Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3590-470-3
Tradução: José Marcos Mariani de Macedo
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 336
Sinopse: A
ética protestante e o “espírito” do capitalismo, ensaio clássico de Max
Weber (1864-1920) sobre a ética puritana e a cultura capitalista moderna, foi
publicado nos anos de 1904 e 1905, na revista alemã Archiv für
Sozialwissenschaft. Uma segunda versão apareceria em 1920, ampliada e revista
pelo próprio autor, que adicionou passagens ao ensaio, aprimorou conceitos e
formulou outros – como os de desencantamento do mundo e ação racional –, fez
ajustes terminológicos e incluiu numerosas notas de rodapé. Esta edição reúne
num só texto as duas versões do livro de Weber: o ensaio original de 1904 e os
acréscimos de 1920. A identidade dos dois textos é preservada: as passagens da
segunda versão são destacadas entre colchetes, permitindo uma nova leitura
àqueles que já conhecem o estudo e uma leitura completa aos que têm o primeiro
contato com ele. A nova tradução (feita do alemão), promove, assim, a retomada
crítica da versão original ao aliá-la à versão definitiva, feita na plena
maturidade intelectual e pessoal do autor. O estudo analisa a gênese da cultura
capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana adotada por
igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações
estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo
geral, mais bem-sucedidos nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes
ao estudo foram feitos no ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer
parte dos Ensaios reunidos de sociologia da religião.
Antônio Flávio Pierucci, professor do departamento de
sociologia da USP que há doze anos se dedica ao estudo da obra de Weber, é o
autor da introdução ao volume, responsável pela edição e pelo acompanhamento
técnico do texto traduzido. Elaborou também um glossário, uma tábua de
correspondência vocabular, uma cronologia da vida e da obra de Weber e um farto
índice remissivo.
“Ora, a menor participação dos católicos na
moderna vida de negócios na Alemanha é tanto mais notável por contrariar a
averiguação desde sempre feita [no passado e também] no presente, a saber:
minorias nacionais ou religiosas, ao se contraporem como “dominadas” a um outro
grupo visto como “dominante”, tendem, em
virtude de sua exclusão, seja ela voluntária ou involuntária, das posições
politicamente influentes, a ser fortemente impelidas para os trilhos da
atividade aquisitiva; seus membros mais bem-dotados buscam satisfazer aí uma
ambição que no plano do serviço público não encontra nenhuma valorização. Isso
se fez evidente com os poloneses em vias de incontestável progresso econômico
na Rússia e na Prússia [oriental] — ao contrário da Galícia, em que eles eram o
grupo dominante —, tal como ocorrera com os huguenotes na França sob Luís XIV,
com os não conformistas e os quakers na Inglaterra e — last not least — tem ocorrido com os judeus há dois milênios. Mas,
com os católicos na Alemanha, nada vemos de semelhante efeito, ou pelo menos
nada que salte à vista, e mesmo no passado [ao contrário dos protestantes] não
conheceram eles nenhum desenvolvimento econômico
particularmente saliente nos tempos em que foram perseguidos ou apenas
tolerados, nem na Holanda nem na Inglaterra. [Resta, isso sim, o fato de que os
protestantes (em particular certas correntes internas, que mais adiante serão
tratadas especificamente), seja como
camada dominante ou dominada, seja como maioria ou minoria, mostraram uma inclinação específica para o racionalismo
econômico que não pôde e não pode ser igualmente observada entre os católicos, nem numa nem noutra situação.] A razão desse comportamento distinto deve
pois ser procurada principalmente na peculiaridade intrínseca e duradoura de
cada confissão religiosa, e não
[somente] na [respectiva] situação exterior histórico-política.
Trata-se portanto de investigar primeiro
quais são ou quais foram, dentre os elementos dessa peculiaridade das
confissões, aqueles que atuaram e em parte ainda atuam na direção acima
indicada. Ora, numa consideração superficial feita a partir de certas
impressões modernas, poderíamos cair na tentação de formular assim essa
oposição: que o maior “estranhamento do mundo” próprio do catolicismo, os
traços ascéticos que os seus mais elevados ideais apresentam, deveriam educar
os seus fiéis a uma indiferença maior pelos bens deste mundo. Esse modo de
explicar as coisas corresponde de fato ao esquema de julgamento popularmente
difundido nas duas confissões. Do lado protestante, utiliza-se essa concepção
para criticar aqueles ideais ascéticos (reais ou supostos) da conduta de vida
católica; do lado católico, replica-se com a acusação de “materialismo”, o qual
seria a consequência da secularização de todos os conteúdos da vida pelo
protestantismo. Também um escritor moderno, Martin Offenbacher, houve por bem
formular o contraste que aparece no comportamento das duas confissões
religiosas em face da vida econômica nos seguintes termos: “O católico (...) é
mais sossegado; dotado de menor impulso aquisitivo, prefere um traçado de vida
o mais possível seguro, mesmo que com rendimentos menores, a uma vida arriscada
e agitada que eventualmente lhe trouxesse honras e riquezas. Diz por gracejo a
voz do povo: ‘bem comer ou bem dormir, há que escolher’. No presente caso, o
protestante prefere comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”. De
fato, com a frase “querer comer bem” é possível caracterizar, embora de modo
incompleto mas pelo menos em parte correto, a motivação daquela parcela de
protestantes mais indiferentes à Igreja na Alemanha
de hoje.”
