Editora: Todavia
Opinião: ★★★☆☆
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ISBN: 978-65-5692-520-2
Páginas: 304
Sinopse: Ver Parte
I
“Tudo conspirava para o sucesso desse produto. Com os pentecostais, o
poder divino era mais palpável, já que a alegada ação do Espírito Santo podia
se revelar de forma física, no corpo dos fiéis, pela glossolalia ou pela cura
de doenças, muitas delas provocadas pelos espíritos endemoniados das religiões
de matrizes africanas. Os pastores podiam exorcizar o desânimo para reformatar
as mentes e acender nelas uma chama capaz de impulsionar o crente a agir de
acordo com os valores do meio urbano. Havia excelentes compensações para os que
obedecessem aos mandamentos de Deus, inclusive benefícios materiais. O passado
devia ser deixado para trás em nome do progresso moral e financeiro no
presente. Dinheiro e riqueza não eram mais tabus e faziam com que os novos templos
fossem autossustentáveis. De acordo com a Teologia da Prosperidade, quanto mais
o fiel desse para a Igreja, mais ele receberia de Deus.
As visões teológicas podiam variar conforme as
denominações. As heresias da Universal, por exemplo, com suas pregações e
sacramentos sincréticos, distantes do texto bíblico, eram criticadas por
religiosos de diversas correntes. Mas a aliança se reestabelecia para fazer
frente ao poder do establishment praticamente hegemônico ao longo da história
brasileira, que, liderado pela Igreja católica e apoiado pela elite econômica e
política, era visto como persecutório. Apesar das diferenças doutrinárias, a
tendência dos pentecostais era se unir contra o inimigo comum. Nesse sentido, o
sucesso das novas igrejas influenciava as doutrinas tradicionais, que não
queriam ficar para trás e perder fiéis. A Assembleia de Deus, por exemplo, foi
se flexibilizando com o tempo, liberando gradativamente as mulheres para cortar
os cabelos, usar maquiagem e vestir calças compridas, bem como tirando as
restrições a ouvir rádio, assistir TV e ir ao cinema. Suas igrejas embarcaram
na comunicação em massa para disputar fiéis.
A
força desse produto, contudo, se revelava ainda mais intensa no chão de terra e
de asfalto esburacado dos bairros pobres, lugares em que os novos templos
surgiam com a mesma agilidade que os botecos e as biroscas, tornando-se
presença inseparável do ambiente das favelas. As pequenas igrejas brotavam nas
periferias de forma orgânica, e qualquer um que vivesse na quebrada ou no presídio
podia assumir o papel de líder religioso, caso tivesse carisma suficiente para
abrir uma igreja e arregimentar seguidores. Como essas autoridades religiosas
estavam inseridas nas comunidades e conheciam os problemas locais, tinham mais
habilidade para pensar soluções com seus fiéis e potenciais seguidores.
Esses
conselhos tinham que ser práticos, motivacionais, em vez de ideológicos e
críticos, como eram os padres europeus da Teologia da Libertação.
Hoje o que você tem nas favelas? Você tem os grupos religiosos, que desenvolvem um Estado de bem-estar social improvisado. Hospital, prisão, drogas, vielas, os religiosos vão estar lá. O movimento social está dizendo que o mundo está acabando, que o fascismo está tomando conta, uma série de desgraças. Mas o pessoal da favela já é doutor em desgraça, ele não precisa ouvir mais essas. Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus. Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro, disse o ex-presidente nacional da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé das Quadras, quando lhe perguntei sua opinião sobre o sucesso dos evangélicos entre os mais pobres e o enfraquecimento do discurso da Igreja católica e dos movimentos sociais nas periferias.5
Organizações
como a Cufa são moldadas pelos valores da era pentecostal, ligados ao
empreendedorismo, bem diferente das mobilizações de esquerda para pressionar o
governo. As favelas e os bairros pobres brasileiros, segundo estimativas da
própria Cufa, mobilizam 117 bilhões de reais em poder de consumo, valor maior
do que o Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países. Essa mistura de
comunicação de massa com pregação hiperlocal, voltada para soluções do dia a
dia e para o mercado, se mostraria uma estratégia vitoriosa entre os pentecostais.
