quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Fundação (01): Fundação, de Isaac Asimov

Editora: Aleph

ISBN: 978-85-7657-197-1

Tradução: Fábio Fernandes

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 299

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Sinopse: Obra-prima de Isaac Asimov, a trilogia da Fundação recebeu o histórico prêmio Hugo de Melhor série de ficção científica e fantasia de todos os tempos.

Baseada no clássico Declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon, a trilogia sedimentou seu autor como um dos maiores escritores do gênero e influenciou outras mentes geniais, como Carl Sagan, Steven Spielberg, George Lucas, o nobel de economia Paul Krugman, Elon Musk.

A humanidade está em risco. Uma ciência revolucionária prevê uma longa e inevitável era de trevas e barbárie. Para evitar que isso aconteça, o chamado plano Seldon é colocado em prática ao longo de séculos, e percorre a história da galáxia, prevendo conflitos de nossa civilização. Mas poderá o comportamento humano obedecer a um padrão científico?


“P. O senhor não considera sua declaração como sendo desleal?

R. Não, senhor. A verdade científica está além de lealdade e deslealdade.”

 

 

“– É mesmo? É uma bela de uma alucinação, não é? Seu grupo aqui é um exemplo perfeito do que andou errado com toda a galáxia por milhares de anos. Que espécie de ciência é ficar aqui, preso por séculos, classificando a obra de cientistas do milênio passado? Vocês já pensaram em trabalhar olhando para a frente, estendendo o conhecimento deles e o aprimorando? Não! Vocês estão estagnados e felizes. Toda a Galáxia está assim e sabe lá o espaço há quanto tempo. É por isso que a Periferia está se revoltando; é por isso que as comunicações estão se deteriorando; é por isso que guerras mesquinhas estão se tornando eternas; é por isso que sistemas inteiros estão perdendo a energia nuclear e voltando a técnicas bárbaras da energia química. Se vocês querem saber a minha opinião – ele gritou – o Império Galáctico está morrendo!

 

 

“– Por que passar por todas as cerimônias da audiência oficial do prefeito? Estou ficando muito velho para toda pompa. Além do que, lisonjas são úteis quando você lida com jovens... particularmente quando não se compromete com nada.”

 

 

“– Suas opiniões são suas, é claro. Mas o senhor ainda é muito jovem.

– É um defeito do qual a maioria das pessoas é culpada em algum momento de suas vidas – foi a resposta seca.”

 

 

“– Agora é um pouco tarde para falar de ameaças – Wienis havia olhado rapidamente para o relógio em sua mesa. – Escute aqui, Hardin, você já esteve em Anacreon uma vez antes. Na época você era jovem; ambos éramos jovens. Mas, mesmo então, já tínhamos maneiras diferentes de olhar para as coisas. Você é o que chamam de homem de paz, não é?

– Suponho que sim. Pelo menos, considero a violência um meio não econômico de se atingir um objetivo. Existem sempre melhores substitutos, embora eles possam ser um pouco menos diretos.

– Sim. Já ouvi o seu famoso slogan: “A violência é o último refúgio do incompetente”. E, no entanto – o regente coçou uma orelha gentilmente numa abstração afetada –, eu não me chamaria exatamente de incompetente.”

 

 

“Não há mérito em disciplina sob circunstâncias ideais. Ou eu a tenho em face da morte, ou ela é inútil.”

O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3592-890-7

Tradução e posfácio: Maurício Santana Dias

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 384

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Sinopse: Itália, anos 1860, Risorgimento. Os fragmentados estados italianos estavam em um tormentoso processo de unificação, e o estabelecimento de uma nova ordem se mostrava cada vez mais pungente. Ambientado num universo intensamente melancólico e sensual e repleto de elementos de ironia e humor, O Leopardo acompanha a história de Dom Fabrizio Salina e de sua decadente família aristocrática siciliana – cujo brasão carrega inscrito o Leopardo que dá nome ao livro –, ameaçados pelas forças revolucionárias e democráticas durante os embates dessa transição. Nesse intrincado contexto, Salina precisa decidir como encarar as novas mudanças que se impõem tanto em sua vida pública como privada.