“Está absolutamente assente que o simples
fato da mudança de pátria constitui um dos meios mais poderosos de
intensificação do trabalho. A mesma moça polonesa a quem nenhuma oportunidade
de lucro em sua terra, por mais atraente que fosse, conseguia arrancar de sua
indolência tradicionalista, parece mudar totalmente sua natureza e é capaz de
um formidável rendimento quando trabalha como trabalhadora sazonal em terra
estrangeira. Exatamente o mesmo fenômeno se dá com os emigrados italianos. Que
o decisivo aqui não seja somente a influência educativa de ingressar num “meio
cultural” mais elevado — por mais que esse fator evidentemente concorra para
tal — revela-se no fato de que o mesmo fenômeno ocorre (como na agricultura,
por exemplo) lá onde o modo de atividade
é exatamente o mesmo que no país de origem e o alojamento dos trabalhadores em
barracas provisórias etc. condiciona até mesmo um rebaixamento temporário do
nível de vida que jamais seria tolerado na terra natal. O simples fato de
trabalhar num ambiente totalmente diverso do habitual rompe aqui o
tradicionalismo, um fator “educativo”. Mas é preciso frisar o quanto o
desenvolvimento econômico americano repousa em tais efeitos. Na Antiguidade,
pode-se dizer que o exílio na Babilônia teve para os judeus uma significação
sensivelmente análoga, e o mesmo vale para os persas, por exemplo. — Para os
protestantes, no entanto, como já revela a inegável diferença na peculiaridade
econômica das colônias puritanas da Nova Inglaterra em relação ao Maryland
católico, ao Sul episcopal e ao Rhode Island interconfessional, o impacto de
sua peculiaridade religiosa desempenhou manifestamente o papel de um fator independente [como na Índia para os
jainistas].”
“O “espírito de trabalho”, de “progresso” ou
como se queira chamá-lo, cujo despertar somos tentados a atribuir ao
protestantismo, não pode ser entendido, como hoje sói acontecer, [como se fosse
“alegria com o mundo” ou de qualquer outro modo] em sentido “iluminista”. O
antigo protestantismo de Lutero, Calvino, Knox, Voët, ligava pouquíssimo para o
que hoje se chama “progresso”. Era inimigo declarado de aspectos inteiros da
vida moderna, dos quais, atualmente, já não podem prescindir os seguidores mais
extremados dessas confissões. Se é para encontrar um parentesco íntimo entre
[determinadas manifestações d’]o antigo espírito protestante e a cultura
capitalista moderna, não é em sua
(pretensa) “alegria com o mundo” mais ou menos materialista ou em todo caso antiascética
que devemos procurá-lo, mas sim, queiramos ou não, em seus traços puramente religiosos.”
“Isso faz parte da natureza mesma da
“formação de conceitos históricos”, a saber: tendo em vista seus objetivos
metodológicos, não tentar enfiar a realidade em conceitos genéricos abstratos,
mas antes procurar articulá-la em conexões [genéticas] concretas, sempre e
inevitavelmente de colorido especificamente individual.”
“Acima de tudo, este é o summum bonum dessa “ética”: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro,
no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão
completamente despido de todos os pontos de vista eudemonistas ou mesmo
hedonistas e pensado tão exclusivamente como fim em si mesmo, que, em
comparação com a “felicidade” do indivíduo ou sua “utilidade”, aparece em todo
caso como inteiramente transcendente e simplesmente irracional. O ser humano em
função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser
humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais. Essa
inversão da ordem, por assim dizer, “natural” das coisas, totalmente sem
sentido para a sensibilidade ingênua, é tão manifestamente e sem reservas um Leitmotiv do capitalismo, quanto é
estranha a quem não foi tocado por seu bafo. Mas implica ao mesmo tempo uma
gama de sensações que tocam de perto certas representações religiosas. Se
alguém pergunta: por que afinal é
preciso “fazer das pessoas dinheiro”, Benjamin Franklin, embora fosse ele
próprio de confissão palidamente deísta, responde em sua autobiografia com um
versículo bíblico do Livro dos Provérbios (Pr 22,29) que seu pai, calvinista
estrito, conforme ele conta, não se cansava de lhe pregar na juventude: “Vês um
homem exímio em sua profissão? Digno
ele é de apresentar-se perante os reis”. Na ordem econômica moderna, o ganho de
dinheiro — contanto que se dê de forma legal — é o resultado e a expressão da
habilidade na profissão, e essa habilidade,
é fácil reconhecer na passagem citada como em todos os seus escritos sem
exceção, constitui o verdadeiro alfa e ômega da moral de Franklin.
De fato: essa ideia singular, hoje tão comum
e corrente e na verdade tão pouco autoevidente, da profissão como dever, de uma obrigação que o indivíduo deve sentir,
e sente, com respeito ao conteúdo de sua atividade “profissional”, seja ela
qual for, pouco importa se isso aparece à percepção espontânea como pura
valorização de uma força de trabalho ou então de propriedades e bens (de um
“capital”) — é essa ideia que é característica da “ética social” da cultura
capitalista e em certo sentido tem para ela uma significação constitutiva. Não
que ela tenha crescido somente no
solo do capitalismo: pelo contrário. E muito menos, é claro, se pode afirmar
que a apropriação subjetiva dessa máxima ética por seus portadores individuais,
digamos, os empresários ou os operários da moderna empresa capitalista, seja
uma condição de sobrevivência para o capitalismo hodierno. Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso
cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto
indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da
qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado,
as normas de ação econômica. O fabricante que insistir em transgredir essas
normas é indefectivelmente eliminado, do mesmo modo que o operário que a elas
não possa ou não queira se adaptar é posto no olho da rua como desempregado.
