Editora: Companhia das letras
ISBN: 978-85-359-1581-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 584
Sinopse: Karen
Armstrong, “uma das principais autoridades em história das religiões na
atualidade” (revista Veja), analisa os movimentos fundamentalistas que se
desenvolveram nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e
islamismo. Seu ponto de partida é o ano de 1492, data em que ocorreram
episódios históricos decisivos para cristãos, muçulmanos e judeus.
Armstrong inicia o livro com a seguinte constatação: “Um
dos fatos mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção
militante, popularmente conhecida como 'fundamentalismo', dentro das grandes
tradições religiosas. Suas manifestações são às vezes assustadoras. Os fundamentalistas
não hesitam em fuzilar devotos no interior de uma mesquita, matar médicos e
enfermeiras que trabalham em clínicas de aborto, assassinar seus presidentes e
até derrubar um governo forte. [...] Democracia, pluralismo, tolerância
religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação entre Igreja e
Estado – nada disso lhes interessa”.
Discorrendo em estilo claro e ágil, apoiando-se numa
documentação excepcional e em ampla bibliografia, Armstrong constrói uma obra
indispensável aos que desejam compreender o impacto do fundamentalismo sobre a
economia, a política e a sociedade em geral.
“Um dos fatos mais alarmantes do século XX foi
o surgimento de uma devoção militante, popularmente conhecida como “fundamentalismo”,
dentro das grandes traduções religiosas. Suas manifestações são às vezes assustadoras.
Os fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos no interior de uma mesquita,
matar médicos e enfermeiras que trabalham em clínicas de aborto, assassinar seus
presidentes e até derrubar um governo forte. Os que cometem tais horrores constituem
uma pequena minoria, porém até os fundamentalistas mais pacatos e ordeiros são desconcertantes,
pois parecem avessos a muitos dos valores mais positivos da sociedade moderna. Democracia,
pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação
entre Igreja e Estado – nada disso lhe interessa. (...)
Antes de prosseguir, porém, cabe-nos fazer uma
breve-pausa para examinar o termo “fundamentalismo”. Os primeiros a utilizá-lo foram
os protestantes americanos que, no início do século XX, passaram a denominar-se
“fundamentalistas” para distinguir-se de protestantes mais “liberais”, que, a seu
ver, distorciam inteiramente a fé cristã. Eles queriam voltar às raízes e ressaltar
o “fundamental” da tradição cristã, que identificavam como a interpretação literal
das Escrituras e a aceitação de certas doutrinas básicas. Desde então aplica-se
a palavra “fundamentalismo” a movimentos reformadores de outras religiões. (...)
No início
de seu monumental Projeto Fundamentalista, em seis volumes, Martin E. Marty e R.
Scott Appleby afirmam que todos os “fundamentalismos” obedecem a determinado padrão.
São formas de espiritualidade combativas, que surgiram como reação a alguma crise.
Enfrentam inimigos cujas políticas e crenças secularistas parecem contrarias à religião.
Os fundamentalistas não veem essa luta como uma batalha política convencional, e
sim como uma guerra cósmica entre as forças do bem e do mal. Temem a aniquilação
e procuram fortificar sua identidade sitiada através do resgate de certas doutrinas
e práticas do passado. Para evitar contaminação, geralmente se afastam da sociedade
e criam uma contracultura; não são, porém, sonhadores utopistas. Absorveram o Racionalismo
pragmático da modernidade e, sob a orientação de seus líderes carismáticos, refinam
o “fundamental” a fim de elaborar uma ideologia que fornece aos fiéis um plano de
ação. Acabam lutando e tentando ressacralizar um mundo cada vez mais cético.”
“Em todos os tempos e em todas as tradições sempre
houve gente que combateu a modernidade de sua época. Entretanto o fundamentalismo
é um movimento do século XX por excelência. É uma reação contra a cultura científica
e secular que nasceu no Ocidente e depois se arraigou em outras partes do mundo.
O Ocidente criou um tipo distinto de civilização, totalmente inédito, que desencadeou
uma reação religiosa sem precedentes. Os movimentos fundamentalistas contemporâneos
têm uma relação simbiótica com a modernidade. Podem rejeitar o racionalismo científico
do Ocidente, mas não têm como fugir dele. A civilização ocidental mudou o mundo.
Nada – nem a religião – serão como antes. Em todo o planeta há pessoas lutando contra
essas novas condições e vendo-se obrigadas a reafirmar suas tradições religiosas,
que foram concebidas para um tipo de sociedade inteiramente diverso.”
“O exílio é um deslocamento físico e espiritual.