Único romance do escritor italiano, O Leopardo foi recusado por duas editoras e só veio a ser publicado um ano depois da morte de Lampedusa, em 1958, quando ganhou atenção da crítica e transformou-se num cultuado best-seller na Itália. Esta edição tem tradução e posfácio de Maurício Santana Dias e inclui textos do apêndice de Gioacchino Lanza Tomasi.

 

 

“Porque morrer por alguém ou por alguma coisa, tudo bem, é normal; mas é preciso saber ou, pelo menos, ter certeza de que se sabe por quem ou por que se morreu.”

 

 

“Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.”

 

 

“Mais uma vez o Príncipe se viu diante de um dos enigmas sicilianos. Nesta ilha secreta, onde as casas têm trancas e os camponeses dizem desconhecer o caminho que leva ao povoado em que vivem e que se avista bem ali, na colina, a dez minutos de estrada, nesta ilha, malgrado o ostensivo luxo de mistério, a discrição é um mito.

Fez sinal para que Russo se sentasse e o mirou fixo nos olhos: “Pietro, vamos falar de homem para homem, você também está metido nessas aventuras?”. Metido não estava, respondeu, era pai de família e esses riscos são coisa para jovens como o sr. Tancredi. “Eu jamais esconderia algo de Vossa Excelência, que é como meu pai.” (No entanto, três meses antes, havia escondido em seu depósito cento e cinquenta cestos de limões do Príncipe, e sabia que o Príncipe sabia.) “Mas devo dizer que meu coração está com eles, com esses rapazes valentes.” Ergueu-se para dar passagem a Bendicò, que fazia a porta tremer sob seu ímpeto amistoso. Tornou a sentar-se. “Vossa Excelência sabe, não é mais possível: buscas, interrogatórios, papeladas para qualquer coisa, um policial em cada canto; um cavalheiro não tem liberdade de cuidar do que é seu. Depois, em compensação, teremos liberdade, segurança, taxas mais brandas, facilidades, comércio. Todos estaremos melhor: só os padres vão perder. O Senhor protege os pobres coitados como eu, não eles.” Dom Fabrizio sorria: sabia que era justo ele, Russo, que desejava comprar Argivocale por meio de um intermediário. “Haverá dias de tiroteio e confusão, mas a vila Salina continuará segura como uma rocha; Vossa Excelência é nosso pai, e eu tenho muitos amigos aqui. Os Piemonteses vão entrar com o chapéu na mão, só para reverenciar Vossas Excelências. Que aliás é tio e tutor de Dom Tancredi!” O Príncipe sentiu-se humilhado: agora se via rebaixado à categoria de protegido dos amigos de Russo; seu único mérito, ao que parecia, era ser tio do moleque Tancredi. “Daqui a uma semana é capaz que minha vida seja salva só porque tenho Bendicò em casa.” Afagava uma orelha do cão entre os dedos com tanta força que o pobre animal gania, sem dúvida lisonjeado, mas sofrendo.

Pouco depois, algumas palavras de Russo lhe trouxeram certo alívio. “Tudo vai ser melhor, acredite em mim, Excelência. Os homens honestos e capazes poderão tomar a dianteira. O resto será como antes.” Essa gente, esses liberaizinhos rurais queriam um meio de se aproveitar mais facilmente. Apenas isso. As andorinhas bateriam asas mais cedo, e só. De resto, ainda havia muitas no ninho.

“Talvez você tenha razão. Quem sabe?” Agora havia penetrado todos os sentidos ocultos: as palavras enigmáticas de Tancredi, as enfáticas de Ferrara, as falsas mas reveladoras de Russo tinham franqueado seu reconfortante segredo. Muitas coisas ocorreriam, mas tudo seria uma comédia, uma comédia barulhenta e romântica com algumas manchas de sangue no figurino bufão. Este era o país das conciliações, não havia a fúria dos franceses; de resto, mesmo na França, com a exceção do Junho de Quarenta e Oito, quando acontecera algo de fato sério? Teve vontade de dizer a Russo, mas a cortesia inata o deteve: “Entendi perfeitamente: vocês não querem destruir a nós, que somos seus ‘pais’; querem apenas tomar nosso lugar. Com doçura, com boas maneiras, quem sabe pondo em nossos bolsos uns milhares de ducados. É assim? Seu sobrinho, meu caro Russo, vai acreditar sinceramente que é um barão; e você se tornará, sei lá, o descendente de um boiardo moscovita, graças a seu nome, e não o filho de um matuto de cabelo ruivo, como justamente seu nome revela. Antes disso sua filha desposará um de nós, quem sabe até o próprio Tancredi, com seus olhos azuis e suas mãos flexíveis. De resto, ela é linda, e uma vez que tenha aprendido a se lavar… ‘Para que tudo continue como está.’ Como está, no fundo: simplesmente uma lenta substituição de classes. Minhas chaves douradas de aristocrata de câmara, o cordão cereja de San Gennaro ficarão guardados na gaveta e depois vão parar numa vitrine do filho de Paolo, mas os Salina permanecerão os Salina; e talvez tenham até alguma compensação: o Senado da Sardenha, a fita pistache de San Maurizio. Penduricalhos estes, penduricalhos aqueles”.”