O capitalismo hodierno, dominando de longa
data a vida econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos
econômicos — empresários e operários — de que necessita. E entretanto é
justamente esse fato que exibe de forma palpável os limites do conceito de
“seleção” como meio de explicação de fenômenos históricos. Para que essas
modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à
peculiaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham
podido sobrepujar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir,
evidentemente, e não apenas em indivíduos singulares isolados, mas sim como um
modo de ver portado por grupos de
pessoas. Portanto, é essa emergência de um modo de ver que se trata
propriamente de explicar. Só alhures teremos ocasião de tratar no pormenor
daquela concepção do materialismo histórico ingênuo segundo a qual “ideias”
como essa são geradas como “reflexo” ou “superestrutura” de situações
econômicas. Por ora, é suficiente para nosso propósito indicar: que na terra
natal de Benjamin Franklin (o Massachusetts) o “espírito do capitalismo” (no
sentido por nós adotado) existiu incontestavelmente antes do “desenvolvimento do capitalismo” [(já em 1632 na Nova
Inglaterra, havia queixas quanto ao emprego do cálculo na busca de lucro, em
contraste com outras regiões da América)]; e que esse “espírito capitalista”
permaneceu muito menos desenvolvido, por exemplo, nas colônias vizinhas — os
futuros estados sulistas da União — muito embora estas últimas tivessem sido
criadas por grandes capitalistas com finalidades mercantis, ao passo que as colônias da Nova Inglaterra tinham sido
fundadas por razões religiosas por
pregadores e intelectuais em associação com pequeno-burgueses, artesãos e yeomen. Neste caso, portanto, a relação
de causalidade é de todo modo inversa àquela que se haveria de postular a
partir de uma posição “materialista”. Mas a juventude de tais ideias é mais
cravejada de espinhos do que o supõem os teóricos da “superestrutura”, e elas
não desabrocham feito flor. Para se impor, o espírito capitalista, no sentido
que até agora emprestamos a esse conceito, teve de travar duro combate contra
um mundo de forças hostis. Uma disposição como a que se expressa nas passagens
citadas de Benjamin Franklin e que obteve o aplauso de todo um povo teria sido
proscrita tanto na Antiguidade quanto na Idade Média, tanto como expressão da
mais sórdida avareza quanto como uma disposição simplesmente indigna, e ainda
hoje essa suspeita normalmente se verifica entre aqueles grupos sociais menos
envolvidos na economia capitalista especificamente moderna ou a ela menos
adaptados. E isso não porque “o impulso aquisitivo” ainda fosse coisa
desconhecida ou pouco desenvolvida em épocas pré-capitalistas — como se tem
dito tantas vezes — nem porque a auri
sacra fames, a cobiça, naquele tempo — ou ainda hoje — fosse menor fora do capitalismo burguês do que
dentro da esfera especificamente capitalista, que é como a ilusão dos modernos
românticos concebe a coisa. A diferença entre “espírito” capitalista e
pré-capitalista não reside neste ponto, não: a cupidez do mandarim chinês, do aristocrata da Roma antiga, do
latifundiário moderno resiste a toda comparação. E a auri sacra fames do cocheiro ou do barcaiuolo napolitano ou ainda do representante asiático de
semelhantes atividades, mas também a do artesão da Europa do Sul ou dos países
asiáticos se expressa, como qualquer um pode constatar por si mesmo, de uma
forma extraordinariamente mais aguçada
e em particular menos escrupulosa do que, digamos, a de um inglês em igual
situação. A [disseminada preponderância da] absoluta
falta de escrúpulos na afirmação do interesse pessoal no ganho pecuniário foi
justamente uma característica específica daqueles países cujo deslanche
capitalista-burguês [— mensurado segundo a escala do desenvolvimento ocidental
—] se mantivera “em atraso”. Nesses países, haja vista o caso da Itália em
contraste com a Alemanha, todo fabricante sabe que a falta de coscienziosità dos trabalhadores foi e
continua a ser em certa medida um dos principais obstáculos ao seu
desenvolvimento capitalista. O capitalismo não pode empregar como operários os
representantes práticos de um liberum
arbitrium indisciplinado, do mesmo modo que também não lhe pode servir, se
é que aprendemos alguma coisa com Franklin, aquele homem de negócios cujo
comportamento externo for simplesmente sem escrúpulos. A diferença, portanto,
não está no grau de desenvolvimento de qualquer “pulsão” pecuniária. A auri sacra fames é tão velha quanto a
história da humanidade que conhecemos; veremos no entanto que aqueles que a
essa pulsão se entregaram sem reservas — feito aquele capitão de mar holandês
que “por ganância estava disposto a varar o inferno, mesmo que dali saísse com
as velas em chamas” — não eram de modo algum os representantes daquela
disposição da qual se originou — e é isso o que importa — o “espírito”
capitalista [especificamente moderno] como fenômeno
de massa. [O ganho desbragado, sem vínculo interno com norma nenhuma,
sempre existiu em todos os períodos da história, onde quer e como quer que de
fato fosse possível. Como a guerra e a pirataria, assim também o livre-comércio
sem regulação não via obstáculos para se relacionar com os estrangeiros, com
desconhecidos; aqui a “moral externa” permitia o que na relação “entre irmãos”
era vedado. E como, externamente, o lucro capitalista enquanto “aventura” se
sentia em casa em todas as constituições econômicas que toleravam fortunas
monetárias e ofereciam oportunidades de fazê-las frutificar: mediante comenda,
contrato de coleta de impostos, empréstimos ao Estado, financiamento de guerras