O movimento era duplo: pelas ondas do rádio e da televisão, pela oralidade, os
pastores conclamavam a responsabilidade coletiva e a identidade de grupo. Nos
territórios, pelo estímulo à leitura da Bíblia, desenvolviam a introspecção e a
reflexão individual sobre os próprios desígnios e problemas.
Havia, ainda, outro diferencial relevante:
montar um templo sempre foi mais simples, por exemplo, do que abrir uma igreja
católica ou evangélica histórica. Em boa parte das denominações pentecostais,
os templos são alugados, alguns em casas pequenas com cadeiras de plástico.
Nesse esquema, os custos mensais podem ser rateados pelos participantes
mediante a cobrança do dízimo, e alguns podem começar a igreja em sua própria
casa, na garagem, com rodas de oração que se expandem conforme o interesse do
público.
Mais do que anos de estudo em seminários ou
conhecimento formal sobre teologia e filosofia, exigidos pelos católicos e
pelas congregações históricas, o sucesso dos pastores pentecostais depende,
sobretudo, da sua afinidade com os problemas dos vizinhos e de sua capacidade
de pregar e dialogar para transformar angústia em esperança. A baixa educação
formal pode ser, inclusive, um fator de proximidade com seus fiéis, com quem
compartilham a linguagem, os sofrimentos e os desafios. Assim, o pastor adquire
uma renda para dar continuidade a sua própria obra e uma posição de status e
respeito em seu meio social.
A velocidade de abertura e a
capilaridade dos templos evangélicos em território nacional foi dimensionada a
partir de um levantamento feito a partir de dados da Receita Federal com o
total de registros de pessoas jurídicas classificadas como organizações
religiosas. Os 12,1 mil templos de 1982 se multiplicaram até alcançar a marca
de 178 511 em maio de 2022,6 o que significa a abertura de onze
novos templos por dia no período. Essa velocidade praticamente dobrou na última
década, quando 21 igrejas foram abertas diariamente. O crescimento se acelerou
conforme a visão religiosa se normalizou culturalmente, as interpretações
bíblicas se diversificaram e passaram a lidar direto com os problemas reais das
pessoas.
A Assembleia de Deus liderou o ranking do total
de templos (43 578 unidades), seguida da Batista (19 692), Igreja Universal
(7505), Evangelho Quadrangular (5586), Igreja Presbiterana (5132) e Congregação
Cristã (5052). O primeiro lugar disparado, no entanto, ficou com a soma das
pequenas igrejas (78 560),7 que não se enquadram em nenhuma das
grandes denominações brasileiras e estão fortemente vinculadas ao carisma de
seu próprio fundador. Segundo dados do Censo, existem cerca de 1,5 mil
denominações evangélicas no Brasil, total que não para de crescer.8
Esse
movimento foi bem diferente do vivido pela Igreja católica, que viu sua
dianteira de séculos ser ameaçada. O processo de decisão da Igreja romana
sempre foi mais hierárquico e burocrático, vinculado a uma cadeia de comando
que passava pelos bispos e podia alcançar até o papa. Em São Paulo, por
exemplo, o trabalho de expansão das CEBs e o fortalecimento das igrejas
periféricas foram impulsionados pelas mudanças iniciadas pelos papados de João
XXIII e Paulo VI no pós-guerra, como estratégia para enfrentar politicamente a
ameaça das revoluções socialistas. Depois de 1978, quando o papa João Paulo II
assumiu seu pontificado, esse movimento refluiu, principalmente depois do
esfacelamento dos governos comunistas. Em 1989, a Arquidiocese de São Paulo foi
dividida em cinco, fragilizando o poder de d. Paulo Evaristo Arns e
fortalecendo os religiosos mais conservadores, na tentativa de reverter o
crescimento do pentecostalismo. Começou a ganhar espaço o movimento da
Renovação Carismática, que trazia para o centro da missa o poder do Espírito
Santo, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalias e muita
música. Alguns religiosos se tornaram sucesso de público, como o padre Marcelo
Rossi, ligado ao bispo da nova diocese de Santo Amaro, d. Fernando Antônio
Figueiredo.
