Editora:
Civilização brasileira
ISBN:
978-85-2000-511-8
Tradutor: Carlos
Nelson Coutinho
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 496
Sinopse: Escritos
por Gramsci no longo período em que esteve preso nos porões da ditadura
fascista italiana, os Cadernos do Cárcere constituem uma das obras mais
importantes da teoria política deste século pois, entre outras coisas, são a
fonte de conceitos e expressões que se integrariam ao nosso vocabulário
cotidiano como “intelectual orgânico”, “hegemonia”, “sociedade civil” e outros.
“O materialismo histórico, compreendido
corretamente, não é um mero economicismo, mas é sim uma dialética
real, que compreende a história superando-a com a ação, e que não separa
história e filosofia, mas – colocando os homens sobre seus pés – faz destes os
artífices conscientes da história, e não os joguetes da fatalidade, na medida
em que os seus princípios, isto é, os seus ideais, centelhas que brotam das
lutas sociais, são precisamente estímulos à práxis que, mediante a sua ação, se
subverte.”
“Pode-se observar como o elemento
determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um “aroma” ideológico imediato da
filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos
narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter
“subalterno” de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa
na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de
derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de
resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou
momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo
prazo, etc.” A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa
racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo
apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência,
etc., próprias das religiões confessionais. Deve-se insistir sobre o fato de
que, também nesse caso, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma
intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita,
velada, que se envergonha de si mesma; portanto, a consciência é contraditória,
carece de unidade crítica, etc. Mas, quando o “subalterno” se torna dirigente e
responsável pela atividade econômica de massa, o mecanicismo revela-se num
certo ponto como um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o
modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo social de ser. Os
limites e o domínio da “força das coisas” se restringiram. Por quê? Porque, no
fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não o é mais: tornou-se uma
pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era
“resistente” a uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é
mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor . Mas,
mesmo ontem, será que ele era apenas simples “resistência”, simples “coisa”,
simples “irresponsabilidade”? Não, por certo; deve-se, aliás, sublinhar que o
fatalismo é apenas a maneira pela qual os fracos se revestem de uma
vontade ativa e real. É por isso que se torna necessário demonstrar sempre a
futilidade do determinismo mecânico, o qual, explicável como filosofia ingênua
da massa e, somente enquanto tal, elemento intrínseco de força, torna-se causa
de passividade, de imbecil autossuficiência, quando é elevado a filosofia
reflexiva e coerente por parte dos intelectuais; e isto sem esperar que o
subalterno torne-se dirigente e responsável. Uma parte da massa, ainda que
subalterna, é sempre dirigente e responsável, e a filosofia da parte precede
sempre a filosofia do todo, não só como antecipação teórica, mas também como
necessidade atual.”
“Coloca-se a questão: não seria necessário,
ao contrário, referir-se apenas aos grandes intelectuais adversários, deixando
de lado os secundários, os repetidores de frases feitas? Tem-se a impressão,
precisamente, de que se pretende combater apenas contra os mais débeis e, até
mesmo, contra as posições mais débeis (ou mais inadequadamente sustentadas
pelos mais débeis), a fim de obter fáceis vitórias verbais (já que é impossível
falar de vitórias reais). Cria-se a ilusão de que existe uma semelhança
qualquer (que não formal e metafórica) entre uma frente ideológica e uma frente
político-militar. Na luta política e militar, pode ser conveniente a tática de
penetrar nos pontos de menor resistência para ganhar condições de investir
sobre o ponto mais forte com o máximo de forças, colocadas à disposição
precisamente por causa da eliminação dos auxiliares mais débeis, etc. As
vitórias políticas e militares, dentro de certos limites, têm um valor
permanente e universal, podendo o fim estratégico ser alcançado de uma maneira
decisiva com efeitos gerais para todos. Na frente ideológica, ao contrário, a
derrota dos auxiliares e dos seguidores menores tem uma importância quase
insignificante; nela, é preciso lutar contra os mais eminentes. Se não for
assim, confunde-se o jornal com o livro, a pequena polêmica cotidiana com o
trabalho científico; os menores devem ser abandonados à casuística infinita da
polêmica jornalística.”
