sexta-feira, 9 de maio de 2025

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras (Parte III), Margaret MacMillan

Editora: Globo Livros

ISBN: 978-85-2505-790-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 760

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Sinopse: Ver Parte I



“Era o dia vinte e oito de junho de 1914, um domingo ensolarado e quente. (...) Enquanto aproveitava o dia com seus convidados no camarote presidencial, Poincaré recebeu um telegrama da agência francesa de notícias Havas. O Arquiduque Franz Ferdinand e sua esposa morganática Sophie acabavam de ser assassinados em Sarajevo, capital da província da Bósnia, recentemente anexada pela Áustria-Hungria. Poincaré imediatamente mostrou a notícia ao embaixador austríaco, que empalideceu e partiu às pressas para sua embaixada. Enquanto as corridas prosseguiam, a notícia se espalhou entre os convidados. Para a maior parte deles, o fato pouca diferença faria para a Europa, mas o embaixador romeno mostrou grande pessimismo. Achou que agora a Áustria-Hungria teria o pretexto de que precisava para atacar a Sérvia.[1]

Nas cinco semanas seguintes, a Europa passou da paz para uma guerra em larga escala envolvendo todas as grandes potências, exceto, inicialmente, a Itália e o Império Otomano. O público, que havia décadas fazia sua parte pressionando seus líderes rumo à paz ou rumo à guerra, agora observava de fora enquanto um punhado de homens em cada uma das principais capitais europeias avaliava as decisões fatais que precisavam tomar. Produtos dos ambientes e tempos em que viveram, com crenças profundamente enraizadas em prestígio e honra (e tais termos seriam frequentemente utilizados naqueles dias agitados), baseavam suas decisões em premissas que nem sempre tinham admitido, mesmo para si mesmos. Também estavam a mercê do que lembravam de triunfos e derrotas do passado e de seus medos e esperanças para o futuro. (...)

Ao espalhar-se rapidamente pela Europa, a notícia foi recebida com o mesmo misto de indiferença e apreensão que encontrara no camarote de Poincaré. Em Viena, onde o Arquiduque não fora muito amado, os passeios e divertimentos no popular parque Prater continuaram abertos. Na classe alta, porém, surgiu preocupação com o futuro de uma monarquia que seguidamente perdia seus herdeiros e reforçou a aversão aos sérvios que, segundo a opinião geral, eram os responsáveis pelo assassinato. Na universidade alemã de Freiburg, a maioria dos cidadãos, segundo seus diários, pensava em seus próprios interesses, a situação da colheita no verão e as férias. Talvez por ser historiador, Friedrich Meinecke teve reação diferente: “Imediatamente as coisas ficaram negras ante meus olhos. Isso é guerra, disse a mim mesmo.”[2] Quando a notícia chegou em Kiel, as autoridades mandaram uma lancha ao iate do Kaiser. Wilhelm, que considerava Franz Ferdinand um amigo, espantou-se. “Não seria melhor abandonar a regata?” – alvitrou. E decidiu voltar para Berlim imediatamente para assumir a situação e fazer com que soubessem que estava disposto a atuar pela paz, embora durante os dias seguintes encontrasse tempo para longas discussões sobre a decoração interna de seu novo iate.[3] Em Kiel, as bandeiras foram logo arriadas para meio mastro, e os eventos sociais restantes cancelados. Uma esquadra inglesa, que cumpria visita de cortesia, partiu em 30 de junho. Os alemães enviaram-lhe a mensagem “Boa viagem,” e os ingleses responderam “Amigos no passado, amigos para sempre.”[4] Um mês e pouco depois, estariam em guerra.

O ato que arrastaria a Europa para a fase final de sua jornada rumo à Grande Guerra foi cometido por nacionalistas eslavos fanáticos, os Jovens Bósnios, e por aqueles que, da Sérvia, os apoiavam dos bastidores. Os assassinos propriamente ditos e seu círculo mais próximo eram principalmente camponeses sérvios e croatas moços que deixaram o interior para estudar e trabalhar em cidades grandes e pequenas na Monarquia Dual e na Sérvia. Embora substituíssem seu traje tradicional por terno e condenassem o conservadorismo dos seus mais velhos, acharam muitas coisas do mundo moderno estonteantes e perturbadoras. É difícil deixar de compará-los com grupos de extremistas fundamentalistas islâmicos como a Al Qaeda um século mais tarde. Como esses fanáticos de nossos dias, os Jovens Bósnios eram em geral radicalmente puritanos, desprezando coisas como álcool e sexo. Odiavam a Áustria-Hungria, em parte por achar que o Império corrompia seus súditos eslavos do sul. Poucos Jovens Bósnios tinham emprego regular. Em geral eram sustentados pela família, com as quais sempre brigavam. Dividiam entre si seus poucos pertences, dormiam uns nas casas dos outros e passavam horas tomando uma simples xícara de café em bares baratos, discutindo vida e política.[5] Eram idealistas e ardorosamente comprometidos com a libertação da Bósnia do jugo estrangeiro e a construção de uma pátria nova e mais justa. Fortemente influenciados pelos grandes revolucionários e anarquistas russos, os Jovens Bósnios acreditavam que só conquistariam seus objetivos pela violência e, se necessário fosse, com o sacrifício da própria vida.[6]

O líder do complô para o assassínio foi um sérvio da Bósnia, Gavrilo Princip, filho franzino, introvertido e impressionável de um esforçado lavrador. Princip, que pensara em ser poeta, passara de uma escola para outra sem chamar atenção. “Aonde quer que fosse, consideravam -me um fracassado,” disse à polícia depois de preso em 28 de junho, “e achavam que eu era uma pessoa fraca, coisa que não sou.”[7] Em 1911, entrara para o mundo clandestino da política revolucionária. Ele e vários de seus amigos que com ele conspiravam, se dedicavam a planejar atos terroristas contra alvos importantes, fosse o próprio velho Imperador, fosse alguém próximo dele. Nas Guerras Balcânicas de 1912 e 1913, as vitórias da Sérvia e o acentuado aumento de seu território os levaram a pensar que o triunfo final dos eslavos do sul não estava longe.[8]