Apesar
do esforço dos católicos para reavivar as missas, a estrutura engessada e
vertical da Igreja romana dificultou sua competitividade no mercado das
crenças. Era sempre mais lento e mais caro abrir uma nova paróquia, que depende
da compra do terreno, da construção de um prédio com a arquitetura imponente
característica, do comando de um padre cuja formação pode levar quase uma
década, da decisão estratégica do bispo e, em última instância, do nihil obstat
do papa, que concede um aval moral e doutrinário para o investimento. O
resultado aparece nos números. Mesmo sendo a religião de mais de 60% dos
brasileiros, havia 12 013 paróquias no país em 2021, 294 catedrais, 71
basílicas, seis santuários nacionais e 21 mil padres, segundo dados da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).9 Comparar o
universo católico e pentecostal é tarefa que vai muito além dos números, mas
não deixa de chamar a atenção o fato de o total de templos do segundo ser
catorze vezes maior do que o de igrejas do primeiro.
Existia
um fenômeno grandioso por trás desse boom empresarial transcendente dos
pentecostais: parte dos migrantes e de seus descendentes, que durante o
processo de urbanização tinha construído suas casas e vidas nas grandes
cidades, produziam um novo tipo de discurso que dava sentido para o mundo que
habitavam e que lhes permitia consertar os erros passados. Pequenas igrejas
eram criadas nas quebradas, sintonizadas às mensagens transmitidas pelas
grandes denominações via rádio e TV, para reinterpretar a realidade e dar novos
significados à miséria cotidiana. Enquanto isso, mitos, regras e valores eram
restabelecidos para servir como referência, produzindo ordem num ambiente em
que o caos estava sempre à espreita. Com o passar do tempo, essas referências
foram impregnadas por um discurso belicoso que inflamava a busca pela
prosperidade e pelo autocontrole em nome do triunfo do bem sobre o mal.
Mentes
eram reformatadas e se tornavam mais adaptadas à vida urbana coletiva,
principalmente entre os que compartilham as mesmas crenças. A culpa dos desvios
e dos fracassos do passado podia ser atribuída ao demônio. Assim como o
abandono, a miséria em sucessivas gerações, a violência diária, a revolta
contra as injustiças da vida, o ódio, todos esses sentimentos podiam ir embora
em um passe de mágica, com a expulsão do encosto de satanás. Era preciso apenas
amar a Deus e se resignar com seus propósitos para ser abençoado. O diabo, por
sua vez, podia se transfigurar nos mais diversos inimigos, que, quando
identificados, bastava canalizar a energia vital para vencê-los: bebida,
drogas, doença, depressão, pobreza, ignorância, falta de vontade. Bastava crer
para o fogo de vida queimar e servir de motivação para essa luta celestial.
Em
compensação, os discursos dessas irmandades podiam ser altamente dogmáticos e
autoritários; não costumavam aceitar pensamentos e crenças diversas. A
intolerância, inclusive, é uma das caraterísticas da divisão do movimento em
centenas de denominações, cada qual com uma interpretação específica da palavra
divina. Os católicos, ao contrário, com sua estrutura rígida e hierarquizada,
são mais flexíveis nesse sentido. Em nome da unidade, precisam aceitar os
desvios e as visões religiosas sincréticas, como sempre ocorreu ao longo da
história brasileira.10
A
demonização das religiões de matrizes africanas, pregada pelos neopentecostais
e aceita por outras denominações evangélicas, era apenas um dos efeitos dessa
intolerância. O estigma de endemoniado podia cair também sobre gays,
feministas, bandidos e famílias fora do padrão, dependendo da leitura que a
denominação fizesse da Bíblia. Já os negros e pobres, desde que fiéis, eram
valorizados, o que era uma novidade. O discurso da luta contra inimigos deixava
de focar na classe e na raça e voltava-se para os ateus, descrentes,
progressistas e defensores de costumes libertários, o que incluía também brancos
e ricos. Esse redirecionamento deu uma nova unidade a um movimento fragmentado,
inventando um discurso ao mesmo tempo popular e conservador, e foi apoiado por
ricos e pobres conservadores, angustiados com a velocidade das mudanças nos
costumes. Por consequência, a mensagem rapidamente foi adotada por políticos em
busca de seus objetivos eleitorais.
