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quarta-feira, 30 de junho de 2021

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte III), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



(Refere-se ao livro III) 

 

Marx viu claramente que a consolidação do sistema de crédito tinha profundas consequências para o “capital comum da classe”, como já havia afirmado no capítulo 22 e na introdução geral ao capital comercial. Eu não saberia enfatizar o suficiente essa ideia. Ela reposiciona a circulação do capital monetário como uma espécie de sistema nervoso central que orienta os fluxos de capital que reproduzem o capital em geral. Além disso, implica uma socialização do capital que sinaliza uma mudança radical em seu caráter. Empresas de capital aberto, por exemplo, facilitam o surgimento de capitais coletivos e associados que, por um lado, permitem uma vasta extensão na escala, abrangência e forma dos empreendimentos capitalistas e, por outro, abrem caminho para um mercado mundial no qual o trabalho associado e os direitos de propriedade coletiva seriam cada vez mais comuns. Marx pensava até que as empresas de capital aberto, em razão de seu caráter associativo, poderiam tornar-se a base para uma transição para um modo de produção não capitalista. Hoje, isso parece estranho, se não absolutamente equivocado, mas na época havia razões interessantes para se considerar tal possibilidade.

As possibilidades positivas e negativas inerentes ao advento do sistema de crédito capitalista estavam incorporadas, diz Marx, na pessoa do banqueiro francês Isaac Péreire, que possuía “o agradável caráter misto de vigarista e profeta” (C3, 573). Por isso, peço permissão para fazer uma pequena digressão (como Marx faz no capítulo 36) sobre esse “caráter”.

Os irmãos Péreire – Isaac e Émile – se formaram no espírito do utopismo saint-simoniano da França dos anos 1830 e, durante o Segundo Império (1852-1870), puseram algumas dessas ideias utópicas em prática, em especial as que diziam respeito ao poder dos capitais associados. Saint-Simon (1760-1825) – cujo “gênio e mente enciclopédica” Marx admirava muito, segundo Engels (C3, 740) – procurou aconselhar o rei. Enviou-lhe muitas cartas sugerindo maneiras de melhorar a vida coletiva e evitar aquelas mudanças violentas ilustradas pelas Revolução Francesa, cujos excessos Saint-Simon julgava repugnantes. Ele foi provavelmente um dos primeiros pensadores a propor algo semelhante ao que hoje seria a União Europeia. Se alguém tivesse lhe dado ouvidos, duas guerras mundiais poderiam ter sido evitadas. Ele propôs formas racionais e representativas de governo que legislariam em benefício de todas as classes, sob um comando monárquico benevolente. Enfatizou também a importância da conciliação de capital e trabalho (que incluía artesãos e empresários capitalistas) para realizar projetos e obras públicas de larga escala (e, em certa medida, planejados) que contribuiriam para o bem-estar de todos. Para isso, era necessário que as pequenas quantidades de capital monetário, dispersas na sociedade, fossem reunidas numa forma associada.

Luís Bonaparte, que se autoproclamou imperador em 1852 após um golpe de Estado em 1851, era fã das ideias de Saint-Simon, tendo sido chamado muitas vezes de “Saint-Simon a cavalo”. Luís concebeu projetos de grande escala para pôr em movimento o capital e o trabalho não empregados após o crash e os movimentos revolucionários de 1848. Os irmãos Péreire desempenharam um importante papel nisso. Eles criaram novas instituições de crédito e juntaram pequenas quantidades de capital nas formas associadas que Saint-Simon defendia e, assim, acabaram dominando o mundo das finanças no Segundo Império. Controlando as cédulas de crédito, eles participaram ativamente da grande missão de Haussmann de absorver o capital e o trabalho excedentes mediante a reconstrução e a transformação de ­Paris. Construíram edifícios residenciais e novas lojas de departamentos, ao mesmo tempo que monopolizaram os serviços públicos (como a iluminação a gás) e as novas estruturas de transporte e comunicação da cidade. Mas o boom dos anos 1850 e início dos anos 1860, assim como a lendária rivalidade entre os Péreires e a conservadora casa bancária dos Rothschilds (tema principal do romance O dinheiro, de Zola), chegaram ao fim com o colapso financeiro de 1867, que destruiu o império do crédito especulativo dos Péreires. É bem possível que Marx tivesse essa rivalidade em mente quando escreveu:

O sistema monetário é essencialmente católico, e o sistema de crédito, essencialmente protestante. “Os escoceses odeiam o dinheiro.” Como dinheiro, a existência monetária das mercadorias tem uma existência puramente social. É a que traz a salvação. A fé no valor monetário como espírito imanente das mercadorias, fé no modo de produção e sua disposição predestinada, fé nos agentes individuais de produção como mera personificação do capital que se autovaloriza. Mas o sistema de crédito não é mais emancipado do sistema monetário como base do que o protestantismo das bases do catolicismo. (C3, 727)

Rothschild (sendo judeu) acreditava no “catolicismo” do ouro como base monetária, ao passo que os Péreires (também judeus) depositavam sua fé no papel. Quando veio o colapso, o papel se mostrou sem valor, ao passo que o ouro jamais perdeu o brilho, e até cintilou mais hipnoticamente do que nunca.

A tensão entre cédulas de crédito e mercadorias-dinheiro (como o ouro) é onipresente nesses capítulos. Marx trata explicitamente dessa questão bem mais adiante, no meio de um capítulo bastante vago sobre o metal precioso e a taxa de câmbio:

É precisamente o desenvolvimento do sistema de crédito e bancário que, por um lado, procura pôr todo o capital monetário a serviço da produção, enquanto, por outro, reduz a um mínimo a reserva de metal numa dada fase do ciclo, no qual ele não pode mais desempenhar as funções que lhe são delegadas – é esse elaborado sistema de crédito e bancário que torna supersensível o organismo inteiro.

Por meio da garantia de conversibilidade das notas bancárias, a reserva de metal funciona “como o eixo de todo o sistema de crédito”. A estrutura que surge é a seguinte:

o banco central é o pivô do sistema de crédito. E a reserva de metal é, por sua vez, o pivô do banco. A mutação do sistema de crédito em sistema monetário é necessária [...]. Uma certa quantidade de metal, insignificante em comparação com a produção total, é reconhecidamente o pivô do sistema. Por isso, abstraindo da terrível exemplificação desse seu caráter de pivô nas crises, o que se tem é esse belo dualismo teórico. (C3, 706)

Se mesmo a pretensão de uma base de metal ou de mercadoria para o sistema de crédito e monetário global foi abandonada no começo dos anos 1970 (embora os chamados “gold bugs”, que defendem o retorno ao padrão-ouro, ainda sejam abundantes), a ideia de uma estrutura hierárquica de pivôs (cuja centro seria o dólar americano) para o sistema financeiro global ainda parece uma concepção apropriada. É mais verdadeiro hoje do que na época de Marx que:

o crédito, sendo [...] uma forma social de riqueza, desloca o dinheiro e usurpa sua posição. É a confiança no caráter social da produção que faz com que a forma-dinheiro dos produtos apareça como algo meramente evanescente e ideal, como uma mera noção. Mas tão logo o crédito é abalado, e essa é uma fase regular e necessária no ciclo da indústria moderna, supõe-se que toda riqueza real é efetiva e repentinamente transformada em dinheiro, em ouro e prata – uma demanda insana, mas que surge necessariamente do próprio sistema. E o ouro e a prata necessários para satisfazer essa imensa demanda atingem o valor de alguns milhões no cofre do banco. (C3, 708)

Mas antes Marx apresenta um tratamento ainda mais rico dessas relações: “Faz parte das bases da produção capitalista o fato de que o dinheiro confronta as mercadorias como uma forma autônoma de valor, ou que o valor de troca precisa ter uma forma autônoma em dinheiro”. A mercadoria-dinheiro, como equivalente universal, é essa forma autônoma. O que ocorre quando a moeda de crédito e as operações de crédito substituem a mercadoria-dinheiro?

Em épocas de pressão, quando o crédito se retrai ou seca completamente, o dinheiro confronta-se absolutamente com as mercadorias como o único meio de pagamento e a verdadeira existência do valor. Daí a desvalorização geral das mercadorias, a dificuldade e até a impossibilidade de transformá-las em dinheiro, isto é, em sua própria forma puramente fantástica.

A alusão à teoria do fetichismo é inequívoca. Em segundo lugar, “a própria moe­da de crédito só é dinheiro na medida em que representa absolutamente dinheiro real”. Com a evasão de moeda para o exterior, a conversibilidade do crédito em dinheiro “torna-se problemática”:

Por isso, são necessárias medidas coercitivas, o aumento da taxa de juro etc. a fim de garantir [...] a conversibilidade [...]. Uma desvalorização da moeda de crédito (para não falar de uma completa perda de seu caráter monetário, que é, de resto, puramente imaginário) destruiria todas as relações existentes. O valor das mercadorias é assim sacrificado para assegurar a existência fantástica e autônoma desse valor em dinheiro. [...] Essa é a razão por que mercadorias no valor de muitos milhões precisam ser sacrificadas por alguns milhões em dinheiro. Isso é inevitável na produção capitalista, e constitui uma de suas belezas. [...] Enquanto o caráter social do trabalho aparece como a existência monetária da mercadoria e, por conseguinte, fora da produção real, as crises monetárias, independentemente das crises reais ou como uma intensificação destas últimas, são inevitáveis. (C3, 648-9)

Foi isso que aconteceu na depressão de 1930? E essa é a “inevitabilidade” que o keynesianismo se esforçou para corrigir?

Embora essa tensão entre crédito e dinheiro “real” já tivesse sido há muito tempo identificada:

é apenas com esse sistema que surge a forma mais notável e grotesca dessa contradição e desse paradoxo absurdo, porque (1) no sistema capitalista a produção para o valor de uso direto, para o próprio uso do produtor, é abolida quase completamente, de modo que a riqueza existe apenas como um processo social expresso como o entrelaçamento da produção e da circulação; e (2) porque, com o desenvolvimento do sistema de crédito, a produção capitalista se esforça constantemente para superar essa barreira metálica – barreira que é tanto material como imaginária – à riqueza e ao seu movimento, porém volta sempre a bater a cabeça contra ela. (C3, 707-8)

Assim, a forma das mercadorias-dinheiro é um obstáculo à expansão que as moedas de crédito superam e evitam, mas em certo ponto a qualidade e a confiabilidade das moedas de crédito podem ser validadas apenas por sua capacidade de troca por mercadorias-dinheiro.