Uma nova ciência alcança a prova da sua eficiência
e fecunda vitalidade quando demonstra saber enfrentar os grandes campeões das
tendências opostas, quando resolve com os próprios instrumentos as questões
vitais colocadas por estas tendências ou quando demonstra peremptoriamente que
tais questões são falsos problemas.
É verdade que uma época histórica e uma
determinada sociedade são representadas sobretudo pela média dos intelectuais
e, consequentemente, pelos medíocres; mas a ideologia difusa, de massa, deve
ser diferenciada das obras científicas, das grandes sínteses filosóficas, que
são, ademais, as suas verdadeiras culminações, as quais devem ser nitidamente
superadas, ou negativamente, demonstrando-lhes a falta de fundamento, ou
positivamente, contrapondo-lhes sínteses filosóficas de maior importância e
significação. Lendo o Ensaio Popular de Bukharin, temos a
impressão de alguém que não pode dormir por causa da claridade da lua e que se
esforça por matar a maior quantidade possível de vaga-lumes, convencido de que
assim a claridade diminuirá ou desaparecerá.”
“A filosofia da práxis “basta a si mesma”,
contendo em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e
integral concepção do mundo, não só uma total filosofia e teoria das ciências
naturais, mas também os elementos para fazer viva uma integral organização
prática da sociedade, isto é, para tornar-se uma civilização total e integral.”
“No prefácio de O Capital, está
dito: “Na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção, que
correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social... Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção
existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade dentro das quais se desenvolveram até aqui. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em
obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a
base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa
superestrutura erigida sobre ela... Nenhuma formação social desaparece antes
que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem
relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da
própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência”.”
“A superstição científica traz consigo
ilusões tão ridículas e concepções tão infantis que a própria superstição religiosa
termina enobrecida. O progresso científico fez nascer a crença e a espera em um
novo Messias, que realizará nesta terra o Eldorado; as forças da natureza, sem
nenhuma intervenção do esforço humano, mas através de mecanismos cada vez mais
perfeitos, darão em abundância à sociedade todo o necessário para satisfazer
seus carecimentos e viver com fartura. Contra este fanatismo, cujos perigos são
evidentes (a supersticiosa fé abstrata na força taumatúrgica do homem conduz
paradoxalmente à esterilização das próprias bases desta força e à destruição de
todo amor pelo trabalho concreto e necessário, em troca de fantasias, como se
se tivesse fumado uma nova espécie de ópio), é necessário combater com vários
meios, dos quais o mais importante deveria ser um melhor conhecimento das
noções científicas essenciais, divulgando a ciência através de cientistas e de
estudiosos sérios e não mais de jornalistas oniscientes e de autodidatas
presunçosos. Na realidade, por se esperar muito da ciência, ela é concebida
como uma bruxaria superior e, por isso, torna-se impossível valorizar com
realismo o que a ciência oferece de concreto.”
“Mas não podem impedir, nem o devem, que cada
geração use a linguagem que melhor se adapte ao seu modo de pensar e de
compreender o mundo.”