A
conquista de cargos nos parlamentos e no Poder Executivo pelos pentecostais
cresceu a partir da volta da democracia e do anúncio de uma nova Constituição
em 1988. Dois anos antes, eles reproduziram a estratégia iniciada por Manoel de
Mello nos anos 1960 e entraram com tudo na disputa pelos interesses de suas
denominações. A Assembleia de Deus e outras igrejas orientaram seus fiéis a
votar nos candidatos próprios,11 e a ideia de que crente não se
envolvia em política ficou definitivamente no passado para dar lugar ao
compromisso de que “irmão vota em irmão”.12
As
lentes da religiosidade pentecostal iriam mudar a forma de enxergar a luta por
poder e levariam para o Parlamento o compromisso com o sagrado. A verdade
factual, objetiva, que pode ser checada e que deveria servir de base para as
decisões, perderia prestígio para os temas transcendentais. A doutrina da
batalha espiritual daria o ar da graça e redefiniria a lógica da luta política.
Conforme essa nova leitura, a transformação social duradoura não viria,
prioritariamente, das reformas do Estado ou dos debates técnicos sobre
políticas públicas.
Os
problemas sociais como pobreza, corrupção e violência tinham um fundo
espiritual que afetava diretamente o plano material, e a eleição de
pentecostais intercederia nesse cenário dominado pelos demônios responsáveis
pela opressão ao povo brasileiro.13 Seria fundamental, portanto,
preservar os valores cristãos pregados na Bíblia votando em pessoas que
defendessem as leis divinas no Parlamento. Os deputados e os políticos, de uma
forma geral, seriam os soldados na guerra do bem contra o mal.
Barganhar
com governos vantagens para as igrejas e seus membros se tornou uma prática
tolerada e relevante, já que significava obter benefícios para a causa de Jesus
Cristo. Dessa forma, os políticos evangélicos, espalhados em partidos da base
de apoio dos governos, foram decisivos para dar mais densidade ao centrão, com
o pragmatismo que se tornaria a marca dos pentecostais. Eles integravam
partidos que apoiavam os governos da vez, em troca de vantagens para suas
igrejas e grupos. Os evangélicos não estavam na política para revolucionar o
sistema ou ser oposição. Afinal, conforme a interpretação de diversos pastores,
deviam seguir a Bíblia e obedecer às autoridades.”
5. Pergunta feita no encontro
virtual organizado pelo grupo República do Amanhã com Preto Zezé mediado por
Eugênio Bucci, “Preto Zezé (Cufa): combate ao racismo, ativismo social e
enfrentamento da desigualdade”. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=yTFqwSWnYQE&t=898s>. Acesso em: 11 jun. 2023.
6.
O balanço foi feito com base em dados da Receita Federal e publicado em O
Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/salto-evangelico-21-igrejas-sao-abertas-por-dia-no-brasil-segmento-e-alvo-de-lula-e-bolsonaro.ghtml>. Acesso em: 26 jun. 2023.
7. Ibid.
8. Entrevista concedida por Christina Vital a
Andrea Dip no livro Em nome de quem?: A bancada evangélica e seu projeto de
poder (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018).
9. Silvio da Silva, “Os números
da Igreja católica do Brasil”. CNBB Regional Oeste 1, 16 jun. 2021. Disponível
em: <https://cnbboeste1.org.br/os-numeros-da-igreja-catolica-do-brasil>. Acesso em: 11 jun. 2023.
10. Adroaldo José Silva Almeida. Pelo
Senhor, marchamos: Os evangélicos e a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
São Luís: Edufma, 2020.
11. Saulo Batista, Pentecostais
e neopentecostais na política brasileira: Um estudo sobre cultura política,
Estado e atores coletivos e religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume,
Instituto Metodista Izabela Hendrix, 2009.
