos da
terra.”
Conselho
É à glória que aspiras?
Nesse caso considere esta lição:
Renuncia a tempo e espontaneamente
À honra!
“O novo, em todas as circunstâncias, é o mal, pois é aquilo que deseja
conquistar, derrubar os marcos fronteiriços, abater as antigas crenças; somente
o antigo é o bem! Os homens de bem em todas as épocas, são aqueles que
implantam profundamente as velhas ideias para lhes dar fruto, são os
cultivadores do espírito. Mas todo o terreno acaba por se esgotar, é preciso
que o arado do mal volte.”
“O nosso amor pelo próximo não será o desejo
imperioso de uma nova propriedade? E não sucede o mesmo com o nosso amor pela
ciência, pela verdade? E igualmente com todos os desejos de novidade?
Cansamo-nos pouco a pouco do antigo, do que possuímos com certeza, temos ainda
necessidade de estender as mãos; mesmo a mais bela paisagem, quando vivemos
diante dela mais de três meses, deixa de nos poder agradar, qualquer margem
distante nos atrai mais: geralmente uma posse reduz-se com o uso. O prazer que
tiramos a nós próprios procura manter-se, transformando sempre qualquer nova
coisa em nós próprios; é precisamente a isso que se chama possuir. Cansar-se de
uma posse é cansar-se de si próprio (pode-se também sofrer com o excesso; à
necessidade de jogar fora, de dar, pode assim atribuir-se o nome lisonjeiro de
“amor”). Quando vemos sofrer uma pessoa, aproveitamos com gosto essa ocasião
que se oferece de nos apoderarmos dela; é o que faz o homem caridoso, o
indivíduo complacente; chama também de “amor” a este desejo de uma nova posse
que despertou na sua alma e tem prazer nisso como diante do apelo de uma
conquista iminente. Mas é o amor sexual que se revela mais nitidamente como um
desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que
deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre a sua alma como sobre o seu
corpo, quer ser amado unicamente, habitar e reinar na outra alma como o mais
alto e o mais desejável. Se considerarmos que isso não significa outra coisa
senão excluir o mundo inteiro do gozo de um bem, de uma felicidade preciosa; se
pensarmos que aquele que ama visa empobrecer e privar todos os demais
competidores, e tornar-se o dragão do seu tesouro, sendo o mais implacável
“conquistador”, o explorador mais egoísta; se imaginarmos, por fim, que todo o
resto do mundo lhe parece indiferente, desbotado, sem valor, e que se encontra
disposto a efetuar qualquer sacrifício, a perturbar qualquer ordem
estabelecida, a relegar para o segundo plano qualquer interesse: então
espantamo-nos que esta cupidez bárbara, esta furiosa injustiça do amor sexual
tenha sido a tal ponto glorificada, divinizada, em todos os períodos da
história, que se tenha extraído deste amor a ideia de amor concebida como
contrária do egoísmo, quando representa talvez a sua expressão mais direta.”
“O mal
- Examinai a vida dos mais fecundos homens e povos e perguntai se uma árvore
que deve elevar-se altivamente nos ares pode dispensar o mau tempo e as
tempestades; se a hostilidade do exterior e as resistências externas, se todas
as espécies de inveja, de ódio, de teimosia, de desconfiança, de dureza, de
avareza e de violência não fazem parte das circunstâncias favoráveis, sem as quais nada, nem sequer a virtude, poderia ter um
grande crescimento? O veneno que mata as naturezas fracas é um fortificante
para as fortes... e por isso nem lhe chama de veneno.”
“Quando possuímos em nós suficiente tragédia
e suficiente comédia para satisfazer as nossas necessidades pessoais,
preferimos abster-nos de ir ao teatro; ou então, excepcionalmente, é o conjunto
de tudo – cenário, público, autor incluído – que se tornam para todos o
verdadeiro espetáculo, a autêntica comédia e tragédia, ao lado do qual a peça
representada não vale nada.”
“A morte, no fundo, é a finalidade da vida.”
(Schopenhauer)
“Defeitos e vícios são sempre, com efeito,
aquilo que mais facilmente se imita e aquilo que não exige o menor treino.”
“As
condições para Deus – “O próprio Deus não poderia existir sem os homens
sábios” – disse Lutero com boa razão; mas “Deus ainda menos poderia existir sem
os insensatos” – isso o que o bom Lutero não disse.”
“Se Deus intencionava tornar-se objeto de
amor, deveria inicialmente renunciar o fato de julgar e de fazer justiça; um
juiz, mesmo sendo clemente, nunca é objeto de amor.”
“Demasiado
oriental – Como? Um Deus que ama a humanidade na condição de que acreditem
nele, que lança olhares terríveis, ameaças contra quem não acredita nesse amor?
Como? Um amor sob condições é o sentimento de um Deus todo-poderoso? Um amor
que não conseguiu vencer o senso de honra, nem a sede de vingança? Como tudo
isso é oriental! “Se te amo, que te importa?” É o que basta para criticar todo
o Cristianismo.”
“Ser
profundo e parecer profundo – Aquele que se sabe profundo esforça-se por
buscar a clareza; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão,
esforça-se por ser obscuro. Uma vez que a multidão acredita ser profundo tudo
aquilo de que não pode ver o fundo. Tem tanto medo! Hesita em se meter na
água!”
“Pensamentos
– Os nossos pensamentos, na verdade, são sempre as sombras dos nossos
sentimentos; são sempre mais obscuros, mais vazios e muito mais simples do que
estes.”
“Entre os cegos considera-se rei quem tem o
ouvido maior.”