Uma das coisas mais difíceis para todos os analistas (inclusive Marx) é a compreen­são da diferença entre a riqueza que circula no sistema financeiro e de crédito e a produção de riqueza supostamente “real”. A relação entre Wall Street e Main Street (ou, como dizem os ingleses, entre a City e a High Street) intriga a todos. Os argumentos habituais sobre o que fazer com o euro são uma excelente demonstração das confusões reinantes. O que Marx sugere é que um sistema monetário baseado puramente em mercadorias-dinheiro age como uma barreira ao avanço da acumulação do capital, porque há uma quantidade limitada de dinheiro à disposição. Há um perigo claro e constante daquilo que hoje chamamos de “repressão financeira”, que ocorre quando não há dinheiro suficiente (de nenhum tipo) para fazer circular o volume crescente de mercadorias que são produzidas à medida que avança a acumulação do capital. As moedas de crédito se tornam, portanto, não só necessárias, mas cruciais para a expansão contínua do capitalismo. À primeira vista, há elementos que sugerem (embora, pelo que sei, isso nunca tenha sido estudado empiricamente) que a história da acumulação do capital tenha acontecido paralelamente a uma acumulação de moedas de crédito e dívidas concomitantes. Apenas desse modo o capital pode ser acumulado “ilimitadamente”. Mas se a acumulação do capital depende de uma acumulação paralela de moedas de crédito e instrumentos de crédito, então ela produz necessariamente um monstro fetichista à sua imagem e semelhança, baseado na fé, na confiança e na expectativa, e que periodicamente escapa do controle. As moedas de crédito não substituem, simplesmente, a moeda metálica: elas colocam o sistema monetário e a concepção de moeda num plano totalmente novo, que mais abrange do que elimina os fetichismos implícitos no sistema de crédito. Crédito “espuma”, bolhas de ativos, booms e colapsos especulativos são o preço que o capital tem de pagar por se libertar temporariamente das restrições da mercadoria-dinheiro.

Essas restrições, no entanto, reaparecem em fases de crise. O volume das obrigações de crédito ultrapassa periodicamente o da produção real de valor (mas esta pode ser medida); então, as mercadorias-dinheiro (as representantes do valor), no curso de uma crise financeira, fazem a insanidade das moedas de crédito cair na realidade. Essa é a disciplina da moeda forte real, que conecta Wall Street a Main Street. É o “catolicismo” da base monetária em ação. A propósito, a referência religiosa reflete a longa proscrição dos juros pela Igreja católica (regra que continua válida na lei islâmica, e que a Igreja católica abandonou apenas no século XIX). A famosa distinção de Martinho Lutero entre os males da usura e a legitimidade de uma taxa de juros “justa” foi essencial para o movimento protestante romper com Roma.

O que é tão crucial no sistema de crédito é sua capacidade de ultrapassar qualquer barreira monetária à acumulação e lançar-se num mundo de crescimento ilimitado. Existem possibilidades ilimitadas de criação de papel-moeda (cédulas de crédito). Foi o que aconteceu na bolha imobiliária de 2001 nos Estados Unidos. Os preços estavam subindo, e todo mundo estava tirando vantagem dos valores crescentes dos ativos imobiliários – e, quanto mais se tirava vantagem, mais os preços subiam. Os imóveis funcionavam como caixas automáticos, sem limite de saque, até que as pessoas se deram conta de que o preço dos imóveis havia subido muito acima da renda. E houve o crash. Aconteceu a mesma coisa no boom fundiário do Japão, nos anos 1980. Quando há um crash, a liquidez dos proprietários (disposição de moeda forte real) é a única coisa que importa. Na medida em que essa liquidez é insuficiente, as execuções hipotecárias, as perdas e as desvalorizações de ativos vão se acumulando.

Que importância geral isso tem hoje em dia? A base metálica do sistema monetário mundial foi formalmente abandonada no início dos anos 1970. Isso parece tornar o pensamento de Marx irrelevante. Ele não disse que o “dinheiro, na forma de metal precioso, permanece a base da qual o sistema de crédito jamais pode se libertar”? O ouro ainda cumpre um papel residual importante, é claro. Quando a fé no papel-moeda e na moeda de crédito é abalada, surgem preços em ouro, como se viu nos últimos anos. Uma minoria ainda sente que o ouro é a maneira mais segura de acumular valores monetários reais. Hoje, existe uma abundância de anúncios sobre a segurança dos investimentos em ouro. Talvez haja alguma verdade nisso (e nós nos odiaremos se não tivermos investido em ouro caso seu preço triplique nos próximos cinco anos!). Mas há pouca probabilidade de retornarmos ao padrão-ouro. A sabedoria convencional diz que isso seria um desastre para a expansão contínua do mercado mundial, e mergulharia o mundo numa depressão permanente. A economia mundial situa-se no plano da economia de crédito, e não pode abandoná-lo.

Mas se o “pivô” metálico do sistema monetário desaparece, o que o substitui? A resposta são os bancos centrais mundiais, combinados com as autoridades reguladoras estatais (um “nexo Estado-finanças”, como eu o chamo). Juntos, eles formam o “pivô” do sistema monetário e de crédito global. Para Marx, esse pivô era o Banco da Inglaterra; para nós, é o Federal Reserve Bank dos Estados Unidos (juntamente com o Tesouro norte-americano) e os outros bancos centrais e autoridades reguladoras, como as da Inglaterra, do Japão e da União Europeia. O resultado, no entanto, é a substituição de um mecanismo regulador que se baseia na produção de mercadorias reais (ouro e prata) por uma instituição humana. O julgamento humano é a única disciplina exercida sobre a criação de crédito. Mas essa instituição humana faz a coisa certa? O foco principal tem de ser, então, como os bancos centrais são estruturados e regulados, e como são formuladas políticas dentro do aparato estatal para lidar com os excessos periódicos que ocorrem nesse sistema de crédito.

Se o banco central e as autoridades reguladoras são mal estruturados, ou se baseiam numa teoria econômica errônea (como o monetarismo), a política pode se implicar profundamente nos processos de formação e/ou resolução de crises. Muitos consideram que a política do banco central teve um papel importante na exacerbação da grande depressão de 1930 (como a desastrosa decisão de Winston Churchill, quando era ministro das Finanças, de reinstituir o padrão-ouro na Inglaterra em 1920). Hoje, muitos dizem que as políticas de Bernanke estão conduzindo os Estados Unidos numa direção totalmente errada, e que o período em que Alan Greenspan esteve no comando do Federal Reserve, que na época parecia tão maravilhoso, teve um papel importante no crash devastador de 2007-2008. É claro que, hoje, investiga-se amplamente a ideia de que uma falha regulatória tenha afetado os acontecimentos recentes, e alguns consideram que uma melhor estrutura regulatória seria uma resposta importante à crise dos Estados Unidos, e mesmo do mundo. Mas de que nos serve um Banco Central Europeu que se encarrega de manter a inflação sob controle, sem nenhuma consideração pelo desemprego, e que consequentemente parece paralisado diante da resposta que deve dar à crise da dívida grega, sem promover uma austeridade debilitante e cada vez mais profunda? As instituições humanas são falíveis e sujeitas a todo tipo de força social e opinião conflituosa. Elas criam um mecanismo regulatório muito distinto daquele que prevalece quando as mercadorias-dinheiro ainda operavam como o pivô no qual a política do banco central tinha de girar.

Mesmo na época de Marx, a falibilidade das instituições financeiras e suas políticas tiveram um papel importante. Marx cita como principal exemplo o “equivocado” Bank Act britânico de 1844. Essa legislação dividia o Banco da Inglaterra em “um Departamento de Emissão e um Departamento Bancário” (C3, 688). O primeiro se ocupava dos títulos da dívida pública e da reserva de metais, e emitia papel-moeda lastreado nessas reservas. Ele emitia notas (que eram muito mais convenientes para propósitos de comércio) em troca de ouro e, em contrapartida, as cédulas prometiam “pagar ao portador” em ouro, se necessário (nas notas inglesas, essa promessa de pagamento ao portador ainda pode ser encontrada). Desse modo, eu poderia levar a qualquer momento as notas ao banco e receber de volta o valor equivalente em ouro. As cédulas eram, em suma, “conversíveis”. (A suspensão da conversibilidade foi, portanto, uma opção política e, de fato, já havia ocorrido na Inglaterra em dado momento durante as Guerras Napoleônicas.) A outra parte do banco descontava as letras de câmbio, expedia cheques, emitia títulos e atuava em negócios bancários convencionais. A legislação de 1844 criou uma barreira de proteção entre essas duas partes, mas em 1848 uma crise de confiança atingiu a última delas. Houve uma corrida aos bancos, à medida que as pessoas perdiam a confiança no papel comercial e nos títulos públicos.

O Departamento Bancário sofreu uma escassez de ouro, enquanto o Departamento de Emissão era inundado com esse metal:

A separação do banco em dois departamentos independentes retirou o poder dos diretores de dispor livremente da totalidade de seus meios disponíveis em momentos decisivos, de modo que podiam ocorrer situações em que o Departamento Bancário se defrontava com a falência e, ao mesmo tempo, o Departamento de Emissão dispunha de muitos milhões em ouro [...]. E assim o Bank Act de 1844 empurrou todo o mundo do comércio à erupção de uma crise, retirando da circulação um estoque de notas bancárias e, com isso, acelerando e intensificando a crise. E por meio dessa intensificação da demanda por acomodação monetária [...] ele leva a taxa de juros em tempos de crise a um nível até então inédito.