Seu mundo é inteiramente desconhecido e, portanto, não tem significado. Uma extirpação
violenta, que nos priva de todos os nossos esteios normais, despedaça nosso mundo,
arranca-nos de lugares repletos de lembranças cruciais para nossa identidade e nos
joga para sempre num ambiente estranho”.
“Apesar de seu extraordinário sucesso na esfera
prática, o pensamento racional não consegue aliviar a dor.”
“Deus era a Causa Primeira de todo ser, cuja existência Aristóteles demonstrara
logicamente. Deus sempre se comportava de forma totalmente racional. Não interferia
aleatoriamente na história humana; não subvertia as leis da natureza com milagres
bizarros; não ditava leis obscuras no cume das montanhas. Não precisava revelar
um código legal específico, pois as leis da natureza estão ao alcance de todos.
Esse era o tipo de divindade que a razão humana tende naturalmente a imaginar, e
no passado filósofos judeus e muçulmanos conceberam algo muito semelhante. Mas essa
divindade nunca agradou os devotos em geral. Não tinha utilidade religiosa, pois
duvidava-se que a Causa Primeira sequer soubesse da existência dos seres humanos,
já que só podia contemplar a perfeição. Não servia para mitigar o sofrimento. Isso
requeria uma espiritualidade mítica e cultual que os marranos desconheciam.”
“O pensamento mitológico olha para trás, não para
a frente. Volta sua atenção para as origens sagradas, para um acontecimento primordial
ou para as bases da vida humana. Em vez de buscar algo novo, o mito se concentra
no que é constante. Não nos transmite “novidades”, mas nos fala do que sempre foi;
tudo que importa já foi realizado e pensado. Vivemos do que disseram nossos ancestrais,
principalmente nos textos sagrados que contêm tudo o que precisamos saber. Essa
era a espiritualidade do período conservador. O culto, as práticas rituais e as
narrativas míticas não só davam aos indivíduos a sensação de que tudo faz sentido
– sensação que repercutia em seu inconsciente mais profundo –, como reforçavam a
atitude essencial à sobrevivência da economia agrária e de suas inerentes limitações.
Como o fiasco de Shabbetai Zevi mostrou tão claramente, o mito não tem de desencadear
mudanças concretas. Ele cria uma disposição mental que se adapta e conforma com
as coisas como são. Isso era essencial numa sociedade que não podia comportar inovações
desenfreadas.
Assim como é difícil – até mesmo impossível –
para a sociedade ocidental, que institucionalizou as mudanças, compreender inteiramente
o papel da mitologia, assim também é muito difícil – talvez impossível para a espiritualidade
conservadora aceitar a dinâmica progressista da cultura moderna. Também é extremamente
difícil para os modernistas entenderem pessoas que ainda se orientam por valores
míticos tradicionais. No mundo islâmico de hoje alguns muçulmanos se preocupam muito
com duas coisas. Primeiro, abominam o secularismo da sociedade ocidental, que separa
a religião da política, a Igreja do Estado. Segundo gostariam de ver suas sociedades
governadas de acordo com a Shariah, a lei sagrada do Islã. Isso é terrivelmente
desconcertante para quem se criou no espírito moderno e teme, com razão, que o poder
clerical freie os progressos constantes, fundamentais para uma sociedade saudável.
Para esse indivíduo a separação entre Igreja e Estado representou uma libertação,
e a ideia de uma instituição inquisitorial, fechando as portas do ijtihad
(raciocínio independente), provoca-lhe calafrios. Da mesma forma a ideia de uma
lei revelada pela divindade é incompatível com o etos moderno. Os secularistas modernos
repudiam a noção de uma lei inalterável, imposta à humanidade por um ser sobre-humano.
Consideram a lei um produto do logos, e não do mythos; a lei é racional
e pragmática e deve ser modificada de quando em quando para adequar-se às circunstâncias.
No que diz respeito a essas questões cruciais um abismo separa, portanto, o modernista
do fundamentalista muçulmano.”
“Não houve separação entre a religião e o Estado.
Maomé foi, ao mesmo tempo, profeta e chefe político da comunidade. Reza o Alcorão,
as escrituras reveladas que ele transmitiu aos árabes no começo do século VII, que
o primeiro dever de um muçulmano consiste em construir uma sociedade justa e igualitária,
onde os pobres e os fracos sejam tratados com respeito. Isso demanda uma jihad
(palavra que se deve traduzir por “luta” ou “esforço”, não por “guerra santa”, como
pensam geralmente os ocidentais) em todas as frentes: espiritual, política, social,
pessoal, militar e econômica. Organizando a vida inteira de modo que Deus tenha
prioridade e seus planos para a humanidade se concretizem plenamente, os fiéis chegarão
a uma integração pessoal e social que lhes permitirá vislumbrar a unidade que é
Deus. Isolar um setor da vida e declará-lo fechado para esse “esforço” religioso
equivaleria a uma chocante violação do princípio de unificação (tawhid),
que vem a ser a virtude cardeal do islamismo. Equivaleria a uma negação do próprio
Deus. Portanto, para um muçulmano devoto a política é o que os cristãos chamariam
de sacramento. Uma atividade que deve ser sacralizada para se tornar um canal do
divino.”