e cortes, cargos no funcionalismo, assim também essa disposição aventureira que
se ri das barreiras éticas se alastrou por toda parte. O absoluto e consciente
desregramento da ânsia de ganhar andou de braços dados muitas vezes com o mais
estrito apego aos laços tradicionais. Com o desmoronamento da tradição e a
irrupção mais ou menos enérgica do livre lucro no seio mesmo dos grupamentos
sociais, o que se seguiu não foi uma afirmação do cunho ético dessa novidade,
tendo sido simplesmente tolerada como
um dado factual, considerado eticamente indiferente ou mesmo lamentável, se bem
que infelizmente inevitável. Essa foi não apenas a tomada de posição normal de
todas as doutrinas éticas, mas também — e isto é o que substancialmente mais
importa — do comportamento prático do homem médio da era pré-capitalista:
“pré-capitalista” no sentido de que a valorização racional do capital no quadro
da empresa e a organização
capitalista racional do trabalho
ainda não haviam se tornado as potências dominantes na orientação da ação
econômica. Foi precisamente essa atitude um dos mais fortes obstáculos
espirituais com que se defrontou a adaptação dos seres humanos aos pressupostos
de uma ordem econômica de cunho capitalista-burguês.]
O adversário com o qual teve de lutar o
“espírito” do capitalismo [no sentido de um determinado estilo de vida regido
por normas e folhado a “ética”] foi em primeiro lugar [e continuou sendo]
aquela espécie de sensibilidade e de comportamento que se pode chamar de tradicionalismo. Também nesse caso é
preciso sustar toda tentativa de uma “definição” conclusiva; tentemos em
compensação, a partir de alguns casos específicos e começando de baixo: dos
trabalhadores, deixar claro — também aqui a título provisório, naturalmente — o
que se quer dizer com “tradicionalismo”.
Um dos meios técnicos que o empresário
moderno costuma aplicar para obter de “seus” operários o máximo possível de
rendimento no trabalho e aumentar a intensidade do trabalho é o salário por tarefa. Na agricultura, por
exemplo, um caso que reclama imperiosamente o aumento máximo da intensidade do
trabalho é o da colheita, visto que, notadamente quando o clima é incerto,
oportunidades de lucros ou de prejuízos extraordinariamente altos dependem
muitas vezes da possibilidade de sua aceleração. Daí o costume de usar quase
sempre o sistema de salário por tarefa. E como, com o aumento das receitas e da
intensidade do empreendimento, em geral costuma crescer o interesse do
empresário em acelerar a colheita, é óbvio que repetidas vezes se tentou
interessar os trabalhadores na elevação do rendimento de seu trabalho mediante
a elevação da taxa de remuneração por
tarefa, o que lhes daria em curto espaço de tempo a oportunidade de um ganho
que para eles era excepcionalmente alto. Só que aí surgiram dificuldades
peculiares: o aumento do pagamento por tarefa o mais das vezes não teve por
resultado maior produtividade do trabalho no mesmo intervalo de tempo, mas sim
menor, porque os trabalhadores respondiam aos aumentos das taxas de remuneração
não com o incremento da produtividade diária, mas sim com a sua diminuição. O
homem que, por exemplo, à razão de um marco por jeira na ceifa de trigo
estivesse acostumado até ali a ceifar duas jeiras e meia por dia ganhando assim
2,50 marcos por dia, depois que a remuneração por jeira foi aumentada em 25 Pfennige ele passou a ceifar não as três
jeiras como seria de esperar a fim de aproveitar a oportunidade de um ganho
maior; em vez de ganhar 3,75 marcos — o que seria perfeitamente possível — o
que ele fez foi passar a ceifar menos, só duas jeiras por dia, já que assim
ganhava diariamente os mesmos 2,50 marcos de antes e, como lá diz a Bíblia,
“com isso se contentava”. Ganhar mais o atraía menos que o fato de trabalhar
menos; ele não se perguntava: quanto posso ganhar por dia se render o máximo no
trabalho? e sim: quanto devo trabalhar para ganhar a mesma quantia — 2,50
marcos — que recebi até agora e que cobre as minhas necessidades tradicionais? Eis um exemplo justamente
daquela atitude que deve ser chamada de “tradicionalismo”: o ser humano não
quer “por natureza” ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, mas simplesmente
viver, viver do modo como está habituado a viver e ganhar o necessário para
tanto. Onde quer que o capitalismo [moderno] tenha dado início à sua obra de
incrementar a “produtividade” do trabalho humano pelo aumento de sua
intensidade, ele se chocou com a resistência infinitamente tenaz e obstinada
desse Leitmotiv do trabalho na
economia pré-capitalista, e choca-se ainda hoje por toda parte, tanto mais
quanto mais “atrasada” (do ponto de vista capitalista) é a mão de obra da qual
se vê depender. Agora — para voltar ao nosso exemplo —, já que o apelo ao
“senso aquisitivo” pela oferta salário mais alto por tarefa terminou em
fracasso, seria muito natural recorrer ao método exatamente inverso: tentar a redução dos salários a fim de obrigar o
trabalhador a produzir mais do que
antes para manter o mesmo ganho. Aliás, a uma consideração desatenta já pôde
parecer e ainda hoje parece que há uma correlação entre salário menor e lucro
maior e tudo o que é pago a mais em salários significa por força uma
correspondente diminuição dos lucros. Pois esse caminho, também o capitalismo
desde o início o trilhou e repetidamente tornou a trilhá-lo, e por séculos a
fio vigorou como um artigo de fé que salários baixos eram “produtivos”, que
eles aumentavam o rendimento do trabalho e que, como já dizia Pieter de la Cour
— em plena concordância, nesse ponto, com o espírito do antigo calvinismo,
conforme veremos: o povo só trabalha porque é pobre, e enquanto for pobre.