O paralelo com o que aconteceu com a taxa de juro sobre os títulos gregos na crise de 2011 é notável:

Assim, em vez de eliminar as crises, [o Banco da Inglaterra] as intensifica a ponto de ruir ou o mundo inteiro da indústria, ou o Bank Act. Em duas ocasiões, 25 de outubro de 1847 e 12 de novembro de 1857, a crise atingiu seu pico; então o governo, suspendendo o Act de 1844, liberou o banco da restrição sobre a emissão de notas e, em ambas as ocasiões, isso foi suficiente para deter a crise. (C3, 689)

Não entendo que, nessa passagem, Marx esteja dizendo que o Bank Act de 1844 foi a causa de uma crise, e sim que ele serviu para intensificar e acelerar uma crise que surgiu por outras razões (quais eram Marx não diz). Mas que tipo de arranjo institucional é esse que não pode responder de maneira adequada à inevitabilidade de crises periódicas? Essa foi, certamente, a pergunta fundamental feita ao Banco Central Europeu durante as crises de dívida em que afundaram não só Grécia, mas também Irlanda, Portugal, Espanha e Itália ao longo de 2001. Descrever o Bank Act de 1844 como “equivocado” é inferir que Marx acreditava na possibilidade de um Bank Act que não exacerbasse crises. Instituições bancárias e de crédito poderiam ser suficientemente flexíveis para acomodar variações na produção e nos preços e, ainda mais importante, nos sentimentos dos investidores. Mas seria possível criar instituições financeiras que pudessem deter as contradições que estão na base da formação da crise? Para os keynesianos, esse era o Santo Graal da política pública. Marx acreditava que isso não era possível. “Leis bancárias ignorantes e confusas, como aquelas de 1844-1845, podem intensificar a crise monetária. Mas nenhuma legislação bancária pode abolir as crises” (C3, 621).”

 

 

Qual é o sentido, então, do abandono completo e formal do lastro da moeda de crédito nas mercadorias-dinheiro a partir do início dos anos 1970 (essa medida já havia sido informalmente aplicada pelas políticas keynesianas após os anos 1930)? É difícil dizer qual seria a posição de Marx diante desses eventos contemporâneos. Certamente, ele teria se alinhado muito mais aos keynesianos do que aos monetaristas (pois critica reiteradamente a teoria quantitativa da moeda tal como foi desenvolvida por Ricardo). Mas não penso que ele acreditasse que as tendências de crise do capitalismo pudessem ser contidas, muito menos superadas, por reformas financeiras. Creio que uma leitura cuidadosa desses capítulos sustenta tal ponto de vista. É importante colocar essas questões aqui porque, com a análise do crédito, Marx parece conduzir seu conceito de capital a uma dimensão radicalmente diferente.

A loucura evidente, ainda que periódica, que toma conta do sistema financeiro leva à questão: por que diabos uma sociedade tolera isso? A resposta de Marx é muito clara. O crédito é absolutamente essencial quando se trata de acomodar em termos monetários o estímulo expansionista da acumulação perpétua de capital. A barreira constituída pela base metálica (e por notas conversíveis em ouro) tem de ser superada, uma vez que a quantidade de ouro e de prata não só é inadequada, porque relativamente inflexível em relação a flutuações na produção de mercadorias, como é insuficiente, porque finita. Além do mais, o caráter especulativo de todas as formas de investimento de capital (que pressupõe que a expansão na forma de mais mais-valor será produzida ao final do dia) está inelutavelmente embutido na circulação de capital monetário portador de juros. E, como vimos repetidas vezes ao longo do Livro II de O capital, os caprichos dos tempos distintos de curso (do capital fixo, em particular) só podem ser acomodados por meio de um sistema de crédito ativo; a liberação de “capital morto” de tesouros que seriam utilizados de outra maneira desempenha um papel crítico, acelerando a acumulação, ao invés de retardá-la. (...)

Superficialmente, o sistema de crédito parece ser sem lei, caótico e descontrolado em sua capacidade de incubar febres especulativas e colapsos periódicos. Isso era esperado, porque o juro, na linguagem dos Grundrisse, é uma particularidade, e é regulado (se é, de fato) por outras particularidades – especialmente, como vimos, pela oferta e pela demanda de capital monetário, além da competição entre diferentes frações do capital. Ele se restringe, portanto, a ser acidental, sem lei e conjuntural. Ele também depende da fé. A psicologia disso tudo, como Keynes tratará de enfatizar (e Zola descreve de modo brilhante), torna-se crucial. Para Marx, no entanto, essa questão se coloca de maneira bem diferente. Ele pergunta como os capitais e os capitalistas poderiam funcionar se ficassem presos aos fetichismos inerentes às formas superficiais do capital. Uma vez que se perdem no labirinto de seus próprios construtos fetichistas, como podem os capitalistas identificar as raízes de seus dilemas e, mais ainda, encontrar uma saída? Essa é, suspeito eu, a “confusão” que Marx queria apresentar. Desvendá-la depende de uma compreensão mais profunda da categoria de capital fictício, da qual tratarei brevemente.

Marx também sugere que a tendência à superprodução e superacumulação de capital – ou aquilo a que ele mais tarde se refere como uma “pletora” de capital –, anteriormente identificada com traços fundamentais das leis gerais do movimento do capital, atua como um gatilho, ou mesmo como causa subjacente das crises de confiança que periodicamente abalam o sistema de crédito. O “catolicismo” da base monetária, no qual o valor real é representado pela mercadoria-dinheiro (ouro e prata), é considerado por Marx o teste decisivo de realidade imposto às febres especulativas. Assim, mesmo quando as mercadorias-dinheiro – os metais preciosos – são desobrigadas de seu papel mediador como representações de valor, Marx dificilmente concordaria em tirar do valor seu papel central como árbitro das leis de movimento do capital. A questão da relação entre os poderes imateriais – porém objetivos – do valor e as eflorescências do sistema de crédito passa então para o primeiro plano da preocupação teórica.

Embora não apresente respostas definitivas, Marx tem insights nesses capítulos que poderiam ser elaborados subsequentemente. Entre eles, destaca-se o papel das formas fictícias e especulativas de capital na configuração (“disrupção” seria o termo mais adequado) das leis efetivas de movimento da acumulação do capital, em oposição às leis gerais desse movimento. Mas as relações entre Wall Street e Main Street são hoje tão opacas e controversas quanto na época de Marx.”

 

 

“O que Marx procura é uma espécie de radiografia dessa natureza interna que elucide como e por que a loucura contraditória do sistema de crédito tem necessariamente de ser engendrada. O que explica o fato de que as contradições fundamentais e subjacentes do capital assumem sempre a forma de crises financeiras e comerciais? Para esclarecer isso, ele exclui o sistema de crédito e a circulação de capital portador de juros do estudo da acumulação e da circulação do capital no Livro II, tentando compreender o que há na circulação e na acumulação do capital que torna tão necessários o crédito e o funcionamento “autônomo e independente” do capital monetário. Com base no Livro II, em suma, temos de entender por que o capital não pode existir sem um sistema de crédito, por que uma acumulação de riqueza é necessariamente acompanhada de uma acumulação de dívidas e por que a contradição fundamental entre valor e sua representação monetária internaliza a não equivalência infinita e necessária entre oferta e demanda no interior de um sistema capitalista de produção de mais-valor.”

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte II), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



(Refere-se ao livro II)

 

Há uma ideia básica que é fundamental para o entendimento do argumento de Marx nesses capítulos. Ela deriva de sua longa insistência no fato de que o valor e o mais-valor não podem ser produzidos por meio de atos de troca. O valor é criado na produção, e ponto. Segue-se disso que o tempo e o trabalho despendidos na circulação no mercado não produzem valor. Uma grande quantidade de tempo e de esforço de trabalho é absorvida pela produção no mercado. Marx considera que, em relação à produção de valor, esse tempo e esse esforço de trabalho são desperdiçados. Há, portanto, muitos incentivos para que se encontrem maneiras de reduzir esse desperdício. Uma consequência disso é a fascinação histórica e contínua do capital pela aceleração. O gasto de trabalho na transformação de uma mercadoria em dinheiro ou vice-versa é trabalho improdutivo (improdutivo não no sentido de que o trabalho é inútil ou desnecessário, ou realizado por trabalhadores ociosos, preguiçosos e improdutivos, mas improdutivo porque não produz valor). Grande parte do trabalho é empregada, obviamente, na circulação de mercadorias, e os capitalistas, assim como os comerciantes, os atacadistas e os varejistas, organizam esse trabalho e extraem lucro dele, em parte explorando os trabalhadores que eles empregam do mesmo modo como fazem os capitalistas da produção. Para Marx, porém, isso ainda deve ser categorizado como trabalho improdutivo. Essa é uma questão controversa, que foi objeto de um debate substancial e interminável, parcialmente descrito na introdução de Ernest Mandel ao Livro II (embora um grande número de estudiosos questione a interpretação de Mandel[1]).

Não pretendo entrar aqui nos detalhes dessa controvérsia. Mas há alguns pontos gerais que precisam ser mencionados, mesmo que não possamos resolvê-los. Por exemplo, há uma dificuldade potencial que surge em relação à formulação de Marx no Livro I. No capítulo 16, ele muda o foco do trabalhador individual para o “trabalhador coletivo”. O que ele tem em mente, em linhas gerais, é uma fábrica em que os produtores diretos da linha de produção se misturam com os trabalhadores que efetuam a limpeza, a manutenção e outros serviços auxiliares, e faz bem em incluí-los todos como parte do processo coletivo de produção, ainda que alguns não apliquem individualmente sua força de trabalho na mercadoria que está sendo produzida. Como observei no Livro I de Para entender o capital, há um problema em definir exatamente onde começa e onde termina o trabalho coletivo. Este inclui designers, gerentes, engenheiros, trabalhadores de manutenção e limpeza e vendedores que trabalham de dentro da fábrica? Se o que importa realmente é a produtividade do coletivo, e não o trabalhador individual, precisamos saber com base em que grupo de trabalhadores a produtividade deve ser calculada e quem são os “trabalhadores associados” que produzem o valor. O que acontece quando várias funções que antes eram parte do trabalho coletivo no interior da fábrica (como a limpeza e o design gráfico de publicidade) são terceirizadas? Elas deixam de ser parte do trabalho produtivo coletivo e passam à categoria de trabalho improdutivo? Nos últimos quarenta anos, houve uma forte tendência sistêmica das empresas capitalistas de lançar mão da terceirização, presumivelmente para chegar a uma definição muito mais “eficiente” do trabalho coletivo empregado por elas, incrementando com isso sua taxa individual de lucro (embora os efeitos agregados sobre a produção de mais-valor sejam, no máximo, sombrios). Limpeza, manutenção, design, marketing etc. tornam-se cada vez mais “servições empresariais [business services]”, e é muito difícil distinguir (o próprio Marx confessa, como veremos) quando essas atividades devem ser classificadas como produtivas de valor e quando devem ser consideradas improdutivas, porém necessárias. Esses problemas existem no interior de formas supostamente socialistas (uma das críticas à cooperativa Mondragon é que ela depende cada vez mais de terceirizações e, portanto, sobrevive à custa da exploração em outra parte).

