Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-0002-555-6
Tradução: Fernando
Py
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 312
Sinopse: Ver primeiro
livro
“A realidade, mesmo se necessária, não é
inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato
sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são,
vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm
nenhuma relação com ele.”
“As coisas brilhantes em geral só são feitas
de modo imprevisto. Mas as vidas insensatas, em que o próprio maníaco se priva
de todos os prazeres e se inflige os maiores males, estas vidas são as que
menos mudam. A cada dez anos, caso tivéssemos curiosidade para tanto,
voltaríamos a encontrar o desgraçado dormindo às horas em que poderia viver,
saindo às horas em que não há quase outra coisa a fazer senão deixar-se
assassinar nas ruas, bebendo gelados quando está com calor, sempre se curando
de uma gripe. Bastaria um pequeno movimento de energia, um único dia, para
mudar isto de uma vez por todas. Porém justamente essas vidas são de hábito o
apanágio de seres incapazes de energia. Os vícios são um outro aspecto dessas
existências monótonas, que a força de vontade bastaria para tornar menos
atrozes.”
“Uma objeção mais grave, se tivesse fundamento,
seria dizer que tudo isso nos é estranho e que é preciso extrair poesia da
verdade bem próxima. A arte extraída do real mais familiar existe de fato e seu
domínio é talvez o maior. Mas não é menos verdade que um grande interesse, por
vezes a beleza, pode nascer de ações decorrentes de uma forma de espírito de
tal modo distanciada de tudo o que sentimos, de tudo em que acreditamos, que
nem sequer podemos chegar a compreendê-las, e elas se apresentam diante de nós
como um espetáculo sem motivo. Que existe de mais poético do que Xerxes, filho
de Dário, mandando açoitar as águas que haviam engolido seus barcos?”.
“Lembrava-me,
havia conhecido uma primeira Albertine; depois, bruscamente, ela se mudara numa
outra, a atual. E pela mudança não podia eu responsabilizar a ninguém, só a mim
mesmo. Tudo o que ela teria logo me confessado facilmente, de bom grado, quando
éramos bons camaradas, deixara de expandir-se desde que julgara que eu a amava,
ou talvez sem pronunciar o nome do Amor, adivinhara um sentimento inquisitorial
que pretende saber, entretanto sofre ao saber, e procura saber ainda mais.
Desde aquele dia ela me ocultara tudo.”
“(...) enfim, dias aos quais se podem
comparar aqueles em que ocorre, na nossa vida, uma crise excepcional e da qual
o que nunca fez nada pensa que vai extrair, se tudo termina bem, hábitos de
trabalho: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai se dar em
condições especialmente perigosas; então lhe aparece, de súbito, no momento em
que talvez lhe vá ser tirada, o preço de uma existência de que poderia ter
aproveitado para iniciar uma obra ou simplesmente desfrutar prazeres, e da qual
não soube gozar nada. “Se pudesse escapar com vida” pensa ele, “como começaria
logo a trabalhar e também como haveria de me divertir!”. De fato, a vida
assumiu de repente, a seus olhos, um valor bem maior, pois ele põe nela tudo o
que lhe parece que ela pode lhe oferecer, e não o pouco que ele lhe faz dar
habitualmente. Vê-a segundo o seu desejo, não como sua experiência lhe ensinou
que ele sabia torná-la, isto é, tão medíocre. Num instante, sua vida se encheu
de labores, de viagens, de excursões a montanhas, de todas as belas coisas que
ele imagina poderão ficar impossíveis com o desfecho funesto desse duelo, sem
pensar que já o eram antes que se tratasse do duelo, devido aos maus hábitos
que, mesmo sem duelo, teriam permanecido. Ele volta para casa sem sequer ter
sofrido um ferimento. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às
excursões, às viagens, a tudo de que há pouco receara por um momento ficar
despojado para sempre pela morte; basta para isso a vida. Quanto ao trabalho –
tendo as circunstâncias excepcionais por efeito exaltar o que de antemão
existia no homem, no trabalhador o trabalho e no preguiçoso a preguiça –, resolve
tirar férias.”
“E no mesmo instante, lembrei-me que
Albertine recusara-me, de manhã, um prazer que de fato poderia tê-la cansado.
Seria então para reservá-lo para outrem, talvez naquela tarde? A quem? Assim é
que é interminável o ciúme, pois mesmo que o ser amado, por exemplo estando
morto, não pode mais provocá-lo com seus atos, ocorre que as lembranças,
posteriormente a todo acontecimento, comportam-se de repente em nossa memória
como outros tantos acontecimentos, lembranças que não tínhamos esclarecido até
então, que nos tinham parecido insignificantes, e às quais basta a nossa
própria reflexão sobre elas, sem nenhum fato exterior, para conferir um sentido
novo e terrível. Não precisamos ser dois, basta estarmos sozinhos no quarto,
pensando, para que se produzam novas traições de nossa amante, mesmo que esteja
morta. Assim, não se deve temer no amor, como na vida comum, apenas o futuro,
mas também o passado, que muitas vezes só se realiza para nós depois do futuro;
e não falamos somente do passado de que ficamos sabendo muito tarde, mas
daquele que conservamos desde longo tempo em nós e que de súbito aprendemos a
decifrar.”