“A mesma coisa aconteceu no Irã, cuja história,
nesse período, é mais bem documentada que a do Egito. Quando conquistaram o Irã,
no começo do século XVI, os Safávidas fizeram do xiismo a religião oficial do Estado.
Até então o xiismo era um movimento esotérico intelectual e místico, e seus adeptos
tinham por princípio manter-se à margem da política. Sempre houve importantes (e
poucos) centros xiitas no Irã, porém a maioria de seus membros eram árabes, não
persas. O experimento dos Safávidas constituiu, portanto, uma extraordinária inovação.
Sunitas e xiitas se diferenciavam no tocante à postura, não à doutrina. A visão
da história muçulmana era basicamente otimista entre os sunitas e mais trágica entre
os xiitas, para os quais o destino dos descendentes de Maomé se convertera num símbolo
da luta cósmica entre o bem e o mal, a justiça e a tirania, com os maus prevalecendo.
Enquanto os sunitas transformaram a vida do Profeta em mito, os xiitas mitificaram
a vida de seus descendentes.
Quando Maomé morreu, em 632, a questão de sua
sucessão estava em aberto, e a maioria da ummah elegeu para o califado seu
amigo Abu Bakr. Alguns acreditavam, porém, que o Profeta preferiria ter como sucessor
Ali ibn Abi Talib, que era seu parente mais próximo (primo e genro), além de seu
pupilo. Preterido em várias eleições, Ali finalmente se tornou o quarto califa,
em 656. Os xiitas, contudo, não reconhecem os três primeiros califas e o chamam
de Primeiro Imame (“líder”). Indubitavelmente piedoso, Ali escreveu a seus dignitários
cartas inspiradoras, enfatizando a importância do governo justo. Em 661 foi assassinado
por um extremista muçulmano, e tanto sunitas quanto xiitas lamentaram o trágico
acontecimento. Seu rival, Muawiyyah, assumiu o califado e fundou a dinastia dos
Omíadas, com sede em Damasco. Hasan, o primogênito de Ali, a quem os xiitas chamam
de Segundo imame, abandonou a política e em 669 morreu em Medina. Quando o califa
Muawiyyah faleceu, em 680, ocorreram em Kufa, no Iraque, grandes manifestações favoráveis
a Husain, o segundo filho de Ali. A fim de evitar represálias por parte dos Omíadas,
Husain se refugiou em Meca, mas o novo califa Omíada, Yazid, enviou emissários para
assassiná-lo, profanando, assim, a cidade santa. Considerando a necessidade de posicionar-se
contra esse governante injusto e ímpio, Husain, o Terceiro Imame dos xiitas, partiu
para Kufa, com um pequeno grupo de cinquenta seguidores, que levaram suas esposas
e filhos. Acreditava que o pungente espetáculo da família do Profeta marchando em
oposição à tirania reconduziria a ummaha uma prática mais autêntica do islamismo.
Mas durante o jejum sagrado do Ashura, o décimo dia do mês de Muharram, tropas dos
Omíadas cercaram e massacraram o pequeno exército de Husain na planície de Kerbala,
arredores de Kufa. Husain foi o último a morrer, segurando nos braços seu filho,
ainda bebê.
A tragédia de Kerbala teria seu próprio culto
e se tornaria um mito, um fato intemporal na vida de todo xiita. Yazid se converteu
num emblema da tirania e da injustiça; no século X os xiitas comemoravam anualmente
o martírio de Husain no jejum do Ashura, quando choravam, espancavam-se e declaravam
sua eterna oposição à corrupção da política muçulmana. Poetas escreveram elegias
em homenagem aos mártires, Ali e Husain. Assim os xiitas criaram uma devoção de
protesto, centrada no mythos de Kerbala. O culto mantinha vivo um apaixonado
anseio de justiça social que está no âmago da visão xiita. Quando marcham em procissão
solene durante os rituais do Ashura, os xiitas proclamam sua determinação de seguir
Husain e até mesmo morrer na luta contra a tirania.”
“Calvino não via contradição entre a ciência e
as Escrituras. Em sua opinião a Bíblia não fornece informações literais sobre geografia
ou cosmologia, mas tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados
seres humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma simplificação
deliberada de uma verdade complexa demais para ser articulada de outro modo.”