Não posso tratar dessa questão aqui, exceto para sinalizar que, neste ponto, estamos diante de um pesadelo contábil (que, a meu ver, é insolúvel) e de uma consequente massa de controvérsias (nas quais os marxistas se notabilizaram durante muito tempo). Deixo a você a decisão de estudar esses problemas na medida de seu interesse. Se você empreender esse estudo, verá que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é muito importante nos escritos de Adam Smith, e Marx devota grande parte do primeiro volume das Teorias do mais-valor ao exame e à crítica das teses de Adam Smith para definir melhor sua própria teoria. Mas, pessoalmente, não estou persuadido de que Marx tenha encontrado uma resposta razoável para o problema. Penso também que nenhum outro autor a encontrou, e essa é a razão de um legado tão grande de controvérsia.

Na ausência de uma clara solução contábil para a divisão entre trabalho produtivo e improdutivo, ficamos com o problema de como preservar os insights intuitivos de Marx e, ao mesmo tempo, reconhecer a dificuldade (impossibilidade?) de operacionalizar as distinções. O insight intuitivo deriva da análise dos três ciclos do capital. O momento da produção (o processo de trabalho) funda o ciclo produtivo. Mas esse ciclo não pode ser completado sem que se negociem as condições de circulação definidas pelo dinheiro e pelas mercadorias. O trabalho está certamente envolvido em todos os três ciclos, e a continuidade do ciclo do capital industrial (o processo inteiro) depende das condições de continuidade definidas em todos os três ciclos. A ideia principal é a da necessidade da continuidade e velocidade (aceleração) do fluxo, e o que tem de ser feito para assegurar esse movimento contínuo.

Se essa fosse a única consideração, poderíamos defender a inclusão de todo trabalho envolvido na produção, circulação e realização como parte do trabalho coletivo de manutenção e reprodução do capital (isso poderia ser estendido para incluir o trabalho doméstico, voltado para a reprodução da força de trabalho). Em outras palavras, poderíamos dizer que todos os trabalhadores envolvidos no ciclo do capital industrial deveriam ser considerados trabalhadores produtivos. Na visão de Marx, porém, isso encobriria e mascararia algo muito importante. Se o valor e o mais-valor são produzidos apenas no ponto de produção no ciclo produtivo, os gastos realizados e o trabalho despendido no âmbito da circulação do capital industrial têm de ser pagos pelas deduções realizadas sobre o valor e o mais-valor produzidos na produção. Seguramente, a extensão dessas deduções é uma questão de profunda importância, tanto individual como socialmente, para a reprodução do capital. Se todo o valor e o mais-valor produzido fosse absorvido nos custos de circulação, quem se incomodaria em produzir? Por isso, estratégias para reduzir essas deduções, assim como para minimizar o tempo perdido na circulação, desempenharam um papel importante na história do capital, e podemos experienciar os resultados dessas estratégias em nossas vidas cotidianas.

Deriva daí o impulso para revolucionar constantemente as configurações espaçotemporais do capitalismo por meio da aceleração (até do nosso consumo, por exemplo) e da “anulação do espaço pelo tempo” (como Marx diz nos Grundrisse). Em contrapartida, o poder excessivo para impor essas deduções (ou a incapacidade de facilitar o rápido movimento do capital através dos ciclos) pode ser o gerador de crises. Se todo poder está nas mãos dos capitalistas monetários (os financistas) e os capitalistas de mercadorias (os comerciantes), qual é o impacto disso na produção de valor da qual essas frações do capital dependem em última instância? Podemos dizer, por exemplo, que as perturbações na economia global ocorridas em 2007 foram causadas pelos lucros excessivos (e, como veremos, largamente fictícios) que foram tirados do dinheiro improdutivo e dos ciclos da mercadoria (por exemplo, pelo Goldman Sachs e pelo Walmart) e sugaram a energia das atividades produtivas, ou então degradaram tanto as condições no ciclo produtivo que acabaram provocando uma fuga de capitais para os ciclos improdutivos do dinheiro e da mercadoria, nos quais a acumulação poderia ocorrer mais pela despossessão do que pela produção. Como poderíamos estabelecer a verdade de cada uma dessas proposições é uma questão intrigante. Mas o problema se apresenta prontamente: se o valor pode ser produzido na circulação, para que se incomodar em produzir? Marx não coloca a questão dessa forma, mas ela está implícita na análise. Eu preferiria mil vezes me ocupar com essa questão a me perder num pântano contábil. E essa é a questão que parece corresponder mais propriamente à compreensão intuitiva de Marx. Ela também tem grande relevância em nossa época. Tendo tudo isso em mente, vejamos como Marx trata dos detalhes.”

[1] Para uma crítica dos argumentos de Mandel na introdução ao Livro II, ver Patrick Murray, “Beyond the ‘Commerce and Industry’ Picture of Capital,” em Christopher John Arthur e Geert A. Reuten (orgs.), The Circulation of Capital: Essays on Volume Two of Marx’s Capital (Londres, Macmillan, 1998), p. 57-61.

 

 

É evidente que quanto maior for a coincidência entre o tempo de produção e o tempo de trabalho, maiores serão a produtividade e a valorização de um determinado capital produtivo num dado intervalo de tempo. Daí a tendência da produção capitalista de encurtar o máximo possível o excedente do tempo de produção sobre o tempo de trabalho. No entanto, ainda que o tempo de produção do capital possa diferir de seu tempo de trabalho, este está sempre contido naquele, e o próprio excedente é condição do processo de produção. (203-4)

O tempo de curso é o tempo necessário para vender a mercadoria e, então, reconverter o capital monetário em meios de produção e força de trabalho. “Tempo de curso e tempo de produção excluem-se mutuamente. Durante seu tempo de curso, o capital não atua como capital produtivo e, por isso, não produz mercadoria nem mais-valor” (204). Isso significa que:

a expansão e contração do tempo de curso age como limite negativo à contração e expansão do tempo de produção [...]. Quanto mais as metamorfoses da circulação do capital são apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo de curso = 0 ou se aproxima de zero, tanto mais atua o capital, tanto maior se torna sua produtividade e autovalorização. Se, por exemplo, um capitalista trabalha por encomenda, recebendo o pagamento na entrega do produto, e o pagamento se efetua com seus próprios meios de produção, então seu tempo de circulação se aproxima de zero. (204-5)

A economia política clássica, observa Marx, ignorou a importância da análise dos tempos de produção e circulação. Como consequência, surgiu, entre muitos de seus representantes, assim como entre os próprios capitalistas, a ilusão fetichista de que o mais-valor poderia derivar “da esfera da circulação”, porque “a maior duração do tempo de curso age como uma razão da alta do preço”. Isso produz a ilusão de que “o capital contém em si uma fonte mística de autovalorização, que flui na esfera da circulação, independentemente de seu processo de produção e, portanto, da exploração do trabalho” (205). Fascinado pela crença fetichista (que ainda persiste) de que o valor pode ter origem na circulação, é impossível entender por que o capital se movimenta no sentido da aceleração e da eficiência crescentes em seu curso. Afinal, se o valor pode ser produzido mediante a circulação, o que explica a luta para reduzir os tempos de curso? Tempos mais lentos produziriam um valor maior.”

 

 

Ainda que Engels tivesse razão em se queixar de que o Livro II “não contém muito material para a agitação”, essa passagem indica um desenvolvimento significativo na visão política de Marx sobre o comunismo, que será cada vez mais eloquente (embora, em grande parte, não declarado) na seção III do Livro II. Ela levanta questões sobre como a “sociedade” poderia coordenar e “calcular” racionalmente divisões agregadas do trabalho e gerenciar projetos de longo prazo na ausência de sinais de mercado, de maneira que, ao invés de diminuir, aumentasse a liberdade dos trabalhadores associados para perseguir seus interesses coletivos. O que essa análise mostra pela primeira vez em O capital, mas não pela última, é a existência de uma contradição fundamental no cerne do projeto comunista. Pois assim como a liberdade individual burguesa só se tornou possível no contexto de um aparato disciplinar draconiano baseado na propriedade privada – que sustenta o modo de produção capitalista –, o comunismo precisa encontrar uma maneira de redefinir e proteger a liberdade do trabalho associado dentro de uma estrutura geral de cálculo, coordenação e planejamento que circunscreva e discipline a produção das infraestruturas sociais e físicas necessárias, ao mesmo tempo que aumenta as perspectivas de emancipação humana.

Na sociedade capitalista, ao contrário, na qual o entendimento social se afirma apenas e invariavelmente post festum, grandes perturbações podem e têm de ocorrer constantemente. Por um lado, uma pressão sobre o mercado monetário, ao mesmo tempo que, inversamente, a facilidade proporcionada por este último provoca o surgimento de um grande número de tais empresas, ou seja, precisamente as circunstâncias que, mais tarde, pressionarão o mercado monetário. Tal mercado é pressionado porque aqui se faz necessário o adiantamento constante de capital monetário em grande escala e durante longos períodos. Desconsideramos aqui inteiramente o fato de que industriais e comerciantes aplicam em especulações ferroviárias etc. o capital monetário requerido para o funcionamento de seus negócios e o repõem mediante empréstimos no mercado monetário. (410-1)

Esse processo fornece uma base técnica para todas as “formas insanas” e comportamentos “loucos” identificados nas investigações sobre o capital financeiro e o sistema de crédito no Livro III:

Como elementos do capital produtivo são constantemente retirados do mercado e apenas um equivalente em dinheiro é lançado no mercado em seu lugar, aumenta a demanda solvente, sem fornecer, por si mesma, qualquer elemento de oferta. Por conseguinte, aumentam os preços, tanto dos meios de vida quanto dos materiais de produção. A isso se agrega o fato de que, durante esse tempo, especula-se regularmente e opera-se uma grande transferência de capital. Um bando de especuladores, empreiteiros, engenheiros, advogados etc. enriquece, provocando uma forte demanda de consumo no mercado. Além disso, os salários aumentam. Quanto aos meios alimentares, isso fornece um estímulo à agricultura, mas como esses meios alimentares não podem ser aumentados subitamente, no curso do ano, cresce sua importação, assim como, em geral, a importação de meios alimentares exóticos (café, açúcar, vinho etc.) e de objetos de luxo. Isso provoca a importação excessiva e a especulação nesse ramo de negócio. Por outro lado, nos ramos da indústria em que a produção pode ser rapidamente incrementada (mais propriamente, a manufatura, a mineração etc.), o aumento dos preços provoca uma expansão repentina, logo seguida do colapso. (411)