 

 

““Não somos cegos, caro Padre, somos apenas homens. Vivemos numa realidade movediça, à qual tentamos nos adaptar assim como as algas se dobram sob o impulso do mar. À Santa Igreja a imortalidade foi prometida explicitamente; a nós, como classe social, não. Para nós, um paliativo que prometa durar cem anos equivale à eternidade. Podemos até nos preocupar com nossos filhos, talvez com nossos netos; mas, para além do que podemos acariciar com estas mãos, não temos compromissos; e eu não posso me preocupar com os meus eventuais descendentes em 1960. A Igreja, sim, precisa cuidar disso, porque está destinada a não morrer. Em seu desespero, o conforto é implícito. E o senhor acredita que, se ela pudesse agora, ou no futuro, salvar a si mesma com nosso sacrifício, não o faria? Claro que sim, e faria bem”.”

 

 

“Despertado pelas primeiras luzes do dia, imerso no suor e no fedor, não pôde deixar de comparar aquela viagem asquerosa à sua vida, que de início avançara por planícies risonhas, depois subira por íngremes montanhas, atravessara gargantas ameaçadoras para enfim desembocar em intermináveis ondulações monocromáticas, desertas como o desespero. Essas fantasias de manhã cedo eram o que de pior poderia acontecer a um homem de meia-idade; e, embora Dom Fabrizio soubesse que se dissipariam com as atividades do dia, sofria agudamente com isso, porque já era experiente o bastante para saber que elas deixavam no fundo da alma um sedimento de luto que, acumulando-se a cada dia, acabaria sendo a verdadeira causa da morte.”

 

 

“O amor. Claro, o amor. Fogo e labaredas por um ano, cinzas por trinta.”

 

 

“A volúpia de gritar “a culpa é sua!” é a mais forte que uma criatura humana possa gozar.”

 

 

“Essas marchas no fio da navalha estavam de todo suspensas para o momento, junto a outros pensamentos, no arcaísmo perfumado do campo, se assim se podiam chamar os locais em que com tanta frequência caçava. No termo “campo” está implícito um sentido de terra transformada pelo trabalho: já o bosque, agarrado às encostas de uma colina, encontra-se no mesmo estado de entrelaçamento aromático em que o haviam encontrado Fenícios, Dórios e Jônios quando desembarcaram na Sicília, esta América da Antiguidade. Dom Fabrizio e Tumeo subiam, desciam, escorregavam e eram arranhados pelos espinhos tal e qual um Arquídamo ou um Filóstrato qualquer se cansaram e se arranharam vinte e cinco séculos antes; viam as mesmas árvores, o mesmo suor grudento banhava suas roupas, o mesmo indiferente vento sem trégua, marinho, movia os mirtos e as giestas, disseminava o cheiro do timo. As repentinas paradas pensativas dos cães e sua patética tensão à espera da presa eram idênticas às dos dias em que, para a caça, se invocava Ártemis. Reduzida a esses elementos essenciais, com o rosto lavado da maquiagem das preocupações, a vida se mostrava sob um aspecto tolerável.”