“Blaise Pascal (1623-62), matemático francês fervorosamente
religioso, apavorava-se com o vazio e o “eterno silêncio” do universo infinito criados
pela ciência moderna:
Quando vejo a cegueira e a miséria humana, quando
esquadrinho todo o universo em sua inércia e o homem abandonado à própria sorte,
sem luz, como se estivesse perdido nesse canto do universo, sem saber quem o pôs
ali, o que tem de fazer, o que será dele quando morrer, incapaz de saber qualquer
coisa, fico aterrorizado, como alguém que, dormindo, foi transportado para uma apavorante
ilha deserta e, ao despertar, se vê perdido, sem ter como escapar. Então me admiro
que tamanha miséria não leve as pessoas ao desespero.”
“Pois enquanto esses teólogos, filósofos e historiadores
proclamavam a supremacia da razão, o racionalista alemão Immanuel Kant (1724-1804)
desestabilizava todo o projeto do Iluminismo. Por um lado, pronunciou mais uma das
declarações de independência dos primórdios da modernidade. Devíamos ter a coragem
de procurar a verdade por nós mesmos, sem depender mais de mestres, igrejas e autoridades.
“O esclarecimento é o êxodo da tutela a que o homem se sujeita”, escreveu. “A tutela
é a incapacidade de usar o próprio entendimento sem a orientação de ninguém”. Por
outro lado, contudo, na Crítica da razão pura (1781), Kant nos diz que não podemos
ter certeza de que existe alguma relação entre a ordem que julgamos discernir na
natureza e a realidade exterior. Essa “ordem” é mera criação de nossa mente; até
as chamadas leis científicas de Newton provavelmente nos falam mais da psicologia
humana que do cosmo. Quando, através dos sentidos, recebe informações sobre o mundo
físico exterior, a mente precisa reorganizá-las de acordo com suas estruturas internas
a fim de compreendê-las. Kant confiava na capacidade da mente de criar para si mesma
uma visão racional viável, mas, ao mostrar a impossibilidade de escaparmos de nossa
própria psicologia, também deixou claro que não há verdade absoluta. Todas as nossas
ideias são essencialmente subjetivas e interpretativas. Enquanto Descartes via a
mente humana como o único e solitário habitante de um universo morto, Kant cortou
o laço entre nós e o mundo e nos encerrou dentro de nossas próprias cabeças. Ao
mesmo tempo em que libertou a humanidade da tutela, trancafiou-a numa nova prisão.
Como sói acontecer, a modernidade tirava com uma das mãos o que dava com a outra.
A razão esclarecia e emancipava, mas também podia afastar os homens do mundo que
eles estavam aprendendo a controlar tão efetivamente.”
“Para Karl Marx (1818-83) a religião constitui
um sintoma de uma sociedade enferma, um ópio que torna suportável o sistema social
doente e elimina a vontade de encontrar a cura, afastando a atenção desde mundo
para o outro.”
“Tanto os reformadores quanto os estudiosos da
Ciência do judaísmo estavam preocupados com a sobrevivência de sua religião num
mundo que parecia disposto a destruí-la. Ao ver outros judeus dirigirem-se para
a pia batismal, temiam pelo futuro de sua crença e tentavam desesperadamente encontrar
modos de mantê-la viva. As mesmas apreensões estão presentes hoje em dia. Nas três
religiões monoteístas há um medo recorrente de que a fé tradicional esteja correndo
perigo mortal. Um dos terrores humanos mais viscerais é o da aniquilação, e dele
derivam muitos dos movimentos religiosos que surgiram na modernidade. À medida que
o espírito secular se impõe e o racionalismo se torna mais hostil à fé, os fiéis
assumem uma postura cada vez mais defensiva e sua espiritualidade adquire um caráter
mais combativo.”
“O fundamentalismo – judaico, cristão ou muçulmano
– raramente surge como uma luta contra um inimigo externo; em geral começa como
uma luta interna travada pelos tradicionalistas contra os próprios correligionários
que, a seu ver, estão fazendo demasiadas concessões ao mundo secular. Com frequência
os fundamentalistas reagem instintivamente à invasão da modernidade criando um enclave
de fé pura, como uma yeshiva*. Dessa maneira assinalam sua retirada do mundo
profano para uma comunidade autocontida, onde tentam redefinir a existência a despeito
das mudanças ocorridas a sua volta. Trata-se de uma postura essencialmente defensiva,
que, contudo, traz em si potencial suficiente para urna futura contra-ofensiva.”
* Yeshiva: Palavra derivada do verbo “sentar”;
academia judaica religiosa cujos alunos estudam o Talmude e outras obras
da literatura rabínica.