12. Ricardo Mariano, Neopentecostais,
sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
13. Ibid.
“Em
2003, já chegavam novas regras das prisões de São Paulo e, então, para matar,
era preciso apresentar justificativas e ter autorização do PCC. A facção vinha
ganhando fama e respeito após a primeira megarrebelião nos presídios em
fevereiro de 2001. Depois de controlar o sistema penitenciário, consolidava seu
poder do lado de fora com a ajuda dos telefones celulares, que tornavam mais
fluida a comunicação entre os integrantes da irmandade de criminosos. (...)
O
controle dos homicídios no Jardim Ângela continuou a ocorrer nos anos
seguintes. Demorei para compreender que estava sendo construído um novo pacto
para regulamentar o comportamento dos criminosos, uma força invisível começava
a fazer efeito. Eu não acreditava, e consequentemente nem prestava atenção, na
capacidade do mercado ilegal de determinar comportamentos. Até então, meu foco
estava voltado exclusivamente para as políticas de segurança, sociais, de
justiça, e para a pressão da sociedade civil organizada como potenciais
apaziguadoras daquele contexto. O padre Jaime Crowe fazia as caminhadas com a
comunidade do Jardim Ângela até o cemitério São Luís desde 1996. Poderia essa
mobilização, associada ao trabalho da polícia civil para prender matadores,
explicar a queda?
Em
2001 passei a frequentar Diadema acompanhando as discussões sobre a nova lei de
fechamento de bares. A medida, levada pela Câmara Municipal em diálogo com a
prefeitura, proibia que esses estabelecimentos funcionassem depois das 23 horas
e seria aprovada em 2002. A situação da violência na cidade era dramática. Em
1999, o município havia alcançado a taxa de 103 homicídios por 100 mil
habitantes, que o levou a ser apontado como o lugar mais arriscado do mundo.
Depois da entrada em vigor da lei dos bares, os casos imediatamente começaram a
cair. Seria o resultado da nova legislação?1
Eu
vinha pesquisando sobre violência na universidade, e os casos do Jardim Ângela
e de Diadema eram interessantes e merecedores de atenção, mas uma coisa começou
a me intrigar: a queda das taxas não se restringia a eles, era generalizada em
todo o estado paulista. Depois de quarenta anos quase ininterruptos de
crescimento, nos anos 2000 São Paulo passou a testemunhar uma queda contínua do
número de assassinatos. Ano após ano essa redução seguiria firme e depois de
duas décadas alcançaria mais de 80%, transformando a taxa de homicídios
paulista na menor do Brasil.
Era
um movimento imprevisível e fantástico, as curvas revelavam mudanças de
comportamento que eu imaginava impossíveis a curto prazo. Os números
simplificam a dimensão dos acontecimentos, que mexiam com questões profundas:
era como se, de repente, pessoas incontroláveis, malvadas, perversas e cruéis
fossem contagiadas pelo vírus do bom senso. Homens jovens, que se matavam e se
vingavam de seus mortos, mudaram a forma de agir, passavam a pensar duas vezes,
ponderar, como se tivessem trocado as lentes através das quais enxergavam a
realidade. O comportamento foi melhorando ano a ano, as práticas já não eram
tão selvagens como no passado recente, a vida alheia não era menosprezada como
antes.
Como
numa metanoia gradual, o pensamento dos matadores ia sendo desconstruído,
ficando para trás, tornando-se ultrapassado. Em seu lugar era formada uma nova
consciência e consolidada uma nova ética no mundo do crime. Em vez de matar, os
potenciais assassinos tomavam atitudes alternativas, deixavam de ser divinos,
de decidir sobre vida e morte, para se submeter a normas e obedecer a
autoridades que antes não existiam. Era inacreditável.
Mesmo
sem querer, testemunhei o processo dessa transformação mais de perto do que a
maioria das pessoas. Além de estar fisicamente próximo, circulando por prisões
e bairros violentos aos quais tinha acesso na medida do possível, eu estava
sintonizado com o discurso deles, com suas narrativas sobre homicídios
merecidos, sobre a lógica interminável das vinganças. Eu estava em contato
constante com esse pensamento, que provocava ciclos intermináveis de violência
e sugava inocentes como Paulo Enoc para dentro da engrenagem.