Do interior da Sérvia partia substancial apoio aos Jovens Bósnios e suas atividades. Por uma década ou mais, gente ligada aos governos sérvios vinha estimulando a ação de organizações quase militares voltadas para conspirações em solo dos inimigos da Sérvia, no Império Otomano ou na Áustria-Hungria. O exército provia armas e dinheiro a grupos armados sérvios na Macedônia e contrabandeava armas para o interior da Bósnia, assim como hoje em dia o Irã faz com o Hezbollah no Líbano. Os sérvios também tinham suas sociedades secretas. Em 1903, um grupo constituído principalmente de oficiais assassinara o impopular Rei Alexander Obrenovic e sua mulher, pondo o Rei Peter no trono. Ao longo dos anos seguintes, o novo Rei achou conveniente tolerar as atividades dos conspiradores e continuou exercendo grande influência dentro da Sérvia, estimulando o nacionalismo sérvio em outros países. Entre os conspiradores, a principal figura era o insinuante, rude, sinistro e imensamente forte Dragutin Dimitrijevic, apelidado de “Apis” em referência ao deus egípcio sempre retratado como um touro. Apis estava pronto a sacrificar a própria vida, a de sua família e as de seus amigos pela causa de uma Grande Sérvia. Em 1911, ele e alguns companheiros fundaram a Mão Negra, com o objetivo de unir todos os sérvios, por bem ou por mal.[9] Pasic, o primeiro-ministro, que tentava evitar conflito com os vizinhos da Sérvia, sabia de sua existência e tentava controlar a organização transferindo para a reserva os oficiais nacionalistas do exército mais perigosos. No começo do verão de 1914, seu choque com Apis chegou ao auge. Em 2 de junho, renunciou, mas voltou ao cargo em 11 do mesmo mês e, em 24 de junho, quando o Arquiduque se preparava para a viagem à Bósnia, anunciou a dissolução do parlamento e novas eleições mais tarde, ainda no verão. O Rei Peter também renunciou e fez regente seu filho Alexander. Enquanto os conspiradores bósnios davam os últimos retoques em seus planos para assassinar o Arquiduque em 28 de junho, Pasic, que não queria provocar a Áustria-Hungria, lutava por sua sobrevivência política e ainda não conseguia acabar com a Mão Negra e derrubar Apis.

Conhecido como “Apis” ou “O Touro” por sua compleição física e sua personalidade, o coronel Dragutin Dimitrijevic era chefe da inteligência militar sérvia em 1914. Profundamente envolvido em sociedades secretas nacionalistas sérvias, incentivou o complô para assassinar o Arquiduque austríaco Franz Ferdinand em Sarajevo.

 

A notícia da iminente viagem de Franz Ferdinand fora amplamente divulgada desde a primavera, e os conspiradores, muitos deles então em Belgrado, decidiram assassiná-lo. Um major do exército sérvio solidário com os conspiradores entregou-lhes seis bombas e quatro revólveres do arsenal do exército e, no fim de maio, Princip e dois outros, com suas armas e cápsulas de ácido cianídrico para cometer suicídio após o atentado, atravessaram clandestinamente a fronteira e entraram na Bósnia com a conivência de sérvios que apoiavam sua causa. Pasic soube o que estava acontecendo, mas não foi capaz de tomar alguma providência, ou preferiu nada fazer. Os conspiradores chegaram em segurança a Sarajevo e entraram em ligação com terroristas locais, Nas poucas semanas que se seguiram, alguns começaram a mudar de opinião e defenderam o adiamento do atentado, mas obviamente Princip não estava entre eles. “Não concordei com o adiamento do assassinato,” disse ao juiz em seu julgamento, “porque um desejo mórbido tomara conta de mim.”[10]

Sua tarefa seria facilitada pela incompetência e arrogância dos austro-húngaros. Havia anos circulavam rumores sobre complôs de nacionalistas eslavos do sul contra a Áustria-Hungria e atentados contra a vida de altas autoridades do país, inclusive a do próprio Imperador. Em Viena e em áreas problemáticas na Bósnia e na Croácia, as autoridades mantinham sob vigilância estudantes, sociedades e jornais nacionalistas. Logicamente uma visita do herdeiro dos Habsburgos à Bósnia, com a lembrança da anexação apenas seis anos antes ainda amargurando os sérvios, tinha tudo para inflamar o nacionalismo local. Acresce que a visita tinha por finalidade assistir às manobras das forças da Monarquia Dual que podiam perfeitamente um dia ser empregadas contra Sérvia e Montenegro. A inoportunidade da visita a tornou ainda pior, pois coincidiu com a realização do maior festival nacional sérvio, a comemoração anual de seu patrono São Vitus, quando também lembravam a maior derrota nacional diante dos otomanos em 28 de junho de 1389, na Batalha de Kosovo. A despeito das tensões que cercavam o evento, na melhor das hipóteses a segurança da visita foi tratada com indiferença. O general Potiorek, retrógrado e teimoso governador da Bósnia, ignorou as advertências que chegaram de várias partes alertando que o Arquiduque estaria correndo perigo e se recusou a empregar o exército para patrulhar as ruas de Sarajevo. Esperava mostrar o quanto realizara pacificando e governando a Bósnia, além de se promover junto a Ferdinand dispensando a Sophie todas as honras imperiais que sempre lhe eram negadas na Monarquia Dual. A comissão organizada para cuidar das providências pertinentes à visita passou a maior parte de seu tempo e energia tratando de assuntos como o tipo de vinho que seria servido ao arquiduque ou se ele gostava de música durante as refeições.[11]

Na noite de 23 de junho, Franz Ferdinand e Sophie embarcaram em Viena num trem para Trieste. Consta que comentou com a esposa de um auxiliar antes de partir: “Esta viagem não é muito sigilosa e eu não ficaria surpreso se houvesse algumas balas sérvias esperando por mim!” As luzes de seu vagão se apagaram, e houve a quem ocorresse que as velas que tiveram de usar emprestavam ao local uma aparência de cripta. Na manhã da quarta-feira a comitiva imperial embarcou no encouraçado Viribus Unitis (Forças Unidas) e partiu beirando a costa dálmata rumo à Bósnia. Desembarcaram no dia seguinte na pequena cidade balneária de Ilidze, perto de Sarajevo, onde deviam ficar. De noite, o Arquiduque e a duquesa fizeram uma breve e inesperada visita para conhecer o famoso artesanato de Sarajevo. Provavelmente Princip estava na multidão quando o casal imperial entrou em uma loja de tapetes.