“Parece que para conduzir um povo ao mundo moderno
seu líder deve estar disposto a chafurdar em sangue. Na falta de instituições estáveis
e democráticas, a violência pode ser o único meio de implantar um governo forte.”
“Infelizmente a busca de uma identidade distinta
muitas vezes coexiste com o terror de um “outro” estereotipado, visto como antagonista.
O medo paranoico de conspiração continuaria caracterizando a reação aos transtornos
da modernização e se evidenciaria de modo especial nos movimentos fundamentalistas
de judeus, cristãos e muçulmanos, que cultivariam uma imagem distorcida e em geral
perniciosa de seus inimigos, por vezes retratados como satanicamente maus.”
“O uso do véu não é original nem fundamental no
Islã. O Alcorão não ordena que todas as mulheres cubram a cabeça, e o hábito de
velá-las e isolá-las nos haréns só se difundiu no mundo islâmico cerca de três gerações
após a morte do Profeta, quando os muçulmanos começaram a imitar os cristãos de
Bizâncio e os zoroastristas da Pérsia, que desde longa data tratavam suas mulheres
dessa forma. Nem todas, porém, usavam o véu, que, sendo indicador de status, estava
restrito às camadas superiores. (...)
Os observadores ocidentais se alarmaram com a
retomada do véu, que desde a época de Lord Cromer consideravam um símbolo do atraso
e do patriarcado árabes. Não pensavam assim as mulheres muçulmanas que voluntariamente
assumiam o traje islâmico por motivos de ordem prática e também como um modo de
rejeitar uma identidade ocidental. O véu, a echarpe e a túnica longa podiam simbolizar
aquela “volta para si mesmos” que os islamistas tentavam realizar com tanta dificuldade
no período pós-colonial. Afinal, o traje ocidental nada tem de sagrado. O desejo
de ver todas as mulheres usando-o devera-se à tendência de considerar “o Ocidente”
como a norma que “o resto do mundo” tem de seguir. Ao longo dos anos a mulher velada
passara a representar a autoafirmação do Islã e sua rejeição da hegemonia cultural
do Ocidente. Ao optar por esconder-se, ela desafia os costumes sexuais do Ocidente,
com sua estranha compulsão para “mostrar tudo”. Enquanto os ocidentais tentam submeter
o corpo ao controle da vontade, dedicando-se à ginástica e aos exercícios físicos,
e, apegados a esta vida, procuram torná-lo imune ao processo do tempo e do envelhecimento,
o corpo encoberto do muçulmano tacitamente declara sua obediência a ordens divinas
e sua orientação para a transcendência, não para este mundo. Enquanto os ocidentais
com frequência expõem e até exibem como um privilégio o corpo dispendiosamente bronzeado
e finamente esculpido, o corpo do muçulmano, envolto em roupas muito semelhantes,
enfatiza a igualdade da visão islâmica e afirma o ideal de comunidade, presente
no Alcorão, em oposição ao individualismo da modernidade ocidental. Mais ou menos
como as comunas de Shukri Mustafa, a muçulmana velada constitui uma crítica tácita
ao lado mais sombrio do espírito moderno.”
“Mas os imperativos morais e espirituais da religião
são importantes para a humanidade, e não se deve relegá-los impensadamente à lata
de lixo da história para atender aos interesses de um racionalismo desenfreado.
A relação entre ciência e ética continua sendo um tema crucial.”
“Em nossa história veremos com frequência que
o comportamento religioso de pessoas que não se beneficiaram particularmente com
a modernidade traduz uma necessidade ardente do espiritual, tantas vezes excluído
ou marginalizado numa sociedade secularista.”
“Abraham Yitzak Kook morreu em 1935, treze anos
antes da criação do Estado de Israel. Não soube dos terríveis expedientes que os
judeus utilizaram para fundar seu Estado na Palestina árabe. Não testemunhou a expulsão
de 750 mil palestinos de suas casas, em 1948, nem o derramamento de sangue árabe
e judeu nas guerras entre os dois povos. Tampouco teve de encarar o fato de que,
cinquenta anos após a criação do Estado de Israel, a maioria dos judeus da Terra
Santa ainda seria secularista.”