“De Man tem a pedante pretensão de trazer à
luz e ao primeiro plano os chamados “valores psicológicos e éticos” do
movimento operário; mas pode significar isso, como pretende De Man, uma
refutação peremptória e radical da filosofia da práxis? Isso seria como afirmar
que o fato de deixar claro que a grande maioria dos homens ainda se encontra na
fase ptolomaica signifique refutar as doutrinas de Copérnico, ou que o folclore
deva substituir a ciência. A filosofia da práxis sustenta que os homens
adquirem consciência de sua posição social no terreno das ideologias; ela
excluiu o povo, por acaso, deste modo de tomar consciência de si? É uma
observação óbvia, contudo, a de que o mundo das ideologias é (em seu conjunto)
mais atrasado do que as relações técnicas de produção: um negro recém-chegado
da África pode se tornar um trabalhador de Ford, mesmo mantendo-se por muito
tempo um fetichista e mesmo permanecendo persuadido de que a antropofagia é uma
maneira de alimentação normal e justificada. De Man, feita uma investigação a
respeito, que conclusões poderia extrair deste fato? Que a filosofia da práxis
deva estudar objetivamente o que os homens pensam de si mesmos e dos outros é
indubitável; mas isto implica aceitar passivamente, como eterno, este modo de
pensar? Não seria isto uma manifestação do pior dos mecanicismos e fatalismos?
A tarefa de toda iniciativa histórica é modificar as fases culturais
precedentes, tornar a cultura homogênea, em um nível superior ao precedente,
etc. Na realidade, a filosofia da práxis trabalhou sempre naquele terreno que
De Man acredita ter descoberto, mas trabalhou buscando inová-lo, não
conservá-lo passivamente. A “descoberta” de De Man é um lugar-comum; e sua
refutação, uma ruminação pouco saborosa.”
“O elemento popular “sente”, mas nem sempre
compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e,
menos ainda, “sente”. Os dois extremos são, portanto, por um lado, o pedantismo
e o filisteísmo, e, por outro, a paixão cega e o sectarismo. Não que o pedante não
possa ser apaixonado, ao contrário; o pedantismo apaixonado é tão ridículo e
perigoso quanto o sectarismo e a mais desenfreada demagogia. O erro do
intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e,
principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas
também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser
um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do
povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo,
compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada
situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da
história, com uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente
elaborada, com o “saber”; não se faz política-história sem esta paixão, isto é,
sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência deste
nexo, as relações do intelectual com o povo-nação são, ou se reduzem, a
relações de natureza puramente burocrática e formal; os intelectuais se tornam
uma casta ou um sacerdócio (o chamado centralismo orgânico). Se a relação entre
intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e
governados, é dada graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão
torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas
vivida), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos
individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto
é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social; cria-se o “bloco
histórico”.”
“A afirmação de Hegel de que na história todo
fato se repete duas vezes; correção de Marx, segundo a qual na primeira vez o
fato se verifica como tragédia, na segunda como farsa. Este conceito já fora
delineado por Marx na Contribuição
à crítica da filosofia do direito: “Os deuses da Grécia, já
tragicamente feridos de morte no Prometeu acorrentado de
Ésquilo, tiveram de morrer novamente de forma cômica nos diálogos de Luciano.
Por que essa marcha da história? Para que a humanidade possa alegremente separar-se
do seu passado. Este alegre destino histórico é o que
reivindicamos para os poderes políticos da Alemanha”.
“A objeção de senso comum que pode ser feita
ao ceticismo é esta: que, para ser coerente consigo mesmo, o cético não deveria
fazer mais do que viver como um vegetal, sem se misturar aos assuntos da vida
comum. Se o cético intervém na discussão, isso significa que acredita que pode
convencer, ou seja, não é mais cético, pois representa uma determinada opinião
positiva, que frequentemente é má e só pode triunfar na medida em que convence
a comunidade de que as outras são ainda piores, já que são inúteis.”
