sexta-feira, 23 de maio de 2025

Heróis e maravilhas da Idade Média, de Jacques Le Goff

Editora: Vozes

ISBN: 978-65-571-3083-4

Tradução: Stephania Matousek

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 232

Sinopse: Este livro tem por objetivo insistir sobre a importância do imaginário na história, mas também mostrar que a Idade Média criou heróis e maravilhas destinados a alimentar sonhos a longo termo, na maior parte das vezes através da sublimação das realidades sociais e materiais daquela época: catedrais, cavaleiros, amor, divertimentos e espetáculos, mulheres excepcionais que se situam entre Deus e satã.



 

“O domínio do imaginário constitui-se pelo conjunto das representações que ultrapassam o limite imposto pelas constatações da experiência vivida e pelas deduções correlatas que ela autoriza, o que equivale a dizer que toda cultura, portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis de uma sociedade complexa, possui o seu imaginário. Em outras palavras, o limite entre o real e o imaginário mostra-se variável, ao mesmo tempo em que o território coberto por esse limite permanece, ao contrário, idêntico em qualquer tempo e lugar, visto que não se trata de outra coisa senão do campo completo da experiência humana, desde o mais coletivamente social até o mais intimamente pessoal[1][2]”(Évelyne Patlagean)

Já tentei definir esse domínio do imaginário no meu livro O imaginário medieval[3]. Antes de tudo, é preciso distingui-lo de outros conceitos aproximados. Do de representação em primeiro lugar. Évelyne Patlagean tem razão ao dizer que o imaginário reúne um conjunto de representações, mas este vocábulo bastante amplo engloba toda tradução mental de uma realidade exterior que é percebida. “O imaginário faz parte do campo da representação, mas ele ocupa neste último a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagens do intelecto, mas criadora, poética no sentido etimológico do termo.” O imaginário transborda o território da representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O imaginário constrói e alimenta lendas e mitos. Podemos defini-lo como o sistema de quimeras de uma sociedade, de uma civilização que transforma a realidade em visões ardentes do intelecto. Em seguida, o imaginário deve ser distinguido da simbólica. O pensamento do Ocidente medieval realizava-se através de um sistema simbólico, a começar pelas constantes correspondências entre o Novo e o Antigo Testamentos, pois o primeiro é a tradução simbólica do segundo. Para tomar o exemplo da definição de uma das maravilhas deste livro por Victor Hugo, quando o poeta diz de Notre Dame de Paris vista por Quasímodo: “Para ele, a catedral não representava apenas a sociedade, mas, mais do que isso, o universo, a natureza inteira”, ele cria não somente uma catedral simbólica, como também uma catedral imaginária, pois “toda a igreja louvava uma coisa fantástica, sobrenatural, horrível, aqui e ali olhos e bocas abriam-se”. Por fim, é necessário diferenciar o imaginário e o ideológico. O ideológico é investido por uma concepção do mundo que tende a impor à representação um sentido que perverte tanto o “real” material quanto esse outro real, o “imaginário”. A mentalidade e o verbo medievais são estruturados por esse ideológico que coloca o imaginário a seu serviço para melhor persuadir, como por exemplo o tema dos dois gládios que simbolizam poder espiritual e poder temporal, posto a serviço da ideologia eclesiástica de modo a subjugar o gládio temporal ao espiritual em paralelo à imagem do gládio, da espada, um dos elementos essenciais desse imaginário medieval imbuído de ardor guerreiro. O termo “imaginário” sem dúvida remete-nos à imaginação, mas a história do imaginário não é uma história da imaginação no sentido tradicional, trata-se de uma história da criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam. Essa história tornou-se possível há algumas décadas a partir da nova utilização das imagens pelos historiadores[4]. Jean-Claude Schmitt, um dos historiadores que mais se dedicaram a essa nova história das imagens e pela imagem, enfatiza que o novo sentido da imagem para o historiador corresponde muito bem aos significados do termo imago na Idade Média.

De fato, essa noção encontra-se no âmago da concepção medieval do mundo e do homem. Ela remete não somente aos objetos figurados, como também às “imagens” da linguagem, ela refere-se igualmente às imagens “mentais” da meditação e da memória, das quimeras e das visões [...]. Por fim, a noção de imagem diz respeito à antropologia cristã por inteiro, tendo em vista que é o homem que a Bíblia qualifica de “imagem” logo nas suas primeiras palavras: Javé diz que ele fabrica o homem ad imaginem et similitudinem nostram (Gn 1,26)[5].”

[1]. PATLAGEAN, E. A história do imaginário. In: LE GOFF, J. (org.). A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[2]. A maioria das citações desta edição foi traduzida livremente [N.T.].

[3]. LE GOFF, J. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994.

[4]. Sobre as imagens e o historiador, cf. SCHMITT, J.-C. Imagens. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J.-C. (orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo: Edusc/Imprensa Oficial do Estado, 2002. • BASCHET, J. & SCHMITT, J.-C. (orgs.). L’image – Fonctions et usages des images dans l’Occident Médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996 [Cahiers du Léopard d’Or, n. 5]. • LE GOFF, J. Un Moyen Âge en images. Paris: Hazan, 2000. • WIRTH, J. L’image medieval: naissance et développement (XIe-XVe siècle). Paris: Klincksieck, 1989. Sobre o simbólico, cf. o incrível livro de PASTOUREAU, M. Une histoire symbolique du Moyen Âge Occidental. Paris: Seuil, 2003.

[5]. SCHMITT, J.-C. Imagens. Op. cit.

 

 

“O termo “herói”, que na Antiguidade designava uma personagem fora do comum em função da sua coragem e vitórias sem que por isso ela pertencesse às categorias superiores dos deuses e semideuses, desapareceu da cultura e da linguagem com a Idade Média e o cristianismo no Ocidente. Os homens que a partir de então eram considerados como heróis – sem que este termo fosse empregado – eram um novo tipo de homem, o santo, e um tipo de governante promovido ao primeiro plano, o rei. (...) 

Como foram elevados ao mesmo nível que os homens e as mulheres da Idade Média, eles ilustram também a ausência de fronteiras entre o mundo puramente imaginário e o mundo transformado em fantasia que caracteriza o universo medieval, o qual ignorava qualquer demarcação entre o natural e o sobrenatural, esta terra e o além, a realidade e a fantasia.”

 

 

“O milagre é reservado a Deus e se manifesta por um ato divino que desafia as leis da natureza. A magia, embora subsista uma forma lícita de magia branca, é essencialmente uma forma condenável de feitiçaria atribuível ou ao inimigo do gênero humano, o diabo, ou aos seus servidores, como os demônios e bruxos. O maravilhoso, mesmo sendo surpreendente e incompreensível, faz parte da ordem da natureza. Em seu livro Otia imperialia, enciclopédia escrita pelo Imperador Otton IV por volta de 1210, o inglês Gervais de Tilbury define o maravilhoso: “O que foge à nossa compreensão, embora seja natural”. A categoria do maravilhoso não parou de se estender ao longo da Idade Média, pois ela introduzia no território terrestre e humano belezas de certa forma roubadas de Deus pela indústria dos homens.”

 

 

Desde a Idade Média, ele às vezes era confundido com o palácio, mas é preciso distingui-los com cuidado na história da realidade e do mito. O palácio apresenta duas características específicas que o diferenciam do castelo medieval. Primeiro, trata-se essencialmente de uma residência real, ou pelo menos principesca, ao passo que o castelo medieval pertence a um simples senhor, embora os reis possam ter construído castelos medievais enquanto senhores. Além disso, das duas funções essenciais do castelo, a militar e a residencial, é esta última que o palácio privilegia, ao passo que o castelo medieval caracteriza-se pela primeira.

O castelo medieval está estreitamente ligado ao feudalismo, e a imagem recorrente que o imaginário europeu constrói dele confirma que a época e o sistema feudal, desde o século X até a Revolução Francesa, formaram uma camada fundamental das realidades materiais, sociais e simbólicas da Europa. De modo geral, pode-se identificar uma evolução lenta, mas constante, do castelo medieval, que passa da posição de fortaleza à de residência. Como ele está intimamente associado à atividade militar, é notável que sua transformação tenha sido suscitada de forma decisiva por uma revolução técnica nos séculos XIV-XV, ou seja, a artilharia. Suas muralhas não resistem mais ao canhão, e o castelo medieval passa a ter o status de relíquia, símbolo, ruína e, para muitos, nostalgia.”

 

 

“Do século X ao XII, o castelo medieval surge primeiro sob duas formas: na Europa do Norte, com torres e habitações modestas e fortificadas erigidas sobre lugares altos naturais ou artificiais (trata-se do castelo em cima de um montículo); na Europa Meridional, este castelo precoce é erguido mais frequentemente sobre locais altos naturais e rochosos, os rochedos. Ao contrário do que às vezes se diz, os castelos sobre montículos ou rochedos não foram construídos essencialmente em madeira, mas sim em pedra desde o início – assim como a catedral, o castelo é testemunha da volta e da promoção da pedra na Idade Média. De modo geral, o castelo, bem como o claustro, não pode ser separado do seu ambiente natural. O castelo enraizou o feudalismo no solo. Ao oposto da catedral, integrada à cidade – apesar de a dominar –, que só evoca a natureza quando o imaginário romântico faz dela uma floresta, o castelo permanece associado ao campo e mais ainda à natureza, embora em certas regiões da Europa ele seja construído dentro das cidades, como na Normandia (Caen), na Flandres (Gante) e principalmente na Itália. Ele constitui a unidade do conjunto espacial de habitação estabelecido pelo feudalismo na realidade e no imaginário europeu.

O desenvolvimento dos castelos sobre montículos suscitou nos séculos XI e XII a construção de fortalezas que ficariam gravadas no imaginário europeu como uma das formas espetaculares do castelo medieval. Surgiu a torre central do castelo, chamada de donjon em francês (termo oriundo de dominionem, local senhorial), cuja etimologia indica bem o que o castelo medieval era fundamentalmente: um centro de comando. O direito de fortificação, e consequentemente de construção de um castelo medieval, era um privilégio real. Porém, uma das características do feudalismo era o desapossamento dos privilégios da realeza em benefício dos senhores. Os castelãos a quem os soberanos inicialmente concederam castelos passaram bem rápido a ser os donos destes. E a reaquisição destes castelos pelos reis e príncipes constitui um longo e significativo episódio da época feudal, posterior ao tempo do que Georges Duby chamou de “castelanias independentes”, ou seja, o período que vai do início do século XI à metade do XII. Duques da Normandia, reis da Inglaterra, condes de Barcelona e reis de Aragão readquiriram bem facilmente o poder sobre os castelos de suas aristocracias, mas longa e difícil foi a luta dos primeiros reis capetianos contra os castelãos da Île-de-France nos séculos XI e XII. (...)