O
mais surpreendente é que a solução emergiu exatamente do contexto em que os
conflitos eram gerados. Homens presos e moradores de bairros violentos passaram
a promover, em seu cotidiano, outra forma de existência das suas masculinidades
ameaçadas. Uma nova ética do crime prevalecia sobre a honra pessoal dos matadores,
que começaram a ser tachados de covardes, opressores e egoístas. Os homicidas e
os vingadores, obcecados pelo próprio umbigo, não conseguiam se afastar e se
colocar no lugar das mães das vítimas, raciocinar economicamente ou pensar na
coletividade. Agiam como bichos acuados. E de onde só se esperava perversão e
crueldade, surgiram as ideias para solucionar os desafios desse mundo caótico,
dentre elas uma nova máxima: “É preciso estar do lado certo, mesmo numa vida
errada”.
Uma
construção mental coletiva desse tipo não surge da noite para o dia. Ela foi
sendo moldada em diversas frentes até deslanchar na geração urbana nascida em
São Paulo descendentes dos migrantes rurais, que temia morrer cedo, antes dos
25 anos. Ao longo dos anos 1970 e 1980 eles não tinham rumo, estavam perdidos,
renegavam a cultura rural dos pais, mas não colocavam outra no lugar, restando
um vazio limitante. Essa falta de perspectiva era mais evidente entre os
homens, que então canalizavam suas forças para evitar ser esmagados pelo
sistema, trilhando o caminho violento e suicida do crime. Como resultado, essa
geração de homens-bombas era perseguida pelos justiceiros de seus bairros e
pela polícia, que defendia os moradores dos bairros mais ricos.”
1. Bruno Paes Manso, Maryluci de
Araújo Faria e Norman Gall, “Democracia 3: Do faroeste para a vida civilizada
na periferia de São Paulo: Diadema”. Braudel Papers, São Paulo: Faap, n.
37, 2005. Disponível em: <docplayer.com.br/51643288-Democracia-3-do-faroeste-para-a-vida-civilizada-na-periferia-de-sao-paulo-diadema.html>. Acesso em: 12 jun. 2023.
“Diferentemente
do que aconteceu no Rio, o movimento de dominação do PCC nos presídios
paulistas foi consistente porque o projeto se propunha a beneficiar a
coletividade criminal, e não apenas o interesse privado da facção e de seus
membros. Mais do que um cartel empresarial, ao estilo dos grupos mexicanos e
colombianos, o papel principal do grupo era atuar como uma agência reguladora
do mercado do crime, para criar ordem e previsibilidade em um mundo violento e
sem governo.
Eles
elaboraram regras, divulgadas em estatutos, cartilhas e salves, e montaram uma estrutura
eficiente para punir os desviantes, dentro e fora do sistema penitenciário. A
autoridade do grupo não se impunha somente pela ameaça da violência física aos
que desobedecessem às regras; ela era abraçada porque seu discurso fazia
sentido, dialogava com os antigos e os novos valores do crime, o que era a
chave de seu sucesso. Para melhorar, a nova ordem proporcionava ganhos reais:
reduzia a imprevisibilidade dos negócios ilegais na mesma medida em que
ampliava as oportunidades e as margens de lucro.
Os
criminosos precisavam acreditar que as leis da facção os beneficiavam, caso
contrário, não as obedeceriam. Afinal, eles já haviam se rebelado contra as
leis ao se tornarem bandidos. O principal objetivo do primeiro estatuto do PCC,
com dezesseis artigos, era organizar as relações entre os presos para reduzir a
dor no cumprimento de pena e na vida no crime, que já era enorme. Mais do que
imposições, o estatuto trazia normas que compunham uma ética que já existia,
mas que não costumava ser respeitada porque as relações eram mediadas por armas
e por um espírito competitivo letal que gerava desconfiança.