Isso significa um distanciamento radical da linguagem habitual do Livro II e uma ligação direta, e mesmo maravilhosa, com os capítulos sobre finanças e crédito do Livro III, confirmando a unidade subjacente entre os dois livros. Marx ainda vai além, quando examina o efeito sobre o trabalho:

O mesmo efeito se produz sobre o mercado de trabalho, a fim de atrair para os novos ramos de negócio grandes massas da superpopulação relativa latente, e inclusive dos trabalhadores ocupados. Em geral, tais empresas em grande escala, como ferrovias, retiram do mercado de trabalho uma determinada quantidade de força de trabalho, que só pode proceder de certos ramos, como a agricultura etc., nos quais se empregam apenas indivíduos de grande vigor. Isso continua a ocorrer mesmo depois que novas empresas se tenham convertido em ramos permanentes da indústria e, assim, já esteja formada a classe trabalhadora nômade por elas requerida, como, por exemplo, nos casos em que a construção de ferrovias é realizada temporariamente numa escala acima da média. Uma parte do exército operário de reserva, que pressionava os preços para baixo, é absorvida. Os salários sobem em geral, mesmo nas partes do mercado de trabalho que até então apresentavam um bom nível de ocupação. Isso dura até que o inevitável colapso volta a liberar o exército operário de reserva e os salários são novamente pressionados para baixo, até atingir seu patamar mínimo. (411-2)

Está clara, aqui, a relação entre essas teses e aquelas expressas no capítulo 25 do Livro I. Contudo, Marx acrescenta, numa nota de rodapé, uma observação teórica ainda mais pertinente e potencialmente explosiva:

Contradição no modo de produção capitalista: os trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado. Mas como vendedores de sua mercadoria – a força de trabalho –, a sociedade capitalista tem a tendência de reduzi-los ao mínimo do preço.

Contradição adicional: as épocas em que a produção capitalista desenvolve todas as suas potencialidades mostram-se regularmente como épocas de superprodução, porquanto as potências produtivas jamais podem ser empregadas a ponto de, com isso, um valor maior poder não só ser produzido como realizado; mas a venda das mercadorias, a realização do capital-mercadoria e, assim, também a do mais-valor, está limitada não pelas necessidades de consumo da sociedade em geral, mas pelas necessidades de consumo de uma sociedade cuja grande maioria é sempre pobre e tem de permanecer pobre. (nota 1, 412)

Que o arrocho salarial no interesse da extração de mais-valor para o capital coloque uma tal dificuldade de demanda efetiva sustentada é há muito tempo uma das principais contradições das leis de movimento do capital. Aqui ela é explicitamente reconhecida como tal. A importância dos trabalhadores como consumidores e, por conseguinte, como agentes para a realização do valor do capital-mercadoria no mercado é, de fato, um tema importante em todo o Livro II. No Livro I, essa questão foi ignorada simplesmente com base no pressuposto de que todas as mercadorias são negociadas por seus valores. Esse é um daqueles momentos de O capital em que as mercadorias – um aspecto da distribuição excluído de antemão como uma particularidade – são reintroduzidas no núcleo do processo de circulação do capital industrial em geral, com enormes impactos sobre as contradições no interior das leis de movimento do capital.

Como conclusão do capítulo, Marx estende seu pensamento para além do pressuposto normal de um sistema fechado de comércio. A distância do mercado tem de ser vista “como uma base material específica” para uma circulação mais longa e, portanto, para os tempos de rotação. O exemplo que Marx dá é o do tecido e do fio de algodão vendidos à Índia. O produtor vende ao comerciante, que recorre ao mercado monetário para obter meios de pagamento. Mais tarde, o exportador vende no mercado indiano. Só então o valor equivalente pode voltar para a Inglaterra (em dinheiro ou em forma-mercadoria) para fornecer meios de pagamento equivalentes àqueles necessários a uma nova produção (o dinheiro, é claro, volta para o mercado monetário). As lacunas entre a oferta e a demanda efetiva são similares àquelas esboçadas no caso da rotação anual do capital B. Para cobrir a lacuna entre oferta e demanda é preciso recorrer ao mercado monetário ou ao crédito. Mas muita coisa pode dar errado:

Ora, é possível que mesmo na Índia o fio seja novamente vendido a crédito. Com esse crédito, compram-se produtos nesse país que são enviados à Inglaterra, como retorno pelo fio vendido, ou se reemite uma letra de câmbio pela importação. Se essa situação se prolonga, o resultado é uma pressão sobre o mercado monetário indiano, cujo efeito reverso sobre a Inglaterra pode ocasionar aqui uma crise. Por sua vez, a crise, mesmo que vinculada à exportação de metais preciosos para a Índia, provoca neste último país uma nova crise em consequência da falência de firmas inglesas e suas filiais indianas, às quais os bancos indianos concederam créditos. Assim instala-se uma crise simultânea tanto no mercado cuja balança comercial é desfavorável como naquele cuja balança é favorável. Este fenômeno pode ser ainda mais complicado. Por exemplo, a Inglaterra enviou lingotes de prata à Índia, mas como os credores ingleses da Índia cobram agora a quitação dos empréstimos, em breve a Índia terá de reenviar seus lingotes de prata à Inglaterra. (413)

A questão, é claro, é que “o que aparece como crise no mercado monetário expressa, na realidade, anomalias nos próprios processos de produção e de reprodução” (414). Esse é o verdadeiro insight que resulta do estudo dos tempos distintos de rotação, em particular aqueles envolvidos no comércio de longa distância.

Não há nada de novo nas crises monetárias que se repetem de um lugar e de um momento para outro no processo de circulação. É, por assim dizer, da própria natureza do capital agir dessa maneira.”

 

 

O principal objetivo de Marx nesse capítulo introdutório é analisar a economia como uma totalidade social, constituída de uma miríade de atividades individuais, e de que forma essa totalidade é estruturada. Ele inicia o capítulo lembrando a importância da continuidade no fluxo do capital – como o ciclo monetário parece mediar o ciclo produtivo do capital (e vice-versa) num processo de “repetição constante”. O resultado é a “perpétua ressurgência” do capital “como capital produtivo”, condicionada por “suas transformações no processo de circulação”. É muito importante ter em mente a ideia das constantes metamorfoses da forma (de dinheiro em produção, de produção em mercadoria e desta novamente em dinheiro). Tal concepção do capital como processo e fluxo é, no fim das contas, o que torna tão especial o conceito marxiano de economia e capital. Diz ele:

Cada capital singular, no entanto, forma apenas uma fração autonomizada do capital social total – uma fração dotada, por assim dizer, de vida individual –, assim como cada capitalista singular não é mais que um elemento individual da classe capitalista. O movimento do capital social consiste da totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas [...]. (449)

É muito importante ter em mente a independência e a autonomia do capital individual como um traço fundamental do modo de produção capitalista. Não podemos jamais esquecer que a individualidade e a autonomia não são direitos concedidos pela natureza, mas um produto histórico do advento de uma sociedade de mercado, do direito burguês, da monetarização e da mercadorização, todos eles precondições necessárias para o surgimento do modo de produção capitalista. Acho estranho que se diga tão frequentemente que Marx nega a individualidade e a possibilidade de autonomia, quando na verdade ele se refere continuamente à importância delas, e conta como elas se desenvolveram.

Além disso, o consumo produtivo implica a “conversão de capital variável em força de trabalho”. O trabalhador entra em cena como portador da mercadoria força de trabalho (mais uma precondição para o surgimento do modo de produção capitalista). Mas os trabalhadores também compram mercadorias para o seu consumo individual. “Aqui a classe trabalhadora se apresenta como compradora, e os capitalistas como vendedores de mercadorias aos trabalhadores” (450). Os indivíduos dessas duas grandes classes estabelecem relações mútuas como compradores e vendedores, relação muito diferente daquela entre produtores e expropriadores de mais-valor. O consumo da classe trabalhadora (seu consumismo) torna-se um momento importante na realização de valores no mercado. E o trabalhador, como qualquer outro, tem autonomia e poder de escolha como comprador.

O ciclo dos capitais individuais, considerados em seu conjunto como capital social, ou seja, em sua totalidade, compreende não apenas a circulação do capital, mas também a circulação geral das mercadorias. Primordialmente, esta última só pode consistir de dois componentes: 1) o próprio ciclo do capital e 2) o ciclo das mercadorias que entram no consumo individual, ou seja, das mercadorias nas quais o trabalhador gasta seu salário e o capitalista seu mais-valor (ou parte dele). (450)”

 

 

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(A partir daqui refere-se ao Livro III)

 

Se, como o leitor teve o desprazer de descobrir, a análise das conexões internas efetivas do processo capitalista de produção é uma coisa muita intricada e um trabalho muito minucioso; se é uma tarefa da ciência reduzir o movimento visível e meramente aparente ao movimento interno efetivo, é inteiramente evidente que nas mentes dos agentes da produção e da circulação capitalistas surgirão ideias acerca das leis da produção em completa divergência com estas últimas, e que serão apenas a expressão consciente do movimento aparente. As ideias de um comerciante, de um especulador da bolsa, de um banqueiro são necessária e absolutamente falsas. As dos fabricantes são falseadas pelos atos da circulação aos quais o capital é submetido e pela nivelação da taxa geral de lucro. Nessas mentes, a concorrência também assume necessariamente um papel inteiramente falso. (C3, 428)

Perceba o que isso implica. A autoconsciência, a autopercepção e as ideias dos agentes financeiros (assim como as dos capitalistas em geral) são enganosas, não no sentido de que eles sejam loucos (embora, como veremos, esse seja o caso muitas vezes), mas necessariamente iludidos no sentido descrito por Marx em sua teoria do fetichismo. Nessa teoria, a aparência superficial dos signos do mercado (como os preços e os lucros), aos quais temos inevitavelmente de reagir, esconde o conteúdo real de nossas relações sociais. Agimos necessariamente com base nesses signos, não importando se reconhecemos ou não o fato de que eles mascaram outra coisa. Não é surpresa, portanto, encontrar ideias e teorias burguesas que reproduzam os signos enganadores no mundo da consciência e do pensamento. A intenção geral de Marx em O capital é revelar o que se esconde por trás e além dos fetichismos da troca de mercadorias e ver o mundo “de pé”. (...)