Só que a eficácia desse meio aparentemente
tão testado tem limites. É certo que para sua expansão o capitalismo requer a
existência de um excedente populacional que ele possa alugar a preço baixo no
mercado de trabalho. Só que um excesso de “exército de reserva”, se em dadas
circunstâncias favorece sua expansão quantitativa, entrava por outro lado seu
desenvolvimento qualitativo, mormente a transição a formas empresariais que
explorem o trabalho intensivo. Salário baixo não é de modo algum idêntico a
trabalho barato. Mesmo de uma perspectiva puramente quantitativa, a
produtividade do trabalho cai em quaisquer circunstâncias com um salário
fisiologicamente insuficiente e, a longo prazo, vai significar uma verdadeira
“seleção dos mais incompetentes”. Hoje um silesiano médio ceifa, com esforço
máximo, pouco mais de dois terços da gleba que, no mesmo intervalo, ceifa um
pomerânio ou um meclemburguês mais bem remunerado e mais bem nutrido; o
polonês, fisicamente, produz tanto menos quanto mais a leste se encontrar, em
comparação com o alemão. E também do ponto de vista apenas dos negócios, o
baixo salário fracassa como fator de desenvolvimento capitalista sempre que se
trata do fabrico de produtos que exijam um trabalho qualificado (uma formação)
ou o manejo de máquinas caras e delicadas ou, de modo geral, quando se precisa
de uma dose considerável de atenção e iniciativa. Nesses casos o salário baixo
não rende, e seu efeito é o oposto do pretendido. Pois aqui não se faz
indispensável simplesmente um elevado senso de responsabilidade, mas também uma
disposição que ao menos durante o trabalho esteja livre da eterna questão de
como, com um máximo de comodidade e um mínimo de esforço, ganhar o salário de
costume; e mais, uma disposição de executar o trabalho como se fosse um fim
absoluto em si mesmo — como “vocação”. Mas tal disposição não está dada na
natureza. E tampouco pode ser suscitada diretamente, seja por salários altos
seja por salários baixos, só podendo ser o produto de um longo processo
educativo. Hoje em dia, firme na sela
como está, o capitalismo consegue recrutar com relativa facilidade seus
trabalhadores em todos os países industrializados e, no interior de cada país,
em todas as regiões industrializadas. No passado, esse era a cada caso um dos
problemas mais difíceis.”
“Tende-se a crer que essas qualidades morais pessoais não têm em si absolutamente
nada a ver com quaisquer máximas éticas ou mesmo com noções religiosas, que,
nessa direção, o fundamento adequado de uma conduta de vida como essa de
negócios seria essencialmente algo negativo: a capacidade de se livrar da tradição herdada, em suma,
um “iluminismo” liberal. E de fato esse é geralmente o caso nos dias de hoje, sem dúvida. Não só
falta uma relação regular entre conduta de vida e premissas religiosas, mas,
onde existe a relação, costuma ser de caráter negativo, pelo menos na Alemanha.
Pessoas assim de natureza imbuída do “espírito capitalista” costumam ser hoje em dia, se não diretamente hostis à
Igreja, com certeza indiferentes a ela. A ideia do piedoso tédio do paraíso
pouco tem de atraente à sua natureza ativa, a religião lhes aparece como um
meio de desviar as pessoas do trabalho sobre a face da terra. Se alguém lhes
perguntasse sobre o “sentido” dessa caçada sem descanso, que jamais lhes
permite se satisfazerem com o que têm, o que a faz por isso mesmo parecer tão
sem sentido em meio a uma vida puramente orientada para este mundo, quem sabe
então responderiam, se é que têm uma resposta: “preocupação com os filhos e
netos”, mas com mais frequência e mais precisão — já que esse primeiro motivo
evidentemente não lhes é peculiar, tendo vigorado também entre os
“tradicionalistas” — responderão simplesmente que os negócios e o trabalho
constante tornaram-se “indispensáveis à vida”. Esta última é de fato a única
motivação pertinente, e ela expressa ao mesmo tempo [do ponto de vista da
felicidade pessoal] o quanto há de [tão] irracional
numa conduta de vida em que o ser humano existe para o seu negócio e não o
contrário. Claro que a sensação de poder e o prestígio propiciados pelo simples
fato de possuir desempenham aí seu papel: lá onde a fantasia de todo um povo
foi vergada na direção de grandezas puramente quantitativas, como nos Estados
Unidos, esse romantismo dos números exerce irresistível encantamento sobre os
“poetas” que entre os homens de negócios há. Mas em geral não são os
empresários verdadeiramente influentes nem muito menos os de sucesso duradouro
que se deixam cativar por isso.”