Na sexta-feira e no sábado, o arquiduque presenciou as manobras do exército nas montanhas ao sul de Sarajevo, enquanto a duquesa visitava pontos turísticos. Na noite do sábado os dignitários locais compareceram a um banquete em Ilidze. O Dr. Josip Sunaric, político croata de destaque, um dos que tinham alertado sobre um complô contra o casal imperial, foi apresentado à duquesa. “Veja,” disse ela amavelmente, “o senhor se enganou. As coisas não são bem como o senhor diz. Andamos por todo o interior, sempre no meio da população sérvia e fomos acolhidos com tanta amizade, com tanta sinceridade e entusiasmo irrestrito que estamos realmente felizes.” “Alteza,” retrucou Sunaric, “peço a Deus que – se tiver a honra de voltar a vê-la amanhã à noite, possa repetir essas palavras.”[12] Naquela noite a comitiva imperial discutiu se devia cancelar a planejada viagem a Sarajevo no dia seguinte, mas decidiu prosseguir.

A manhã do domingo 28 de junho estava agradável em Sarajevo, e o casal imperial desceu do trem para ocupar seus lugares num carro aberto, um dos poucos desse tipo na Europa. O Arquiduque estava exuberante com sua túnica azul e o quepe do uniforme de gala de general de cavalaria, e a duquesa toda de branco, com uma faixa vermelha. Os conspiradores, sete ao todo, já estavam em seus postos espalhados no meio da multidão que se postara ao longo do roteiro da visita. Quando o cortejo percorria o Appel Quay, ao lado do rio que atravessa o centro de Sarajevo, Nedeljko Cabrinovic jogou uma bomba no carro do Arquiduque. Como os homens-bomba de hoje em dia, dissera adeus a familiares e amigos e distribuíra seus poucos pertences. O motorista viu a bomba lançada e acelerou, de modo que ela explodiu sob o carro seguinte, e vários passageiros e assistentes ficaram feridos. O Arquiduque mandou um auxiliar ver o que tinha acontecido e deu ordem para que o programa continuasse como previsto. A comitiva, agora abalada e indignada, tomou o caminho da prefeitura da cidade, onde o prefeito esperava para proferir o discurso de boas-vindas, falou com tropeços, e o arquiduque tirou do bolso as anotações para responder. Estavam manchadas do sangue de um dos integrantes de sua comitiva. Discutiu-se rapidamente a situação, e ficou decidido que a comitiva se dirigiria ao hospital militar para visitar os feridos. Quando retornaram pelo Appel Quai, os dois carros da frente com o chefe da segurança e o prefeito de Sarajevo subitamente viraram à direita e entraram por uma rua muito mais estreita. O motorista do arquiduque estava a ponto de segui-los, quando Potiorek, governador de Sarajevo, gritou: “Parem! Estão indo pelo caminho errado.” Quando o motorista pisou no freio, Princip, que estava à espera, desceu da calçada e atirou à queima-roupa no Arquiduque e na duquesa. Ela caiu sobre as pernas do marido, que gritou “Sophie, Sophie, não morra. Viva por meus filhos.” Em seguida ele próprio perdeu a consciência. O casal foi levado para o palácio do governador onde constataram a morte de ambos.[13] Princip, que estava tentando se suicidar, foi preso por espectadores, e seus colegas conspiradores foram caçados pela polícia, que demorou a agir.


 Franz Ferdinand, herdeiro do trono da Áustria-Hungria, e sua mulher Sophie partiram em uma manhã de verão para Sarajevo na sua última viagem. A ocasião não podia ser mais inconveniente, por coincidir com a data nacional dos sérvios. A despeito das advertências sobre complôs terroristas, a segurança foi negligente. Sua morte removeu o único homem próximo ao Imperador capaz de aconselhá-lo contra a guerra.

 

Gavrilo Princip, ardoroso nacionalista sérvio, disparou os tiros que mataram o casal real. Não foi executado porque na época era menor de idade. Morreu tuberculoso em 1918, sem se arrepender da catástrofe europeia que ajudou a desencadear.

 

Quando alguém da corte levou a notícia ao Imperador em sua mansão preferida no pequeno e adorável resort em Ischl, Franz Joseph fechou os olhos e permaneceu em silêncio por alguns instantes. Suas primeiras palavras, murmuradas com profunda emoção, mostraram o quanto o desagradara o casamento de seu herdeiro, que, casando com Sophie, não apenas o desafiara, mas, na opinião do Imperador, manchara a honra dos Habsburgos. “Terrível! O Todo-Poderoso não admite ser desafiado impunemente... Um poder mais alto restaurou a velha ordem que infelizmente não fui capaz de preservar.”[14] Nada mais disse, mas deu ordem para seu regresso a Viena. Não se sabe se pensava em como seu Império se vingaria da Sérvia. No passado preferira a paz, e Franz Ferdinand o apoiara. Agora, com sua morte, fora-se a única pessoa próxima ao Imperador que poderia aconselhá-lo a agir com moderação naquelas derradeiras semanas de paz na Europa. O Imperador, com 83 anos e combalido – estivera muito doente naquela primavera – ficou sozinho para enfrentar os falcões de seu governo e seus militares.

O funeral do Arquiduque e sua mulher em Viena, em 3 de julho, foi realizado com muita discrição. O Kaiser alegou que um ataque de lumbago o impedia de viajar, mas a explicação verdadeira é o fato de ele e seu governo terem ouvido rumores de que também planejavam assassiná-lo. De qualquer modo, a Monarquia Dual pediu que nenhum chefe de estado estrangeiro comparecesse, e sim apenas seus embaixadores em Viena. Mesmo na morte, o rígido cerimonial da corte foi observado, e o caixão do arquiduque era maior e foi colocado em plano mais alto do que o dela. O serviço fúnebre, na capela dos Habsburgos, demorou apenas quinze minutos, e os caixões foram levados por carros funerários para a estação de trem. Como já sabia que sua esposa não poderia repousar a seu lado na cripta dos Habsburgos, o Arquiduque providenciara para que, quando chegasse a hora, ambos fossem sepultados em um de seus castelos favoritos em Artstetten, no sul da Áustria, onde até hoje repousam. Em manifestação espontânea de seu agravo pela forma como as exéquias tinham sido conduzidas, membros das famílias mais importantes do Império acompanharam o féretro a pé até a estação. Contou o embaixador russo que os vienenses comuns acompanharam a passagem do cortejo mais curiosos do que tristes, e os carrosséis no parque Prater continuaram girando alegremente. Os caixões foram colocados sobre pranchas e transportados em uma barcaça no Danúbio, em meio a uma tempestade tão violenta que quase os lançou no rio.[15]