A visão de Marx sobre tudo isso tem uma imensa importância em nossa época. Hoje, não só temos de lidar com inúmeras explicações que acreditamos serem confiáveis sobre o que acontece em Wall Street (inclusive as investigações do Congresso), como também somos esmagados por uma retórica que diz que o sistema bancário é tão complicado que apenas os banqueiros especialistas compreendem o que fazem. Por isso, dizem que devemos confiar na expertise deles para lidar com os problemas que eles criaram. Mas, se Marx está certo, não devemos acreditar nas explicações dos banqueiros (ainda que sejam “confiáveis”, no sentido fetichista do termo), e certamente não delegar a eles a tarefa de conceber arranjos institucionais para controlar as contradições inerentes (a maioria das quais é desconhecida) às leis de movimento do capital. Banqueiros e financistas são de certo modo as últimas pessoas em quem se pode confiar, não porque sejam todos fraudadores e mentirosos (embora notoriamente um certo número deles o seja), mas porque muito provavelmente são prisioneiros de suas próprias mistificações e ideias fetichistas. Não é difícil imaginar o que Marx teria dito de Lloyd Blankfein, que, pressionado por uma comissão do Congresso, declarou que seu banco, o Goldman Sachs, estava apenas realizando a obra de Deus.

Os sistemas bancário e financeiro são, segundo Marx, um mundo muito complicado. A insistência de Marx para que se preste atenção apenas àqueles aspectos vinculados às leis gerais de movimento do capital é proveitosa e ao mesmo tempo frustrante. A ciência de Marx procura o movimento interno efetivo em meio ao caos aparente e a inúmeras complicações. Nosso esforço deveria ser procurar não menos do que isso.”

 

 

Numa sociedade camponesa com alto nível de autossuficiência, só serão comercializados os produtos que excederem a satisfação das necessidades básicas, e os comerciantes se verão restringidos a negociar apenas esses excedentes. Seu papel se expande e atinge “um ponto máximo com o desenvolvimento pleno da produção capitalista, em que o produto é produzido simplesmente como uma mercadoria, e não como um meio direto de subsistência”. O capital comercial “apenas medeia o intercâmbio de mercadorias”, mas “compra e vende para muitas pessoas. Vendas e compras são concentradas em suas mãos e, desse modo, a compra e a venda deixam de estar ligadas às necessidades diretas do comprador (como comerciante)”. Embora Marx não diga, o comerciante obviamente procura obter ganho com economias de escala em sua operação.

A riqueza do comerciante “existe sempre como riqueza monetária, e seu dinheiro funciona sempre como capital”, apesar de sua forma ser sempre D-M-D’. Isso significa que a finalidade e o objeto das operações do comerciante tem de ser a busca de ΔM (C3, 443). A questão é: de onde vem esse ΔM, e quais são as implicações de sua apropriação pelo comerciante?

Como afirma Marx:

[não há] absolutamente nenhum problema em compreender por que o capital comercial aparece como a forma histórica do capital muito tempo antes de o capital ter submetido ao seu jugo a própria produção. Sua existência e seu desenvolvimento a um certo nível são uma precondição histórica para o desenvolvimento do modo de produção capitalista (1) como precondição para a concentração da riqueza monetária, e (2) porque o modo de produção capitalista pressupõe a produção para o comércio [...]. Por outro lado, cada desenvolvimento do capital comercial confere à produção um caráter progressivamente orientado para o valor de troca, transformando cada vez mais os produtos em mercadorias.

A existência do capital comercial pode ser uma condição necessária para a transição para o modo de produção capitalista, mas, “tomada em si mesmo, é insuficiente para explicar a transição” (C3, 444).

No contexto da produção capitalista, “o capital comercial é rebaixado de sua existência separada anterior para se tornar um momento particular do investimento do capital em geral, e a equalização dos lucros reduz sua taxa de lucro à média geral. Agora ele funciona simplesmente como o agente do capital produtivo”.”

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: A atual crise econômica, sem precedentes desde a Grande Depressão, não mostra sinais de resolução e a obra de Marx permanece incontornável para compreender a natureza e a dinâmica das economias capitalistas. Por quase quarenta anos, David Harvey escreveu e lecionou sobre O capital, consolidando-se com uma das maiores autoridades acadêmicas no assunto. Condensando essa experiência e dando continuidade ao sucesso de seu Para entender O capital, Livro I, Harvey volta sua atenção agora ao famigerado Livro II – o livro, aliás, foi finalizado durante sua estadia no Brasil para o projeto Marx: a criação destruidora, onde lançou seu volume I.

Buscando tornar sua profundidade analítica acessível a um público maior, Harvey guia leitores com pouca ou nenhuma familiaridade com o pensamento de Marx por esta obra difícil e muito pouco lida. Enquanto o livro I foca na produção e o III, em crises, o Livro II examina de maneira mais abstrata a forma pela qual a noção de valor se dá a partir da compra e venda de mercadorias – a circulação. Conhecidamente mais complicado que o livro I, o volume II d’O capital é tratado de forma analítica por Harvey, que usa de sua experiência como professor para dissecá-lo. O autor ainda aborda diferentes questões presentes no original, como a forma de organização de uma sociedade verdadeiramente comunista e os estudos de Marx sobre Adam Smith. Da recente crise econômica pela qual passou o capitalismo até sua resposta neoliberal, Harvey provê, neste livro, exemplos concretos para a teoria de Marx. Harvey introduz ainda elementos do Livro III sobre crédito e finança para elucidar certos aspectos da crise contemporânea.

Leitura obrigatória para quem deseja uma compreensão mais completa do pensamento econômico de Marx através de sua obra central: O capital. Com o estilo provocador marcante do geógrafo, este volume do livro mostra insights de Harvey sobre a teoria de Marx e dá assistência a quem deseja entender as contradições e crises do sistema vigente por meio de teorias escritas há mais de 150 anos.



(Referente ao Livro II de O Capital)

 

 

A produção que “se estende” no modo de produção capitalista é a produção de mais-valor, e o mais-valor é uma relação material social, e não física. Acima de tudo, a produção de mais-valor é o foco fundamental do Livro I de O capital. A mobilização de processos de trabalho material pelo capital é realizada para a produção de mais-valor. O que Marx tem em mente quando diz que a produção se estende para além de si mesma na “determinação antitética da produção” é que o que importa são os processos de trabalho materiais concretos que produzem mais-valor. Os processos de produção material que não produzem mais-valor são sem valor. No esquema mais geral de Marx, é claro, isso significa que as possibilidades emancipatórias que se apresentam aos seres humanos por meio da fisicalidade do processo de trabalho são pervertidas e dominadas pela necessidade social de produzir mais-valor para outrem. O resultado é a alienação universal dos seres humanos de seus próprios poderes criativos e capacidades potenciais. Algumas das mais poderosas passagens dos Grundrisse e de O capital insistem nesse ponto.

A produção de mais-valor por meio da circulação do capital é, em suma, o pivô em torno do qual gira o caráter de lei necessária do modo de produção capitalista: sem mais-valor, não há capital. Essa foi a ruptura fundamental que Marx realizou com a economia política clássica. Marx continua:

É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos. (Grundrisse, 53)

“Unilateral” refere-se mais ao processo de trabalho material do que à produção social de mais-valor. Portanto, o que significa “determinar” nesse caso?

A “lei” de um modo de produção capitalista assume sempre a seguinte forma: todos os tipos de estruturas contingentes e acidentais de distribuição e troca e uma grande diversidade de regimes de consumo são possíveis em princípio, desde que não restrinjam ou destruam indevidamente a capacidade de produzir mais-valor em escala sempre crescente. Uma estrutura de distribuição socialdemocrata, relativamente igualitária, como, por exemplo, a da Escandinávia, pode coexistir com um regime brutal, desigual e autoritário de distribuição neoliberal como, por exemplo, o do Chile nos anos 1980, desde que esse mais-valor seja produzido em ambos os países. Não há um padrão único de distribuição, sistema de troca ou regime cultural específico de consumo que possa ser derivado das leis gerais para a produção de mais-valor. Porém – e esse é um grande “porém” –, as possibilidades não são infinitas. Se qualquer um dos momentos, inclusive a relação com a natureza, assumir uma configuração que restrinja ou solape a capacidade de produzir mais-valor, então ou o capital cessará de existir, ou serão necessárias amplas adaptações dentro da totalidade das relações. Esse é, aqui, o significado de “determinar”.

Essas adaptações podem ocorrer como um incremento – na maior parte das vezes mediante concorrência, intervenções estatais ou desenvolvimentos geográficos irregulares, nos quais configurações conquistadas num espaço único da economia global superam outros competidores na produção de mais-valor (muito do que os chineses estão fazendo, e os japoneses e alemães fizeram nos anos 1980). Mudanças também podem ocorrer mediante abalos violentos: daí a importância tanto das crises localizadas como das crises globais, e mesmo das guerras (mas atenção: não estou dizendo que todas as guerras e lutas armadas ocorrem unicamente por essa razão).

Distribuição, troca e consumo afetam reciprocamente uns aos outros. Mas também afetam a produção de mais-valor. Isso acontece, diz Marx, por uma simples razão: “na distribuição figuram renda da terra, salário, juros e lucro, enquanto na produção terra, trabalho e capital figuram como agentes da produção”. O próprio capital, afirma Marx:

é posto duplamente, 1) como agente da produção, 2) como fonte de renda; como determinadas formas de distribuição que são determinantes. [...]

Da mesma maneira, o salário é exatamente igual ao trabalho assalariado considerado sob uma outra rubrica; a determinabilidade que o trabalho possui aqui como agente da produção aparece como determinação da distribuição. (Grundrisse, 49)

Assim, se Marx deixa em segundo plano os aspectos distributivos (as particularidades do salário e das taxas de lucro reais, assim como das taxas de juros, rendas, impostos, lucros sobre o capital comercial) como contingentes e acidentais, e, portanto, desprovidos do caráter de leis necessárias (embora isso não exclua generalizações empíricas ou históricas), ele coloca em primeiro plano o papel crucial da terra, do trabalho assalariado, do capital, do dinheiro e da troca na produção – como leis necessárias – do mais-valor. Como resultado, os fatores de produção ganham importância, enquanto os agentes e os retornos obtidos por eles são excluídos (como é mais obviamente o caso no Livro II). Isso leva muitos estudantes a perguntar: onde entra a atividade [agency] em toda essa teoria econômico-política? A resposta é que Marx apenas segue a economia política clássica. Em seus escritos históricos, ele não precisa fazer isso.”