 

 

““A verdade, Excelência, é que dom Calogero é muito rico, e muito influente também; é sovina (quando a filha estava no colégio, ele e a esposa dividiam um ovo frito), mas sabe gastar quando necessário; e, como cada tarì gasto no mundo acaba no bolso de alguém, aconteceu que muita gente agora depende dele; mas é preciso reconhecer que, quando ele é amigo, é amigo; cede sua terra a quatro meeiros e os camponeses têm de suar sangue para pagar, mas um mês atrás emprestou cinquenta onças a Pasquale Tripi, que o tinha ajudado no período do desembarque; e sem juros, o que é o maior milagre que já se viu desde que Santa Rosalia acabou com a peste em Palermo. De resto, é inteligente feito o diabo; Vossa Excelência deveria ter visto o homem na primavera passada: corria para cima e para baixo em todo o território feito um morcego, de carroça, montado em mula, a pé, debaixo de sol ou de chuva; e por onde passava se formavam círculos secretos, preparava-se o caminho para os que estavam por vir. Um castigo de Deus, Excelência, um castigo de Deus! E só estamos vendo o início de sua carreira! Daqui a uns meses vai ser deputado em Turim, e daqui a uns anos, quando os bens da Igreja forem postos à venda na bacia das almas, ele vai arrematar os feudos de Marca e de Masciddàro e se tornar o maior proprietário da província. Esse é dom Calogero, Excelência, o homem novo como deve ser; mas é pena que deva ser assim”.”

 

 

“Aqueles foram os melhores dias da vida de Tancredi e Angelica, vidas que depois seriam tão distintas, tão pecaminosas sobre o fundo inevitável de dor. Mas eles no momento não o sabiam e perseguiam um futuro que supunham mais concreto, embora depois se mostrasse feito apenas de névoa e vento. Quando ficaram velhos e inutilmente sábios, seus pensamentos costumavam retornar àqueles dias com um lamento insistente: tinham sido os dias do desejo sempre presente porque sempre vencido, das muitas camas que se haviam oferecido e foram recusadas, do estímulo sensual que, justo por ter sido reprimido, num instante se sublimara em renúncia, isto é, em amor verdadeiro. Aqueles dias foram a preparação para o casamento deles que, mesmo no aspecto erótico, foi malsucedido; uma preparação que se conformou num conjunto autônomo, delicioso e breve: como aquelas sinfonias que sobrevivem às óperas esquecidas e que fazem referência, com uma graça velada de pudor, a todas as árias que, na ópera, seriam desenvolvidas sem destreza, até o fracasso.”

 

 

“Na manhã seguinte, Tancredi e Cavriaghi o levaram a passeio ao jardim, lhe mostraram a pinacoteca e a coleção de tapeçarias; também deram uma volta com ele pelo vilarejo; sob o sol cor de mel de novembro, tudo parecia menos sinistro que na noite anterior; depararam-se até com alguns sorrisos, e Chevalley de Monterzuolo começou a se tranquilizar em relação à Sicília rural. Tal fato foi notado por Tancredi, que logo se viu assaltado pela comichão típica dos nativos da ilha em contar aos forasteiros histórias assustadoras, infelizmente sempre verídicas. Passavam diante de um bizarro palácio cuja fachada trazia relevos grosseiros. “Esta, meu caro Chevalley, é a casa do barão Mùtolo; agora está vazia e fechada porque a família mora em Agrigento desde que o filho do barão foi sequestrado por bandoleiros, dez anos atrás.” O piemontês começava a tremer. “Coitado! Quem sabe quanto precisou pagar para ser libertado!” “Não, o barão não pagou nada; já estava em dificuldades financeiras, desprovido de dinheiro líquido, como todos aqui. Ainda assim o rapaz foi restituído, mas em parcelas.” “Como assim, Príncipe?” “Em parcelas, isso mesmo, em parcelas: pedaço por pedaço. Primeiro chegou o indicador da mão direita. Depois de uma semana, o pé esquerdo e, por fim, num belo cesto, sob uma camada de figos (era agosto), a cabeça; tinha os olhos arregalados e sangue seco no canto dos lábios. Eu não vi nada disso, na época era um menino; mas me disseram que o espetáculo não foi nada bonito. O cesto foi deixado naquele degrau ali, o segundo em frente à porta, por uma velha com um xale preto na cabeça: ninguém a reconheceu.” Os olhos de Chevalley se contraíram de desgosto; já tinha ouvido sobre aquele caso, mas agora, ver sob esse belo sol o degrau onde fora depositada a oferenda insólita, era outra coisa. Sua alma de funcionário o socorreu: “Que polícia incompetente a dos Bourbon. Em breve, quando nossos policiais estiverem aqui, tudo isso vai acabar”. “Sem dúvida, Chevalley, sem dúvida.”