Antes do funeral já se discutia muito o que a Áustria-Hungria devia fazer diante do que, de modo geral, era visto como ultrajante provocação sérvia. Tal como a tragédia de 11 de setembro de 2001 deu aos linhas-duras a oportunidade para exigir a invasão do Iraque e do Afganistão que vinham sempre defendendo junto ao presidente Bush e o primeiro-ministro Blair, o assassinato em Sarajevo escancarou a porta para quem, na Áustria-Hungria, queria acertar as contas com os eslavos do sul de uma vez por todas. Isso significava destruir a Sérvia – a opinião geral no país via esse país por trás do assassínio – como primeiro passo para reafirmar o domínio austro-húngaro nos Balcãs e controlar os eslavos do sul que viviam dentro do Império. A imprensa nacionalista descrevia os sérvios e os eslavos do sul com palavras que colocavam o darwinismo social como eterno inimigo da Áustria-Hungria. “Precisa ficar claro para todos,” escreveu em seu diário, em 28 de junho, Josef Redlich, destacado político e intelectual conservador, “que é impossível chegar à coexistência pacífica entre esta monarquia semigermânica, com sua relação de irmã com a Alemanha, e o nacionalismo balcânico, com sua fanática sede de sangue.”[16] Mesmo aqueles nos círculos dirigentes que lamentavam a morte de Franz Ferdinand falavam em vingança, enquanto seus inimigos sem piedade o acusavam de, em ocasiões anteriores, ter impedido a guerra contra a Sérvia.[17]

[1] Poincaré, Au Service de la France, vol. IV, 173-4.

[2] Geinitz, Kriegsfurcht und Kampfbereitschaft, 50-53.

[3] Cecil, Wilhelm II, 198.

[4] Massie, Dreadnought, 852-3; Cecil, Wilhelm II, 198; Geiss, July 1914, 69.

[5] Smith, One Morning in Sarajevo, 40.

[6] Dedijer, The Road to Sarajevo, 175-8, 208-9, 217 e cap. 10, passim.

[7] Ibid., 197.

[8] Ibid.

[9] Ibid., 373-5; Jelavich, What the Habsburg Government Knew, 134-5.

[10] Dedijer, The Road to Sarajevo, 294--301, 309; Jelavich, What the Habsburg Government Knew, 136.

[11] Leslie, ‘The Antecedents,’ 368; Funder, Vom Gestern ins Heute, 483; Dedijer, The Road to Sarajevo, 405-7, 409-10.

[12] Kronenbitter, Krieg im Frieden, 459; Dedijer, The Road to Sarajevo, 312; Funder, Vom Gestern ins Heute, 484.

[13] Dedijer, The Road to Sarajevo, 11-16, 316.

[14] Margutti, The Emperor Francis Joseph, 138-9.

[15] Smith, One Morning in Sarajevo, 214; Hopman, Das ereignisreiche Leben, 381; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 117-19; Hoetzsch, Die internationalen Beziehungen, 106-7.

[16] Stone, ‘Hungary and the July Crisis,’ 159-60.

[17] Kronenbitter, Krieg im Frieden, 460-62.

 

 

Os principais líderes alemães, como Bethmann, podem não ter desencadeado deliberadamente a Grande Guerra, como tantos frequentemente os acusam, entre eles historiadores alemães como Fritz Fischer. Não obstante, admitindo que o conflito era certo e talvez até desejável, entregando à Áustria-Hungria o cheque em branco e insistindo em um plano de operações que tornava inevitável a Alemanha ter que lutar em duas frentes, os líderes alemães permitiram que a guerra acontecesse. Às vezes, durante aquelas semanas crescentemente tensas, pareciam perceber o vulto do que estavam arriscando e se consolavam prevendo os mais improváveis cenários. Se a Áustria-Hungria atuasse rapidamente para resolver o problema com a Sérvia, disse Bethmann a Riezler, a Entente poderia aceitar perfeitamente. Ou se Inglaterra e Alemanha trabalhassem em conjunto – depois de tudo o que tinham conseguido nos Balcãs – para evitar que uma guerra envolvendo a Áustria-Hungria arrastasse outras potências. Jagow classificou esta última hipótese na “categoria de desejo virtuoso.”[51] Além disso, o ministro do Exterior se deixou dominar por uma ilusão, quando, por exemplo, escreveu a Lichnowsky em 18 de julho, dizendo que, fazendo bem as contas, “a Rússia presentemente não está pronta para a guerra.” Quanto aos aliados da Rússia, Inglaterra e França, será que realmente querem ir à guerra a seu lado? Grey sempre quis manter o equilíbrio de poder na Europa, mas se a Rússia destruísse a Áustria-Hungria e derrotasse a Alemanha, a Europa veria um novo poder hegemônico. Talvez a França também não estivesse pronta para a luta. A desagregadora batalha em torno do serviço militar de três anos podia ressurgir no outono, e sabia-se perfeitamente que o exército francês tinha sérias carências em equipamentos e treinamento. Em 13 de julho, revelações feitas no Senado francês acrescentaram pormenores sobre a deficiência da França, por exemplo, em artilharia pesada, encorajando os alemães a pensar que era improvável os franceses desejarem entrar em guerra em futuro próximo e que os russos poderiam concluir que não podiam confiar em seu aliado. Com alguma sorte, a Entente poderia ser desfeita.[52] (...)

O que tornava incerta a disposição dos líderes alemães para insistir na busca da paz era o medo de o país parecer fraco e acovardado, incapaz de defender sua honra e a da Alemanha. “Não quero uma guerra preventiva,” afirmou Jagow, “mas, se formos chamados para a briga, não podemos nos apavorar.[54] O Kaiser, que tinha a palavra final sobre levar ou não o país à guerra, como tantas vezes fizera no passado hesitava entre esperar que a paz fosse preservada e ficar extravasando os mais beligerantes desejos. Por exemplo, em 30 de junho rabiscou em uma de suas notas marginais: “Os sérvios devem ser jogados no lixo, e já!”[55] Como George Bush filho quase um século depois, que culpava o pai de não ter completado a liquidação de Saddam Hussein quando teve a oportunidade, Wilhelm sempre quis se diferenciar do pai, que tinha fama de fraco e indeciso. Embora se orgulhasse de ser o chefe militar supremo da Alemanha, Wilhelm sabia que muitos súditos seus, inclusive oficiais do exército, o consideravam responsável pelo pobre desempenho do país em crises passadas. Ainda que insistisse que trabalhara em prol da paz durante todo seu reinado, o epíteto “Imperador da Paz” o incomodava. Em conversa com um amigo, o industrial Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, em 6 de julho, logo depois do cheque em branco que assinou, o Kaiser disse que assumiu esse compromisso sabendo que a Áustria-Hungria tencionava atacar a Sérvia. “Desta vez não vou ceder,” disse três vezes. Como comentou Krupp em carta a um colega, “A repetição da garantia do Imperador de que dessa vez ninguém poderá acusá-lo de indecisão teve um efeito quase cômico.”[56] Bethmann usou uma frase que talvez fosse a mais reveladora de todas, ao afirmar que um recuo da Alemanha diante de seus inimigos seria um ato de autocastração.[57] Tais atitudes derivavam, em parte, da classe social dos líderes alemães e dos tempos que viviam, mas Bismarck, cuja origem era a mesma, teve coragem suficiente para desafiar as convenções quando assim achou conveniente. Nunca permitiu que o forçassem a entrar numa guerra. Foi uma tragédia para a Alemanha e para a Europa seus sucessores não serem como ele.