Uma
das referências para a criação dessas regras foram os Dez Mandamentos.3
A pesquisadora Karina Biondi cita alguns paralelos entre as leis do crime e as leis
sagradas: o terceiro mandamento, “Não usarás o nome do Senhor em vão”, serviu
de inspiração ao sexto item do estatuto, em que o PCC proibia o uso do nome do
partido para objetivos pessoais; o rigor com os “talaricos”, que flertam com as
mulheres de outros presos, foi inspirado no décimo mandamento “Não cobiçarás a
mulher do próximo”; e o segundo e o quinto itens do estatuto “Lealdade,
respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido […] para que não haja
conflitos internos” eram uma referência ao primeiro mandamento: “Amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.
As
leis buscavam produzir a comunhão entre os integrantes da irmandade e,
portanto, outros paralelos religiosos se faziam presentes. Assim como um
convertido, o novo filiado da facção precisava ser batizado. O ingresso no PCC
não era como um cargo qualquer, nem um novo emprego. Envolvia compromissos
transcendentes, a adesão a uma nova consciência. No batismo, o novo integrante
assumia a defesa da instituição e das leis do crime, que constavam no estatuto
e eram compartilhadas por salves. Era uma espécie de renascimento, já que a
partir de então o indivíduo deixaria de agir exclusivamente de acordo com suas
próprias vontades e objetivos e se sujeitaria aos propósitos do grupo; sua
própria vida poderia ser colocada em risco em nome da causa. Para se certificar
de que o novo irmão compreendia a seriedade da aliança, ele devia ser indicado
por padrinhos, integrantes mais antigos que se responsabilizavam por seu
proceder e que o ensinavam a caminhar “pelo certo” na vida errada. Era uma
inovação que diferenciava o PCC do CV, em que o ingresso se assemelhava a uma
admissão em um emprego no tráfico vinculado ao território.
Era
preciso ter o tal do “procedimento”, que significava seguir os costumes e a
ética do crime. As novas regras, contudo, não seriam respeitadas se as pessoas
não as conhecessem ou se os desobedientes não fossem punidos, e elas precisavam
pegar para invadir o cotidiano e de fato alterar os costumes. Com esse objetivo,
o PCC criou um sistema de comunicação eficiente para disseminar suas leis,
aparelhado com uma máquina azeitada de punição. O papel central da comunicação
e da punição é perceptível pela escolha dos nomes das funções mais importantes
na hierarquia da facção, como “torres”, “sintonias” e “disciplinas”. Os torres
usavam telefones para ditar as regras aos sintonias, espalhados pelos presídios
e quebradas. Os sintonias transcreviam as regras e ditavam pessoalmente ou por
telefone a outros irmãos, que as copiavam e repassavam sucessivamente,
multiplicando a mensagem de forma veloz. Era um grande sistema de rádio em
operação para todos ficarem sincronizados com as normas coletivas.
Já
os disciplinas deviam cobrar dos criminosos presos e soltos, in loco, o
cumprimento da ética criminal. Os debates ajudavam a mediar conflitos nos
territórios e prisões, simulando um sistema informal de justiça com espaço para
acusação, defesa, análise dos indícios e provas e prolação de sentenças. Em vez
de pena, na linguagem do crime, quem errava tinha que assumir as
“consequências”, que podiam consistir até em assassinato, em ocorrências muito
graves. Os sintonias e os disciplinas formavam as células do PCC espalhadas
pelas novas unidades penitenciárias construídas depois de 1995, durante a
gestão do governador Mário Covas.
O
governador tinha se comprometido a criar um novo modelo penitenciário em
substituição ao Complexo do Carandiru, e, para isso, investiu na construção de
pequenos presídios espalhados pelo estado, cada um com lotação máxima de
oitocentas pessoas e tecnologias que diminuíam o contato entre os presos e os
carcereiros. Parecia razoável. As cerca de trinta unidades penitenciárias que
existiam até então se multiplicaram em mais de 180 em três décadas. Os
presídios, contudo, continuaram superlotados e em péssimas condições, além de
distantes das famílias dos detentos. O PCC soube aproveitar as deficiências do
sistema para infiltrar sua ideologia em nove de cada dez unidades, promovendo a
autogestão para impor suas regras e diminuir o sofrimento e o conflito entre os
presos. Também ajudava no transporte dos familiares, em viagens de ônibus que
podiam durar oito horas. “Crescer nas brechas do sistema” era o lema.
