Editora: Globo
ISBN: 978-85-2503-546-2
Tradução: Osvaldo de Araújo Souza
Opinião: As Portas da Percepção: ★★★★☆ / Céu e Inferno:
★★★☆☆
Páginas: 168
Sinopse: Dois
importantes ensaios sobre o efeito da ingestão de drogas e suas implicações
mentais e éticas. Em “As portas da percepção”, de 1954, o romancista inglês
descreve suas experiências pessoais com a mescalina, alcaloide extraído de um
cacto mexicano, sob supervisão médica. “Céu e inferno”, de 1956, faz uma
análise crítica do uso de drogas. Ele constata que, se as alucinações
produzidas pela droga podem alcançar uma atmosfera mística, também podem
conduzir o paciente às margens da auto-aniquilação.
As Portas da Percepção
“Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros;
mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires
penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os
amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única
autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua
prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações,
sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser
por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos
acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da
família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente
semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por
dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos
próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em
circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre,
evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses
universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os
lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde
vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na
memória individual para servir de base à compreensão ou a ligações entre eles.
Falam, mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem
pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os
outros nos veem é uma das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é
o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram.”
“— Que me diz das relações espaciais? —
perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros (sobre o efeito da
mescalina).
Era difícil responder. Na verdade, a
perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala já não mais
pareciam encontrar-se em ângulos retos. Mas não eram esses os fatos realmente
importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações
espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato
com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em
situações normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? — A
que distância? — Como se situa em relação a tal coisa?. Durante a
experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de
outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a
compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de
importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os
livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que
notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos
eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso
que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de
somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida.
Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem
erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas
havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com
medidas e lugares, e sim com a existência e o significado.
E, de par com essa indiferença pelo espaço,
adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.
— Parece haver bastante — foi tudo o que pude
dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha
dessa dimensão.
Bastante; mas pouco se me dava saber,
exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar para meu relógio; mas ele,
sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e
ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada um perpétuo presente,
criado por um apocalipse em contínua transformação.”
“Refletindo sobre minha experiência, vejo-me
levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, “que
será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o
tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de
percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é,
principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz
de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como
de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A
função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos
esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis
e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos
perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas
sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós
possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais
nos preocupa é viver a todo o custo. Para tornar possível a sobrevivência
biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da
válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue
coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a
conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir
o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa
incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a
que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da
tradição linguística dentro da qual nasceu — beneficiário, porque a língua nos
permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras
pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única
sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade,
fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas
palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome
de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que
petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais
os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de
outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência.
A maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, só toma conhecimento
daquilo que passa através da válvula de redução e que é considerado
genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem
ter nascido com uma espécie de desvio que invalida essa válvula redutora. Em
outras, o desvio pode surgir em caráter temporário, seja espontaneamente, seja
como resultado de “exercícios espirituais” voluntários, do hipnotismo ou da
ingestão de drogas. Mas o fluxo de sensações que percorre esse desvio, seja ele
permanente ou temporário, não é suficiente para que alguém se aperceba “de tudo
o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo” (uma vez que o desvio não
destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a
torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e
sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente
selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa
(ou, no mínimo, suficiente) da realidade.”
“Essa participação no manifesto esplendor das
coisas não deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns,
necessárias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupações com os
indivíduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto)
naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a
Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualização
recém-nascida, o comportamento, a aparência, o próprio raciocínio do indivíduo
que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivíduos —
seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois a aversão
não figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam,
no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a
analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a sós com
a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o
Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente,
evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que,
intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no
entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de
quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasião, a
mescalina me havia tirado — o mundo dos personalismos, da dimensão tempo, dos
julgamentos morais e das considerações utilitárias; o mundo — e era esse
aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer — o mundo da
autoafirmação, da convicção, da supervalorização da palavra e das noções
idolatramente cultuadas.”