Já que tinham decidido apoiar o Império Austro-Húngaro, os chefes alemães esperavam que seu aliado agisse rapidamente, enquanto a opinião pública europeia estava chocada e solidária. Por razões internas e como seguidamente os alemães lembravam Viena, era importante providenciar para que a Sérvia fosse vista como vilã. (Na iminência do início das hostilidades, os chefes alemães temiam que as classes trabalhadoras, seus líderes sindicais e o Partido Social Democrata permanecessem fiéis a seus dogmas e se opusessem à guerra.) Um ultimato de Viena para Belgrado, seguido por uma vitória fulminante caso a Sérvia não capitulasse, deixaria as outras grandes potências sem condições para intervir antes que fosse tarde.

Os alemães viram que era impossível apressar seus correspondentes em Viena. Como uma grande medusa com indigestão, a Monarquia Dual se movia à sua maneira habitual, majestosa e complicada. O exército dispensara muitos soldados para a “dispensa da colheita” e só estariam de volta em 25 de julho. “Somos antes de tudo um país agrário,” comentou Conrad com o adido militar alemão sobre a política adotada, “e dependemos do resultado da colheita para vivermos o ano inteiro.” Se tentasse trazer os soldados de volta antes do prazo, causaria um caos nas ferrovias e, pior ainda, alertaria o resto da Europa de que alguma coisa estava acontecendo. Outro argumento para a espera foi o fato de o presidente Poincaré da França e seu primeiro-ministro Viviani estarem realizando visita oficial à Rússia até 23 de julho. Como estavam a bordo de um navio regressando à França, as comunicações eram precárias e isso dificultaria por vários dias a coordenação com a Rússia sobre a resposta a um ultimato. O atraso prejudicou a Áustria-Hungria. Nas quase quatro semanas entre os assassinatos e a apresentação do ultimato, boa parte da solidariedade dos europeus se dissipara e uma iniciativa que poderia ser vista como justa reação agora pareceria uma política de exercício do poder a sangue-frio.[58]

A principal razão para a lentidão da Áustria-Hungria foi Tisza, que ainda não se convencera de que a adoção de uma linha dura com a Sérvia fosse a certa. Temia, como disse ao Imperador em carta de 1º de julho, que uma guerra fosse danosa, não importando o desfecho. Uma derrota poderia significar uma perda de território e o fim da Hungria, enquanto uma vitória poderia resultar na anexação da Sérvia e, assim, no fortalecimento dos eslavos do sul na Monarquia Dual.[59] Em 7 de julho o Conselho Ministerial Comum, único órgão com responsabilidade por todo o Império Austro-Húngaro, se reuniu em Viena. Tisza se viu isolado quando seus colegas passaram a discutir a melhor forma de esmagar a Sérvia e o que deveriam fazer quando terminasse a guerra. Berchtold e Krobatin, ministro da Guerra, descartaram a alegação húngara de que deviam primeiro tentar uma vitória diplomática sobre a Sérvia. Tinham obtido tanto sucesso no passado, afirmou o Chanceler, e nem assim os sérvios tinham mudado sua conduta e continuavam agitando com o objetivo de criar a Grande Sérvia. A única forma de lidar com eles era pela força. Stürgkh, primeiro-ministro austríaco, linha-dura nas crises anteriores nos Balcãs, mencionou “uma solução na ponta da espada.” Embora a decisão fosse unicamente da Áustria-Hungria, ele disse que era muito reconfortante saber que a Alemanha os apoiaria fielmente. Conrad fez parte da reunião, embora não fosse ministro do governo para discutir o que devia acontecer se a Rússia socorresse a Sérvia, algo que ele considerava provável. Todos, exceto Tisza, concordaram com um ultimato em termos tais que, se a Sérvia o rejeitasse, a Áustria-Hungria teria um motivo para a guerra. Tisza aceitou que o ultimato fosse firme, mas pediu para ver os termos antes de ser expedido.[60]

[51] Sösemann, ‘Die Tagebücher Kurt Riezlers,’ 184-5; Lichnowsky and Delmer, Heading for the Abyss, 392.

[52] Mombauer, Helmuth von Moltke, 195n44; Lichnowsky e Delmer, Heading for the Abyss, 381; Sösemann, ‘Die Tagebücher Kurt Riezlers,’ 184.

[54] Lichnowsky e Delmer, Heading for the Abyss, 381.

[55] Turner, ‘Role of the General Staffs,’ 312; Geiss, July 1914, 65.

[56] Fischer, War of Illusions, 478; Cecil, Wilhelm II, 193-6.

[57] Joll, 1914, 8.

[58] Kronenbitter, ‘Die Macht der Illusionen,’ 531; Williamson, Austria-Hungary, 199-200.

[59] Bittner e Ubersberger, Österreich-Ungarns Aussenpolitik, 248.

[60] Geiss, July 1914, 80-87; Sondhaus, Franz Conrad von Hötzendorf, 141; Williamson, Austria-Hungary, 197-9.