Seja em seu tempo, seja no imaginário moderno e contemporâneo, certos castelos medievais adquiriram uma personalidade impressionante. Não contando com a espiritualidade da catedral, o castelo medieval proclama o seu poder simbólico e impõe-se como imagem inconsciente da força e do poder. O conflito que começou no século XII entre a França e a Inglaterra, um dos primeiros grandes embates entre nações cristãs, presenciou, por exemplo, a construção da fortaleza de Château-Gaillard, edificada no final do século XIII pelo rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão no centro do espaço francês disputado pelos ingleses. Sua posição em uma ilha do Rio Sena ilustra esse aspecto ambiental e espetacular do castelo medieval.

Por volta de 1240, o imperador da Alemanha e rei da Sicília, Frederico II, mandou construir Castel del Monte na Apúlia. Com sua arquitetura e ornamentação, Frederico II fez deste castelo de forma octogonal uma obra de arte que combina as grandes tradições arquiteturais cristãs e muçulmanas de sua época.

Reconstruído pelo Conde Enguerrand III entre 1225 e 1245, o Castelo de Coucy é habitualmente considerado como um resto exemplar do castelo medieval. Eis a descrição que um arqueólogo[1] fez dele: “É realmente uma fortaleza típica daquela época e uma das mais impressionantes, com o seu desenho trapezoidal, suas torres nos quatro ângulos, sua enorme torre central sobreposta à fachada mais longa, totalmente isolado do muro cortina e até da sua muralha camisa por um fosso profundo: as dimensões fazem dele uma formidável fortaleza: muros de seis metros, torres de quarenta metros de altura, uma torre central de 55 metros de altura e 31 de diâmetro”.

[1]. PESEZ, J.-M. Cf. bibliografia.

 

 

“Tendo em vista que o cavaleiro é antes de tudo um guerreiro, o que explica em grande parte o seu prestígio em uma sociedade na qual a guerra é onipresente, apesar de suas aspirações à paz, convém comentarmos imediatamente o seu equipamento militar. Suas principais armas são a longa espada de gume duplo, a lança com cabo de madeira de freixo ou de faia e ponta larga de ferro e o escudo de madeira revestido de couro que tomava diversas formas: circulares, oblongas ou ovoides. A rígida couraça dos romanos dá lugar à brunea, um gibão de couro recoberto de escamas de metal imbricadas como as telhas de um telhado. O elmo geralmente não é mais do que uma calota de ferro, às vezes formada por uma armadura metálica revestida de couro. A principal evolução deste equipamento ao longo da Idade Média foi a substituição da brunea pela cota de malha que cobria o corpo interior, desde os ombros até os joelhos, e que era aberta por baixo para permitir cavalgar, como se vê no bordado de Bayeux já no final do século XI. Estas cotas de malha ou hauberks, extremamente eficazes contra os golpes de espada, não bastam para se proteger da ponta da lança manejada de acordo com uma nova técnica de investida que constitui o principal progresso da tática militar medieval. Como bem nota Jean Flori, o cavaleiro medieval necessita de importantes recursos financeiros para pagar seu/s cavalo/s e equipamento pesado, além de tempo, pois, em paralelo a um treinamento frequente, ele deve afirmar-se em combates festivos, torneios e no exercício da caça, que na maior parte das vezes é o seu privilégio exclusivo fora das reservas que os reis concedem a si mesmos desde a Idade Média. Tudo isso para dizer que, começando pelo ponto de vista militar, a cavalaria tende a se restringir a uma elite aristocrática.”

 

 

“Vimos a propósito do cavaleiro que uma das relações fundamentais do homem medieval com o espaço era a sua disposição a errar pelo mundo. Pois bem, a outra face antitética e complementar é a sua ligação a um lugar específico, o que a linguagem monástica chamava de stabilitas loci (estabilidade do local). Assim, o homem – e em menor grau a mulher – do Ocidente medieval oscila entre um porto seguro e o largo.”

 

 

“O grande desenvolvimento dos claustros monásticos data da época romana (séculos XI-XII), e o gosto estético moderno tende a considerar que os claustros romanos que foram conservados na Provença, por exemplo, são os mais belos que a arquitetura medieval nos legou, enquanto que, como já vimos, a catedral é gótica por excelência. Esta oposição revela o contraste entre a intimidade e a abertura que caracteriza a ideologia e a sensibilidade medievais. O claustro, enquanto espaço interno do monastério, é o lugar em que melhor se encarnam o espírito de comunidade dos monges e o aspecto de devoção individual a que se refere a palavra monge (monos, “solitário” em grego). O claustro é o lugar próprio para a oração individual, o cenário por excelência deste exercício fundamental da devoção cristã. Porém, as galerias do claustro podem ser o teatro de manifestações coletivas de devoção, como as procissões de monges, por exemplo. (...)

Tendo em vista que a maioria dos monastérios encontra-se hoje abandonada, e os claustros, vazios, este lugar, que se tornou mítico por sua evocação da solidão e do paraíso, compõe um cenário excepcional para certas atividades musicais. O claustro de Noirlac, na província francesa de Berry, é um dos exemplos mais notáveis disso. Assim, no imaginário europeu de hoje, o claustro tornou-se ao mesmo tempo a imagem de um paraíso perdido e a de uma prisão destruída ou aberta.”

 

 

O jogral é um animador. Seu nome vem do latim jocus, “jogo”.

Donde o seu status e a sua imagem ambígua na sociedade e cultura medievais. Esta ambiguidade é a mesma do prazer nesta sociedade e cultura. O jogral é o próprio exemplo do herói ambíguo. Edmond Faral considera-o como o sucessor dos mímicos da Antiguidade. Surpreendo-me sobretudo por seus estreitos laços com a nova sociedade feudal que se instaura do século X ao XII. Em compensação, uma coisa é certa: ele absorve uma parte da herança dos animadores pagãos, principalmente dos bardos das sociedades célticas. O jogral é um animador itinerante que vai fazer seus malabarismos nos lugares onde eles são admirados e remunerados, ou seja, essencialmente nos castelos senhoriais. Trata-se de um animador que faz de tudo. Ele recita versos e conta histórias. É o malabarista “da boca”, mas não o autor destes textos, que são produzidos pelos menestréis e trovadores. Ele é apenas um executante.

Ele é ao mesmo tempo um malabarista de gestos; um acrobata que se contorce, um saltimbanco no sentido moderno do termo, um dançarino com frequência paródico e também um músico que canta muitas vezes com o acompanhamento do alaúde ou da viela de arco. Porém, tudo depende do conteúdo de sua atividade e do sentido que ele lhe dá. O jogral ilustra de certa forma a dupla natureza do homem, que foi criado por Deus, mas que sucumbiu ao pecado original. Seus pensamentos e atos podem, portanto, inclinar-se para o lado bom ou mau, manifestar o seu estado de filho de Deus criado à sua imagem ou de pecador manipulado pelo diabo. Ele pode ser o bobo da corte de Deus ou o do diabo. No fundo, ele é a imagem espetacular daquilo que todo herói medieval fundamentalmente é: um homem heroico, mas pecador por algum motivo, que pode deixar de servir a Deus para servir ao satã. Uma das grandes tarefas da moral medieval foi separar o bem e o mal, o puro e o impuro no comportamento dos heróis medievais. Esta reflexão concentrou-se nas profissões dos homens da Idade Média. Eram elas lícitas ou ilícitas? E, no caso do jogral, o prazer que ele desperta e que constitui a finalidade da sua profissão é um desejo lícito ou ilícito? Um texto do início do século XIII que ficou famoso no meio dos medievistas faz uma seleção entre os bons e maus jograis. Este texto segue uma dupla evolução que coloca com firmeza o problema da ambivalência das profissões. Trata-se, de um lado, do método escolástico que é um método crítico, de distinção, organização, classificação e que consequentemente procura desintricar a verdade e a mentira, o lícito e o ilícito, etc.; e, por outro lado, dos progressos da confissão auricular, decretada obrigatória em 1215 pelo IV Concílio de Latrão, que se propunha definir os proveitos e perigos morais e sociais de cada profissão. Foi em um manual de confessor pouco anterior a 1215 que o inglês Thomas de Chobham, formado pela Universidade de Paris, distinguiu os bons e os maus jograis. Segundo ele, o jogral mau, vergonhoso (turpis) é aquele que não recua diante da scurrilitas, ou seja, do burlesco, do excesso, do exibicionismo das palavras e gestos. É aquele que não coloca o corpo a serviço da alma; é um histrião que substitui os gestos decentes pela gesticulatio despudorada. Em compensação, existem outros bufões que devem ser louvados. Eles “cantam as grandes proezas dos príncipes e da vida dos santos, proporcionam um alívio quando se está doente ou ansioso e não cometem infâmias abusivas como o fazem os homens e mulheres acrobatas, bem como aqueles que dão espetáculos vergonhosos e que fazem aparecerem fantasmas seja por encantamento ou de outra forma”.”

 

 

Robin Hood talvez tenha existido, mas é essencialmente uma criação literária  oriunda das baladas que, desde os séculos XIII-XV, cristalizaram-se em torno desta personagem, ligada sobretudo ao imaginário inglês, mas também ao europeu.

Robin Hood introduz no imaginário europeu originário da Idade Média uma personagem representativa, o fora da lei, o rebelde justiceiro, e um ambiente original, a floresta. A personagem talvez tenha realmente vivido na Inglaterra no século XIII, mas sua existência é garantida pela literatura. Sua mais antiga menção encontra-se no famoso poema Piers Plowman (Pedro, o lavrador), elaborado entre 1360 e 1390 por William Langland[1]. Este último cita Robin Hood como um herói de balada popular, embora apenas nos séculos XV e XVI tenhamos textos de baladas dedicadas a Robin Hood. Portanto, Robin Hood só surge tardiamente na iconografia das miniaturas medievais. Determinou-se que ele tenha surgido na história social da Inglaterra no século XIII e sobretudo no final do XIV, repercutindo as revoltas populares e conflitos religiosos dos anos 1380. Robin Hood é o defensor dos pobres e oprimidos, o homem da floresta, de um bando. Sempre é escoltado por um fiel companheiro (João Pequeno) e por um monge truculento (Frei Tuck). O romantismo lhe dará uma prometida, Maid Marian.