“Depois da 1ª Guerra Mundial, o Império Otomano,
que lutara ao lado da Alemanha, foi derrotado pelos aliados europeus, que o desmembraram
e estabeleceram mandatos e protetorados em suas antigas províncias. Os gregos invadiram
a Anatólia e o velho núcleo otomano. De 1919 a 1922, Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938)
comandou as forças nacionalistas turcas numa guerra de independência e conseguiu
manter os europeus fora da Turquia e criar um Estado soberano, governado em conformidade
com os modernos padrões europeus. Foi um fato inédito no mundo islâmico. Em 1947
a Turquia possuía uma burocracia eficiente e uma economia capitalista e era a primeira
democracia secular pluripartidária do Oriente Médio. Mas esse processo se iniciou
com uma limpeza étnica. Entre 1894 e 1927 sucessivos governos otomanos e turcos
sistematicamente expulsaram, deportaram ou massacraram os gregos e armênios que
viviam na Anatólia; queriam livrar-se desses estrangeiros, que correspondiam à cerca
de noventa por cento da burguesia. Além de conferir ao novo Estado uma identidade
nacional distintivamente turca, o expurgo proporcionou a Atatürk a oportunidade
de criar uma classe comercial inteiramente turca, que cooperaria com seu governo
na implantação de uma economia industrializada moderna. O extermínio de 1 milhão
de armênios, no mínimo, foi o primeiro genocídio do século XX e mostrou que, como
temia o rabino Kook, o nacionalismo secular podia ser letal e certamente tão perigoso
quanto as cruzadas e os expurgos conduzidos em nome da religião. (...)
O Holocausto (também) mostrou, no mínimo, que
uma ideologia secularista podia ser tão mortífera quanto uma cruzada religiosa.”
“(...) e o ódio geralmente acompanha um amor não
admitido.”
“Mas todo movimento que começa matando em nome
de Deus toma um rumo niilista que nega os valores religiosos mais fundamentais.”
“O programa do xá Reza Shah era inevitavelmente
superficial. Simplesmente sobrepunha instituições modernas a velhas estruturas agrárias
– uma estratégia que falhara no Egito e falharia aqui também. Os noventa por cento
da população que viviam da agricultura foram ignorados e continuavam utilizando
métodos tradicionais e improdutivos. A sociedade não passou por nenhuma reforma
fundamental. Reza não tinha o menor interesse pelos sofrimentos dos pobres, e, enquanto
o Exército abocanhava cinquenta por cento do orçamento, a educação, que continuava
sendo privilégio dos ricos, ficava com apenas quatro por cento. Como no Egito, duas
nações estavam surgindo no Irã e entendendo-se cada vez menos. Uma “nação” compreendia
a pequena elite ocidentalizada das classes alta e média, que se beneficiara com
o programa de modernização; a outra consistia na vasta massa dos pobres, que, confusos
com o novo nacionalismo secular do regime, dependiam como nunca da orientação dos
ulemás. (...)
No início da década de 1970 o Irã parecia florescer.
Investidores americanos e a elite iraniana ganharam fortunas com os novos negócios
criados pela Revolução Branca. Longe de ser um centro de espionagem (como diriam
os revolucionários), a embaixada dos Estados Unidos em Teerã era um centro de corretagem
que colocava americanos ricos em contato com iranianos ricos. No entanto – mais
uma vez – só a elite se beneficiava. O Estado prosperava, a população empobrecia.
Havia um consumismo desenfreado nas camadas mais altas da sociedade e corrupção
e privação entre os pequeno-burgueses e os pobres dos centros urbanos. À alta do
preço do petróleo, em 1973-74, seguiu-se uma terrível inflação, devida à falta de
oportunidade de investimentos para todos, exceto para os muito ricos. Um milhão
de trabalhadores estavam desempregados, muitos comerciantes se arruinaram com o
influxo de produtos estrangeiros, e em 1977 a inflação começou a afetar os ricos.
Nesse clima de descontentamento e desespero, as duas principais organizações guerrilheiras
entraram em ação, assassinando militares e consultores americanos. Havia muito ressentimento
contra os americanos sediados no Irã, que pareciam lucrar com o caos. Nessa época
o regime do xá se tornou mais tirânico e autocrático que nunca. (...)
Os americanos se escandalizaram ao ver sua nação
qualificada de satânica durante e após a Revolução iraniana. Mesmo os que sabiam
da aversão que muitos iranianos sentiam pelos Estados Unidos desde o golpe da CIA,
em 1953, repudiaram essa imagem demoníaca. Por mais equivocada que fosse, a política
americana não merecia ser condenada dessa maneira. Tal condenação apenas confirmava
o que geralmente se pensava dos revolucionários iranianos: que eram todos fanáticos,
histéricos e desequilibrados. Entretanto a maioria dos ocidentais não entendeu a
imagem do Grande Satã. No cristianismo Satã representa o mal esmagador, porém no
islamismo é uma figura muito mais controlável. O Alcorão até sugere que ele acabará
sendo esquecido no fim dos tempos, tamanha é sua confiança na infinita bondade divina.