 

 

Na Sérvia, onde a notícia dos assassinatos, conforme disse o encarregado de negócios inglês, inicialmente fora recebida com uma “sensação de espanto e não de pesar,” a imprensa nacionalista mais radical rapidamente tentou justificar os assassinos. Pasic, em meio a difícil campanha eleitoral, disse ao ouvir a notícia: “Isso é muito ruim. Significa que haverá guerra.” Ordenou que todos os bares e hotéis fechassem suas portas às dez da noite, em sinal de luto e enviou condolências para Viena. Entretanto, a despeito da pressão austro-húngara, se recusou a fazer uma investigação e concedeu provocadora entrevista a um jornal alemão negando que seu governo estivesse envolvido com o assassinato.[70]

Na Sérvia, porém, aumentava a apreensão quanto às intenções da Áustria-Hungria, alimentada, em 10 de julho, por curioso incidente em Belgrado. Hartwig, o influente embaixador russo que ao longo dos anos tanto estimulara as ambições sérvias, naquela noite procurou seu correspondente austro-húngaro, o barão Wladimir Giesl von Gieslingen. O russo, muito gordo, bufava com o esforço que fazia. Recusou o café que lhe foi oferecido, mas continuou fumando seu cigarro russo favorito. Queria esclarecer, assim disse, o infeliz rumor de que patrocinara um jogo de bridge na noite do assassinato e se negara a colocar a bandeira de sua embaixada a meio mastro. Giesl retrucou que considerava esse caso superado. Então, Hartwig abordou o objetivo principal de sua visita. “Peço,” disse, “que, considerando nossa sincera amizade, me diga, com toda clareza, se puder: o que a Áustria-Hungria fará com a Sérvia e o que já foi decidido em Viena?” Giesl seguiu a linha do governo: “Posso lhe assegurar que a soberania da Sérvia não será violada e que, com a boa vontade do governo sérvio, é possível encontrar uma solução para a crise que satisfaça a ambas as partes.” Hartwig agradeceu profusamente, se afastou cambaleando, subitamente caiu desmaiado e morreu momentos depois. Sua família imediatamente acusou Giesl de tê-lo envenenado, e fortes boatos se espalharam por Belgrado, dizendo que os austríacos tinham trazido de Viena uma cadeira elétrica especial que podia matar sem deixar indícios. O incidente serviu para azedar ainda mais as relações entre Áustria-Hungria e Rússia, que já estavam em fase de deterioração. Ainda mais relevante, a morte de Hartwig afastou o único homem que poderia convencer o governo sérvio a aceitar até mesmo as ultrajantes exigências do ultimato.[71]

Embora naquele momento estivesse muito mais preocupado com o que estava para acontecer, em 18 de julho Pasic enviou mensagem para todas as embaixadas sérvias para informar que o país resistiria a todas as exigências da Áustria-Hungria que violassem a soberania da Sérvia.[72]

Suas preocupações ficariam ainda mais agudas se soubesse da reunião secreta realizada em Viena no dia seguinte. Após chegarem em carros sem identificação à casa de Berchtold, os homens mais poderosos da Áustria-Hungria tomaram uma decisão que, sabiam muito bem, resultaria em uma guerra europeia generalizada. Berchtold distribuiu uma cópia do ultimato elaborado por ele e seus assessores do Ministério do Exterior. Consta que, mais tarde, naquele mesmo ano, quando a maior parte da Europa já estava em guerra, a mulher de Berchtold disse a uma amiga: “O pobre Leopold não conseguiu dormir na noite em que redigiu o ultimato para os sérvios, tal era sua preocupação com a possibilidade de ser rejeitado. Várias vezes durante a noite ele se levantou e mudou ou acrescentou alguma cláusula, pensando em reduzir o risco.”[73] Os presentes à reunião supunham que a Sérvia não aceitaria os termos e a maior parte da discussão abordou a mobilização austro-húngara e outras medidas militares necessárias. Conrad lembrou que quanto mais cedo fosse a ação, melhor seria e não mostrou a mínima preocupação com uma intervenção russa. Como já fizera antes, Tisza insistiu para que não houvesse anexação de território sérvio. Os participantes concordaram, mas Conrad cinicamente disse para Krobatin, ministro da Guerra, ao saírem, “Veremos.”[74] Logo depois Tisza escreveu para sua sobrinha que ainda tinha esperança de que a guerra fosse evitada, mas agora deixava tudo nas mãos de Deus. Seu estado de espírito, disse a ela, era “de seriedade, mas não de ansiedade ou intranquilidade, pois sou como o homem da esquina que a qualquer momento pode receber uma pancada na cabeça, mas que estará sempre pronto para fazer a grande jornada.”[75]

Em 20 de julho, dia seguinte ao da reunião, Berchtold enviou cópias do ultimato com uma nota de encaminhamento para suas embaixadas em toda a Europa. O embaixador em Belgrado devia apresentar sua cópia ao governo sérvio na noite de 23 de julho, quinta-feira, enquanto as cópias restantes só seriam entregues na manhã do dia 24. Os alemães ficaram irritados porque sua aliada só em 22 de julho lhes mostrou uma cópia do ultimato.[76] Apesar disso, continuaram dispostos a dar o apoio prometido. Em 19 de julho, o Nord-Deutsche Allgermeine Zeitung, de modo geral visto como representante das opiniões do governo, publicou breve notícia para explicar o desejo da Áustria-Hungria de querer acertar suas relações com a Sérvia. Os sérvios, explicou, deviam ceder e as outras potências europeias deviam se manter fora do conflito entre os dois antagonistas para assegurar que ele permanecesse em âmbito local. Em 21 de julho, Bethmann enviou telegrama a seus embaixadores em Londres, Paris e São Petersburgo recomendando que usassem o mesmo argumento com os governos que os recebiam. No dia seguinte, Jules Cambon, embaixador francês em Berlim, pediu a Jagow detalhes do conteúdo do ultimato. Jagow respondeu que não tinha ideia. “Fiquei muito espantado com essa resposta,” informou ironicamente Cambon para Paris, “porque a Alemanha está a ponto de se alinhar ao lado da Áustria com especial vigor.”[77]

Berchtold ainda dependia da aprovação formal do velho Imperador e, para tanto, na manhã de 20 de julho, em companhia de Hoyos, foi a Ischl. Franz Joseph leu com atenção o documento e comentou que algumas das condições eram muito severas. Estava certo. O ultimato acusava o governo sérvio de tolerar atividades criminosas em seu solo e exigia que fossem tomadas providências imediatas para liquidá-las, incluindo a demissão de militares e civis que a Áustria-Hungria indicasse, que fechasse jornais nacionalistas e reformasse os currículos escolares para se livrar de tudo que significasse propaganda contra a Áustria-Hungria. Pior que isso, o ultimato violava a soberania sérvia. Em duas cláusulas, que acabariam sendo os pontos críticos para a Sérvia, determinava que fosse acatada a participação da Monarquia Dual na repressão à subversão dentro das fronteiras sérvias e na investigação e julgamento de quaisquer conspiradores sérvios responsáveis pelos assassinatos. O governo sérvio teria 48 horas para responder. O Imperador aprovou o ultimato tal como estava. Berchtold e Hoyos ficaram para o almoço e voltaram a Viena de noite.[78]