“Se portanto, para a análise das relações
entre a ética do antigo protestantismo e o desenvolvimento do espírito
capitalista partimos das criações de Calvino, do calvinismo e das demais seitas
“puritanas”, isso entretanto não deve ser compreendido como se esperássemos que
algum dos fundadores ou representantes dessas comunidades religiosas tivesse
como objetivo de seu trabalho na
vida, seja em que sentido for, o despertar daquilo que aqui chamamos de
“espírito capitalista”. Impossível acreditar que a ambição por bens terrenos,
pensada como um fim em si, possa ter tido para algum deles um valor ético. E
fique registrado de uma vez por todas e antes de mais nada: programas de
reforma ética não foram jamais o ponto de vista central para nenhum dos
reformadores — entre os quais devemos incluir em nossa consideração homens como
Menno, George Fox, Wesley. Eles não foram fundadores de sociedades de “cultura
ética” nem representantes de anseios humanitários por reformas sociais ou de
ideais culturais. A salvação da alma, e somente ela, foi o eixo de sua vida e
ação. Seus objetivos éticos e os efeitos práticos de sua doutrina estavam
ancorados aqui e eram, tão só, consequências
de motivos puramente religiosos. Por isso temos que admitir que os efeitos
culturais da Reforma foram em boa parte — talvez até principalmente, para
nossos específicos pontos de vista — consequências imprevistas e mesmo indesejadas do trabalho dos reformadores,
o mais das vezes bem longe, ou mesmo ao contrário, de tudo o que eles próprios
tinham em mente.”
“A religiosidade específica da Igreja
reformada, em compensação, de saída se colocou [contra a fuga quietista do
mundo defendida por Pascal bem como] contra essa forma luterana de piedade
sentimental voltada puramente para dentro. A penetração real do divino na alma
humana estava excluída pela absoluta transcendência de Deus em relação a tudo o
que é criatura: finitum non est capax
infiniti {o que é finito não é capaz de infinito}. A comunhão entre Deus e
seus escolhidos e a tomada de consciência dessa comunhão só podem se dar pelo
fato de Deus neles agir (operatur) e
eles tomarem consciência disso — pelo fato, portanto, de a ação nascer da fé operada pela graça de Deus e essa fé, por sua
vez, ser legitimada pela qualidade dessa ação. [Profundas diferenças quanto às
condições decisivas para a salvação, válidas em geral para a classificação de
toda religiosidade prática, encontram expressão aqui: o virtuose religioso pode
certificar-se do seu estado de graça quer
se sentindo como receptáculo, quer
como ferramenta da potência divina. No primeiro caso, sua vida religiosa tende
para a cultura mística do sentimento; no segundo, para a ação ascética. Do primeiro tipo estava mais perto Lutero; o
calvinismo pertencia ao segundo.] O reformado {o calvinista} também queria
salvar-se sola fide. Entretanto, dado
que já na visão de Calvino os simples sentimentos e estados de espírito, por
mais sublimes que possam parecer, são enganosos, a fé precisa se comprovar por
seus efeitos objetivos a fim de poder
servir de base segura para a certitudo
salutis: precisa ser uma fides
efficax [e o chamado à salvação, um effectual
calling (termo da Savoy Declaration)]. Ora, se perguntarmos: em quais frutos o reformado {o
calvinista} é capaz de reconhecer sem sombra de dúvida a justa fé, a resposta
será: numa condução da vida pelo cristão que sirva para aumento da glória de Deus. E o que leva a isso é
deduzido de sua divina vontade diretamente revelada na Bíblia ou indiretamente
manifestada nas ordens do mundo criadas segundo fins (lex naturae). É possível controlar seu estado de graça comparando
em especial seu próprio estado de alma com aquele que segundo a Bíblia era
próprio dos eleitos, dos patriarcas por exemplo. Só quem é eleito possui a
verdadeira fides efficax, só ele é
capaz, por conta do seu renascimento (regeneratio)
e da santificação (sanctificatio) da
sua vida inteira, de aumentar a glória de Deus por meio de obras boas
realmente, não apenas aparentemente boas. E estando consciente de que sua
conduta — ao menos no tocante ao seu caráter fundamental e ao seu propósito
constante (propositum oboedientiae) —
se assenta numa força que nele habita para a maior glória de Deus, e portanto [não
é apenas] desejada por Deus, [mas sobretudo] operada por Deus, alcança ele aquele bem supremo a que aspirava
essa religiosidade: a certeza da graça. Que ela possa ser alcançada é
corroborado por 2Cor 13, 5. E, portanto, por absolutamente incapazes que sejam
as boas obras de servir como meio de obter a bem-aventurança eterna — já que o
próprio eleito permanece criatura, e tudo o que ele faz permanece infinitamente
aquém das exigências divinas —, não deixam de ser imprescindíveis como sinais da eleição. [Elas são o meio
técnico, não de comprar a bem-aventurança mas sim: de perder o medo de não
tê-la.] Nesse sentido, de vez em quando elas são designadas diretamente como
“indispensáveis à salvação”, ou a possessio
salutis é vinculada a elas. Ora, em termos práticos isso significa que, no
fim das contas, Deus ajuda a quem se ajuda, por conseguinte o calvinista, como
de vez em quando também se diz, “cria”
ele mesmo sua bem-aventurança eterna — em rigor o correto seria dizer: a
certeza dela —, mas esse criar não pode
consistir, como no catolicismo, num acumular progressivo de obras meritórias
isoladas, mas sim numa autoinspeção sistemática que a cada instante enfrenta a alternativa: eleito ou condenado? Com
isso atingimos um ponto muito importante das nossas considerações.