Os iranianos que chamavam os Estados Unidos de “Grande Satã” não estavam classificando-os
de diabolicamente malvados, e sim dizendo algo mais preciso. No xiismo popular Shaitan,
o Tentador, é uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de apreciar os valores
espirituais do mundo invisível. Uma história o mostra reclamando dos privilégios
que Deus conferiu aos humanos e dos dons inferiores que lhe couberam. Shaitan não
tem profetas, contenta-se com adivinhos, faz do bazar sua mesquita, sente-se mais
à vontade nos banhos públicos e, em vez de buscar Deus, procura vinho e mulheres.
É irremediavelmente trivial, está preso para sempre no mundo exterior (zahir*)
e não compreende que a existência possui uma dimensão mais profunda e mais importante.
Para muitos iranianos os Estados Unidos, o Grande Shaitan, eram “o Grande Trivializador”.
Os bares, os cassinos e o etos secularista da ocidentoxicada zona norte de Teerã
representavam o etos americano, que parecia ignorar deliberadamente as realidades
ocultas (batin**) que dão sentido à vida. Ademais, o Grande Shaitan tentara
o xá até afastá-lo dos verdadeiros valores islâmicos e levá-lo a um superficial
secularismo.
Embora soubessem que muitos americanos eram religiosos,
não viam sentido em sua fé. O “interior” e o “exterior” de Jimmy Carter não eram
“idênticos”. Os iranianos não compreendiam como o presidente podia continuar apoiando
um governante que em 1978 começara a matar seu próprio povo. “Não esperávamos que
Carter defendesse o xá, pois ele é um homem religioso, que empunha a bandeira dos
direitos humanos”, declarou o aiatolá Husain Montazeri a um entrevistador depois
da Revolução. “Como Carter, o cristão devoto, pode defender o xá?”.”
Zahir*: (árabe). “Manifesto”;
as manifestações exteriores de Deus e o mundo exterior; também o significado literal
das escrituras, em oposição a batin.
Batin**: (árabe) A dimensão
“oculta” da existência e da religião, percebida pelas disciplinas místicas e intuitivas,
não pelos sentidos e pelo pensamento racional.
“Em janeiro de 1982 cristãos de St. David's, no
Arizona, conseguiram banir de suas escolas obras de William Golding, John Steinbeck,
Joseph Conrad e Mark Twain. Em 1981 Mel e Norma Gabler (também membros da direita
cristã) deram início a uma campanha semelhante para “reintroduzir Deus nas escolas”
do Texas. Reprovavam a “postura liberal” evidente em
questões abertas que levam os alunos a tirar conclusões
próprias; declarações sobre outras religiões, que não o cristianismo; declarações
concebidas para desabonar o sistema de livre empresa; declarações concebidas para
refletir aspectos positivos dos países socialistas ou comunistas (por exemplo, que
a União Soviética é o maior produtor mundial de determinados cereais); qualquer
aspecto da educação sexual que não o incentivo à abstinência; declarações que enfatizam
contribuições feitas por negros, índios, americanos-mexicanos ou feministas; declarações
favoráveis aos escravos americanos e desfavoráveis a seus senhores; e declarações
favoráveis à teoria da evolução, a menos que se conceda o mesmo espaço à teoria
da criação.”
“O movimento Reconstrução, fundado pelo economista
texano Cary North e por seu genro, Rousas John Rushdoony, também trava uma guerra
contra o humanismo secular, porém é mais radical que a Maioria Moral. Os reconstrucionistas
trocaram o velho pessimismo pré-milenarista por uma ideologia mais empolgante. Como
os muçulmanos fundamentalistas, North e Rushdoony se preocupam basicamente com a
soberania divina. É preciso implantar uma civilização cristã que derrote o diabo
e inaugure o Reino de mil anos. O conceito-chave do movimento é domínio. Deus confiou
a Adão e depois a Noé a missão de dominar o mundo. Os cristãos herdaram essa missão
e cabe-lhes a responsabilidade de instituir o reinado de Jesus antes de sua Segunda Vinda. No entanto não
terão de fazer nada nesse sentido, pois o próprio Deus destruirá o Estado moderno
numa terrível catástrofe. Os cristãos apenas colherão os louros da vitória divina.
Entrementes, os reconstrucionistas se preparam
para assumir o poder, quando o Estado secular humanista deixar de existir. Seu abandono
do etos da compaixão constitui uma distorção total do cristianismo. Quando o Reino
vier, não haverá mais separação entre Igreja e Estado; a moderna heresia da democracia
desaparecerá, e a sociedade será reorganizada em termos estritamente bíblicos. Em
outras palavras, todas as leis da Bíblia passarão a vigorar literalmente. Ocorrerão
o restabelecimento da escravidão, o fim do controle da natalidade (pois os crentes
devem “crescer e multiplicar-se”), a execução de adúlteros, homossexuais, blasfemos,
astrólogos e bruxos. Os filhos desobedientes serão apedrejados, como ordena a Bíblia.