“Não se leva suficientemente em conta que
muitos atos políticos são motivados por necessidades internas de caráter
organizativo, isto é, ligados à necessidade de dar coerência a um partido, a um
grupo, a uma sociedade. Isto é evidente, por exemplo, na história da Igreja
Católica. Se alguém pretendesse encontrar, para todas as lutas ideológicas no
interior da Igreja, a explicação imediata, primária, na estrutura, estaria
perdido: muitos romances político-econômicos foram escritos por esta razão. É
evidente, ao contrário, que a maior parte destas discussões são ligadas a
necessidades sectárias, de organização. Na discussão entre Roma e Bizâncio
sobre o estatuto do Espírito Santo, seria ridículo buscar na estrutura da
Europa Oriental a afirmação de que o Espírito Santo procede apenas do Pai, e,
na do Ocidente, a afirmação de que ele procede do Pai e do Filho. As duas
Igrejas, cuja existência e cujo conflito estão na dependência da estrutura e de
toda a história, colocaram questões que são princípio de distinção e de coesão
interna para cada uma, mas poderia ter ocorrido que cada uma delas tivesse
afirmado precisamente o que a outra afirmou: o princípio de distinção e de
conflito teria se mantido idêntico e este problema da distinção e do conflito é
que constitui o problema histórico, não a casual bandeira de cada uma das partes.”
“A estrutura e as superestruturas formam um
“bloco histórico”, isto é, o conjunto complexo e contraditório das
superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção.”
“Deve-se observar que, com muita frequência,
o otimismo não é mais do que um modo de defender a própria preguiça, as
próprias irresponsabilidades, a vontade de não fazer nada. É também uma forma
de fatalismo e de mecanicismo. A pessoa conta com fatores alheios à própria
vontade e operosidade, exalta-os, incendeia-se aparentemente num sagrado
entusiasmo. E o entusiasmo não é mais do que adoração exterior dos fetiches.
Reação necessária, que deve ter como ponto de partida a inteligência. O único
entusiasmo justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a
operosidade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que
modificam a realidade existente.”
“O freudianismo é mais uma “ciência” a ser
aplicada às classes superiores, e se poderia dizer que o “inconsciente” só
começa depois de algumas dezenas de milhares de liras de renda.”
“Durante a guerra o Papa era o chefe dos
bispos que benziam as armas dos alemães e dos austríacos, e dos bispos que
benziam as armas dos italianos e dos franceses, sem que nisto houvesse
contradição.”
“A religião é uma concepção da realidade com
uma moral conforme a esta concepção, apresentada em forma mitológica.” (Croce)
“Interessa bem pouco à propriedade o trabalho
socialmente necessário, mesmo para as finalidades da própria construção
científica; o que interessa é o trabalho particular, nas condições determinadas
por um dado aparato técnico e por um dado mercado imediato de víveres, bem como
por um dado ambiente imediato ideológico e político, pelo que, quando alguém
quiser fundar uma empresa, tentará identificar essas condições mais adequadas à
finalidade do lucro máximo “particular” e não raciocinará por “médias”
socialmente necessárias. Mas, quando o próprio trabalho se tornar gestor da
economia, também ele deverá, por causa dessa mudança fundamental de posição,
preocupar-se com as utilidades particulares e com as comparações entre essas
utilidades, com o objetivo de extrair delas iniciativas de movimento
progressista.”
“Quando é possível falar de um início para a
ciência econômica? Pode-se falar desse início desde quando se fez a descoberta
de que a riqueza não consiste no ouro (e, portanto, ainda menos na posse do
ouro), mas sim no trabalho.”
“Um preconceito típico de intelectuais é o de
medir os movimentos históricos e políticos com o metro do intelectualismo, da
originalidade, da “genialidade”, ou seja, da completa expressão literária e das
grandes personalidades brilhantes, e não, ao contrário, com o metro da
necessidade histórica e da arte política, isto é, da capacidade concreta e
atual de adequar o meio ao fim.”
“O homem, neste sentido, é vontade concreta,
isto é, aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso vital aos meios
concretos que realizam esta vontade. Cria-se a própria personalidade: 1) dando
uma direção determinada e concreta (“racional”) ao próprio impulso vital ou
vontade; 2) identificando os meios que tornam esta vontade concreta e
determinada e não arbitrária; 3) contribuindo para modificar o conjunto das
condições concretas que realizam esta vontade, na medida de suas próprias forças
e da maneira mais frutífera. O homem deve ser concebido como um bloco histórico
de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e
objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa.
Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa fortalecer a si
mesmo, desenvolver a si mesmo. É uma ilusão e um erro supor que o
“melhoramento” ético seja puramente individual: a síntese dos elementos
constitutivos da individualidade é “individual”, mas ela não se realiza e
desenvolve sem uma atividade para fora, transformadora das relações externas,
desde aquelas com a natureza e com os outros homens em vários níveis, nos
diversos círculos em que se vive, até a relação máxima, que abarca todo o
gênero humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente
“político”, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os
outros homens realiza a sua “humanidade”, a sua “natureza humana”.”
“Se se observa bem, deve-se chegar à
conclusão de que o ideal de todo elemento da classe dirigente é o de criar as
condições nas quais os seus herdeiros possam viver sem trabalhar, de renda.
Como é possível que uma sociedade seja sadia quando se trabalha para estar em
condições de não mais trabalhar? Dado que este ideal é impossível e malsão,
isto significa que todo o organismo está viciado e doente. Uma sociedade que
afirma trabalhar para criar parasitas, para viver do chamado trabalho passado
(que é uma metáfora para indicar o trabalho atual dos outros), destrói, na
realidade, a si mesma.”
“O que é o homem? É esta a
primeira e principal pergunta da filosofia. Como respondê-la? A definição pode
ser encontrada no próprio homem, isto é, em cada homem singular. Mas é correta?
(...) Se observarmos bem, veremos que, ao colocarmos a pergunta “o que é o
homem”, queremos dizer: o que é que o homem pode se tornar, isto é, se o homem
pode controlar seu próprio destino, se ele pode “se fazer”, se pode criar sua
própria vida. Digamos, portanto, que o homem é um processo, precisamente o
processo de seus atos. Observando ainda melhor, a própria pergunta “o que é o
homem” não é uma pergunta abstrata ou “objetiva”. Ela nasce do fato de termos
refletido sobre nós mesmos e sobre os outros; e de querermos saber, em relação
com o que vimos e refletimos, aquilo que somos, aquilo que podemos vir a ser,
se realmente e dentro de que limites somos “criadores de nós mesmos”, da nossa
vida, do nosso destino. E nós queremos saber isto “hoje”, nas condições de
hoje, da vida “de hoje”, e não de uma vida qualquer e de um homem qualquer. A
pergunta nasceu e recebeu seu conteúdo de determinadas e especiais maneiras de
considerar a vida e o homem. A mais importante delas é a “religião” e uma
determinada religião: o catolicismo. Na realidade, ao perguntarmos “que é o
homem”, qual é a importância que tem a sua vontade e a sua atividade concreta
na criação de si mesmo e de sua vida, queremos dizer: “o catolicismo é uma
concepção exata do homem e da vida? Sendo católicos, isto é, fazendo do
catolicismo uma norma de vida, erramos ou acertamos?” Todos têm a vaga intuição
de que fazer do catolicismo uma norma de vida é um equívoco, tanto assim que
ninguém se atém ao catolicismo como norma de vida, mesmo declarando-se
católico. Um católico integral – isto é, que aplicasse em cada ato de sua vida
as normas católicas – pareceria um monstro, o que é, se pensarmos bem, a
crítica mais rigorosa e mais peremptória do próprio catolicismo. Os católicos
dirão que nenhuma outra concepção é seguida rigorosamente, no que têm razão.