É sabido que do lado dos luteranos sempre foi
feita a acusação de “santificação pelas obras” a essa linha de pensamento que
com crescente nitidez se foi elaborando nas igrejas e seitas reformadas. E com
carradas de razão — por justificado que fosse o protesto dos acusados contra o
fato de sua posição dogmática estar
sendo assimilada à doutrina católica — quando se pensa nas consequências práticas dessa concepção para o
cotidiano do cristão médio da Igreja reformada. Pois talvez jamais haja existido
forma mais intensa de valorização religiosa da ação moral do que aquela produzida pelo calvinismo em seus adeptos.
Para atinar com a significação prática dessa forma de “santificação pelas
obras”, decisivo em primeiro lugar é saber reconhecer as qualidades que caracterizam essa conduta de vida para diferenciá-la
da vida cotidiana de um cristão médio da Idade Média. Talvez se possa tentar
formulá-la assim: o católico [leigo normal] da Idade Média vivia, do ponto de
vista ético, por assim dizer “von der Hand
in der Mund” {“da mão para a boca”}. Antes de mais nada, cumpria
conscienciosamente os deveres tradicionais. As “boas obras” que por acréscimo
ele viesse a fazer permaneciam como ações isoladas
[que não necessariamente formavam um conjunto coerente e tampouco eram
racionalizadas na forma de um sistema
de vida], ações essas que [dependendo da ocasião] ele executava, por exemplo,
para compensar pecados concretos ou, sob influência dos padres ou então perto
do fim da vida, como se fosse um prêmio de seguro. [Claro que a ética católica
era ética de “convicção”. Só que era a intentio
concreta da ação isolada que decidia sobre seu valor. E a ação isolada — boa ou má — era lançada como
crédito em favor do seu autor, influindo no seu destino eterno e também no
temporal. Bastante realista, a Igreja {católica} apostava que o ser humano não era um todo unitário e não podia ser
julgado de forma absolutamente inequívoca, e sabia que sua vida moral era
(normalmente) um comportamento o mais das vezes muito contraditório,
influenciado por motivos conflitantes. Claro que ela também exigia dele, como
ideal, a mudança de vida em nível de princípios.
Mas mesmo essa exigência vinha mitigada (para a média dos fiéis) por um de seus
instrumentos mais eminentes de poder e educação: o sacramento da confissão,
cuja função estava profundamente ligada à mais íntima das peculiaridades da
religiosidade católica.
O desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação, não foi
realizado na piedade católica com as mesmas consequências que na religiosidade
puritana (e, antes dela, somente na judaica). O católico tinha à sua disposição
a graça sacramental de sua Igreja
como meio de compensar a própria insuficiência: o padre era um mago que operava
o milagre da transubstanciação e em cujas mãos estava depositado o poder das chaves.
Podia-se recorrer a ele em arrependimento e penitência, que ele ministrava
expiação, esperança da graça, certeza do perdão e dessa forma ensejava a descarga daquela tensão enorme, na qual era destino inescapável e implacável do
calvinista viver. Para este não havia consolações amigáveis e humanas, nem lhe
era dado esperar reparar momentos de fraqueza e leviandade com redobrada boa
vontade em outras horas, como o católico e também o luterano.] O Deus do
calvinismo exigia dos seus, não “boas obras” isoladas, mas uma santificação
pelas obras erigida em sistema. [Nem pensar no vaivém católico e autenticamente
humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado, nem
pensar naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado seja por penas
temporais seja por intermédio da graça eclesial.] A práxis ética do comum dos
mortais foi assim despida de sua falta de plano de conjunto e sistematicidade e
convertida num método coerente de
condução da vida como um todo. Não foi por acaso que o rótulo “metodistas”
colou naqueles que foram os portadores do último grande redespertar de ideias
puritanas do século XVIII, da mesma forma que aos seus antepassados espirituais
do século XVII fora aplicada, com plena equivalência de sentido, a designação de
“precisistas”. Pois só com uma transformação radical do sentido de toda a vida,
a cada hora e a cada ação,* o efeito da graça podia se comprovar como um
arranque do status naturae rumo ao status gratiae. A vida do “santo” estava
exclusivamente voltada para um fim transcendente, a bem-aventurança, mas justamente por isso ela era
racionalizada [de ponta a ponta] em seu percurso intramundano e dominada por um
ponto de vista exclusivo: aumentar a glória de Deus na terra — jamais se levou
tão a sério a sentença omnia in majorem
Dei gloriam. E só uma vida regida pela reflexão constante podia ser
considerada superação do status naturalis:
foi com essa reinterpretação ética que os puritanos contemporâneos de Descartes
adotaram o cogito ergo sum. Essa
racionalização conferiu à piedade reformada seu traço especificamente ascético
e consolidou tanto seu parentesco íntimo quanto seu antagonismo específico com
o catolicismo.”