Passaram então na frente do Clube dos Civis, que, à sombra dos plátanos da praça, fazia sua exposição cotidiana de cadeiras de ferro e de homens enlutados. Cumprimentos, sorrisos. “Observe-os bem, Chevalley, guarde a cena na memória: umas duas vezes por ano, um desses senhores é fulminado na sua poltroninha; um tiro disparado na luz incerta do pôr do sol; e ninguém nunca sabe quem foi que atirou.” Chevalley precisou se apoiar no braço de Cavriaghi para sentir perto de si um pouco de sangue continental.

Logo em seguida, no topo de uma estradinha íngreme, em meio às guirlandas multicoloridas das roupas de baixo a secar, despontou uma igrejinha ingenuamente barroca. “Aquela é Santa Ninfa. Cinco anos atrás o pároco foi assassinado ali dentro enquanto celebrava a missa.” “Que horror! Tiros numa igreja!” “Tiros coisa nenhuma, Chevalley! Somos muito bons católicos para fazer grosserias desse tipo. Simplesmente puseram veneno no vinho da Comunhão; é mais discreto, quero dizer, mais litúrgico. Nunca se soube quem fez isso: o pároco era uma ótima pessoa e não tinha inimigos.”

Assim como um homem que, despertando no meio da noite, vê um espectro sentado em sua cama, sobre seus pés, e se salva do terror tentando acreditar que tudo não passa de uma peça de amigos brincalhões, do mesmo modo Chevalley refugiou-se na crença de estar sendo zombado: “Muito engraçado, Príncipe, realmente espirituoso! O senhor deveria escrever romances, conta tão bem essas lorotas!”. Mas sua voz tremia; Tancredi sentiu pena dele e, embora na volta para casa tenham passado diante de três ou quatro locais igualmente evocativos ou mais, absteve-se de atuar como cronista e falou de Bellini e Verdi, as eternas pomadas curativas das chagas nacionais.”

 

 

“Na Sicília, não importa fazer o mal ou o bem: o pecado que nós, sicilianos, nunca perdoamos é simplesmente o de ‘fazer’. Somos antigos, Chevalley, muito, muito antigos. Faz pelo menos vinte e cinco séculos que carregamos nos ombros o peso de magníficas civilizações heterogêneas, todas vindas de fora já completas e aperfeiçoadas, nenhuma germinada de nós mesmos, nenhuma à qual tenhamos dado a afinação; somos brancos assim como o senhor, Chevalley, e tanto quanto a rainha da Inglaterra; no entanto, há dois mil e quinhentos anos somos colônia. Não digo isso para me lamentar: em grande parte é culpa nossa, mas mesmo assim estamos exaustos e esgotados”. (...)

“O senhor me falava há pouco de uma jovem Sicília que se abre às maravilhas do mundo moderno; a meu ver, parece-me bem mais uma velha centenária arrastada numa cadeira de rodas à Exposição Universal de Londres, que não compreende nada, não se importa com nada, nem com as aciarias de Sheffield nem com as tecelagens de Manchester, e que só anseia voltar a cochilar entre seus travesseiros babados e o urinol debaixo da cama”.

Ainda falava em tom baixo, mas a mão em torno do San Pietro já se contraía; no dia seguinte, constatou-se que a pequena cruz acima da cúpula estava quebrada. “O sono, caro Chevalley, o que os sicilianos querem é o sono, e eles sempre odiarão quem os quiser despertar, ainda que seja para lhes dar os mais belos presentes; e, cá entre nós, tenho minhas dúvidas de que o novo reino traga muitos presentes para nós na bagagem. Todas as manifestações sicilianas são oníricas, até as mais violentas: nossa sensualidade é desejo de esquecimento, nossos tiroteios e facadas, desejo de morte; desejo de imobilidade voluptuosa, isto é, ainda de morte, nossa preguiça, nossos sorvetes de salsifi-negro ou de canela; nosso ar meditativo é o do vazio que quer perscrutar os enigmas do nirvana. Disso deriva a prepotência de certas pessoas entre nós, dos que estão semiacordados; daí o famoso atraso de um século das manifestações artísticas e intelectuais sicilianas; as novidades só nos atraem quando sentimos que estão mortas, incapazes de dar lugar a correntes vitais; daí o inacreditável fenômeno da formação atual, contemporânea a nós, de mitos que seriam veneráveis se fossem antigos de verdade, mas que não passam de tentativas sinistras de mergulhar de novo num passado que nos atrai justamente porque está morto”.