Robin Hood tem um inimigo que representa o poder político e social, impiedoso e antipopular: o xerife de Nottingham. Na maior parte das vezes, ele vive e age na Floresta de Sherwood, em Nottinghamshire. A marca popular que contribuiu para consolidar a sua imagem mítica foi o fato de ele ser um arqueiro. Ele carrega, portanto, o arco, acessório emblemático que o opõe ao cavaleiro nobre a cavalo, munido de sua lança e espada. Trata-se de uma personagem ambígua como todos os heróis da Idade Média. Ele encontra-se a meio caminho entre justiça e rapina, direito e ilegalidade, revolta e favor, a floresta e a corte. Com seu bando, do qual faz parte um clérigo popular e protestador, ele rouba dos ricos para vestir e alimentar os pobres, socorre os desarmados e impotentes atacados pelos cavaleiros que percorrem a região. Os títulos das principais baladas que lhe são dedicadas nos séculos XV-XVI ilustram bem as suas aventuras: “Robin Hood e o monge”, “Robin Hood e o oleiro”, “Robin Hood e o xerife”, “A gesta de Robin Hood”, “A morte de Robin Hood”.

A tradição das baladas que falam sobre ele ao longo do século XVI conduz até Shakespeare, cuja obra é a última e mais brilhante expressão da Idade Média. As you like it (1598-1600) é uma transposição da história de Robin Hood, um nobre que se refugia na Floresta de Arden depois de ser desapossado de suas terras e de suas funções por seu irmão.”

[1]. Langland escreve: “Conheço baladas sobre Robin Hood e Randolph, conde de Chester” (ROBERTSON, E. & SHEPHERD, S.H.A. Piers Plowman. Nova York: W.W. Norton & Company, 2006. O conde de Chester (1172-1232), personagem histórica, também era um herói popular que se opôs às taxas. Cf. HILTON, R.H. (org.). Peasants, Knight and Heretics. Londres: Cambridge University Press, 1976.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

O Eternauta, de Héctor G. Oesterheld e Francisco Solano López

Editora: Pipoca & Nanquim

ISBN: 978-65-5448-113-7

Tradução: Letícia Ribeiro Carvalho

Opinião: ★★★

Páginas: 372

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Sinopse: Em Buenos Aires, no final dos anos 1950, um escritor de quadrinhos recebe a visita de um estranho sujeito, que afirma ter vindo do futuro e o alerta sobre uma tragédia iminente. Seu nome é Juan Salvo, e ele vai contar a história de uma fria noite de inverno, na qual seu grupo de amigos teve sua habitual partida de truco interrompida por uma misteriosa nevasca fluorescente tóxica, capaz de matar tudo o que toca. Obrigados a deixar a segurança do lar para buscar provisões, eles se veem no centro de uma devastadora invasão alienígena, e agora terão de contar uns com os outros e confiar na força do coletivo para sobreviver.

Publicado originalmente entre 1957 e 1959, na prestigiosa revista Hora Cero Semanal, O Eternauta elevou os quadrinhos argentinos a um novo patamar, imortalizando os nomes de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López e influenciando gerações com sua mensagem de resistência e suas críticas ao imperialismo e militarismo. Seu impacto cultural e social foi tão grandioso, que até hoje se veem, desenhadas nos muros da Argentina, imagens de Juan Salvo em seu famoso traje de proteção, e uma aguardada adaptação televisiva foi produzida para 2025 pela Netflix, estrelada pelo astro Ricardo Darín


 

“— Hã... Quem é você?

Hmmm... não é fácil responder a essa pergunta... Eu poderia te dar centenas de nomes. E não seria mentira: todos já foram meus. Mas talvez o que te soe mais compreensível seja aquele que recebi de uma espécie de filósofo do fim do século XXI. Ele me chamou de “Eternauta”... para explicar em uma só palavra, minha condição de navegante do tempo, de viajante da eternidade. Minha triste e desoladora condição de peregrino dos séculos...”

 

 

“— Avançamos com lentidão, em parte porque os mortos obstruíam a marcha, em parte porque marchávamos com a certeza de que íamos para o sacrifício: os condenados à morte nunca têm pressa.”

 

 

“Nunca sabemos ao certo se estamos sendo manipulados ou não...”

 

 

*: O Eternauta é um romance gráfico.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras (Parte IV), Margaret MacMillan

Editora: Globo Livros

ISBN: 978-85-2505-790-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

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Sinopse: Ver Parte I

 


O conflito pela influência na Pérsia continuava, e o governo da Índia emitia sinais perturbadores sobre intrigas russas no Afganistão. Nicolson e seus colegas do Foreign Office não confiavam totalmente em renovar a Convenção Anglo-Russa de 1907 quando chegasse a hora, em 1915. “O mesmo temor que V. sente também me persegue,” escreveu Nicolson algum tempo antes, durante a primavera, para Buchanan em São Petersburgo. “O medo de que a Rússia se canse de nós e faça uma barganha com a Alemanha,”[49] concluiu. Mesmo com o agravamento da crise em julho de 1914, Grey e seus auxiliares relutavam em pressionar exageradamente a Rússia para recuar em sua confrontação com a Áustria-Hungria, temendo jogá-la nos braços dos alemães. (Claro que a Alemanha tinha medo semelhante: se não apoiasse a Áustria-Hungria, poderia perder seu único aliado de expressão.) Em 28 de julho, dia em que a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, Nicolson escreveu em caráter particular a Buchanan: “Como você, sinto que essa crise pode ser usada pela Rússia para testar nossa amizade e que, se a desapontarmos, estarão liquidadas todas as esperanças de um entendimento amistoso e duradouro entre os dois países.”[50]

À medida que a crise se agravava, Grey envidava esforços para evitar que a Inglaterra tivesse de fazer escolhas difíceis. As grandes potências, mais uma vez agindo unidas dentro do Concerto da Europa deviam, de algum modo, chegar a um entendimento, fosse por meio de uma conferência de embaixadores em Londres, como já sucedera durante as duas Guerras Balcânicas, ou exercendo pressão para que os países diretamente envolvidos negociassem entre si. Quem sabe, sugeriu, a Rússia pressionando a Sérvia; e a Alemanha, a Áustria-Hungria? Quando ficou evidente que a Rússia tomaria o partido da Sérvia, Grey se apegou à possibilidade de França, Inglaterra e Itália poderem convencer Rússia e Áustria-Hungria a se entenderem diretamente. Quando, em 28 de julho, a Europa ultrapassou o marco fundamental da declaração de guerra do Império Austro-Húngaro à Sérvia, Grey considerou a possibilidade de as forças da Monarquia Dual fazerem um alto em Belgrado e dar tempo para negociações. (Wilhelm, que se abstraía da guerra justamente quando precisava enfrentar a realidade, na mesma ocasião fez sugestão semelhante.) Enquanto apresentava uma proposta após outra, Grey também dizia para os franceses e seus próprios colegas que a despeito de todas as conversas de militares do exército e da marinha ao longo dos anos, a Inglaterra não se considerava presa à França por obrigações ou tratados secretos e que exerceria sua liberdade de decisão. Nunca foi inteiramente franco com seus colegas, com o povo inglês e talvez nem consigo mesmo sobre a que ponto ele e os militares tinham realmente prometido que a Inglaterra trabalharia com a França. (...)

No dia seguinte Grey leu o texto completo do ultimato. “A nota me pareceu,” disse para Mensdorff, “o mais terrível documento jamais enviado pelo governo de um estado para outro estado independente.” Seguindo instruções de Berchtold, Mensdorff tentou, sem sucesso, atenuar a importância do documento, dizendo que não era tanto um ultimato, mas uma negociação com tempo limitado e que a intenção de a Áustria-Hungria começar a fazer preparativos militares após a data-limite não era o mesmo que realizar operações militares.[52] Mais tarde, naquele mesmo dia, em reunião do Gabinete para discutir o fracasso da conferência sobre a Irlanda no Palácio de Buckingham, pela primeira vez Grey abordou a crise nos Balcãs, afirmando que, se a Rússia atacasse a Áustria-Hungria, a Alemanha defenderia sua aliada. Embora a maioria de seus colegas se opusesse firmemente ao envolvimento da Inglaterra no conflito, na semana seguinte a balança penderia francamente para o outro lado, em consequência das iniciativas alemãs. Grey disse sombriamente que o ultimato os levava para o Armagedom mais do que em qualquer outra oportunidade, desde a Primeira Guerra Balcânica. A solução que via era bem menos dramática. Proporia a Alemanha, a França, a Itália e a Inglaterra unirem esforços para pressionar a Áustria-Hungria e a Rússia a não tomarem nenhuma medida drástica. Entretanto, no mesmo dia a Inglaterra começou a ensaiar as primeiras providências para a guerra. Toda a esquadra inglesa em águas territoriais realizara as manobras de verão na semana anterior e, diante das perspectivas, o governo determinou que permanecesse mobilizada. Tal como as medidas preliminares adotadas pela Rússia e pela França, e as que já estavam sendo tomadas na Alemanha, tais manobras podiam ter finalidade defensiva, mas não era necessariamente assim que eram interpretadas externamente e, desse modo, mais um elemento entrou em jogo para elevar ainda mais o nível de tensão na Europa.

Na noite de 24 de julho, Grey convocou Lichnowsky e pediu-lhe para informar seu governo que a Inglaterra queria fazer uma solicitação conjunta com a Alemanha para a Áustria-Hungria estender o prazo do ultimato, a fim de permitir que as outras potências tivessem tempo para acalmar a crescente divergência entre Áustria-Hungria e Rússia.” “É inútil,” rabiscou o Kaiser ao ler o relatório de Lichnowsky na manhã seguinte. “Não concordo, a não ser que a Áustria me peça expressamente, o que não é provável. Em questões vitais como honra, não se consultam outros.”[53]

No sábado, 25 de julho, Grey esteve novamente com Lichnowsky para discutir toda a situação. Para o embaixador alemão estava cada vez mais difícil defender a posição de seu governo. Grande admirador da Inglaterra e de suas instituições, sempre defendera melhor entendimento entre Londres e Berlim. Fora chamado de sua aposentadoria em 1912 para esse cargo pelo Kaiser, que lhe disse para assumi-lo e ser “um bom companheiro.” Sua nomeação não agradou a Bethmann nem ao Ministério do Exterior porque lhe faltava experiência e era muito ingênuo em se tratando de Inglaterra.[54] Não obstante, durante a crise Lichnowsky foi coerente, sempre fazendo boas recomendações: a Alemanha estava seguindo rumo perigoso ao encorajar a Áustria-Hungria e, em caso de uma guerra geral, a Inglaterra se envolveria. Disse a seus superiores que estavam sonhando se de fato acreditavam que um conflito se restringiria aos Balcãs.[55] (E, como Nicolson escreveu ironicamente a Buchanan: “Creio que essa conversa sobre guerra localizada quer dizer apenas que todas as Potências devem assistir sem interferir enquanto a Áustria-Hungria estrangula tranquilamente a Sérvia.”)[56]