*: De fato — como sublinham os pregadores
puritanos (por exemplo Bunyan em “The
Pharisee and the Publican”, Works of
Pur. Div., p. 126) — um único pecado põe a perder tudo o que ao longo de
uma vida inteira possa acumular-se em “mérito” através de “boas obras”, se é
que — coisa impensável — a pessoa fosse capaz por si mesma de realizar algo que
Deus tivesse de creditar-lhe como mérito, ou mesmo pudesse viver perpetuamente
em perfeição. Não há, como no catolicismo, uma espécie de conta corrente com
balanço de saldo — uma imagem já corrente na Antiguidade —, porquanto para toda
a vida vigora a alternativa abrupta: estado de graça ou condenação.
“Toda
vivência religiosa perde conteúdo assim que se tenta formulá-la racionalmente, e tanto mais quanto mais
avança a formulação conceitual. Reside nessa dificuldade a razão dos conflitos
trágicos que envolvem todas as teologias racionais.”
“Um homem sensato não deve não crer e um
homem que crê não deve ser insensato”. (Nikolaus Zinzendorf)
“A ascese protestante intramundana agiu com
toda a veemência contra o gozo
descontraído das posses; estrangulou o consumo, especialmente o consumo de luxo. Em compensação, teve o
efeito [psicológico] de liberar o enriquecimento
dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cerceavam a
ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no sentido
descrito) como diretamente querido por Deus. A luta contra a concupiscência da
carne e o apego aos bens exteriores não
era, conforme atesta de forma explícita o grande apologista dos quakers,
Barclay, junto com os puritanos, uma luta contra o ganho [racional] [mas contra o uso irracional das posses]. Este
consistia sobretudo na valorização das formas ostensivas de luxo, tão aderidas à sensibilidade feudal e agora
condenadas como divinização da criatura, em vez do emprego racional e
utilitário da riqueza, querido por Deus, para os fins vitais do indivíduo e da
coletividade. Às pessoas de posses ela queria impingir não a mortificação, mas o uso de sua propriedade para coisas
necessárias e úteis em termos práticos.
A noção de comfort circunscreve de
forma característica o âmbito de seus empregos eticamente lícitos, e sem dúvida
não é casual que o desenvolvimento do estilo de vida que obedece a essa palavra
de ordem tenha encontrado suas manifestações mais precoces e de maior nitidez
entre os representantes mais consequentes dessa visão de mundo: os quakers. Aos
brilhos e clarões do fausto cavalheiresco, que, assentado em bases econômicas
vacilantes, prefere a elegância sórdida à sóbria simplicidade, eles opõem como
ideal o conforto asseado e sólido do home
burguês.
A ascese lutou do lado da produção da riqueza privada contra a improbidade, da mesma
forma que contra a avidez puramente impulsiva
— condenando esta última com os nomes de covetousness
{cobiça}, mamonismo etc.: a ambição
de riqueza com o fim último de ser
rico. Pois enquanto tal, a posse de fato era uma tentação. Mas aí a ascese era
a força “que sempre quer o bem e sempre faz o mal” — ou seja, o mal no sentido
que ela tinha em mente: a posse e suas tentações. Pois, a exemplo do Antigo
Testamento e em plena analogia com a valorização ética das “boas obras”, ela
via, sim, na ambição pela riqueza como fim
o cúmulo da culpa, mas na obtenção da riqueza como fruto do trabalho em uma profissão, a bênção de Deus. Eis porém
algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho profissional
mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético
simplesmente supremo e a um só tempo comprovação mais segura e visível da
regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim
das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa
concepção de vida que aqui temos chamado de “espírito” do capitalismo. E
confrontando agora aquele estrangulamento do consumo com essa desobstrução da
ambição de lucro, o resultado externo é evidente: acumulação de capital mediante coerção
ascética à poupança. Os obstáculos que agora se colocavam contra empregar
em consumo o ganho obtido acabaram por favorecer seu emprego produtivo: o investimento de capital.”
“Uma consciência limpa é um travesseiro
macio.” (Ditado alemão)
“Porquanto, embora o homem moderno, mesmo com
a melhor das boas vontades, geralmente não seja capaz de imaginar o efetivo alcance da significação que os
conteúdos de consciência religiosos tiveram para a conduta de vida, a cultura e
o caráter de um povo, não cabe contudo, evidentemente, a intenção de substituir
uma interpretação causal unilateralmente “materialista” da cultura e da
história por uma outra espiritualista, também ela unilateral. Ambas são igualmente possíveis, mas
uma e outra, se tiverem a pretensão de ser, não a etapa preliminar, mas a conclusão
da pesquisa, igualmente pouco servem à verdade histórica.”