“Aquilo, percebi repentinamente, estava indo
muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior,
para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o
retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma pressão de
realidade muito superior à que uma mente, acostumada a viver a maior parte do
tempo em um confortável mundo de símbolos, talvez pudesse suportar. Na
literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e
terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face
com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem
teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e
a pureza divina; entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito.
Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua
intensidade, só pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas
do purgatório. Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos
mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do
Vazio, e até mesmo das Luzes menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente,
na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um
recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma ou indo
ter ao inferno. Há de preferir qualquer coisa ao ígneo refulgir da implacável
Realidade — qualquer coisa!”
“O esquizofrênico é uma alma, não só impura,
como também desesperadamente desgostosa com sua situação. Seu tormento consiste
na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou
exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do
senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano das
noções úteis, dos símbolos compartilhados pelos demais, das convenções
socialmente aceitáveis. O esquizofrênico é qual homem sob a influência contínua
da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele
não pode suportar por lhe faltar pureza; que não pode interpretar por ser ela o
mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o
mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes
singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestação da
maldade humana ou até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que
vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio
psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal,
ninguém poderá mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para
mim.”
“Parece extremamente improvável que a
humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos
artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em
seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que
os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos,
estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a
religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo
isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E há,
sempre houve na vida individual para uso cotidiano, drogas inebriantes. Todos
os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas,
todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção,
são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos seres humanos,
desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais da percepção, a
ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos — o cloral, a
benzedrina, os brometos e os barbituratos.
A maior parte dessas substâncias não pode ser
atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente
e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do
álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são
rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são
viciados.
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros
e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso
para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós,
quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos
pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de
seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao
fumo e à bebida.
A despeito das legiões sempre crescentes de
alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente
mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda
armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam.
E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente
todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural
quanto comer. Do ponto de vista do racionalista utilitário, isto pode parecer
estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa.
Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os
cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O
câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e
criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas
que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se
comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou
liberdade, por um cigarro ou uma taça.
Nossa era, entre outras coisas, é a idade do
automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança
nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à
esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas
criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser — e isto não admite contestação
— resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a
autotranscedência não pode ser dominado pelo simples fechar das
solicitadas Portas na muralha. A única política razoável seria
abrir outras portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar
seus velhos maus hábitos por práticas novas e menos prejudiciais. Algumas
dessas novas portas seriam de natureza social e tecnológica, outras religiosas
ou psicológicas, e outras mais seriam dietéticas, atléticas e educacionais. Mas
é inevitável que perdure, apesar de tudo, a necessidade de frequentes excursões
químicas para longe da intolerável personalidade e dos repulsivos arredores de
cada um. Precisar-se-ia, pois, de uma nova droga que aliviasse e consolasse
nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período
prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de
imediato. Tal droga teria de ser eficaz em doses diminutas, e sintetizável. A
ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do
vinho, da cerveja, das bebidas fortes e do tabaco, fosse interferir com a
produção dos alimentos e das fibras essenciais. Teria de ser menos tóxica que o
ópio ou a cocaína, menos propensa a produzir consequências sociais indesejáveis
que o álcool ou os barbituratos, menos prejudicial ao coração e aos pulmões que
o alcatrão e a nicotina dos cigarros. E, por suas características positivas,
deveria produzir modificações mais interessantes na percepção, mais
intrinsecamente proveitosas que a mera ação sedativa ou a propensão aos sonhos
e às impressões de onipotência ou o escape às inibições.”
“O impulso para superar a personalidade
autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por
que razão, os seres humanos veem baldados os seus esforços para superarem a si
mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se
propensos a recorrer às drogas substitutas da religião — o álcool e as “pílulas
inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo
maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos
Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do
Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados,
êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de
documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de
drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de
substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido. [...] As práticas
estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto
entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado
índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que
poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro
da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode
ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as
necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”.