“Na maioria das
vezes, o amor não tem por objeto um corpo, a não ser quando nele se fundem uma
emoção, o medo de perdê-lo, a incerteza de reencontrá-lo. Ora, esse tipo de
ansiedade tem muita afinidade pelos corpos. Ela acrescenta-lhes uma qualidade
que ultrapassa a própria beleza, o que é um dos motivos por que vemos homens,
indiferentes às mulheres mais belas, amarem apaixonadamente algumas que nos
parecem feias. A essas criaturas, a essas criaturas de fuga, sua natureza e a
nossa inquietação emprestam asas. E até junto a nós o seu olhar parece dizer
que vão alçar vôo. A prova dessa beleza, que excede a beleza acrescentada pelas
asas, é que, muitas vezes, para nós, uma mesma criatura é sucessivamente alada
e sem asas. Basta recearmos perdê-la para esquecermos todas as outras. Certos
de conservá-la, comparamo-la a essas outras, que logo preferimos a ela. E, como
essas emoções e certezas podem alternar-se de uma semana para outra, uma
criatura pode, numa semana, ver sacrificarem-lhe tudo o que lhe agradava, na
semana seguinte ser sacrificada, e assim por diante durante muito tempo. O que
seria incompreensível, se não soubéssemos pela experiência que todo homem tem
de ter em sua vida, ao menos uma vez, deixado de amar, esquecido uma mulher, o
pouco em si mesma que é uma criatura quando já não o é mais, ou não é ainda
permeável às nossas emoções.”
“O amor, tanto na ansiedade dolorosa como no
desejo feliz, é a exigência de um todo. Ele só nasce, só subsiste se resta uma
parte a conquistar. Só se ama aquilo que não se possui completamente.”
“Se as próprias meretrizes (desde que as
saibamos meretrizes) nos atraem tão pouco, não é que sejam menos bonitas que as
outras, é que elas estão inteiramente a nosso dispor; é que o que se busca
exatamente atingir elas já no-lo ofertam; é que não são conquistas. O
afastamento aí é mínimo. Uma prostituta já nos sorri na rua como o fará junto a
nós. Somos escultores. Queremos obter de uma mulher uma estátua inteiramente
diversa da que ela nos apresentou. Vimos uma jovem indiferente, mal-educada, à
beira-mar; vimos uma caixeira ativa e séria, no seu balcão, que nos responderá
com secura, ainda que seja apenas para não se tornar objeto das zombarias das
companheiras, uma vendedora de frutas que mal nos responde. Pois bem, não sossegamos
enquanto não pudermos experimentar se a jovem altiva de beira-mar, se a
caixeira que pouco se importa com o que dizem dela, se a distraída vendedora de
frutas não são suscetíveis, depois de manobras sagazes de nossa parte, de
concordarem dobrar sua atitude retilínea, de rodear-nos o pescoço com esses
braços que trazem frutas, de inclinar sobre nossa boca, num sorriso que
consente, os olhos até então glaciais ou distraídos – ó beleza dos olhos
severos nas horas de trabalho, em que a operária receava tanto a maledicência
das companheiras, olhos que se furtavam aos nossos olhares obsessivos e que
agora, que estamos a sós, baixam as pupilas ao peso ensolarado do riso quando
falamos de fazer amor! (...) Assim, passamos toda a nossa vida em inquietas
manobras, incessantemente renovadas, junto às jovens sérias e cujo mister
parece afastá-las de nós. Uma vez em nossos braços, elas já não são o que eram,
está suprimida a distância que sonhávamos franquear. Porém recomeçamos com
outras mulheres, com tais empreendimentos gastamos todo o tempo de que
dispomos, todo o dinheiro, todas as forças, explodimos de raiva contra o
cocheiro demasiado lento que talvez nos faça perder o primeiro encontro, temos
febre. Esse primeiro encontro, sabemos todavia que acarretará o desvanecimento
de uma ilusão. Não importa; enquanto durar a ilusão, queremos ver se podemos
mudá-la em realidade, e então pensamos na lavadeira em cuja frieza reparamos. A
curiosidade amorosa (...) sempre decepcionada, renasce e permanece sempre
insaciável.”
“O ciúme, que traz uma venda nos olhos, não é
só impotente para descobrir alguma coisa nas trevas que o cercam; é também um
dos suplícios em que a tarefa é recomeçar sem descanso, como a das Danaides,
como a de Íxion.”
“Infelizmente, com os começos de uma mentira
de nossa amante ocorre o mesmo que com os começos do nosso próprio amor, ou com
os começos de uma vocação. Eles se formam, conglomeram-se e passam
despercebidos de nossa própria atenção. Quando queremos nos lembrar de que modo
começamos a amar uma mulher, já estamos amando; dos devaneios de antes, não
dizíamos: é o prelúdio de um amor, estejamos atentos; e eles avançavam de
surpresa, mal notados por nós.”