Nem tudo era compreendido pelo bom Chevalley; sobretudo a última frase lhe parecia obscura: tinha visto as carroças coloridas puxadas por cavalos paramentados e desnutridos, tinha ouvido falar do teatro de marionetes cavaleirescas, mas acreditava que fossem velhas tradições autênticas. Disse: “Mas o senhor não acha que está exagerando um pouco, Príncipe? Eu mesmo conheci em Turim alguns sicilianos emigrados… Crispi, para mencionar apenas um… que me pareceram o oposto de dorminhocos”.

O Príncipe se irritou: “Somos muitos, é evidente que há exceções; de resto, já mencionei nossos semiacordados. Quanto a esse jovem Crispi, decerto não eu, mas talvez o senhor mesmo possa observar que, quando velho, ele recairá em nosso devaneio voluptuoso: todos fazem isso. Por outro lado, vejo que me expliquei mal: disse os sicilianos, mas deveria ter acrescentado a Sicília, o ambiente, o clima, a paisagem. Estas são as forças que, juntas, e talvez mais que o domínio estrangeiro e as violações incongruentes, lhe formaram o espírito: esta paisagem que ignora os meios-termos entre a malemolência lasciva e a aspereza amaldiçoada; que nunca é mesquinha, prosaica, relaxante, humana, como deveria ser um espaço feito para acolher seres racionais; este lugar que, a poucas milhas de distância, tem o inferno em torno de Randazzo e a beleza da baía de Taormina, ambos desmedidos e, portanto, perigosos; este clima que nos inflige seis meses de uma febre de quarenta graus; pode contá-los, Chevalley, pode contá-los: maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro; seis vezes trinta dias de sol a pino nas cabeças; este nosso verão tão longo e terrível quanto o inverno russo, e contra o qual se luta com menos sucesso; o senhor ainda não sabe, mas pode-se dizer que aqui neva fogo, como nas cidades amaldiçoadas da Bíblia; em cada um desses meses, se um siciliano trabalhasse a sério, consumiria força suficiente para três; além disso, a água ou não existe, ou é preciso trazê-la de tão longe que cada gota se paga com uma gota de suor; e ainda temos as chuvas sempre tempestuosas, que fazem delirar as torrentes secas, que afogam animais e homens exatamente onde uma semana antes ambos morriam de sede. Essa violência da paisagem, essa crueldade do clima, essa tensão contínua em cada coisa, até esses monumentos do passado, magníficos mas incompreensíveis porque não foram construídos por nós, que estão à nossa volta como extraordinários fantasmas mudos; todos esses governos, desembarcados em armas vindos sabe-se lá de onde, imediatamente servidos, logo detestados e sempre incompreendidos, que só se expressaram por meio de obras de arte enigmáticas para nós e de concretos coletores de impostos gastos depois em outros lugares; tudo isso formou nosso caráter, que assim permanece condicionado por fatalidades exteriores e por uma assombrosa insularidade da alma”.”

 

 

“Quem segue a própria estrada está sempre certo, contanto que não cometa torpezas.”

 

 

““Se você, dom Pietrino, não estivesse dormindo neste momento, com certeza me diria, enfático, que os senhores fazem mal em cultivar esse desprezo pelos outros, e que todos nós, sujeitos da mesma forma à dupla servidão do amor e da morte, somos iguais perante o Criador; e eu só poderia lhe dar razão. Mas acrescentaria que não é justo acusar de desprezo apenas os ‘senhores’, já que esse é um vício universal. Quem ensina na Universidade despreza o pobre professor das escolas paroquiais, ainda que não o demonstre; e já que o senhor está dormindo posso lhe dizer sem meios-termos que nós, sacerdotes, nos consideramos superiores aos leigos, nós, Jesuítas, superiores ao resto do clero, assim como vocês, boticários, desprezam os tira-dentes, que por sua vez debocham de vocês; já os médicos zombam dos tira-dentes e dos boticários e são por seu turno tratados como asnos pelos doentes que pretendem continuar vivendo com o coração e o fígado em frangalhos. Para os juízes, os advogados não passam de importunos que buscam procrastinar o funcionamento das leis; por outro lado, a literatura transborda de sátiras contra a pomposidade, a indolência e às vezes até coisa pior desses mesmos magistrados. Os únicos que são desprezados até por seus pares são os camponeses; quando aprenderem a debochar de outros, o círculo se fechará e será preciso começar tudo de novo.”