Teoricamente, cada um de nós deveria ser
capaz de encontrar a autotranscedência a partir de uma forma de religião pura
ou aplicada. Mas, na prática, parece ser sumamente improvável que esse anseio
pelo apogeu seja algum dia realizável. Há (e é fora de dúvida que sempre houve)
homens e mulheres virtuosos e pios, para quem, infelizmente, apenas a piedade
não basta. O falecido G. K. Chesterton, que escrevia com lirismo idêntico tanto
sobre a bebida quanto sobre a fé, pode servir de eloquente exemplo desse grupo.
As igrejas modernas, excluídas umas poucas
seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto, mesmo as mais tolerantes
jamais procuraram converter a bebida ao cristianismo — isto é, sacramentar seu
uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua
religião e seu substituto para ela. E talvez isso seja inevitável. A bebida não
pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não deem valor ao
decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos
e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que
de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de bebidas, mas é muito
mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a
autotranscedência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas
voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os
sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas,
voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram
o que querem. A igreja pode continuar a ser frequentada; mas já não será mais
do que o Banco Musical do Erewhon* de Butler. Deus pode continuar a ser
reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo
verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de
culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de
desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo.
Vemos, pois, que o cristianismo e o álcool
não se misturam nem poderiam fazê-lo. Já não há tanta incompatibilidade com
relação à mescalina. Isso tem sido demonstrado por várias tribos de índios,
desde o Texas até o Estado de Wisconsin. Entre essas tribos, encontram-se
algumas filiadas à Igreja Americana Nativa, seita cujo principal rito é uma
espécie de Ágape Cristão Primitivo ou Festa do Amor, em que fatias de peiote
substituem o pão e o vinho do sacramento. Esses índios americanos encaram o
cacto como preciosa dádiva de Deus aos índios e consideram seus efeitos
manifestação do divino Espírito.
O professor J. S. Slotkin — um dos
pouquíssimos homens brancos que, até hoje, participaram dos ritos de uma
congregação peiotista — relata, falando de seus companheiros de ritual, que
eles “em absoluto ficam narcotizados ou embriagados [...] Jamais perdem o ritmo
ou balbuciam, como aconteceria com indivíduos inebriados pelo álcool ou por
estupefacientes [...] São todos calmos, corteses e respeitam-se uns aos outros.
Jamais estive em qualquer templo de homens brancos onde pudesse encontrar tanto
respeito e religiosidade”. Poderíamos perguntar: “Que estariam esses devotos e
bem-comportados peiotistas sentindo?”. Claro que não há de ser o brando
sentimento de virtude que embala o comum dos frequentadores do ofício
dominical, durante noventa minutos de solidão. Nem mesmo esses fervorosos
sentimentos, inspirados pelos pensamentos no Criador, no Redentor, no Juiz e no
Espírito Santo, que animam os piedosos. Para esses membros da Igreja Americana
Nativa, a experiência religiosa é algo de mais direto e esclarecedor, de mais
espontâneo, e tem muito menos de produto imperfeito da mente superficial e
restrita. Por vezes (ainda segundo as observações colhidas pelo dr. Slotkin)
têm visões que podem ser até do Próprio Cristo. De outras, escutam a voz do
Grande Espírito. Ainda em outras se apercebem da presença de Deus, bem como de
suas falhas pessoais, as quais terão de ser corrigidas para que possa ser
cumprida Sua vontade. As consequências práticas dessa abertura química
das Portas para o Outro Mundo parecem ser excelentes. O dr.