Mas isto demonstra apenas que não existe de fato, historicamente, uma maneira
de conceber e de agir igual para todos os homens e nada mais que isso; não há
nenhuma razão favorável ao catolicismo, se bem que este modo de pensar e de
agir esteja organizado há séculos com esta finalidade, o que ainda não ocorreu
com nenhuma outra religião com os mesmos meios, com o mesmo espírito de
sistema, com a mesma continuidade e centralização. Do ponto de vista
“filosófico”, o que não satisfaz no catolicismo é o fato de, não obstante tudo,
ele colocar a causa do mal no próprio homem individual, isto é, conceber o
homem como indivíduo bem definido e limitado. É possível dizer que todas as
filosofias que existiram até hoje reproduziram esta posição do catolicismo, isto
é, conceberam o homem como indivíduo limitado à sua individualidade e o
espírito como sendo esta individualidade. É neste ponto que o conceito do homem
deve ser reformado. Ou seja, deve-se conceber o homem como uma série de
relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade tem a máxima
importância, não é todavia o único elemento a ser considerado. A humanidade que
se reflete em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o
indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza. Mas o segundo e o terceiro
elementos não são tão simples quanto poderia parecer. O indivíduo não entra em
relação com os outros homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na
medida em que passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais
complexos. Desta forma, o homem não entra em relações com a natureza
simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do
trabalho e da técnica. E mais: estas relações não são mecânicas. São ativas e
conscientes, ou seja, correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade
que delas tenha o homem individual. Daí ser possível dizer que cada um
transforma a si mesmo, modifica-se, na medida em que transforma e modifica todo
o conjunto de relações do qual ele é o centro estruturante. Neste sentido, o
verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o político,
isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o
conjunto das relações de que todo indivíduo faz parte. Se a própria
individualidade é o conjunto destas relações, construir uma personalidade
significa adquirir consciência destas relações; modificar a própria
personalidade significa modificar o conjunto destas relações. Mas estas
relações, como vimos, não são simples. Enquanto algumas delas são necessárias,
outras são voluntárias. Além disso, ter consciência mais ou menos profunda
delas (isto é, conhecer mais ou menos o modo pelo qual elas podem ser
modificadas) já as modifica. As próprias relações necessárias, na medida em que
são conhecidas em sua necessidade, mudam de aspecto e de importância. Neste
sentido, o conhecimento é poder. Mas o problema é complexo também por outro
aspecto: não é suficiente conhecer o conjunto das relações enquanto existem em
um dado momento como um dado sistema, mas importa conhecê-los geneticamente, em
seu movimento de formação, já que todo indivíduo é não somente a síntese das
relações existentes, mas também da história destas relações, isto é, o resumo
de todo o passado. Dir-se-á que o que cada indivíduo pode modificar é muito
pouco, com relação às suas forças. Isto é verdadeiro apenas até certo ponto, já
que o indivíduo pode associar-se com todos os que querem a mesma modificação;
e, se esta modificação é racional, o indivíduo pode multiplicar-se por um
elevado número de vezes, obtendo uma modificação bem mais radical do que à
primeira vista parecia possível.”
“O fato de que a “sociedade industrial” não
seja constituída apenas por “trabalhadores” e “empresários”, mas também por
“acionistas” vagantes (especuladores), complica todo o raciocínio de Agnelli:
ocorre que, se o progresso técnico permite uma maior margem de lucro, este não
será distribuído racionalmente, mas “sempre” irracionalmente, aos acionistas e
afins. Ademais, hoje é impossível dizer que existam “empresas sadias”. Todas as
empresas se tornaram malsãs, o que não é dito por prevenção moralista ou
polêmica, mas objetivamente. Foi a própria “grandeza” do mercado acionário que
criou a doença: a massa dos portadores de ações é tão grande que ela obedece agora
às leis de “multidão” (pânico, etc., que tem seus termos técnicos especiais
no boom, no run, etc.); e a especulação se tornou uma
necessidade técnica, mais importante do que o trabalho dos engenheiros e dos
operários.
A observação sobre a crise americana de 1929
iluminou precisamente este ponto: a existência de fenômenos irrefreáveis de
especulação, que arrastam também as “empresas sadias”, pelo que é possível
dizer que não mais existem “empresas sadias”; portanto, pode-se usar a palavra
“sadia” acompanhando-a de uma referência histórica, no sentido do “era uma
vez”, isto é, quando existiam certas condições gerais que permitiam certos
fenômenos gerais, não apenas em sentido relativo, mas também em sentido
absoluto.”