De tarde, como continuavam chegando telegramas urgentes sobre a situação na Europa, Grey preferiu se recolher a seu refúgio habitual no interior, perto de Winchester, e lá passar o fim de semana.[57] Embora pudesse ser alcançado por telegrama, foi uma decisão curiosa diante de uma situação que evoluía com tanta rapidez. De volta a Londres, soube na segunda-feira, 27 de julho, que a Alemanha rejeitara friamente sua proposta de intermediação pelos quatro países sob o argumento, assim alegou Jagow, de que exigiria um tribunal internacional de arbitragem e, portanto, só poderia funcionar se Rússia e Áustria-Hungria, as duas partes diretamente interessadas, o solicitassem.[58] Agora, a Inglaterra estava sob intensa pressão da Rússia e da França para deixar claro seu apoio. Buchanan, que se encontrara com Sazonov no domingo para insistir no sentido de que intercedesse junto à Áustria-Hungria para solucionar a situação e, em nome da paz, retardasse a mobilização russa, na segunda-feira expediu telegrama para Londres informando que a posição russa endurecera: “O ministro do Exterior acredita que não teríamos sucesso na tentativa de conseguir a adesão da Alemanha à causa da paz, a menos que anunciássemos publicamente nossa solidariedade à França e à Rússia.”[59] Em Paris, durante um jantar Izvolsky afirmou a um diplomata inglês que certamente haveria guerra e que a culpa era da Inglaterra. Se ao menos os ingleses deixassem claro, desde o começo da crise, que lutariam ao lado dos russos e franceses, Áustria-Hungria e Alemanha pensariam duas vezes. Não era como na crise da Bósnia, acrescentou com desagrado, quando uma Rússia debilitada fora obrigada a recuar. Desta vez a Rússia estava em condições de combater.[60] Na quinta-feira, 28 de julho, Paul Cambon, que voltara correndo de Paris onde estivera assessorando o governo na ausência de Poincaré e Viviani, alertou Grey que “se fosse presumível que a Inglaterra certamente ficaria de fora em uma guerra europeia, a probabilidade de preservação da paz estaria em sério perigo.”[61] Cambon, que dedicava seu tempo em Londres a transformar a Entente Cordiale em algo mais substancial do que simplesmente uma amizade calorosa, agora temia, desde o princípio da crise, que Grey “hesitasse, titubeasse” e, por conseguinte, a Alemanha se sentisse em condições de seguir em frente. “No fim, a Inglaterra acabará se aliando a nós,” afirmou, não obstante, a um amigo em Paris, “mas será tarde demais.”[62] Cambon ainda passaria por muitas aflições na semana seguinte, ao tentar obter um firme compromisso de Grey.

Em todo o Continente corriam notícias sobre atividades atípicas. No fim de semana de 25-26 de julho, espiões informaram aumento do tráfego rádio entre a Torre Eiffel e uma importante base militar russa no oeste da Rússia. Soube-se que os guardas russos da fronteira estavam em alerta total e o material rodante das ferrovias estava sendo deslocado para cidades russas próximas à fronteira com a Prússia Oriental.[63] Em 26 de julho, Wilhelm, cujo governo queria mantê-lo à distância e em segurança no Mar do Norte, subitamente determinou que a esquadra alemã escoltasse seu iate de volta para a Alemanha. Aparentemente temia que a Rússia planejasse torpedeá-lo em ataque de surpresa. Também achava que Bethmann não tinha uma compreensão apropriada dos assuntos militares.[64] No dia seguinte, Poincaré e Viviani de repente interromperam a planejada visita a Copenhagen e partiram rumo à França. Explosões de sentimento nacionalista começaram a perturbar a tranquilidade do verão. Multidões em São Petersburgo, inicialmente não muito grandes, mas aumentando progressivamente ao longo da semana, desfilavam carregando retratos do Czar Nicholas e a bandeira do país, cantando “Senhor, salva Teu povo!”[65] Quando Nicholas compareceu a um teatro em Krasnoye Selo, a assistência, em pé, o ovacionou espontaneamente, e oficiais do exército presentes começaram a cantar. Em Paris, houve manifestações populares em frente à embaixada da Áustria-Hungria, e em Viena, “o entusiasmo é contagiante,” informou o embaixador inglês, quando os habitantes locais tentaram realizar uma manifestação diante da embaixada russa, enquanto oficiais uniformizados eram entusiasticamente aplaudidos. Em Berlim, quando chegou a notícia da resposta sérvia ao ultimato austríaco, grande multidão se reuniu cantando canções patrióticas e o hino nacional da Áustria. Estudantes universitários desfilavam para lá e para cá pela Unter den Linden cantando e bradando lemas patrióticos.[66]

Na Itália, porém, as ruas estavam tranquilas, e o embaixador inglês informou que a opinião pública condenava tanto a participação da Sérvia no assassinato quanto a atitude austro-húngara, vista como exageradamente severa. Notou que o povo italiano aguardava “em atitude de expectativa até certo ponto ansiosa.” Em sua opinião, o governo buscava uma razão mais plausível para se esquivar de suas obrigações como membro da Tríplice Aliança.[67] O dilema do governo italiano era não querer ver a Áustria-Hungria destruindo a Sérvia e assumindo a supremacia nos Balcãs, mas, por outro lado, não desejar entrar em choque com seus parceiros da aliança, com a Alemanha em especial. (Como tantos outros estados europeus, mantinha justificado e até exagerado respeito pelo poder militar alemão.) Uma guerra europeia naquele momento significava um outro problema: se a Alemanha e a Áustria-Hungria saíssem vitoriosas, a Itália ficaria ainda mais à sua mercê e se transformaria em uma espécie de estado vassalo. Entrar na guerra no lado da Aliança Dual também seria impopular internamente, uma vez que a opinião pública ainda se inclinava por uma visão da Áustria-Hungria como inimiga tradicional, que sempre incomodara e oprimira os italianos, tal como agora fazia com os sérvios. Um motivo final era a própria fraqueza da Itália. Sua marinha seria dizimada se tentasse enfrentar a inglesa e a francesa, e seu exército precisava desesperadamente de um período de recuperação depois da guerra contra o Império Otomano pela posse da Líbia. Na verdade, as forças italianas ainda combatiam diante de forte resistência em seus novos territórios no norte da África.[68]

San Giuliano, inteligente e experiente ministro do Exterior italiano, passava o mês de julho em Fiuggi Fonte, nas montanhas ao sul de Roma, em vã tentativa de curar a gota que tanto o sacrificava. (As águas locais são famosas para a cura de problemas de pedras nos rins e dispunham do testemunho de Michelangelo, que afirmara que o tinham livrado do “único tipo de pedra que não posso amar.”) O embaixador alemão na Itália o visitou nesse local em 24 de julho para transmitir pormenores do ultimato. Apesar da forte pressão da Alemanha e da Áustria-Hungria, San Giuliano adotou naquela ocasião e nas semanas seguintes a posição de que a Itália não se sentia obrigada a entrar em uma guerra que não era nitidamente defensiva, mas poderia decidir em contrário desde que em determinadas circunstâncias, ou seja, o oferecimento, por parte da Áustria-Hungria em particular, de territórios com habitantes de língua italiana. Além disso, se a Áustria-Hungria conquistasse novos territórios nos Balcãs, a Itália teria de ser também recompensada. Em 2 de agosto, o governo austro-húngaro, que rudemente se referia aos italianos como gente insignificante que não merecia confiança, relutantemente cedeu à pressão da Alemanha e fez uma vaga oferta de território, sem incluir, porém, nenhuma parcela da própria Áustria-Hungria e somente se a Itália entrasse na guerra. No dia seguinte, a Itália declarou que permaneceria neutra.[69]

 

O plano alemão, em geral conhecido como Plano Schlieffen, previa a Alemanha travar uma guerra em duas frentes, contra a França e a Rússia. Para destruir rapidamente o inimigo na frente ocidental, os militares alemães planejaram um avanço rápido pelo interior da Bélgica e norte da França. Embora a Alemanha pedisse à Bélgica que permitisse o trânsito pacífico das forças alemãs por seu território, o governo belga decidiu resistir. Com isso, retardou o avanço alemão e, ainda mais importante, convenceu os ingleses a entrar na guerra para defender a valente Bélgica.

 

Na Inglaterra, durante a última semana de julho a opinião pública já estava profundamente dividida, com a poderosa ala radical do Partido Liberal e o Partido Trabalhista se opondo à guerra. Quando se reuniu na tarde da segunda-feira, 27 de julho, o Gabinete ficou dividido ao meio. Equivocadamente, Grey não propôs uma linha de ação bem definida. Por um lado, disse ele, se a Inglaterra não se aliar à França e à Rússia,

logicamente perderemos a confiança deles para sempre e quase certamente a Alemanha atacará a França, enquanto a Rússia se mobiliza. Se, por outro lado, dissermos que estamos dispostos a nos lançar ao lado da Entente, a Rússia imediatamente atacará a Áustria. Por conseguinte, nossa capacidade de atuar em prol da paz depende de nossa aparente indecisão. A Itália, desonesta como sempre, está se esquivando de suas obrigações na Tríplice Aliança alegando que a Áustria não a consultou antes de expedir o ultimato.[70]

Depois da reunião, Lloyd George, o influente ministro das Finanças, ainda ao lado dos que defendiam a paz, disse a um amigo que “antes de mais nada, não devemos entrar guerra em nenhuma. Não sabia de nenhum ministro a favor disso.”[71]

No outro lado do Canal, os responsáveis pelas decisões, inicialmente tão belicosos, por um momento estavam pensando melhor. Em 27 de julho, de volta a Berlim, o Kaiser esperava que a Sérvia acatasse o ultimato. Falkenhayn, ministro da Guerra, escreveu em seu diário: “Ele diz coisas confusas. A única coisa que se percebe com nitidez é que já não deseja mais a guerra, mesmo que isso signifique abandonar a Áustria. Quero deixar claro que ele não controla mais a situação.”[72] O Czar enviou a Sazonov uma nota sugerindo que a Rússia juntasse esforços com França e Inglaterra, e quem sabe, até Alemanha e Itália, para fazerem uma tentativa conjunta de preservar a paz apelando para que Áustria-Hungria e Sérvia resolvessem sua pendência no Tribunal de Arbitragem de Haia: “Talvez ainda haja tempo antes de acontecimentos fatais.”[73] Sazonov também recebeu a missão de conversar diretamente com os austro-húngaros e, de Berlim, Bethmann aconselhou a aliada da Alemanha a participar desse entendimento, pois seria uma oportunidade para mostrar a Rússia como vilã, antes que a opinião pública na Aliança Dual a julgasse defensora da paz.