Slotkin testemunha que os peiotistas habituais são, em geral, mais diligentes,
mais temperantes (muitos são completamente abstêmios) e mais pacíficos que os
não-peiotistas. Uma árvore que apresente frutos tão bons não pode ser condenada
como maléfica. Ao sacramentar o uso do peiote, os índios da Igreja Americana
Nativa fizeram algo que é, a um só tempo, psicologicamente correto e
historicamente respeitável. Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos ritos
e festas pagãos foram, por assim dizer, batizados e postos ao serviço da
Igreja. Essas festas nada tinham de edificantes, mas aliviavam certa fome
psicológica; e, em vez de tentar suprimi-las, os primeiros missionários tiveram
o bom senso de aceitá-las pelo que de útil possuíam — permitir à alma
satisfazer seus impulsos fundamentais — e incorporá-las ao código da nova
religião. Em essência, idêntico foi o procedimento da Igreja Americana Nativa.
Adotaram um costume pagão (por sinal bem mais inspirador e esclarecedor do que
as sensuais orgias e mascaradas, retiradas ao paganismo europeu) e deram-lhe um
significado cristão.
Embora só recentemente tenham sido
introduzidos na região setentrional dos Estados Unidos, o consumo do peiote e o
culto nele baseado tornaram-se importantes símbolos do direito do índio à
independência espiritual. Alguns indígenas reagiram à hegemonia do branco
tornando-se americanizados, enquanto outros se recolhiam a seus costumes
tradicionais. Mas um terceiro grupo procurou fazer o melhor uso das duas
civilizações e desses outros mundos de transcendental experiência onde a alma
sabe que é livre e tem uma essência divina. Daí nasceu a Igreja Americana
Nativa. Nela, dois grandes apetites da alma — o impulso para a independência e
a autodeterminação, e o estímulo para a superação de si própria — fundiram-se e
passaram a ser interpretados à luz de um terceiro — a necessidade de render
culto, de justificar, perante o homem, as razões de Deus, de explicar o
universo por meio de uma teologia coerente.
Lo, the poor Inâian, whose untutored mina
Clothes him in front, but leaves him bare behind.(índio infeliz, a quem a alma
falaz,/ Cobre-lhe a frente e o deixa nu por trás.)
Mas, em verdade, somos nós, os brancos ricos
e altamente educados, que ostentamos a nudez de nossas costas. Cobrimos nossa
paradisíaca aparência anterior com alguma filosofia — cristão, marxista,
físico-freudiana —, mas nos descuramos da outra face, deixando-a à mercê de
todos os ventos que possam soprar. O pobre índio, por outro lado, se tem valido
do espírito para proteger-lhe a retaguarda, complementando a folha de parreira
teológica com a tanga da experiência transcendental.”
Não sou tão tolo a ponto de relacionar o que
acontece sob o efeito da mescalina ou de qualquer outra droga, existente ou que
possa vir a existir, com a compreensão do fim e do derradeiro objetivo da vida
humana: a Luz, a Beatífica Visão. Tudo o que estou sugerindo pode ser assim
resumido: a experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos chamam de
“uma graça gratuita”, não necessariamente para a salvação, mas potencialmente
valiosa e que, se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina
e da percepção ordinária, ser-lhe permitido contemplar, por umas poucas horas
em que a noção de tempo se esvai, os mundos exterior e interior, não como eles
se mostram ao animal dominado pela ideia de sobrevivência ou ao ser humano
obcecado por termos e ideias, mas tais como são percebidos pela Onisciência —
direta e incondicionalmente —, eis uma experiência de inestimável valor para
qualquer indivíduo, especialmente para o intelectual, pois este é, por
definição, o homem para quem, na frase de Goethe, “a palavra é essencialmente
proveitosa”. Ele é o homem para quem “o que percebemos pela visão nos é
estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente”. Não obstante,
embora fosse ele mesmo um intelectual e um dos supremos mestres da linguagem,
Goethe nem sempre concordou com sua própria conceituação da palavra. “Falamos
demais” — escreveu ele em sua madureza. “Deveríamos falar menos e desenhar
mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo à fala e, imitando a
Natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse a dizer. Aquela
figueira, esta pequena serpente, o casulo aguardando serenamente o futuro no
umbral de minha janela, tudo isso são importantes signos. Quem fosse capaz de
decifrar corretamente seu significado poderia pôr inteiramente de lado tanto a
palavra escrita quanto a falada. Quanto mais penso nisso, mais encontro
futilidade, mediocridade e até mesmo (sou levado a dizê-lo) fatuidade na
palavra. Contrastando com isso, como nos assombram a gravidade e o silêncio da
Natureza quando com ela deparamos face a face, concentrados diante de uma
colina estéril ou da desolação de um outeiro que a erosão desgastou”.