 

 

O primeiro elo (metamorfose) na cadeia de trocas que forma a circulação do capital é o uso de dinheiro para a compra de força de trabalho e meios de produção. O capital monetário “aparece [...] como a forma em que o capital é adiantado” (110). A palavra “aparece” sugere, como muitas vezes é o caso, que nem tudo é exatamente como parece.

Como capital monetário, ele [o dinheiro] está numa condição em que pode cumprir funções próprias do dinheiro, como, no caso presente, as funções de meio universal de compra e meio universal de pagamento. [...] Essa propriedade não deriva do fato de o capital monetário ser capital, mas sim de ele ser dinheiro. (110)

Nem todo dinheiro é capital, nem toda compra e venda, mesmo de força de trabalho (como no caso de serviços pessoais ou trabalhos doméstico), faz parte da circulação e acumulação de capital. O que converte as funções do dinheiro em capital monetário é “seu papel determinado no movimento do capital”, e isso depende do “nexo entre a fase em que elas aparecem e as outras fases de seu ciclo” (110). O dinheiro só funciona como capital quando é absorvido no processo total de circulação do capital. Então, e somente então, o dinheiro se torna uma “forma de manifestação do capital” (111). Portanto, existe dinheiro, e existe dinheiro que funciona como capital. Os dois não são a mesma coisa.

Quando o dinheiro é usado para comprar força de trabalho (D-T), ele sai da circulação do capital, mesmo que os trabalhadores usem seu salário em dinheiro para comprar mercadorias produzidas por eles sob o controle dos capitalistas. Os trabalhadores cedem sua mercadoria (força de trabalho) para obter o dinheiro com o qual compram as mercadorias de que necessitam para viver e, com isso, devolvem o dinheiro à circulação do capital. Eles vivem num ciclo do tipo M-D-M (ou, como Marx prefere dizer, um ciclo T-D-M), oposto ao ciclo D-M-D’ do capital. Nesse movimento T-D-M, observa Marx, “seu caráter de capital desaparece e seu caráter de dinheiro permanece constante” (111). Mais tarde ele se estende sobre esse tema:

O trabalhador assalariado vive apenas da venda da força de trabalho. Sua subsistência – sua autossubsistência – requer o consumo diário. Seu pagamento, portanto, tem de ser repetido constantemente em prazos relativamente curtos [...]. Diante do trabalhador, o capitalista tem de atuar constantemente como capitalista monetário, e seu capital tem de confrontá-lo como capital monetário. Por outro lado, porém, para que a massa dos produtores diretos, os trabalhadores assalariados, possam realizar a operação T-D-M [na qual T é a venda de sua força de trabalho], é preciso que eles encontrem constantemente os meios de subsistência em forma comprável, isto é, em forma de mercadorias. Essa situação requer já um alto grau de circulação dos produtos como mercadorias e, portanto, do desenvolvimento da produção mercantil. (118)

O movimento D-T é visto com frequência – e, segundo Marx, erroneamente – como “o momento característico da transformação de capital monetário em capital produtivo” e, portanto, como “característico do modo de produção capitalista” (111). Mas “o dinheiro já aparece desde muito cedo como comprador dos assim chamados serviços, sem que D tenha se convertido em capital monetário ou sem que o caráter geral da economia tenha sido revolucionado” (112). Para que a circulação de capital comece realmente é necessário primeiro que a força de trabalho apareça no mercado como mercadoria. “O característico não é que a mercadoria força de trabalho seja comprável, mas que a força de trabalho apareça como mercadoria” (112). O dinheiro só pode ser gasto como capital “porque a força de trabalho encontra-se separada de seus meios de produção” e porque:

essa separação só é superada com a venda da força de trabalho ao detentor dos meios de produção; e que, portanto, ao comprador também pertence o emprego da força de trabalho, cujos limites não coincidem em absoluto com os limites da massa de trabalho necessária à reprodução de seu próprio preço. A relação de capital durante o processo de produção só surge porque ela já existe, em si mesma, no ato de circulação, nas diferentes condições econômicas fundamentais em que o comprador e o vendedor se defrontam um com o outro, em sua relação de classe. Não é o dinheiro que engendra, por sua própria natureza, essa relação, mas, antes, é a existência dessa relação que pode transformar uma simples função do dinheiro numa função do capital. (114)

Aqui se encontra, portanto, a primeira precondição fundamental para a circulação do capital: “a relação de classe entre capitalista e assalariado já está dada” (113; grifos meus). Esse foi um tema fundamental no Livro I, em particular nas seções sobre a acumulação primitiva. Aqui, Marx reitera que a existência da força de trabalho como uma mercadoria “pressupõe processos históricos que dissolvam a conexão originária entre os meios de produção e a força de trabalho” (114).

“A conversão de capital monetário em capital produtivo” ocorre quando “o capitalista opera a conexão dos fatores objetivos e pessoais da produção, na medida em que esses fatores consistem em mercadorias”. Para pôr o trabalhador para trabalhar, o capitalista “tem primeiramente de comprar os meios de produção, as oficinas de trabalho, as máquinas etc., antes de comprar a força de trabalho” (112). Mas isso requer que tais mercadorias – os meios de produção – também já estejam disponíveis no mercado. “Para que o capital possa se formar e se apoderar da produção, pressupõe-se certo grau de desenvolvimento do comércio e, portanto, também da circulação e da produção de mercadorias” (115). Apenas dessa maneira os fatores objetivos (meios de produção) podem ser conjugados com o poder subjetivo do trabalho na produção.

A segunda precondição fundamental para a circulação do capital é esta: é preciso que já exista a produção geral de mercadorias para o mercado. Somente então o capitalista encontrará os meios de produção disponíveis no mercado, e os assalariados encontrarão os bens de consumo requeridos para sua autorreprodução. Se essas condições prévias não são satisfeitas, o dinheiro não pode funcionar como capital.

Aqui, Marx está nos advertindo do erro de considerar que o capital deva ser primariamente entendido em termos monetários, e estende-se consideravelmente ao explicar por que isso é assim (115). Mas uma vez que existe a classe dos assalariados e esta é capaz de reproduzir a si mesma, uma dinâmica transformativa é posta em movimento:

as mesmas circunstâncias que produzem as condições fundamentais da produção capitalista – a existência de uma classe de trabalhadores assalariados – exigem que toda produção de mercadorias se transforme em produção capitalista de mercadorias. À medida que esta última se desenvolve, ela exerce um efeito destrutivo e dissolvente sobre todas as formas anteriores de produção, que, voltadas preferencialmente à satisfação das necessidades imediatas do produtor, só convertem em mercadoria as sobras do que foi produzido. Ela faz da venda do produto o interesse primordial, sem que, de início, isso pareça afetar o próprio modo de produção, o que, por exemplo, constituiu o primeiro efeito do comércio capitalista mundial sobre povos como o chinês, o indiano, o árabe etc. Em segundo lugar, porém, onde lança raízes, ela destrói todas as formas da produção de mercadorias baseadas seja no trabalho dos próprios produtores, seja meramente na venda dos produtos excedentes como mercadorias. Primeiramente ela universaliza a produção de mercadorias e, então, transforma gradualmente toda a produção de mercadorias em produção capitalista. (118)”

 

 

Em minha análise dos três primeiros capítulos do Livro II, olhei para o processo de circulação do capital através de janelas distintas: a do dinheiro, a da produção e a da mercadoria. No capítulo 4, Marx volta a reunir os ciclos para analisar sua unidade. A linguagem é um pouco confusa, mas penso que o argumento é claro: os diferentes ciclos são intricados, mutuamente entrelaçados e estão em constante movimento uns em relação aos outros. O movimento de cada um é uma condição para o movimento de todos. A “valorização do valor” (com o que Marx entende a produção e a realização de mais-valor) é o “escopo determinado”, o “motivo propulsor”. Considerado em seu conjunto:

todos os pressupostos do processo aparecem como seu resultado, como um pressuposto produzido por ele mesmo. Cada momento aparece como ponto de partida, ponto de transição e ponto de retorno. O processo inteiro apresenta-se como unidade do processo de produção e do processo de circulação; o processo de produção torna-se mediador do processo de circulação e vice-versa. (179)

Marx compara esse todo a:

[um] círculo em constante rotação, [no qual] cada ponto é simultaneamente ponto de partida e ponto de retorno. [...] A reprodução do capital em cada uma de suas formas e cada um de seus estágios é tão contínua quanto a metamorfose dessas formas e a passagem sucessiva pelos três estágios. Aqui, portanto, o ciclo inteiro é a unidade efetiva de suas três formas. (180)

A linguagem dominante é de continuidade, sucessão, coexistência e fluidez do movimento do capital através dos três ciclos. Essa linguagem é contraposta a outra: a das interrupções e possíveis rupturas. “O processo cíclico do capital é de contínua interrupção, abandono de um estágio, entrada no próximo; descarte de uma forma, existência em outra; cada um desses estágios não apenas condiciona, mas, ao mesmo tempo, exclui o outro” (181). As interrupções, como aquelas no ciclo vital da borboleta, são onipresentes e inevitáveis. Elas ameaçam a continuidade do movimento do capital, mas não necessariamente geram crises. Estudando-as, podemos esperar entender por que as crises podem assumir formas particulares – por que, por exemplo, uma crise pode aparecer num momento como um excedente de capital-mercadoria que não pode ser descartado, em outro momento como um entesouramento excessivo de capital monetário desprovido de oportunidades de investimento ou, ainda, como uma escassez de meios de produção ou força de trabalho para a expansão ulterior da acumulação. O fluxo do capital pode ser bloqueado em qualquer um de diferentes pontos de transição.

Marx contrapõe essas interrupções à “continuidade”, que é “o traço característico da produção capitalista, condicionado por sua base técnica, embora nem sempre incondicionalmente exequível” (181). A necessidade técnica e social para a continuidade do fluxo de capital é muito mais importante aqui do que o era no Livro I.