“Gênese
do “bom” e do “mau” – Só inventa a melhoria aquele que tem capacidade para
sentir que “tal coisa não é boa”.”
“Julgas então que as ciências teriam nascido
e progredido se não tivesse havido antes esses mágicos, alquimistas, astrólogos
e feiticeiros que foram primeiro obrigados, por meio da isca de miragens e de
promessas, a criar a fome, a sede, o gosto pelas forças escondidas e
proibidas?”
“Pregadores de moral e teólogos são dotados
de uma falta de civilidade assaz comum: procuram todos persuadir o homem de que
ele se sente muito mal, que tem necessidade de uma cura enérgica, radical e
definitiva. E o homem, de tanto ouvir com demasiado zelo e durante séculos esse
gênero de professores, acabou por sentir, verdadeiramente, uma parte dos males
que essa superstição lhe impõe.”
“Quantas pessoas sabem observar? E dentro
deste número reduzido dos que sabem, quantos observam a si próprios? “Cada um é
o mais distante de si próprio”... é o que não ignora, para seu grande
desprazer, nenhum perscrutador da alma humana. A máxima “conhece-te a ti mesmo”
ganha, na boca de um deus e dirigida aos homens, o acento de gracejo feroz.”
“Olhar a natureza como uma prova da bondade e
da providência de um deus, interpretar a história em honra de uma razão divina,
como o testemunho constante de uma ordem e de um finalismo moral do universo,
explicar tudo o que vos acontece, à maneira das pessoas piedosas, por uma intervenção
divina, um sinal, uma premeditação, uma mensagem da Providência tendo em vista
a salvação da nossa alma, tudo isso é passado, a consciência opõe-se a isso;
não há consciência um pouco sutil que não veja aí inconveniência, deslealdade,
mentira, feminilidade, fraqueza, covardia; é esta severidade, mais do que
qualquer coisa, que faz de nós bons europeus, herdeiros da mais longa e da mais
corajosa vitória que a Europa obteve sobre si. Porém, na medida que rejeitamos
esta interpretação cristã, logo que a rejeitamos como uma moeda falsa, vemos
desenhar-se diante de nós, terrivelmente, a pergunta de Schopenhauer: “Tem a
existência, então, um sentido”? Esta pergunta exigirá séculos antes de poder
ser simplesmente compreendida de maneira exaustiva nas pregas das suas
profundezas.”
“A
vingança sobre o espírito e outros subentendidos da moral – A moral – onde
acreditais que possa ter os seus mais pérfidos advogados?... Eis aqui um homem
que não teve bom êxito, que não tem espírito o bastante para dele se alegrar e
que recebeu a cultura exata apenas para dar-se conta disso; aborrece-se,
enjoa-se, despreza-se; privado, por uma pequena herança que recebeu, da última
consolação, a “benção do trabalho”, do esquecimento de si na “tarefa
cotidiana”; é um ser que, no fundo, tem vergonha da sua existência – talvez,
ainda por cima, mantenha alguns pequenos vícios no fundo da alma; por outro
lado, não pode impedir-se de se corromper cada vez mais, de se tornar cada vez
mais irritável e vaidoso em virtude de leituras a que não tem direito, ou a
frequências demasiado intelectuais para as suas capacidades digestivas:
envenenado até à medula – pois para um malogrado desta natureza o espírito
torna-se veneno, e veneno a cultura, a solidão, e a higiene – prostra-se
finalmente em um estado de rancor, em uma vontade crônica de se vingar... O que
pensais que tenha necessidade, que tenha absolutamente necessidade para
conservar diante dele mesmo uma aparência de superioridade sobre espíritos mais
fortes do que o seu, para se dar, pelo menos em imaginação, a volúpia da
vingança satisfeita? A moralidade – sempre ela – pode pôr-se a mão no fogo,
precisa das grandes frases da moral, do grande tambor da justiça, da sabedoria,
da santidade, da virtude; tem necessidade do estoicismo, da atitude (oh,
estoicismo, como escondes bem o que não tem!...), precisa da capa do silêncio
superior, da afabilidade, da suavidade, e outros envoltórios idealistas sob os
quais vemos caminhar os contempladores incuráveis deles próprios, que são
também os incuráveis vaidosos. Não me entendam mal: acontece, às vezes, que
estes inimigos natos do espírito dão nascença às extraordinárias amostras
humanas que o povo honra com o nome de santos e de sábios; são eles que
produzem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história: um Santo
Agostinho, por exemplo. O temor diante do espírito, vingar-se sobre ele,
quantas vezes este dinamismo vicioso foi a fonte de grandes virtudes; depois,
foi virtude! E entre nós, a pretensão dos filósofos à sabedoria, esta pretensão,
a mais louca, a mais impertinente de todas, que apareceu, de tempos em tempos
sobre a terra, não foi sempre, tanto na Índia como na Grécia, não foi em
primeiro lugar uma necessidade de esconder? Por vezes, talvez, por um cuidado
de educador – um ponto de vista que santifica tantas mentiras! –, por uma terna
solicitude pelos seres em formação, em devir, por discípulos que é necessário
defender contra eles próprios, pela fé em uma pessoa (mediante um erro)...
Porém, mais frequentemente ainda, necessidade do filósofo de abrigar atrás
dessa cortina o seu cansaço, a sua idade, a sua frieza, o seu endurecimento e
esfriamento por sentir o fim próximo, sagacidade do instinto que têm os animais
antes da morte: afastam-se, calam-se, elegem a solidão, refugiam-se em cavernas
e tornam-se sábios... O quê? Será a sabedoria o esconderijo do filósofo para
este se defender... do espírito?”