Jamais poderemos passar sem a palavra e os
outros sistemas de símbolos, pois foi graças a eles, e somente por eles, que
nos elevamos acima das bestas, atingindo o nível de seres humanos. Mas
poderemos facilmente nos tornar tanto vítimas como beneficiários desses
sistemas. Precisamos aprender como manejar eficientemente as palavras, mas ao
mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa capacidade
de olhar o mundo diretamente, e não através da lente semi-opaca das ideias, que
distorce cada fato, diluindo-o no lugar-comum das denominações genéricas ou das
abstrações explanatórias.
Literária ou científica, liberal ou
especializada, toda a nossa educação é predominantemente verbalista e, pois,
não consegue atingir plenamente seus objetivos. Em vez de transformar crianças
em adultos completamente desenvolvidos, ela produz estudantes de ciências
naturais que não têm a menor noção do papel primordial da Natureza como
elemento fundamental da experiência; entrega ao mundo estudantes de humanidades
que nada sabem sobre a humanidade, seja ela a sua ou a de quem mais for.”
*Erewhon, anagrama de nowhere (“lugar algum”), é o título abreviado de
uma novela fantástica de Samuel Butler, escrita em 1872, que descreve um país
cujo povo vira-se obrigado a destruir todas as máquinas para não ser por elas
destruído.
“Há setenta anos, homens de inegável
capacidade descreveram as transcendentais experiências por que passaram aqueles
que, gozando boa saúde, em pleno uso de suas faculdades mentais, e sob
condições adequadas, ingeriram a droga. Quantos filósofos, quantos teólogos,
quantos educadores tiveram a curiosidade de abrir esta Porta na muralha?
A resposta é: “Praticamente nenhum”. Em um mundo onde a educação é transmitida
principalmente por meio da palavra, às pessoas de grande instrução torna-se
quase impossível dar séria atenção a quaisquer outras coisas que não sejam
palavras ou ideias. Há sempre dinheiro a gastar, teses a serem defendidas,
douta e insensata pesquisa a se orientar para aquilo que, na opinião dos
eruditos, é o problema fundamental. “Que é que induziu quem a dizer tal coisa e
em tal ocasião?” Mesmo nesta era da tecnologia, as humanidades verbalistas são
dignificadas. Os conhecimentos objetivos que nos permitem tomar contato direto
com determinados fatos de nossa existência são quase que completamente
desprezados. Um catálogo; uma bibliografia; as obras completas, palavra por
palavra, de um poetastro de terceira classe; um estupendo índice que represente
a última palavra em índices — enfim, qualquer projeto de proporções grandiosas
obterá fatalmente aprovação e apoio financeiro. Mas, quando se trata de querer
saber como cada um de nós, nossos filhos e netos, poderemos nos tornar mais
perceptíveis, mais intensamente cônscios da realidade interior e exterior, mais
acessíveis ao Espírito, menos aptos a adoecer vítimas de nossos próprios erros
psicológicos e mais capazes de controlar nosso sistema nervoso autônomo — quando,
pois, se trata de qualquer forma de educação objetiva mais importante (e,
portanto, mais provável de alcançar aplicação prática) que a ginástica sueca,
não haverá pessoa respeitável, em qualquer universidade ou igreja de renome,
que faça qualquer coisa em seu benefício. Os verbalistas desconfiam dos
não-verbalistas; os racionalistas temem os fatos concretos, não racionais; os
intelectuais acham que “o que percebemos pela visão (ou por qualquer outra
forma) nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente”. Além
do mais, a educação, no campo dos conhecimentos objetivos, não se adapta a
nenhum dos esquemas existentes. Não é religião, neurologia, ginástica, educação
moral e cívica, nem tampouco psicologia experimental. Assim sendo, esse assunto
simplesmente não existe, para fins acadêmicos e eclesiásticos, e bem pode ser
completamente ignorado ou então relegado, com um sorriso condescendente,
àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbalista chamam maníacos, impostores,
charlatães e desprezíveis amadores.”