[Que] cada uma das distintas partes do capital possa percorrer sucessivamente as distintas fases do ciclo, passando de uma fase, de uma forma funcional a outra, e que o capital industrial, como a totalidade dessas partes, encontre-se simultaneamente nas diferentes fases e funções, percorrendo, assim, todos os três ciclos ao mesmo tempo. (182)

Assim, temos de lidar com quatro termos: capital monetário, capital produtivo, capital-mercadoria e “capital industrial” – este último entendido como a unidade dos três ciclos. Todo capital industrial individual terá diferentes frações de seu capital em cada um dos diferentes ciclos em cada momento. Uma parte dele será absorvida na produção, outra parte estará em forma-dinheiro e outra, em forma-mercadoria. Mas essa “justaposição”, diz Marx, “é, ela mesma, apenas o resultado da sucessão”. A necessidade do movimento contínuo através dos diferentes ciclos supera todo o resto. A consequência imediata é:

[se] não se consegue vender a mercadoria, o ciclo dessa parte é interrompido e a reposição pelo seu meio de produção não é realizada; as sucessivas partes que resultam do processo de produção como M’ têm sua mudança de função bloqueada pelas partes anteriores. [...] Cada estancamento da sucessão provoca uma desorganização da justaposição; cada estancamento num estágio causa um estancamento maior ou menor em todo o ciclo, não apenas da parte do capital paralisado, mas também do capital individual em sua totalidade. (182)

Embora Marx não explore essa questão aqui, potencialmente a situação fortalece os trabalhadores. Interrupções do trabalho e greves afetam não só o capital produtivo, mas todos os outros momentos da circulação e, no caso do capital-mercadoria, pode perturbar o fluxo dos meios de produção necessários aos outros capitais:

Como totalidade, o capital se encontra, então, simultaneamente e em justaposição espacial em suas diferentes fases. Mas cada parte passa constantemente, por turnos, de uma forma funcional a outra, e assim funciona sucessivamente em todas as formas. As formas são, assim, formas fluídas, cuja simultaneidade é mediada por sua sucessão. Cada forma segue a outra e a antecede, de modo que o retorno de uma parte do capital a uma forma é condicionado pelo retorno de uma outra parte a outra forma. [...] Esses percursos especiais formam apenas momentos simultâneos e sucessivos do percurso total.

É apenas na unidade dos três ciclos que se realiza a continuidade do processo total, e não na interrupção exposta anteriormente. O capital social total possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a unidade dos três ciclos. (183)

Marx faz, então, um comentário crítico de extrema relevância. Mas o faz de um modo tão prosaico (como é tão típico no Livro II) que o leitor dificilmente percebe sua importância. A linha introdutória é absolutamente atordoante por suas implicações: “O capital, como valor que valoriza a si mesmo, não encerra apenas relações de classes, um caráter social determinado, que repousa sobre a existência do trabalho como trabalho assalariado” (grifos meus). Com essa afirmação, Marx abre o caminho para dizer que as contradições e as crises podem surgir no processo de circulação, fora da luta de classes entre capital e trabalho que constitui o centro do Livro I. A relação capital-trabalho não é o único locus de contradição no interior das leis de movimento do capital. Contradições podem surgir dentro do próprio processo de circulação e valorização. Há algo inerentemente frágil e vulnerável no interior da circulação do capital industrial. A tarefa é revelar em que consiste esse algo.

Marx examina, então, algumas das maneiras como as contradições no interior desse processo de circulação – “que aparece apenas como um movimento parcial” – se manifestam na prática. “Aqueles que consideram a autonomização do valor uma mera abstração esquecem que o movimento do capital industrial é essa mesma abstração in actu [em ato].” A palavra “autonomização” sinaliza um tipo particular de problema. O valor pode ser uma abstração, mas tem consequências reais (ou, na linguagem do Livro I, o valor é “imaterial, porém objetivo”). Contradições no interior do processo da circulação acontecem de maneira autônoma, e com isso Marx quer dizer de maneira autônoma em relação à contradição capital-trabalho. “O valor percorre aqui diferentes formas, diferentes movimentos, nos quais ele se conserva e, ao mesmo tempo, se valoriza, aumenta de tamanho” (184). O momento da valorização (realização de mais-valor) é tão importante quanto o da produção. Para fins de ilustração, Marx abandona seu pressuposto de nenhuma mudança tecnológica e organizacional e considera:

as revoluções que o valor de capital pode experimentar em seu processo cíclico; mas é claro que, apesar de todas as revoluções do valor, a produção capitalista só pode existir e continuar a existir enquanto valor de capital se valoriza, isto é, enquanto percorre seu processo cíclico como valor autonomizado e, portanto, enquanto as revoluções do valor são de algum modo dominadas e niveladas. (184)

Da perspectiva do capital industrial individual, a esperança é que os impactos do impulso pelo mais-valor relativo através da mudança tecnológica e organizacional descrita no Livro I possam “de algum modo” ser absorvidos, “dominados e nivelados”. Mas note a linguagem de autonomia e independência.

Vejamos o processo de circulação do ponto de vista do ciclo da mercadoria, que desempenha um papel tão importante ao longo do Livro II.

Se o valor de capital experimenta uma revolução de valor, pode ocorrer que seu capital individual seja afetado por ela e pereça, por não poder satisfazer as condições desse movimento de valor. Quanto mais agudas e frequentes se tornam as revoluções do valor, mais se impõe o movimento automático do valor autonomizado, com a força de um processo natural elementar, diante das previsões e dos cálculos do capitalista individual, mais o curso da produção normal é submetida à especulação anormal, maior é o perigo para a existência dos capitais individuais. Essas revoluções periódicas do valor confirmam, portanto, o que supostamente deveriam contradizer: a autonomização que o valor experimenta como capital e que ele conserva e intensifica por meio de seu movimento. (184)

Isso não é nada menos do que uma evocação teórica dos perigos da desvalorização dos capitais por meio daquilo que hoje chamamos de desindustrialização. A partir dos anos 1980, uma onda de fechamentos de fábricas atingiu velhas cidades industriais, como Detroit, Pitsburgo, Baltimore, Sheffield, Manchester, Essen, Lille, Turim etc. E esse fenômeno não ficou confinado aos países capitalistas avançados, pois as perdas da indústria têxtil tradicional de Mumbai e a decadência de antigas áreas industriais no norte da China foram igualmente violentas. Comunidades inteiras, historicamente focadas no trabalho industrial, foram destruídas quase da noite para o dia. Por exemplo, na década de 1980, cerca de 60 mil postos de trabalho na indústria do aço foram perdidos em Sheffield num período de três anos. A desolação que isso provocou era visível por toda parte. Quando se buscava uma explicação, ouvia-se que aquilo tudo era resultado de uma misteriosa força chamada “globalização”. Quando os sindicatos e os movimentos sociais protestaram e tentaram estancar a hemorragia no trabalho e na subsistência, foram informados de que tal força misteriosa era inevitável e irrefreável. (...)

A transferência de postos de trabalho e a destruição de comunidades foi por muito tempo o modo de existência do mundo capitalista.

Marx nos oferece aqui uma maneira de lançar uma luz teórica particular sobre tudo isso. Quando elaborada, a teoria mostra como e por que no sistema capitalista são inevitáveis crises desse tipo, que não são crises sistêmicas totais, mas destruições localizadas. Capitais industriais em concorrência entre si promovem revoluções em tecnologias e formas organizacionais, que, por sua vez, produzem revoluções de valores. Essa é a força supostamente misteriosa (que se manifesta como uma força da natureza e, portanto, supostamente fora do controle humano) que desindustrializa regiões industriais inteiras.

Dito mais formalmente: os capitalistas individuais organizam sua produção de valor em busca de mais-valor relativo, mas, ao fazer isso, produzem novas relações de valor que podem destruí-los. O capital produz não só os meios de sua própria dominação, mas também os de sua destruição. Isso explica a fúria edípica com que os capitalistas frequentemente respondem às crises do capitalismo que os des­troem. Não jogaram o jogo como se deve, calculando e planejando a produção de ­mais-valor? Não atuaram de acordo com o manual da virtude burguesa? Como se explica, então, que não tenham recebido sua justa recompensa e, pior, como podem ser jogados nas trevas da falência? Mas em vez de se revoltar contra o capitalismo – o sistema –, eles se revoltam contra os produtores estrangeiros, os imigrantes, os especuladores e todos aqueles que, na verdade, são apenas os agentes secretos e ocultos das leis internas de movimento do capital.

Muitas pessoas, quando leem Marx, têm dificuldade em entender o conceito de valor como uma abstração, uma relação social que é imaterial, porém objetiva em suas consequências. O “valor” não é mais abstrato e misterioso do que aquela força popularmente aceita, chamada “globalização”. O que é estranho é que tantas pes­soas aceitem facilmente esta última (porque nos habituamos a ela?) e frequentemente rejeitem a primeira, por considerá-la abstrata demais. Mas a virtude do conceito superior de Marx é que podemos ver claramente como essa abstração é criada, e como atuam as forças que ele mobiliza – como nos tornamos, como afirma Marx, vítimas das abstrações do capital. Desde o começo de O capital, aprendemos que o valor é constituído do trabalho socialmente necessário despendido no interior do “movimento do capital industrial” por intermédio da produção e da circulação. A abstração de valor (e sua representação em forma-dinheiro) torna-se uma força regulatória pela ação da mão invisível da concorrência do mercado.

Lembre-se, no entanto, de que, se o trabalho não produz um valor de uso que alguém demande, necessite ou deseje, ele não é trabalho socialmente necessário: a unidade de produção e circulação já está pressuposta na primeira seção do Livro I. O valor é, portanto, uma relação social abstrata, coletivamente produzida pelos capitais industriais individuais. Mas estes últimos têm de se submeter às leis que eles mesmos criaram coletivamente e, com isso, muitos acabam sucumbindo às mesmas revoluções de valor que eles não cessam de criar, ou são destruídos por elas. Com efeito, o que vemos são esses capitais industriais individuais cavando a própria cova. Em vez de uma força misteriosa chamada “globalização”, que parece descer do éter com tamanha força destrutiva e irresistível, temos uma teoria que internaliza a dinâmica autodestrutiva pela qual os capitalistas produzem as condições de sua própria destruição. Para aceitar essa teoria, temos apenas de reconhecer “a autonomização que o valor experimenta como capital, e que ele conserva e intensifica por meio de seu movimento”. Por que é mais difícil aceitar isso do que um termo vazio como “globalização”?”

 

 

“A narrativa que emerge da argumentação de Marx é a seguinte: todos esses elementos – dinheiro, mercadorias, compra e venda de serviços e uma dada capacidade física e técnica para a produção – preexistiam ao advento do capital. Juntos, eles constituíam as precondições necessárias para a emergência daquela relação de classe entre capital e trabalho que facilita a produção e a apropriação sistemática de mais-valor. No entanto, esse último traço é que constitui a especificidade definidora do capital. Se, portanto, queremos falar sobre “a hipótese comunista” ou uma política anticapitalista, o escopo central tem de ser a abolição dessa relação de classe na esfera da produção.”