“Poderia a vida consolar-me da arte, haveria
na arte uma realidade mais profunda em que nossa personalidade verdadeira
encontrasse uma expressão que não lhe conferem as ações da vida? Todo grande
artista parece de fato de tal modo diverso dos outros, e tanto nos dá aquela
sensação de individualidade que em vão buscamos na existência cotidiana!”
“A gente acha inocente desejar outras
pessoas, mas atroz que nossa parceira o faça”.
“O fato de ter proclamado (como chefe de um
partido político, como qualquer coisa) ser atroz mentir, obriga na maioria das
vezes a mentir mais que os outros, sem por isso abandonar a máscara solene, nem
depor a tiara augusta da sinceridade.”
“Toda criatura amada, e até, em certa medida,
qualquer criatura, é para nós como o deus Jano, apresentando-nos a fronte que
nos agrada, se essa criatura nos abandona; e a fronte sombria se a temos à
nossa disposição permanente.”
“E que desgraça para um amante apaixonado não
perceber que, ao passo que vê um belo rosto à sua frente, sua amante está vendo
o dele, que, ao contrário, não fica mais belo quando se deforma pelo prazer que
nele faz surgir a vista da beldade.”
“O amor, melhor dizendo, o prazer tanto
entranhado na carne, auxilia no trabalho das letras porque anula outros
prazeres, por exemplo, os prazeres da sociedade, que são os mesmos para todo
mundo. E, mesmo se esse amor traz desilusões, ao menos agita desse modo também
a superfície da alma, que sem isso se arriscaria a ficar estagnada. Assim, o
desejo não é inútil para o escritor, pois primeiro o afasta dos outros homens e
o conforma a eles; e em seguida restitui algum movimento a uma máquina
espiritual que depois de certa idade, tende a se imobilizar. Não se chega a ser
feliz, mas assinalam-se as razões que impedem de sê-lo e que nos ficariam
invisíveis sem essas fendas bruscamente abertas pela decepção. E os sonhos, é
claro, não são realizáveis, bem sabemos; não os conceberíamos talvez sem o
desejo, e é útil concebê-los para os ver fracassarem e para que seu fracasso
nos sirva de lição.”
“São tantas as mortes quantas as pessoas.”
“A mentira é o pasto de todas as conversas.”
“‘Um cortesão
devoto sob um príncipe devoto teria sido ateu sob um príncipe ateu’,
disse La Bruyere”.
“O leão deixa os
tigres sossegados”
“Se possuíssemos apenas membros, como as
pernas e os braços, a vida seria suportável. Infelizmente trazemos em nós esse
pequeno órgão a que chamamos coração, o qual está sujeito a certas enfermidades
em cujo decorrer ele se torna infinitamente impressionável a tudo que se refere
à vida de uma certa pessoa, e assim uma mentira – essa coisa tão inofensiva e
no meio da qual vivemos tão alegremente, quer seja dita por nós ou pelos outros
– vinda dessa pessoa, dá a esse coraçãozinho, que deveria poder ser extraído
cirurgicamente, crises intoleráveis. Nem falemos do cérebro, pois nosso
pensamento, por mais que raciocinemos sem parar no decurso dessas crises, não
as modifica em nada, assim como a nossa atenção não alivia uma dor de dentes. É
certo que tal pessoa é culpada de nos haver mentido, pois tinha jurado
dizer-nos sempre a verdade. Mas sabemos por nós próprios, pelos outros, o que
valem tais juramentos. E desejáramos crer neles quando provinham dela, que
tinha justamente todo o interesse em nos mentir, e, por outro lado, não fora
por nós escolhida por suas virtudes. É verdade que posteriormente ela quase já
não teria necessidade de nos mentir justamente quando o coração se tornasse
indiferente à mentira porque não nos interessaremos mais pela sua vida. Sabemos
disto e contudo sacrificamos de bom grado a nossa, ou porque nos matamos por
essa pessoa, ou porque nos fazemos condenar à morte ao assassiná-la, ou
simplesmente porque gastamos em poucos anos toda a nossa fortuna com ela, o que
em seguida nos obriga ao suicídio, pois não temos mais nada. Aliás, por mais
tranquilos que nos julguemos ao amar, sempre trazemos o amor no coração em
estado de equilíbrio instável. Uma coisinha de nada basta para colocá-lo em
posição de felicidade, ficamos radiantes, cobrimos de carinho não aquela a quem
amamos, mas todos aqueles que nos fizeram valer a seus olhos, que a
resguardaram contra qualquer tentação moral; julgamo-nos tranquilos e basta uma
frase (desfavorável) para que se aniquile toda a felicidade preparada a que nos
lançávamos, para que o sol se esconda, para que gire a rosa-dos-ventos e se
desencadeie a tempestade interior a que um dia já não seremos capazes de
resistir.”
“Mas nós afiguramos o futuro como um reflexo
do presente projetado no espaço vazio, ao passo que ele é com frequência o
resultado bem próximo de causas que na maioria nos escapam.”
“E, no amor, é mais fácil renunciar a um
sentimento do que perder um hábito.”