“Mas o homem que vem de cruzar de novo
a Porta na muralha jamais será igual ao que partira para essa
viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas
convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde
em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para
compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio
sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão,
compreender.”
________________________
Céu e inferno
“A luz e a cor preternaturais são fenômenos
comuns a todos os transes visionários. E, de par com elas, surge com igual
constância uma sensação de ampliação dos valores. Os objetos luminosos que
vemos nos antípodas da mente possuem significado, e esse significado é, de
certa forma, tão intenso quanto sua cor. Significado, aqui, se identifica com
existência, pois nessa região os objetos não existem a não ser para si mesmos.
As imagens que surgem nos limites anteriores do subconsciente coletivo possuem
uma significação que está ligada aos fatos básicos da vida do homem; mas nos
confins do mundo visionário temos diante de nós fatos que, à semelhança dos da
natureza externa, independem dos homens, tanto individual como coletivamente, e
existem em função de si mesmos. Seu valor consiste precisamente nisto: eles são
exclusivamente eles mesmos e, assim sendo, constituem manifestações da
objetividade essencial, da outra face não-humana do universo.
Luz, cor e importância não existem por si
mesmas. Elas modificam os objetos ou são por estes manifestadas. E haverá
classes especiais de objetos comuns à maior parte das experiências visionárias?
Penso poder afirmar que sim. Sob a ação da mescalina e do hipnotismo, bem como
nas visões espontâneas, certos tipos de experiências perceptivas se repetem com
frequência.
A experiência típica com mescalina ou ácido
lisérgico principia pela percepção de formas geométricas coloridas, móveis e
animadas. Com o tempo, a geometria pura se torna concreta, e o paciente não
mais percebe desenhos, mas coisas contendo desenhos, tais como tapetes,
entalhes e mosaicos. A isso se seguem vastos e complicados edifícios em meio a
paisagens que mudam continuamente, passando do esplendor a um esplendor mais
intensamente colorido, da grandiosidade a uma grandiosidade ainda maior.
Figuras heroicas, do tipo do Serafim de Blake, podem fazer sua
aparição, sozinhas ou em multidões. Animais fabulosos movem-se pela cena. Tudo
é original e surpreendente. Quase nunca o visionário vê algo que lhe recorde
seu passado. Ele não se lembra de cenas, pessoas ou objetos, nem tampouco os
inventa. Apenas contempla uma nova criação.
A matéria-prima para tal criação lhe é
fornecida pelas experiências visuais da vida cotidiana, mas a moldagem desse
material em formas é obra de alguém que, é mais certo, não será o indivíduo que
inicialmente as experimentara ou que posteriormente delas se havia recordado e
sobre elas refletiu. Essas formas são (transcrevendo as palavras do dr. J. R.
Smythies, em recente artigo no American Journal of Psychiatry) “a
obra de um compartimento mental altamente diferenciado, sem qualquer ligação
visível, emocional ou volitiva, com os objetivos, interesses ou sentimentos da
pessoa em causa”.”
“““O leito”, como o define pitorescamente o
ditado italiano, “é a ópera do pobre.” De modo análogo, o sexo é o paisagismo
do hindu; o vinho, o impressionismo persa. E isso, evidentemente, porque as
experiências da união sexual e da embriaguez gozam daquela diversidade
essencial característica de todas as visões, inclusive na de paisagens.