Embora o Kaiser e talvez Bethmann continuassem se agarrando a uma tábua de salvação enquanto eram engolfados pelas correntes que agitavam a cena, naquele momento a tendência predominante entre os líderes alemães era admitir que a guerra era inevitável. Também procuravam se convencer de que a Alemanha era a vítima. Em resoluto memorando que escreveu em 28 de julho, Moltke afirmou que a Rússia se mobilizaria quando a Áustria-Hungria atacasse a Sérvia e, nessas circunstâncias, a Alemanha teria que socorrer sua aliada e recorrer à sua própria mobilização. A Rússia reagiria atacando a Alemanha e a França se juntaria a ela. “Assim, a aliança franco-russa, tantas vezes rotulada como puramente defensiva e supostamente criada para se defender de uma agressão alemã, será ativada e começará a carnificina das nações civilizadas da Europa.”[74] Em 27 de julho foram abertas as negociações entre Rússia e Áustria-Hungria, mas no dia seguinte foram mais uma vez interrompidas quando a Monarquia Dual, pressionada pela Alemanha para agir com rapidez, declarou guerra à Sérvia.[75]

A declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, pela forma como aconteceu, teria sido engraçada, se não produzisse consequências tão trágicas. Como fechara melodramaticamente sua embaixada em Belgrado, Berchtold ficou sem condições de entregar a nota da declaração à Sérvia. A Alemanha se recusou a ser a portadora, já que tentava dar a impressão de que não sabia o que a Áustria-Hungria estava planejando. Assim, Berchtold recorreu à remessa de um telegrama sem codificação para Pasic, a primeira vez que uma guerra foi declarada dessa forma. O primeiro-ministro sérvio, desconfiando que alguém em Viena estava tentando induzir a Sérvia a atacar primeiro, se negou a acreditar no telegrama, até receber a confirmação por meio das embaixadas sérvias em São Petersburgo, Londres e Paris.[76] Em Budapest, Risza fez veemente discurso no parlamento húngaro apoiando a declaração de guerra, e o líder da oposição bradou: “Finalmente!”[77] Ao ouvir a notícia em um jantar em São Petersburgo, Sukhomlinov disse ao vizinho de mesa: “Desta vez vamos partir para a luta.”[78] Na noite de 28 de julho canhões austríacos em posição na margem norte do Sava atiraram sobre Belgrado. Restava à Europa apenas uma semana de paz.”

[49] Nicolson, Portrait of a Diplomatist, 295.

[50] Ibid., 301.

[52] Bridge, ‘The British Declaration of War,’ 408; Wilson, The Policy of the Entente, 135-6; BD, vol. XI, 91, pgs. 73-4; 104, pgs. 83-4.

[53] Geiss, July 1914, 183-4.

[54] Bülow, Memoirs of Prince Von Bulow, vol. III, 122-3.

[55] Lichnowsky e Delmer, Heading for the Abyss, 368-469.

[56] Nicolson, Portrait of a Diplomatist, 301.

[57] Hobhouse, Inside Asquith’s Cabinet, 176-7; Robbins, Sir Edward Grey, 289-90.

[58] BD, vol. IX, 185, pg. 128.

[59] BD, vol. IX, 170, pgs. 120-1.

[60] BD, vol. IX, 216, pg. 148.

[61] Eubank, Paul Cambon, 171.

[62] Ibid., 169.

[63] Trumpener, ‘War Premeditated?,’ 66-7; Bittner and Ubersberger, Österreich- Ungarns Aussenpolitik, 739, 741.

[64] Cecil, Wilhelm II, 202-3.

[65] Bridge, Russia, 52.

[66] BD, vol. IX, 135, pg. 99; 147, pg. 103; The Times, 27 julho 1914; Bark, ‘Iul’skie Dni 1914 Goda,’ 26; Bittner e Ubersberger, Österreich-Ungarns Aussenpolitik, 759; Verhey, Spirit of 1914, 28-31.

[67] BD, vol. XI, 162, pg. 116; 245, pgs. 160-61.

[68] Renzi, ‘Italy’s Neutrality,’ 1419-20.

[69] Ibid., 1421-2.

[70] Hobhouse, Inside Asquith’s Cabinet, 177.

[71] Williamson, Politics of Grand Strategy, 345.

[72] Afflerbach, ‘Wilhelm II as Supreme Warlord,’ 432.

[73] Ignat’ev, Vneshniaia politika Rossii, 1907-1914, 218-19.

[74] Geiss, July 1914, 283.

[75] Jarausch, The Enigmatic Chancellor, 171.

[76] Albertini, The Origins of the War, vol. II, 460-61.

[77] Vermes, Istv’an Tisza, 234.

[78] Rosen, Forty Years of Diplomacy, 163.

 

 

Enquanto a Inglaterra se engalfinhava com o dilema, a Alemanha tomou a fatídica decisão de começar a mobilização. Isso era particularmente perigoso para a paz na Europa porque a mobilização alemã era diferente das outras. Seus passos magnificamente ordenados e coordenados – desde a declaração de estado de sítio ou de “iminente ameaça de guerra” até a ordem para mobilização total e apresentação dos convocados em suas unidades portando seu próprio equipamento, e o deslocamento das tropas para suas posições nas fronteiras – tornavam quase impossível interrompê-la uma vez desencadeada. O exército estava sempre pronto, mesmo em tempo de paz, para se deslocar tão logo recebesse ordem. O posto de comunicações do Estado-Maior era guarnecido 24 horas por dia e tinha sua própria agência telefônica ligada diretamente com o correio principal e o posto telegráfico.[37] Estava sempre em pé de guerra. Embora Bethmann e o Kaiser tivessem resistido às pressões do exército para desencadear o processo, em 31 de julho os militares começaram a assumir o comando. Bethmann aceitou com resignação a mudança de poder. O representante da Saxônia em Berlim reproduziu suas palavras: “O controle fugiu das mãos dos monarcas e estadistas responsáveis, de modo que essa louca guerra europeia aconteceria, mesmo sem que os governantes e seus povos a desejassem.”[38]

[37] Bucholz, Moltke, Schlieffen, 280-81.

[38] Bach, Deutsche Gesandtschaftsberichte, 107.

 

 

Como acontece tantas vezes em alianças, a guerra trouxe à tona interesses divergentes de parceiros. A Áustria-Hungria, embora em tempo de paz prometesse atacar a Rússia tão logo pudesse, estava obcecada em destruir a Sérvia. A Alemanha, por sua vez, não desejava, ao menos até derrotar a França, retirar forças da frente ocidental para reforçar a Áustria-Hungria. Para a Alemanha era essencial que o Império Austro-Húngaro empregasse o maior poder militar possível na direção norte, contra a Rússia. Moltke já pressionava Conrad, seu correspondente austríaco, para empregar tropas ao norte e a leste e, em 31 de julho, o Kaiser expediu enérgico telegrama a Franz Joseph afirmando: “Nesse grande conflito, é de importância capital que a Áustria empregue o grosso de suas forças contra a Rússia e não as divida em uma ofensiva simultânea contra a Sérvia.” E o Kaiser continuou, “Na luta gigantesca em que devemos nos manter ombro-a-ombro, a Sérvia desempenha papel secundário, exigindo apenas um mínimo de medidas defensivas.”[46] Entretanto, Conrad só deslocou forças do sul para o norte em 4 de agosto, decisão que levaria a Áustria-Hungria a um desastre militar.

Na tarde de 1º de agosto, um sábado, a Rússia ainda não tinha respondido o ultimato alemão. As manifestações patrióticas no começo da semana arrefeciam, e o povo alemão aguardava os acontecimentos com apreensão e até mesmo abatimento. Um jornalista reportou que em Frankfurt “a situação é encarada com toda seriedade e reina uma paz inquieta e comedida. Na discrição dos lares, esposas e moças estão imersas em seus pensamentos sobre o futuro. Separação, um grande medo de coisas horríveis, do que está por vir.” Donas de casa começaram a estocar comida, e houve corridas a bancos, com as pessoas sacando suas economias. Naquele momento o Kaiser sofria forte pressão de seus generais, que viam o tempo se esgotando, para decretar a mobilização geral, enquanto a Rússia fortalecia seu exército. Também era pressionado pela própria esposa, que lhe disse para proceder como homem. Assinou a ordem às cinco da tarde.[47] Pouco depois fez um discurso da sacada de seu palácio em Berlim: “Agradeço do fundo do coração vossa manifestação de amizade, vossa lealdade. Na batalha que temos pela frente, não vejo mais partidos em meu Volk. Somos todos alemães...” Foi aplaudido mais do que usualmente. Alemães de todas as crenças políticas agora estavam prontos para defender a pátria contra os russos, que, naquele momento era o inimigo principal. Apesar do mito posteriormente fabricado pelos nacionalistas, de que ocorreu uma explosão de entusiasmo patriótico quando a guerra se tornou realidade, a disposição do povo ao que parece foi mais de resignação do que qualquer outra.[48]

Logo depois de o Kaiser assinar a ordem de mobilização geral, chegou um telegrama de Lichnowsky. Segundo o embaixador, a Inglaterra se comprometera a permanecer neutra, desde que a Alemanha não atacasse a França. Como disse um observador, a notícia caiu como “uma bomba.” O Kaiser e talvez Bethmann respiraram aliviados. Voltando-se para Moltke, Wilhelm disse alegremente: “Então, simplesmente empregamos todo o exército no leste!” Rapidamente o ambiente ficou tumultuado. Moltke se recusou a admitir a possibilidade de empregar as forças somente contra a Rússia. Não era mais possível interromper o deslocamento das tropas para fronteira ocidental sem contrariar o que estava planejado e, assim, acabar com a possibilidade de sucesso contra a França na guerra que mais cedo ou mais tarde aconteceria. “Além disso,” acrescentou, nossa patrulhas já entraram em Luxemburgo, e a divisão de Trier partirá imediatamente.” E completou asperamente para o Kaiser: “Se Vossa Majestade insiste em empregar todas as forças na frente oriental, não contaremos com um exército pronto para atacar, mas apenas com um amontoado confuso e desordenado de homens armados sem suprimentos.” Wilhelm replicou, “Seu tio teria me dado uma resposta diferente.”[49]

Desde então se discute se Moltke estava certo, se realmente já era tarde para a Alemanha decidir travar a guerra em uma só frente. O general Groener, na época chefe do departamento de ferrovias do Estado-Maior Alemão, mais tarde assegurou que isso teria sido possível.[50] No caso, entretanto, o pacote já estava fechado. O emprego em duas frentes continuaria como planejado, mas as forças alemãs no oeste fariam alto antes da fronteira com a França, até que estivesse mais definida a posição desse país. Na verdade, Moltke nunca se recuperou da pressão psicológica que sofreu naquele dia. Quando voltou para casa depois de ouvir o pedido do Kaiser de uma mobilização parcial, lembrou sua mulher: “Vi imediatamente que algo terrível acontecera. Ele estava com as faces rubras, mal dava para medir sua pulsação. À minha frente estava um homem desesperado.”[51]