Implantar-se-á uma economia rigorosamente capitalista; os socialistas e os esquerdistas
em geral são pecadores. Deus não está do lado dos pobres. Na verdade, diz North,
existe uma “estreita relação entre maldade e pobreza”. Não se empregarão verbas
de impostos em programas de bem-estar social, pois “sustentar vagabundos é sustentar
o mal”. O mesmo princípio vale para o Terceiro Mundo, que provocou os próprios problemas
econômicos com seu gosto pela perversidade moral, pelo paganismo e pela demonologia.
A Bíblia proíbe a ajuda estrangeira. Enquanto aguardam a vitória – que talvez demore,
admite North –, os cristãos devem preparar-se para reconstruir a sociedade em conformidade
com o plano divino e apoiar as políticas governamentais que se aproximem dessas
normas bíblicas.
O domínio imaginado por North e Rushdoony é totalitário.
Não deixa margem a outras opiniões ou políticas, à tolerância democrática, à liberdade
individual. Naturalmente a possibilidade de essa teologia se popularizar nos Estados
Unidos é remota; mas já se aventou a hipótese de, no caso de uma catástrofe ambiental
ou econômica, um Estado eclesiástico autoritário substituir o regime liberal do
Iluminismo. Afinal, o cristianismo conseguiu adaptar-se ao capitalismo, que contraria
muitos dos ensinamentos de Cristo. Também poderia ser usado para sustentar uma ideologia
fascista, que, em circunstâncias drasticamente modificadas, talvez se tornasse necessária
à manutenção da ordem pública.”
“A religião não desapareceu, afinal, e em alguns
círculos se tornou mais militante que nunca. Os fundamentalistas judeus, cristãos
e muçulmanos têm reagido furiosamente às tentativas de privatizar ou suprimir a
religião e acreditam que a resgataram do esquecimento. No decorrer de sua árdua
luta muitas vezes distorceram a fé – o que representa uma derrota para a religião.
Mas hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno. Representa uma decepção,
uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar
sem correr risco. Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram
muito sucesso; que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais
criativamente, no futuro, os medos que o fundamentalismo encerra?”
“É importante reconhecer que as teologias e ideologias
fundamentalistas se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras,
fixar limites e segregar os fiéis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observância
da lei, deve-se ao pavor da extinção que, neste ou naquele momento, levou todos
os fundamentalistas a crer que os secularistas estavam prestes a exterminá-los.
Um liberal acha o mundo moderno empolgante; um fundamentalista acha-o ímpio, sem
sentido e até satânico. O terapeuta sem dúvida qualificaria de perturbado o paciente
que lhe apresentasse essas fantasias paranoicas de conspiração e vingança. A visão
pré-milenarista, que considera diabólicas algumas das instituições modernas mais
positivas, acalenta sonhos genocidas e acredita que a humanidade caminha rapidamente
para um fim horrendo, demonstra nitidamente o terror e a frustração que a modernidade
provoca em muitos fundamentalistas protestantes. Vimos o niilismo que pode inspirar
o programa fundamentalista. É impossível dissipar esse medo através da razão ou
de medidas coercivas. Uma solução mais criativa consistiria em procurar avaliar
a profundidade de tal neurose, ainda que o liberal ou secularista não consiga partilhar
a mesma perspectiva determinada pelo pavor.”
“Por ser tão combativa, essa campanha pela ressacralização
da sociedade se tornou agressiva e distorcida. Não tinha a compaixão que, para todas
as crenças, é essencial à vida religiosa e à experiência do divino. Ao contrário,
pregava uma ideologia de exclusão, de ódio e até de violência. Mas os fundamentalistas
não detinham o monopólio da fúria. Seus movimentos com frequência se desenvolveram
numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito
pela religião e pelos devotos. Às vezes parece que os secularistas e fundamentalistas
estão presos numa espiral de hostilidade e recriminações. Se os fundamentalistas
precisam avaliar seus inimigos mais compassivamente, para manterem-se fiéis as suas
tradições religiosas, os secularistas também precisam cultivar mais a benevolência,
a tolerância e o respeito pela humanidade que caracteriza a cultura moderna no que
tem de melhor, e analisar com maior empatia os medos, ansiedades e necessidades
que muitos de seus semelhantes fundamentalistas sentem, mas que nenhuma sociedade
pode ignorar sem correr riscos.”