A
ponte ligando a facção dentro das prisões às ruas terminou de ser construída no
fim dos anos 1990, com os telefones celulares e o crescimento acelerado da
população carcerária. Entre os anos de 1990 e 2020, mais de 1 milhão de pessoas
passaram por uma de suas unidades. Quanto maior a quantidade de presos, mais
crescia o tamanho da massa de manobra à disposição dos chefes e o volume de
conexões entre as prisões e as ruas. O discurso pregando o bom senso e o fim da
competição selvagem entre bandidos foi gradualmente se espalhando.
Sem
que eu tivesse planejado, acompanhei a chegada de uma célula do PCC ao Grajaú,
bairro pobre do extremo sul de São Paulo. A história envolveu alguns dos
matadores que eu tinha entrevistado em 1999, Wolverine, o ex-humano, e seus
aliados Zé Botinho e Baixinho — apelidos que eles mesmo sugeriram para serem
identificados nas entrevistas que me concederam. Eles foram assassinados em
2006 pelos irmãos do PCC que chegavam no território. A execução, nesse caso,
não foi precedida por um debate. Meus entrevistados faziam parte do grupo de
matadores que estabeleciam ordem no bairro, e, por isso, estavam sempre
envolvidos em conflitos com os vizinhos. Eles foram chamados para negociar com
o disciplina da quebrada, mas tratava-se de uma armadilha. Ao chegar ao local,
foram amarrados, mortos, e os corpos foram colocados dentro de um carro que
acabou incendiado. Eu soube disso porque tive acesso aos depoimentos que
Flamarion, outro integrante do grupo de matadores, deu à polícia na condição de
testemunha protegida. Flamarion, por sua vez, foi executado em 2007 na rua de
casa e morreu em frente ao filho de sete anos.
A
morte de Flamarion e de seus amigos tinha o objetivo de eliminar os focos de
resistência e as velhas rivalidades entre bancas e indivíduos das quebradas
violentas, assim como a memória de tantas vinganças. Para imperar a igualdade e
a justiça no crime, as divindades matadoras não podiam mais existir. A
legitimidade do PCC também advinha da percepção de que o florescimento dos
novos valores exigia certos sacrifícios. A presença dessas células da irmandade,
que já dominavam os presídios, foi se tornando cada vez mais natural nos
bairros, assim como os debates para mediar conflitos. Ninguém estava acima das
leis do crime. O PCC inovava na gestão do cotidiano ao exercer o papel de uma
agência reguladora do mercado, atuando diretamente nas prisões e nas quebradas.
Mesmo ilegais, agora havia regras ditadas por uma estrutura inteligente e
durável que não estava ligada a nomes ou pessoas, mas a funções. A vã tentativa
de impor a lei não dependia mais da vontade de matadores nem de seus
preconceitos, idiossincrasias e prepotência.
Como
a estrutura não dependia de indivíduos, o isolamento ou a morte de um sintonia
ou disciplina não afetava seu funcionamento, já que outro irmão podia ser
colocado no lugar para cumprir a mesma tarefa. Além de atuar para que as leis
fossem cumpridas, os sintonias podiam ter missões específicas e atividades
referentes ao varejo do tráfico de drogas (a arrecadação de dinheiro para
bancar a estrutura burocrática da facção), à gestão dos novos filiados, à
relação com criminosos de outros estados ou países, à obtenção de transporte
para a visita de familiares a presídios, à contratação de advogados, entre
outros trabalhos. A estabilidade estrutural e a produção de obediência fizeram com
que o mercado criminal se tornasse previsível e que seus participantes
progredissem. A competição entre os empreendedores ilegais não era mais
disputada a balas. A irmandade assumiu o uso da força ampliando as
oportunidades de negócios e o networking da nova rede criminal.”
3. Karina Biondi, “Tecendo as
ramas do significado: As facções prisionais enquanto organizações fundantes de
padrões sociais”. In: Miriam Pillar Grossi, Maria Luiza Heilborn, Lia Zanotta
Machado. Antropologia e direitos humanos. Florianópolis: Nova Letra,
2006.