Mais tarde, na mesma noite, chegou um segundo telegrama de Lichnowsky dizendo que o anterior estava errado, que os ingleses insistiam que não houvesse invasão alemã da Bélgica nem ataque à França, e mais, que tropas alemãs já destinadas à ofensiva na Frente Ocidental não fossem movimentadas para a Frente Oriental e empregadas contra a Rússia. Quando Moltke voltou ao palácio imperial em Berlim a fim de pedir autorização para retomar o movimento de tropas para a Bélgica e a França, o Kaiser, que já estava dormindo, disse secamente: “Faça como quiser. Não me interessa,” e voltou para a cama.[52] Naquele dia fatídico os ministros do Kaiser não puderam dormir e ficaram reunidos até as primeiras horas da manhã seguinte discutindo se entrar em guerra contra a Rússia exigia uma declaração formal. Moltke e Tirpitz não viam essa necessidade, mas Bethmann, alegando que “assim não vamos conseguir que os socialistas se aliem a nós,” venceu aquela que seria uma das últimas vitórias que lograria sobre os militares.[53] Seria preparada uma declaração de guerra a ser telegrafada para Pourtalès em São Petersburgo. Diante da decisão alemã de mobilizar, três das cinco grandes potências europeias já tinham começado suas mobilizações gerais e estavam oficialmente em guerra, como era o caso da Áustria-Hungria, ou na iminência de entrar em guerra, caso da Rússia e da Alemanha. Das três restantes, a Itália preferiu a neutralidade, a França decidiu ignorar o ultimato alemão e em 2 de agosto começou a mobilizar suas forças armadas, e a Inglaterra ainda não decidira o que fazer.”

[46] Stone, ‘V. Moltke-Conrad,’ 217.

[47] Afflerbach, ‘Wilhelm II as Supreme Warlord,’ 433n22.

[48] Verhey, Spirit of 1914, 46-50, 62-4, 68, 71; Stargardt, The German Idea of Militarism, 145-9.

[49] Mombauer, Helmuth von Moltke, 216-20.

[50] Groener, Lebenserinnerungen, 141-2, 145-6.

[51] Mombauer, Helmuth von Moltke, 219-24.

[52] Ibid., 223-4.

[53] Jarausch, The Enigmatic Chancellor, 174-5.

 

 

Apesar dos inúmeros mitos que cercam a Grande Guerra, em agosto de 1914 os soldados de fato disseram a seus familiares que estariam de volta no Natal. Na Escola de Estado-Maior da Inglaterra, em Camberley, onde os formandos esperavam suas ordens em meio a festas ao ar livre, jogos de críquete e piqueniques, finalmente chegou a voz de que assumissem seus novos postos, a maioria na Força Expedicionária Britânica que partiria para o Continente. A escola ficaria fechada até segunda ordem, e seus instrutores assumiriam funções nos estados-maiores. As autoridades achavam que não havia necessidade de continuar a preparação de mais oficiais, já que se esperava uma guerra de curta duração.[4] As advertências de especialistas como Ivan Bloch e Moltke, ou de pacifistas como Bertha von Suttner e Jean Jaurès, de que as ofensivas terminariam em impasse, sem que um lado tivesse poder suficiente para subjugar o outro, e de que as sociedades veriam esgotados seus recursos, de homens a material bélico, pelo menos naquele momento em que as potências europeias marchavam para a guerra, foram ignoradas. A maioria, de chefes a cidadãos comuns, presumia que o conflito seria breve, tal como fora a Guerra Franco-Prussiana, quando as forças da aliança alemã precisaram de apenas dois meses para obrigar a França a se render. (O fato de a luta se estender por mais tempo porque o povo francês resolveu continuar combatendo é outra questão.) Financistas, banqueiros e ministros de Finanças tinham como certo que a guerra logo terminaria. Consideravam que a interrupção do comércio e a incapacidade dos governantes em conseguir empréstimos à medida que o mercado internacional de capitais minguava significaria ameaça de bancarrota e impossibilitaria os beligerantes de prosseguir na luta. Como advertiu Norman Angell em seu trabalho Great Illusion, mesmo a Europa sendo tola o bastante para ir à guerra, o caos econômico e a miséria interna resultante rapidamente forçariam os países em conflito a negociar a paz. O que poucos perceberam – embora Bloch assinalasse – é que os governos europeus tinham uma capacidade, ainda não testada, de extrair recursos de suas sociedades por meio de impostos, de gerenciar suas economias e liberar homens para a linha de frente com a utilização de mulheres nos postos de trabalho. Acresce que os europeus eram estoicos e obstinados a ponto de lhes permitir combater anos a fio, apesar de sofrerem tão terríveis baixas. O que surpreende na Grande Guerra não é o fato de as sociedades e indivíduos europeus finalmente baquearem sob tensão – e isso não aconteceu com todos, ou pelo menos, não completamente – mas que Rússia, Alemanha e Áustria-Hungria resistissem tanto antes do colapso por revolução ou motins ou desespero.”

[4] Bond, The Victorian Army and the Staff College, 294-5, 303.

 

 

Naquelas primeiras semanas da guerra, pareceu que a Europa pudesse escapar da ruína. Se a Alemanha derrotasse rapidamente a França, talvez a Rússia decidisse celebrar a paz no leste e a Inglaterra reconsiderasse sua intervenção no conflito. Mesmo que o povo francês resolvesse continuar lutando com já tinha feito em 1870-71, no fim seria obrigado a capitular. Quando as forças alemãs invadiram a Bélgica e Luxemburgo a caminho do norte da França, tudo indicava que os planos alemães estavam sendo executados como previsto. Porém, não tanto. A decisão belga de resistir retardou a progressão alemã. A principal fortaleza, em Liège, caiu em 7 de agosto, mas restavam outras doze a serem tomadas uma por uma. A resistência belga obrigava os alemães a deixar tropas na retaguarda à medida que avançavam. A extensa ala direita do exército alemão, que devia atacar atravessando o Meuse na direção do Canal, para em seguida manobrar para o sul e prosseguir rumo a Paris na expectativa de conquistar vitória retumbante, foi mais fraco e mais lento do que o planejado. Em 25 de agosto, Moltke, alarmado com a velocidade do avanço russo na frente oriental – tinham devastado propriedades Junkers e incendiado o pavilhão de caça preferido do Kaiser, em Rominten – deu ordem para que dois corpos-de-exército, cerca de 88 mil homens, partissem para o leste, rumo à Prússia Oriental.[5] Além disso, a Força Expedicionária Britânica chegara antes do previsto para reforçar os franceses.

O avanço alemão perdeu velocidade e parou diante da resistência dos aliados. No começo de setembro, a balança começou a pender contra a Alemanha, e os aliados estavam longe de derrotados. Em 9 de setembro, Moltke deu ordem para as forças alemãs na França recuarem para o norte e se reagruparem. Dois dias mais tarde ordenou a retirada em toda a linha de frente. Embora naquele instante ele não pudesse avaliar, essa iniciativa significou o fim do Plano Schlieffen e da possibilidade de a Alemanha derrotar rapidamente a França. Em 14 de setembro, o Kaiser o dispensou de suas funções sob a alegação de necessidade de saúde.

Naquele outono, alemães e aliados fizeram esforços desesperados para desbordar as posições do inimigo. As baixas se acumularam, mas a vitória continuoava indefinida. No fim de 1914, 265 mil soldados franceses tinham morrido, e os ingleses perderam 90 mil homens. Alguns regimentos alemães sofreram 60% de baixas. No outono, os alemães perderam 80 mil homens somente nos combates em torno da cidade de Ypres.[6] Com a aproximação do inverno, os exércitos dos dois lados cavaram trincheiras na esperança de retomar as operações na primavera. Mal sabiam que as trincheiras que cavaram desde a Suíça, passando pelas fronteiras leste e norte da França e chegando à Bélgica ficariam mais profundas, sólidas, aperfeiçoadas, e durariam até o verão de 1918.

No Front Oriental, onde as distâncias eram muito maiores, a rede de trincheiras nunca alcançou a mesma extensão, tampouco se revelou tão inexpugnável, porém, mais uma vez, a capacidade da defesa de conter ataques ficou absolutamente clara nos primeiros meses da guerra. A Áustria-Hungria sofreu os maiores reveses, mas a Rússia foi incapaz de uma vitória decisiva. Nos primeiros quatro meses da guerra, a Áustria-Hungria sofreu quase um milhão de baixas. Embora a Alemanha, contrariando a expectativa de Schlieffen e seus sucessores, assumisse a ofensiva e derrotasse dois exércitos russos em Tannenberg, o triunfo no campo de batalha não resultou em fim da guerra. Tanto a Rússia como seus inimigos dispunham de recursos e determinação para continuar combatendo.

Contam uma história que talvez seja verdadeira. Ernest Shackelton, o grande explorador polar, partiu para a Antártida no outono de 1914. Na primavera de 1916, no caminho de volta, ao passar pela estação baleeira na ilha Geórgia do Sul, perguntou quem tinha vencido a guerra na Europa e ficou espantado quando lhe disseram que ainda estava em curso. Indústrias, riqueza nacional, trabalho, ciência, tecnologia e até artes foram engajados no esforço de guerra. O progresso da Europa, tão orgulhosamente festejado na Exposição de Paris em 1900, permitiu que os países aperfeiçoassem os meios de mobilizar seus vastos recursos, afinal usados para a autodestruição.

As primeiras etapas da campanha selaram o modelo espantoso que vigoraria nos anos seguintes: ataques desfechados sem parar e defensores despejando o fogo letal de suas armas. Os generais tentavam quebrar o impasse com ofensivas maciças que causavam baixas pesadas. Nas frentes de combate, particularmente no Ocidente, no terreno encaroçado por crateras de granadas e cercas de arame farpado, a linha de contato mal se movia. À medida que seguiu seu curso, a guerra custou vidas em escala que achamos difícil de imaginar. Em 1916, só a ofensiva de verão russa resultou em 1,4 milhão de baixas; 400 mil italianos foram feitos prisioneiros por ocasião da ofensiva de Conrad contra a Itália nos Montes Dolomitas; e houve 57 mil baixas inglesas no dia 2 de julho, primeiro dia da Batalha do Somme; e no fim dessa batalha havia 650 mil aliados mortos, feridos ou desaparecidos, o mesmo acontecendo com 400 mil alemães. Em Verdun, a luta entre a França e a Alemanha pela posse da fortaleza pode ter custado aos defensores franceses mais de 500 mil baixas e aos atacantes alemães, mais de 400 mil. Quando a guerra terminou em 11 de novembro de 1918, 65 milhões de homens tinham participado dos combates, e 8,5 milhões perdido a vida. Oito milhões eram prisioneiros ou simplesmente estavam desaparecidos; 21 milhões tinham sido feridos, e esse total inclui apenas ferimentos que puderam ser contados. Nunca se saberá quantos ficaram psicologicamente abalados ou destruídos. Em comparação, vale lembrar que 47 mil americanos morreram no Vietnã, e 4.800 militares da coalizão, na invasão e na ocupação do Iraque.