Se, em certa época, o homem encontrou
satisfação em determinada atividade, é de presumir-se que, até então, deveria
ter havido qualquer outra coisa que a substituísse. Na Idade Média, por
exemplo, os homens tinham uma preocupação obsessiva, quase maníaca, por
palavras e símbolos. Qualquer coisa, na Natureza, era imediatamente considerada
a ilustração concreta desta ou daquela noção formulada em um dos livros ou
legendas considerados sagrados pela opinião corrente.
No entanto, em outros períodos da História, o
homem encontrou uma profunda satisfação em reconhecer a diversidade autônoma da
Natureza, incluindo muitos aspectos da qualidade humana. A manifestação dessa
diversidade foi expressa em termos de arte, religião ou ciência. Quais seriam
os equivalentes medievais de Constable e da ecologia, da observação dos
pássaros e das Eleusínias*, da microscopia e dos ritos de Dionísio, e do haiku japonês?
Creio que poderão ser encontrados, em um extremo da escala, nas Saturnais e, do
outro lado, no misticismo. Carnavais, Festas da Primavera, bailes de máscaras
são coisas que permitem uma constatação direta da diversidade animal,
subjacente à personalidade individual e social. A contemplação inspirada revela
o extremo oposto dessa diversidade da sublime Despersonalização. E algures,
entre esses dois extremos, situam-se as experiências dos visionários e das
artes propiciadoras de visões, por meio das quais se busca retomar e refundir
essas experiências — a arte do joalheiro, do fabricante de vidro pintado, do
tapeceiro, do pintor, do poeta e do músico.
A despeito de uma História Natural que não
passava de um conjunto de símbolos monotonamente moralistas, sob o jugo de uma
teologia que, em vez de encarar as palavras como a representação das coisas,
tratava essas coisas e os fatos como demonstrações das palavras bíblicas e
aristotélicas, apesar disso tudo nossos antepassados permaneceram relativamente
sãos. E isso lhes foi possível graças à fuga periódica à asfixiante prisão de
sua presunçosa filosofia racionalista, de sua ciência antropomórfica,
autoritária e não-experimental, de sua religião demasiadamente rígida, para
mundos não-verbalistas, inumanos, habitados por seus instintos, pela fauna
visionária dos antípodas de suas mentes e — mais além, embora ainda incluído
nessa totalidade — graças ao Espírito Interior.”
*Os festivais de Elêusis ou Eleusínias, em que se celebravam os
mistérios de Demétrio e Perséfone, na cidade grega de Elêusis, próxima a
Atenas.
“No Journal dune schizophrène [Diário
de uma esquizofrênica], registro autobiográfico da passagem de uma jovem pela
loucura, o mundo do esquizofrênico é chamado lê pays
d'éclairement — “o país da iluminação”. Esse é um nome que um místico
bem poderia ter escolhido para designar seu paraíso.
Mas para a pobre Renée — a vítima da
esquizofrenia — a iluminação é infernal: um intenso clarão elétrico sem uma
sombra, ubíquo e implacável. Tudo o que, para o visionário são, é uma fonte de
alegria, traz a Renée tão-somente pavor e um tétrico sentimento de irrealidade.
O sol é maligno; o brilho das superfícies polidas não sugere gemas, e sim
maquinaria e chapas esmaltadas; a intensidade de existência que anima cada
objeto, quando examinado de perto e abstraído seu aspecto utilitário, é sentida
como uma ameaça.
E há, ainda, o horror infinito. Para o
visionário são, a percepção do infinito em um finito particular é uma revelação
de sublime imanência; para Renée, isso era uma comprovação do que ela chama o
sistema — vasto mecanismo cósmico, que existe unicamente para produzir crime e
castigo, solidão e irrealidade.
A sanidade mental é uma questão de gradação,
e há um grande número de visionários que vê o mundo tal como Renée o viu, mas
consegue, a despeito disso, viver fora dos manicômios. Tal como os visionários
positivos, eles também veem o Universo transfigurado — mas para pior. Tudo
nele, das estrelas, no céu, à poeira sob seus pés, é indizivelmente sinistro e
repugnante; cada acontecimento vem carregado de ódio, cada objeto acusa a
presença de um Horror Interior infinito, todo-poderoso, eterno.