 

 

“Toda vez que se encontra um parente, se encontra um espinho.”

 

 

“Aqui, na Itália, nunca se exagera o bastante em matéria de sentimentalismo e afagos: são os argumentos políticos mais eficazes que temos.”

 

 

Dom Fabrizio conhecia desde sempre aquela sensação. Havia décadas sentia como se a seiva vital, a faculdade de existir, enfim, a vida e talvez até a vontade de continuar vivendo saíssem dele lenta mas continuamente, como os grãozinhos que se juntam e caem em fila um a um, sem pressa e sem trégua, pelo estreito orifício de uma ampulheta. Em alguns momentos de atividade intensa e grande concentração, esse sentimento de contínuo abandono desaparecia para reapresentar-se, impassível, à mais breve ocasião de silêncio ou introspecção, como um rumor ininterrupto no ouvido, como as batidas de um pêndulo se impõem quando todo o resto se cala — e assim nos dão a certeza de que sempre estiveram ali, vigilantes, mesmo quando não as ouvíamos.

Em todos os outros momentos, bastava-lhe um mínimo de atenção para notar o chiado dos grãos de areia se esvaindo de leve, os átimos de tempo escapando de sua vida e o abandonando para sempre; a sensação, de resto, não estava ligada a nenhum mal-estar, ao contrário, essa imperceptível perda de vitalidade era a prova, a condição, por assim dizer, da sensação vital; e para ele, habituado a perscrutar espaços exteriores ilimitados, a indagar vastíssimos abismos interiores, isso não era nada desagradável; era a percepção de um contínuo e minúsculo desmantelo da personalidade, porém associado a um vago presságio de reedificação, noutro lugar, de uma individualidade (graças a Deus) menos consciente, porém mais ampla; aqueles grãozinhos de areia não se perderiam: desapareceriam, sim, mas se acumulariam quem sabe onde para testar uma construção mais duradoura. Mas construção — refletiu — não era a palavra exata, era muito pesada; tampouco grãos de areia: eram mais como partículas de vapor aquoso que emanassem de um pântano estreito e subissem ao céu para formar grandes nuvens, leves e livres. Às vezes ele se surpreendia que o reservatório vital ainda pudesse conter algo depois de tantos anos de perdas. “Nem se fosse grande como uma pirâmide.” Noutras, mais frequentes, se orgulhava de ser quase o único a perceber essa fuga incessante, enquanto à sua volta ninguém parecia sentir o mesmo; e disso extraiu motivo para desprezar os demais, assim como o velho soldado despreza o recruta que se ilude pensando que as balas a zunir ao redor são varejeiras inócuas. São coisas que, não se sabe bem por qual razão, não se confessam; deixa-se que os outros as intuam, e ninguém à volta dele jamais as intuíra, nenhuma das filhas que sonhavam um além-túmulo idêntico a esta vida, repleto de magistraturas, chefes de cozinha, conventos e relojoeiros, de tudo; nem mesmo Stella, que, devorada pela gangrena da diabetes, se agarrara mesquinhamente a essa existência de sofrimentos. Talvez apenas Tancredi, por um instante, o compreendera quando lhe dissera com sua pungente ironia: “Você, tiozão, está seduzindo a morte”. Agora a sedução terminara: a beldade havia dado seu sim, a fuga estava decidida, o compartimento no trem, reservado.”