A guerra, inicialmente europeia, logo se tornou mundial. Desde o começo os impérios automaticamente se envolveram. Ninguém parou para perguntar aos canadenses e australianos, aos vietnamitas e argelinos, se queriam lutar pelas potências imperiais. Para fazer justiça, muitos quiseram. Nos domínios “brancos” onde muitos ainda tinham laços familiares com a Inglaterra, simplesmente se admitiu que a nação-mãe devia ser defendida. Mais surpreendente foi o fato de muitos nacionalistas indianos terem acorrido em apoio à Inglaterra. O Mahatma Gandhi, jovem advogado radical, ajudou as autoridades inglesas no esforço de guerra. Aos poucos, os demais países foram tomando lado. O Japão declarou guerra à Alemanha no fim de agosto de 1914 e aproveitou a oportunidade para se apoderar das possessões alemãs na China e no Pacífico. O Império Otomano se aliou à Alemanha e à Áustria-Hungria dois meses depois, e a Bulgária fez o mesmo em 1915. Foi o último país a se aliar às Potências Centrais. Romênia, Grécia, Itália, diversos países latino-americanos e, por fim, a China, aderiram aos aliados.

Nos Estados Unidos, de início não se percebeu nenhum apoio mais consistente a um lado ou outro, provavelmente por se tratar de um conflito que parecia ter pouco a ver com interesses americanos. “Estou sempre agradecendo a Deus pelo Oceano Atlântico,” escreveu Walter Page, embaixador americano em Londres. As elites, os liberais e os que viviam na costa leste ou tinham laços de família com os ingleses se inclinavam pelos aliados, mas expressiva minoria, talvez alcançando um quarto dos americanos, era de origem germânica. E a grande minoria católica irlandesa tinha fortes razões para odiar a Inglaterra. Quando a guerra começou, Wilson se afastou a contragosto do leito de morte da mulher para dar uma entrevista à imprensa em que proclamou a neutralidade dos Estados Unidos. “Quero,” afirmou, “ter o privilégio de sentir que a América, como ninguém mais, conserva seu espírito aberto e está pronta, com pensamento tranquilo e sinceridade de propósito, para ajudar o resto do mundo.” Foram as políticas alemãs, mais especificamente as do alto-comando, que levaram a América a abandonar a neutralidade. Em 1917, os Estados Unidos, revoltados com os ataques dos submarinos alemães contra seu comércio marítimo e com a notícia passada para Washington pela Inglaterra de que a Alemanha tentava convencer o México e o Japão a atacaren os Estados Unidos, o país entrou na guerra no lado dos aliados.

Em 1918, o poder das forças combinadas de seus inimigos foi demasiado para as Potências Centrais, e uma a uma elas apelaram por paz, culminando, finalmente, com a própria Alemanha pedindo um armistício. Quando os canhões silenciaram, em 11 de novembro, o mundo estava bem diferente do que fora em 1914. Em toda a Europa as velhas fissuras nas sociedades, temporariamente empapeladas no começo do conflito, ressurgiram à medida que a guerra seguiu seu curso, trazendo ônus cada vez mais pesados. À medida que a intranquilidade social e política se espalhava, regimes velhos desmoronaram, incapazes de preservar a confiança de seus povos ou de atender às suas expectativas. Em fevereiro de 1917, o regime czarista finalmente entrou em colapso, e o débil governo provisório que o sucedeu foi, por sua vez, derrubado dez meses depois por um tipo novo de força revolucionária, os bolcheviques de Vladimir Lênin. Para salvar seu regime, atacado por rivais políticos e por remanescentes da velha ordem, Lênin celebrou a paz com as Potências Centrais no início de 1918, cedendo grandes fatias de território russo a oeste. Enquanto os russos se engalfinhavam numa cruel guerra civil, os cidadãos subjugados dentro do Império Russo aproveitaram a oportunidade para escapar de seu domínio. Embora alguns por breve período, poloneses, ucranianos, georgianos, azerbaijanos, armênios, finlandeses, estonianos e lituanos desfrutaram sua independência.

A Áustria-Hungria desmoronou no verão de 1918. As dificuldades para conter o nacionalismo finalmente se mostraram insuperáveis. Os poloneses se juntaram aos que tinham recentemente se libertado da Rússia e da Alemanha para criar, pela primeira vez em mais de um século, um estado polonês. Tchecos e eslovacos se aliaram em estranho casamento para formar a Tchecoslováquia, enquanto os eslavos do sul da Monarquia Dual na Croácia, na Eslovênia e na Bósnia juntaram-se à Sérvia para formar o estado que ficaria conhecido como Iugoslávia. A Hungria, muito reduzida pela perda da Croácia e pelos acordos de paz após a guerra, tornou-se estado independente, enquanto o que restou dos territórios Habsburgos se transformou no pequeno estado da Áustria. Das outras Potências Centrais, a Bulgária viveu sua própria revolução, e Ferdinand, sempre “o Raposa,” abdicou em favor do filho. O Império Otomano também entrou em colapso. Os aliados ficaram com seus territórios árabes e a maior parte do que restava na Europa, deixando apenas a Turquia. O último sultão otomano saiu tranquilamente para o exílio em 1922, e um novo governante secular, Kemal Ataturk, assumiu o poder para criar o moderno estado da Turquia.

Quando os exércitos da Alemanha viram-se derrotados no verão de 1918, o povo alemão, mantido na ignorância do que realmente acontecia por Hindenburg e Ludendorff, que agora dirigiam o governo civil, reagiu com irritação contra todo o regime. Por algum tempo, enquanto marinheiros e soldados se amotinavam e comitês de trabalhadores se apoderavam de governos locais, pareceu que a Alemanha seguiria o caminho da Rússia. O Kaiser, relutante, foi forçado a abdicar no começo de novembro de 1918, e os socialistas proclamaram uma nova república que, como se viu, conseguiu conter a revolução.

Embora os países vitoriosos tivessem sua parcela de revoltas – em 1918 aconteceram greves e manifestações violentas na França, na Itália e na Inglaterra – por algum tempo os antigos regimes se mantiveram no poder. Todavia, coletivamente a Europa já não era o centro do mundo. Esgotara sua enorme riqueza e seu poder. Os povos dos impérios, que de modo geral aceitavam ser governados pelo poder central desses impérios, inquietaram-se. A crença de que seus dirigentes estrangeiros sabiam melhor o que era melhor para eles se abalara irremediavelmente com pelos quatro anos de selvageria nos campos de batalha na Europa. Novos líderes nacionalistas, muitos deles militares que tinham testemunhado o que a civilização europeia era capaz de produzir, exigiram autonomia imediata e não em algum futuro distante. Os domínios “brancos” da Inglaterra concordaram em continuar dentro do Império, desde que dispusessem de autonomia crescente. Novos atores de fora da Europa agora desempenhavam papel de maior relevo no palco internacional. No Extremo Oriente, o Japão crescera em poder e confiança, e preponderava sobre os vizinhos. No outro lado do Atlântico, os Estados Unidos agora eram uma grande potência mundial, e suas indústrias e fazendas cresceram ainda mais com a guerra. Nova York tornou-se o centro do mundo financeiro. Os americanos viam a Europa como velha, decadente e acabada – com o que muitos europeus concordavam.

A guerra não apenas destruíra a herança europeia e milhões de seus habitantes, mas também brutalizara muitos dos que sobreviveram. As paixões nacionalistas que sustentaram a Europa durante o conflito também causaram a morte injustificável de civis, fosse na Bélgica pelos alemães, na Galícia pelos russos ou na Bósnia pelos austríacos. Exércitos de ocupação apartaram civis para trabalhos forçados e expeliram os de etnia “errada.” Depois da guerra, a violência caracterizou grande parte da política europeia, com seguidos assassinatos e batalhas renhidas entre partidos opostos. As novas e intolerantes ideologias do fascismo e do comunismo estilo russo adotaram a organização e a disciplina dos militares, e, no caso dos fascistas, sua inspiração foi a própria guerra.

A Grande Guerra assinalou uma fratura na história europeia. Antes de 1914, a Europa, apesar de todos seus problemas, tinha a esperança de que o mundo se tornava um lugar melhor e que a civilização humana estivesse avançando. Depois de 1918, os europeus já não podiam alimentar essa fé. Quando olhavam para trás e viam o mundo que desfrutavam antes do conflito, não podiam deixar de experimentar uma sensação de perda e desperdício.”

[5] Strachan, The First World War, vol. I, 239-42.

[6] Ibid., 278-9.

 

 

Dos que desempenharam algum papel levando a Europa pelo caminho que resultou na Grande Guerra, alguns não sobreviveram para ver o desfecho. Moltke nunca voltou da dispensa para tratamento de saúde para reassumir seu posto como Chefe do Estado-Maior da Alemanha. Morreu de derrame em 1916, enquanto seu sucessor, Falkenhayn, lançava o exército alemão em repetidos, onerosos e inúteis ataques a Verdun. Princip, que desencadeara a fatal sucessão de acontecimentos ao assassinar Franz Ferdinand em Sarajevo, foi considerado culpado por um tribunal austro-húngaro, mas não foi executado por ser menor. Morreu de tuberculose em uma prisão austríaca na primavera de 1918, até o último instante sem se arrepender do que seu ato produzira.[8] O Imperador Franz Joseph morreu em 1916, deixando seu abalado trono para um sobrinho jovem e inexperiente, Karl, que ficou no poder somente até 1918. István Tisza, que finalmente resolvera aprovar a decisão austro-húngara de provocar a guerra contra a Sérvia, foi assassinado na frente da esposa por soldados revolucionários húngaros em 1918. Rasputin foi assassinado em São Petersburgo em 1916 por aristocratas conspiradores que acreditaram, em vão, que seu afastamento poderia salvar o regime. Nicholas abdicou no ano seguinte. Ele, Alexandra e os filhos foram assassinados em Ekaterinburg pelos bolcheviques na primavera de 1918. Os corpos foram sepultados em um túmulo sem identificação, mas redescoberto após a queda da União Soviética. Por meio de testes de DNA que contaram com uma mostra do Duque de Edinburgh, sobrinho-neto de Alexandra, seus corpos foram identificados e a igreja ortodoxa russa santificou os pais e os filhos.