Esse mundo negativamente transfigurado
consegue insinuar-se, de tempos em tempos, na literatura e nas artes. Ele
desvirtua e ameaça, por meio das últimas paisagens de Van Gogh; foi o quadro e
o tema de todos os contos de Kafka; foi o lar espiritual de Géricault, foi
habitado por Goya durante os anos de sua surdez e solidão; foi entrevisto por
Browning ao escrever Childe Roland; teve seu lugar, diante das teofanias, nas novelas de Charles Williams.
A experiência visionária negativa é,
frequentemente, seguida de sensações corpóreas de natureza bastante especial e
característica. As visões felizes são, via de regra, associadas a uma sensação
de separação do corpo, a um sentimento de despersonalização. (É, sem dúvida,
esse sentimento que possibilita aos índios que praticam o culto do peiote usar
a droga, não apenas como um atalho para atingir o mundo das visões, mas também
como instrumento para criar uma solidariedade afetiva dentro do grupo de
participantes.) Mas, quando as experiências visionárias são terríveis e o mundo
se transfigura para pior, a individualização é intensificada e o visionário
negativo sente-se preso a um corpo que parece tornar-se cada vez mais denso,
mais comprimido, até que acaba por sentir-se reduzido à condição de torturada
consciência de um aglutinado de matéria compacta, não maior que uma pedra que
pudesse ser contida entre as mãos.
Vale a pena observar que muitos dos
sofrimentos narrados nas várias descrições do Inferno são castigos de pressão e
constrição. Os pecadores de Dante eram enterrados na lama, encerrados em
troncos de árvores, aprisionados em blocos de gelo, esmagados entre rochas. Seu
Inferno é psicologicamente verdadeiro. Muitas de suas punições são
experimentadas pelos esquizofrênicos e por aqueles que tomam mescalina ou ácido
lisérgico, sob condições desfavoráveis.
Qual a natureza dessas condições
desfavoráveis? Como e por que é o Céu transformado em Inferno?
Em certos casos, a experiência visionária
negativa é o resultado de causas primordialmente fisiológicas. A mescalina
tende, após sua ingestão, a se acumular no fígado. Se esse órgão estiver
doente, isso pode levar a mente a sentir-se no Inferno. Mas, o que é mais
importante, do ponto de vista de nosso presente estudo, é o fato de que a
experiência visionária negativa pode ser produzida por meios puramente
psicológicos. O temor e a angústia barram o caminho para o Outro Mundo
celestial e mergulham no inferno quem ingerir a droga.
E o que é verdade para quem toma mescalina
também é válido para os que têm visões espontâneas ou sob a influência do
hipnotismo. Foi com base nesse fundamento psicológico que ergueu-se a doutrina
teológica da preservação da fé — doutrina essa com que nos defrontamos em todas
as grandes religiões do mundo. Os escatologistas sempre tiveram dificuldade em
conciliar seu racionalismo e sua moral com as realidades brutais da experiência
psicológica. Como racionalistas e moralistas, sentem que o bom comportamento
deve ser recompensado e que o virtuoso merece subir ao Céu. Mas, como
psicologistas, sabem também que a virtude não é a condição única, nem é
suficiente, para uma experiência visionária feliz. Sabem que as simples boas
ações são impotentes, e que é a fé, ou a confiança no amor, que assegura a
bem-aventurança dessa experiência.
As emoções negativas — o medo, que é a
ausência de confiança; o ódio, a ira ou a maldade, que eliminam o amor — trazem
consigo a certeza de que a experiência visionária, se e quando se produzir,
será aterradora. O fariseu é um homem virtuoso; mas sua virtude é de uma
espécie compatível com as emoções negativas. Suas experiências visionárias têm,
pois, maiores possibilidades de serem infernais que bem-aventuradas.”