 

 

“Pois o significado de uma linhagem nobre consiste inteiramente nas tradições, nas recordações vitais; e ele era o último a possuir recordações incomuns, distintas das de outras famílias. Fabrizietto teria recordações banais, idênticas às de seus colegas de ginásio, recordações de merendas econômicas, de brincadeirinhas malvadas com os professores, de cavalos adquiridos com o olho mais no preço que em suas qualidades; e o significado do nome se transformaria em pompa vazia, sempre amargurada pela ameaça de que outros pudessem sobrepujá-la. Ocorreria a caçada a um casamento rico quando isso já teria se tornado uma routine ordinária, e não mais uma aventura audaciosa e predatória como fora a de Tancredi. As tapeçarias de Donnafugata, os amendoais de Ragattisi, quem sabe até a fonte de Anfitrite, coisas delicadas e vagas que eram, teriam a sorte grotesca de ser metamorfoseados em terrinas de foie gras logo digeridas e em mulherzinhas de Bataclan mais efêmeras que seus batons. E dele restaria apenas a lembrança de um avô velho e colérico que se arrebentara numa tarde de julho, justo a tempo de impedir o rapaz de sair em férias para as praias de Livorno. Ele mesmo dissera que os Salina seriam sempre os Salina. Havia errado. O último era ele. Garibaldi, aquele Vulcano barbudo, no fim das contas vencera.”

 

 

“Mais com o gesto que com a voz, disse: “Saiam! Saiam!”. Queria se confessar. As coisas se fazem ou não se fazem. Todos se retiraram, mas, quando precisou falar, se deu conta de que não tinha muito a dizer: recordava alguns pecados específicos, mas lhe pareciam tão mesquinhos que realmente não valia a pena ter importunado um digno sacerdote naquele dia tórrido. Não que se sentisse inocente: mas era toda a vida que era culpada, não este ou aquele fato determinado; há um só pecado verdadeiro, o pecado original; e ele não tinha mais tempo de confessá-lo.”

 

 

“A conversa prosseguiu por algum tempo, mas não se pode dizer que dela Concetta tivesse participado muito. A revelação repentina penetrou em sua mente com lentidão, mas a princípio não a fez sofrer demasiado. Porém, quando as visitas se despediram e foram embora, e ela se viu só, começou a perceber com mais clareza e então a sofrer mais. Os fantasmas do passado tinham sido exorcizados havia anos; é lógico que se encontravam ocultos em tudo, e eram eles que conferiam amargor à comida, e tédio às companhias; mas seu verdadeiro rosto não se mostrava fazia muito tempo; agora saltava para fora envolto na comicidade fúnebre dos problemas irreparáveis. Decerto seria absurdo dizer que Concetta ainda amasse Tancredi; a eternidade amorosa dura poucos anos, não cinquenta; mas, assim como uma pessoa curada de uma varíola que a acometeu cinquenta anos antes ainda traz suas marcas no rosto, embora possa ter esquecido o tormento do mal, ela trazia em sua vida atual, oprimida, as cicatrizes de uma desilusão já quase histórica, aliás, histórica a ponto de celebrar oficialmente seu meio século. Mas até hoje, quando raras vezes ela repensava o que acontecera em Donnafugata naquele distante verão, sentia-se amparada por um senso de martírio sofrido, de erro cometido contra si; pela animosidade em relação ao pai, que a sacrificara; por um sentimento devastador diante do outro morto — esses sentimentos derivados, que haviam constituído o esqueleto de seu modo de pensar, também se desfaziam; não houvera inimigos, mas uma só adversária, ela mesma; seu futuro tinha sido destruído por sua própria imprudência, pelo ímpeto raivoso dos Salina; agora, justo no momento em que depois de décadas as recordações voltavam a ganhar vida, lhe faltava a consolação de poder atribuir sua infelicidade aos outros, consolação que é o último filtro enganoso dos desesperados.”

 

 

“Mas seria esta, de fato, a verdade? Em nenhum lugar como na Sicília a verdade tem vida tão breve: o fato ocorreu há cinco minutos, e já seu núcleo genuíno sumiu, camuflado, embelezado, desfigurado, oprimido, aniquilado pela fantasia e pelos interesses; o pudor, o medo, a generosidade, o mau humor, o oportunismo, a caridade, todas as paixões, tanto as boas quanto as más, se precipitam sobre o fato e o fazem em pedaços; num instante ele desaparece. E a pobre Concetta queria encontrar a verdade de sentimentos não expressos, mas apenas entrevistos meio século atrás! A verdade não existia mais; sua precariedade fora substituída pela irrefutabilidade da pena.”