Em 23 de julho, Giesl, embaixador austro-húngaro em Belgrado, conseguiu marcar uma visita ao Ministério do Exterior no fim da tarde. Pasic estava fora em campanha, de modo que foi recebido por Laza Pacu, ministro das Finanças, que fumava sem parar. Giesl começou a ler o ultimato, mas o sérvio o interrompeu após a primeira frase, declarando que não tinha autoridade para receber tal documento na ausência de Pasic. Giesl não cedeu. A Sérvia tinha até 25 de julho para responder. Deixou o ultimato sobre uma mesa e se retirou. Houve um silêncio mortal enquanto o sérvio tomava conhecimento do conteúdo do documento. Por fim, disse o ministro do Interior: “Não teremos outra escolha, a não ser lutar.” Pacu rapidamente saiu atrás do encarregado de negócios russo para lhe implorar o apoio russo. O Príncipe-Regente Alexandre disse que a Áustria-Hungria enfrentaria um “punho de ferro” se atacasse a Sérvia, e o ministro da Defesa sérvio adotou medidas preliminares a fim de preparar o país para a guerra. Contudo, apesar de toda a retórica desafiadora, a Sérvia estava em péssimas condições para entrar em combate. Ainda se recuperava das guerras dos Balcãs e grande parte de seu exército estava no sul, submetendo novos territórios que tinha conquistado e estavam fora de controle. Durante os dois dias seguintes, seus dirigentes procuraram desesperadamente escapar do destino trágico que rondava a Sérvia. Já enfrentara a fúria austro-húngara por ocasião da crise bósnia e na Primeira e na Segunda Guerras Balcânicas, mas mesmo assim conseguira sobreviver combinando concessões com pressão do Concerto da Europa sobre a Áustria-Hungria.[79]

Pasic retornou a Belgrado às cinco da manhã seguinte, “muito aflito e abatido,” segundo o encarregado de negócios inglês. Já estavam sendo elaborados planos para o governo deixar a capital e minar as pontes sobre o Sava na fronteira com a Áustria-Hungria. O embaixador russo informou que os fundos do tesouro nacional e os arquivos do governo estavam sendo removidos e o exército sérvio começara a ser mobilizado. Em 24 de julho, o Gabinete sérvio se reuniu por várias horas tentando redigir um esboço de resposta ao ultimato. Por fim, decidiu pela aceitação de todas as exigências, exceto as duas que davam à Áustria-Hungria o direito de interferir nos assuntos internos do país. Os sérvios tentaram ganhar tempo, pedindo a Viena para estender o prazo, mas Berchtold respondeu friamente ao embaixador sérvio que esperava uma resposta satisfatória... e nada mais. Pasic também dirigiu apelos urgentes a capitais europeias em busca de apoio. Ao que parece esperava que outras grandes potências, como França, Inglaterra, Itália, Rússia e, possivelmente, até a Alemanha, se juntassem como já tinham feito em outras crises nos Balcãs e impusessem um acordo. As respostas, as poucas que chegaram, foram desencorajadoras. As vizinhas mais próximas da Sérvia, a Grécia e a Romênia, deixaram claro que dificilmente a socorreriam em caso de guerra com a Áustria-Hungria, enquanto Montenegro, como de hábito, fez promessa vagas em que não se podia confiar. Inglaterra, Itália e França aconselharam a Sérvia a tentar de todas as formas um acordo e naqueles primeiros dias se mostraram pouco inclinadas a intermediar.

A única potência que se dispôs a fazer algo mais sólido foi a Rússia e, mesmo assim, a mensagem que enviou era dúbia. Em 24 de julho, Sazonov disse ao embaixador sérvio em São Petersburgo que achara o ultimato lamentável e prometeu o apoio russo, mas lembrando que teria de consultar o Czar e a França antes de garantir algo concreto. Se a Sérvia decidisse ir à guerra, acrescentou o ministro do Exterior russo querendo se mostrar útil, seria prudente adotar uma postura defensiva e retrair para o sul. Em 25 de julho, aproximando-se a data-limite, Sazonov enviou uma mensagem um pouco mais incisiva para o embaixador. Os ministros mais importantes da Rússia tinham se reunido com o Czar e decidido, pelo menos foi isso que o embaixador relatou para Belgrado, “fazer tudo o que pudesse em defesa da Sérvia.” Embora ainda não fosse uma promessa definitiva de apoio militar, serviu para encorajar o governo sérvio enquanto preparava sua resposta final para a Áustria-Hungria. Aquele dia em Belgrado estava muito quente e a cidade reverberava sob o rufar dos tambores conclamando os conscritos.[80]

Entre as nações da Entente, cujos líderes até então não se mostravam muito interessados na crise que progredia nos Balcãs, a reação ao ultimato foi de espanto e desânimo, e mergulharam no trabalho para definir suas posições. Poincaré e seu primeiro-ministro Viviani naquele momento estavam a bordo de um navio no Báltico, com dificuldade para se comunicar com Paris e com seus aliados. Cada um por seu lado, Grey em Londres e Sazonov na Rússia, pediram à Áustria-Hungria para estender o prazo. Berchtold se negou a ceder.

As reações foram diferentes na Alemanha e na Áustria-Hungria, onde os nacionalistas e os círculos militares receberam a notícia com entusiasmo. O adido militar alemão em Viena relatou: “Hoje o entusiasmo tomou conta do Ministério da Guerra. Finalmente um sinal de que a monarquia recuperou a energia, ainda que, por enquanto, apenas no papel.” O maior medo era de que, mais uma vez, a Sérvia escapasse de seu castigo. De Sarajevo, no dia em que expirava o prazo concedido pelo ultimato, o comandante militar austríaco escreveu a um amigo: “Com prazer e alegria sacrificaria meus velhos ossos e minha vida se isso humilhar o estado-assassino e puser um fim nesse antro de homicidas. Deus permita que nos mantenhamos decididos e que hoje às seis da tarde, em Belgrado, os dados rolem a nosso favor!”[81]