Alguns ministros de Nicholas tiveram mais sorte. Izvolsky nunca voltou de Paris e continuou morando na França, graças a pequena pensão concedida pelo governo francês. Sazonov, o ministro do Exterior, foi demitido no começo de 1917. Aderiu às forças antibolcheviques do almirante Kolchak na guerra civil e acabou exilado na França, morrendo em Nice, em 1927. Sukhomlinov foi responsabilizado pelos fracassos russos na guerra, e o Czar o abandonou em 1916, permitindo que fosse julgado sob acusação de corrupção, negligência no emprego do exército russo e espionagem para a Alemanha e a Áustria-Hungria. A corrupção era de fato verdadeira, mas o governo apresentou provas muito frágeis para respaldar as outras acusações. O novo governo provisório, que assumiu o poder no início de 1917, o colocou com sua bela mulher Ekaterina na cadeia e encerrou o julgamento no fim do verão. Ekaterina foi absolvida, mas Sukhomlinov foi condenado à prisão perpétua. Em maio de 1918, os bolcheviques, agora no poder, o libertaram em consequência de uma anistia geral. No outono fugiu da Rússia para a Finlândia e de lá foi para Berlim, onde escreveu as quase inevitáveis memórias e tentou sobreviver em extrema pobreza. Ekaterina, que encontrara um novo protetor rico, continuou na Rússia, mas, ao que parece, foi fuzilada pelos bolcheviques em 1921. Em uma manhã de fevereiro de 1926, policiais encontraram em um banco de parque o corpo de um velho. Sukhomlinov, que fora um dos homens mais ricos e poderosos da Rússia, congelara até morrer durante a noite.[9]

No fim da guerra, Hoyos, o falcão que ajudara a Áustria-Hungria a obter o cheque em branco da Alemanha, chegou a pensar em se suicidar para não enfrentar sua responsabilidade pela guerra e o fim da Monarquia Dual, mas, pensando melhor, mudou de ideia e morreu em paz em 1937. Berchtold, o Chanceler, renunciou logo no início da guerra em protesto contra a visão estreita que levou o Imperador e seus colegas a ceder à Itália porções do território austríaco para assegurar sua neutralidade. Viveu até 1942 em uma de suas propriedades na Hungria e foi sepultado em seu castelo em Buchlau, local da fatídica reunião entre seu antecessor Aehrenthal e Izvolsky, que desencadeou a crise bósnia de 1908. Conrad, o Chefe do Estado-Maior da Áustria-Hungria, que em 1915 finalmente conseguira a permissão de Franz Joseph para casar com Gina von Reininghaus, foi demitido pelo novo Imperador em 1917. Após a guerra ele e Gina viveram com simplicidade nas montanhas austríacas e ele passava o tempo estudando inglês – sua nona língua – caminhando na companhia do ex-Rei Ferdinand da Bulgária e escrevendo uma alentada memória de autojustificação em cinco volumes. (Na década de 1920 haveria uma enxurrada de memórias do mesmo tipo, com os principais autores tentando se explicar e lançando a culpa pela guerra sobre outros). Conrad morreu em 1925 e teve funeral com honras de estado por concessão do governo da nova república da Áustria. Gina viveu o bastante para ver a Áustria absorvida pelo III Reich, e os názis sempre a trataram com grande deferência. Morreu em 1961.

Asquith foi cada vez mais criticado pela apatia na condução do esforço de guerra e se viu forçado a renunciar no fim de 1916. Seu sucessor Lloyd George, embora fosse contra a guerra, se revelou chefe mais enérgico para tempo de guerra. A rivalidade entre os dois dividiu o Partido Liberal, que nunca recuperou o poder do passado. Grey, quase cego, também passou para a oposição, mas aceitou o cargo de embaixador nos Estados Unidos no fim da guerra. Em suas memórias, continuou negando ter algum dia assumido compromissos com a França. Pouco antes de morrer, publicou um livro sobre o fascínio dos pássaros. Sir Henry Wilson, que tanto fizera para consolidar as relações entre Inglaterra e França, terminou a guerra como marechal-de-campo. Em 1922 se tornou assessor de segurança do governo da Irlanda do Norte, que continuou integrando o Reino Unido quando o sul se tornou independente. Foi assassinado logo depois, por dois nacionalistas irlandeses, nos degraus da escada de sua casa em Londres.

Poincaré permaneceu no cargo durante toda a guerra como Presidente da França, desfrutando o momento da vitória e da recuperação da Alsácia/Lorena pelos franceses. Seu mandato terminou em 1920, mas voltou como primeiro-ministro duas vezes nessa década. Aposentou-se por questão de saúde no verão de 1929, mas sobreviveu o suficiente para ver Hitler e os názis assumir o poder na Alemanha em 1933, morrendo no ano seguinte. Quando eclodiu a guerra, Dreyfus foi voluntário para lutar no exército que fora o responsável por sua desgraça e combateu durante todo o conflito. Morreu em 1935, e seu féretro passou pela Place de La Concorde diante de tropa formada.

Na Alemanha, Bethmann foi demitido no verão de 1917 pelo duo Hindenburg e Ludendorff quando quis se opor ao reinício do emprego irrestrito de submarinos contra o transporte marítimo e aos expansionistas objetivos de guerra dos dois. Bethmann se retirou para sua adorada propriedade em Hohenfinow e passou os últimos anos de vida tentando se justificar e explicar as políticas que adotara, assim como negando a responsabilidade alemã pela guerra. Morreu em 1920 com 64 anos. Tirpitz, seu rival como conselheiro do Kaiser, depois da guerra se meteu na política em partido direitista e até morrer em 1930 sustentou que sua política para a marinha estava certa, culpando a todos, do Kaiser ao exército, pela derrota alemã.

Wilhelm sobreviveu por muitos anos, sempre muito pretensioso, mandão e farisaico. Durante a guerra se transformara no “Kaiser Sombra.” Seus generais faziam o que queriam em seu nome e, na verdade, pouca atenção lhe davam. Wilhelm instalou seu quartel-general na pequena cidade belga de Spa, atrás das linhas da frente ocidental, e passava os dias em uma rotina de cavalgadas matinais, algumas horas de trabalho (que em grande parte consistia em conceder condecorações e enviar telegramas cumprimentando seus oficiais), visitando hospitais, dando passeios à tarde, jantando com seus generais e indo para a cama às onze. Gostava de estar próximo à frente de combate para ouvir os tiros e, regressando a Spa, poder dizer orgulhosamente que estivera na guerra. Como Hitler na guerra seguinte, gostava de sonhar com o que faria após o conflito. Estava cheio de planos para estimular as corridas de carros e reformar a sociedade berlinense. Não haveria mais festas em hotéis e a aristocracia construiria seus próprios palácios.[10] Seus auxiliares notaram que, à medida que a guerra prosseguia, foi ficando macambúzio e se deprimia com mais facilidade. Aos poucos, passaram a evitar passar-lhe más notícias, que ficavam cada vez piores.[11]

Quando, no outono de 1918, a derrota alemã ficou evidente, os militares fizeram planos para o Kaiser morrer heroicamente em uma derradeira carga no campo de batalha. Wilhelm não quis saber disso e continuou na vã esperança de preservar seu trono. Piorando a situação da Alemanha, ele foi finalmente persuadido, em 9 de novembro, a partir para a Holanda num trem especial, e a Alemanha se tornou república no mesmo dia. O primeiro pedido de Wilhelm ao chegar à propriedade de um aristocrata holandês que concordara em recebê-lo foi “uma xícara de bom chá inglês.”[12] A despeito da pressão dos aliados, os holandeses se recusaram a extraditá-lo, e ele passou os dias restantes de sua vida em um pequeno palácio em Doorn. Ocupava-se derrubando árvores – 20 mil no fim da década de 1920; escrevendo suas memórias, que, sem causar surpresa, não demonstraram remorso pela guerra ou pela política que gerou o conflito; lendo em inglês para seus auxiliares longos trechos de P.G. Wodehouse; insultando com veemência a República de Weimar, os socialistas e os judeus; e acusando o povo alemão de abandoná-lo, mas ainda acreditando que, um dia, seria chamado de volta.

Observou a ascensão de Hitler e dos názis com sentimento dúbio; achava que Hitler pertencia à ralé e era vulgar, porém concordava com muitas de suas ideias, especialmente quando significavam recuperar a grandeza da Alemanha. No entanto, advertiu: “A grandeza vai desencaminhá-lo, tal como fez comigo.”[13] Wilhelm recebeu deliciado o começo da Segunda Guerra Mundial e a sequência de vitórias alemãs. Morreu em 4 de junho de 1941, menos de três semanas antes de Hitler invadir a Rússia, e está sepultado em Doorn.[14]

Foi ele o culpado pela Grande Guerra? Foi Tirpitz? Grey? Moltke? Berchtold? Poincaré? Ou não há ninguém a quem culpar? Em vez disso, devemos prestar atenção a instituições ou ideias? Estados-maiores com poder demais, governos absolutistas, darwinismo social, o culto da ofensiva, nacionalismo? Há muitas perguntas e outras tantas respostas. Talvez o máximo que possamos almejar seja compreender, tanto quanto nos for possível, aqueles indivíduos que tiveram de fazer as opções entre guerra e paz, suas forças e fraquezas, seus amores, ódios e tendências. Para isso, precisamos entender também o seu mundo e as suas premissas. Devemos lembrar, como lembraram os que tomaram as decisões, o que aconteceu antes da crise de 1914 e as lições colhidas nas crises do Marrocos e da Bósnia, e nos episódios das primeiras Guerras Balcânicas. O próprio sucesso da Europa em sobreviver àquelas crises anteriores gerou, por paradoxo, uma perigosa condescendência no verão de 1914, quando os mesmos dirigentes acreditaram que mais uma vez uma solução surgiria nos últimos instantes e a paz seria mantida. Se quisermos, daqui do século XXI, apontar culpados, de duas falhas podemos acusar quem levou a Europa à guerra. Primeiro, de falta de imaginação ao não perceberem quanto o conflito seria destrutivo; e segundo, falta de coragem para se impor aos que afirmavam não haver outra escolha que não fosse a guerra. Escolhas sempre há.”

[8] Smith, One Morning in Sarajevo, 264-8.

[9] Fuller, The Foe Within, cap. 8, passim.

[10] Craig, Germany, 1866-1945, 368.

[11] Cecil, Wilhelm II, 210-12.

[12] Ibid., 296.

[13] Joll, 1914, 6.

[14] Para uma boa descrição dos últimos anos de Wilhelm, ver Cecil, Wilhelm II, caps. 14-16