A resposta sérvia, que Pasic entregou a Giesl antes da hora-limite, satisfez seu desejo. Embora em tom conciliatório, o governo sérvio se recusou a ceder nos pontos cruciais da interferência austro-húngara nos assuntos internos da Sérvia. Dizendo “depositamos nossa esperança na lealdade e no cavalheirismo de um general austríaco,” Pasic apertou a mão de Giesl e se retirou. O embaixador, que já supunha que a resposta seria insatisfatória, deu uma olhada rápida no documento. A orientação recebida de Berchtold era bem clara: se a Sérvia não aceitar todas as condições, devemos romper as relações diplomáticas e de fato ele já preparara uma nota para concretizar essa atitude. Enquanto um mensageiro a levava para Pasic, Giesl incinerava os livros de códigos da embaixada em seu jardim. Ele, a mulher e seus assessores, cada um apenas com uma pequena bagagem, se dirigiram de carro para a estação ferroviária passando pelas ruas cheias de gente. Grande parte do corpo diplomático compareceu para se despedir deles. Militares sérvios vigiavam o trem, e um deles, quando a locomotiva começou a resfolegar, gritou para o adido militar que partia: “Au revoir à Budapest.” Na primeira parada na Áustria-Hungria, Giesl foi chamado à plataforma para atender um telefonema de Tisza. “Teria realmente que terminar assim?” – perguntou o húngaro. “Sim,” replicou Giesl. Em Ischl, no norte distante, Franz Joseph e Berchtold aguardavam ansiosamente as novidades. Logo após as seis horas da tarde, o Ministério da Guerra em Viena telefonou para dizer que tinham sido cortadas as relações com a Sérvia. A primeira reação do Imperador foi “Então, finalmente!” mas depois de um silêncio de reflexão, lembrou que o rompimento das relações não significava necessariamente que haveria guerra. Berchtold também se agarrou por alguns instantes a essa tábua de salvação, mas já desencadeara forças que não teria energia nem coragem para conter.[82]

Conrad, que liderara os falcões, de repente pediu que a declaração formal de guerra pela Áustria-Hungria fosse protelada até a segunda semana de agosto, quando suas tropas estariam prontas. Berchtold, temendo que qualquer adiamento desse tempo para outras potências insistirem em negociações e também sentindo-se pressionado pela Alemanha para agir com rapidez, recusou o pedido e, em 28 de julho, a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, embora os primeiros combates sérios começassem somente na segunda semana de agosto. Áustria-Hungria e Alemanha, com a ajuda da Sérvia, tinham levado a Europa a esse ponto perigoso. Agora, muita coisa dependia de como as demais potências procederiam, Na semana seguinte, a Europa ficou oscilando entre a paz e a guerra.”

[70] BD, vol. XI, 27, pgs. 19-20; 45, pg. 37; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 272-5.

[71] Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 257-61; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 276-9.

[72] Williamson, Austria-Hungary, 201.

[73] Macartney, The Habsburg Empire, 808n.

[74] Austro-Hungarian Gemeinsamer Ministerrat, Protokolle des Gemeinsamen Ministerrates, 150-54; Williamson, Austria-Hungary, 203.

[75] Vermes, Istv’an Tisza, 232-3.

[76] Albertini, The Origins of the War, vol. II, 265.

[77] Geiss, July 1914, 142, 149-50, 154.

[78] Macartney, The Habsburg Empire, 808n; Hantsch, Leopold Graf Berchtold, 602-3. Texto completo em Albertini, The Origins of the War, vol. II, 286-9.

[79] Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 267-8; Albertini, The Origins of the War, vol. II, 346; Bittner e Ubersberger, Österreich-Ungarns Aussenpolitik, 659-63; Cornwall, ‘Serbia,’ 72-4.

[80] BD, vol. XI, 92, pg. 74; 107, pg. 85; Stokes, ‘Serbian Documents from 1914,’ 71-4; Cornwall, ‘Serbia,’ 75-9,

[81] Kronenbitter, ‘Die Macht der Illusionen,’ 536; Kronenbitter, ‘“Nur los lassen”,’ 159.

[82] Albertini, The Origins of the War, vol. II, 373-5; Gieslingen, Zwei Jahrzehnte im Nahen Orient, 268-72.

 

 

“A crise de julho de 1914 começou com a temeridade sérvia, o desejo de vingança da Áustria-Hungria e o cheque em branco da Alemanha. Agora, era a hora de os países da Entente fazer o que pudessem para evitar a guerra, ou, se fosse inevitável, conseguir ficar em posição favorável. Embora muitos estudos históricos focalizem a questão atribuindo a culpa pela guerra à Alemanha, ou à Áustria-Hungria, ou mesmo à Sérvia, outros apontam a Tríplice Entente como culpada, seja a França por adotar uma política revanchista contra a Alemanha, seja a Rússia pela aliança com a França e por apoiar a Sérvia, ou mesmo a Inglaterra, por não reconhecer as legítimas aspirações alemãs de um lugar ao sol e uma fatia maior das colônias mundo afora, além de não deixar claro, desde o início da crise, se interviria ao lado da França e da Rússia. Mesmo se esses debates fascinaram – e continuarão fascinando – historiadores e cientistas políticos, talvez tenhamos de aceitar que nunca haverá uma resposta definitiva, porque para cada argumento existe uma resposta compatível. Estaria a França realmente querendo vingança? Mesmo o nacionalista Poincaré se resignara com a perda da Alsácia-Lorena e não estava disposto a correr o risco de uma guerra para recuperar as duas províncias. De fato, o tratado da França com a Rússia levou a Alemanha a se sentir cercada, mas do ponto de vista da França e da Rússia o tratado era defensivo, a vigorar apenas se a Alemanha atacasse. (Como tantas vezes ocorre em relações internacionais, o que é defensivo para uns pode parecer uma ameaça para outros e foi exatamente dessa forma que a Alemanha interpretou o tratado.) E qual a responsabilidade da Rússia por estimular o nacionalismo sérvio? Sazonov devia ter se esforçado mais para controlar o embaixador Hartwig, mas com toda a retórica pan-eslavista dos círculos nacionalistas, nem todos os líderes russos queriam sair em defesa da Sérvia se isso significasse o risco de um conflito mais amplo, logo depois da derrota catastrófica na Guerra Russo-Japonesa. Quanto à Inglaterra, talvez uma declaração imediata afirmando que lutaria sem hesitação ao lado da França fosse capaz de servir como fator de dissuasão sobre a Alemanha, mas essa disposição não ficou suficientemente clara. Os militares alemães consideravam a Força Expedicionária Britânica desprezível e esperavam vencer a França bem antes de entrar em ação o poder naval. De qualquer modo, a Inglaterra não poderia fazer tal declaração sem aprovação do Gabinete, que, durante as últimas semanas antes da eclosão da guerra, estava profundamente dividido sobre o que fazer.”

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