Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I
“Apesar de circunscrita em termos de enfoque,
a análise que Marx faz da tecnologia está ligada a uma abordagem ampla de seu
papel na trajetória evolutiva do capital. “A tecnologia”, escreve Marx em uma
importante nota de rodapé d ’O
capital, “desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o
processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições
sociais de vida e das concepções espirituais que delas decorrem.”4
“Desvelar” não significa “determinar”. Marx não era um “determinista
tecnológico”. A visão disseminada, comum a muitos de seus detratores e
defensores, de que ele considerava as transformações nas forças produtivas o
principal motor da mudança histórica é incorreta. Sem dúvida, as relações
contraditórias entre o dinamismo tecnológico e as relações sociais do
capitalismo desempenharam um papel importante e frequentemente desestabilizador
na história do capital, mas essa não foi a única contradição nessa história5.
Da mesma maneira, a história pode até ser a história das lutas de classes, mas
está longe de ser apenas isso. Muitas dessas frases de efeito de Marx podem
induzir a erro. Deve-se sempre verificá-las no trabalho substancial de Marx
para precisar de que maneira se deve interpretá-las. Por exemplo, por que ele
escreveu o Livro II d’O capital
sob a assunção da mudança tecnológica nula e não fez sequer uma menção à
luta de classes? Certamente o conteúdo do Livro II é relevante para a evolução
do capital, não? A grande discussão sobre serem as forças produtivas ou as relações
sociais o primeiro motor do desenvolvimento capitalista acaba perdendo o ponto
essencial. Ela não situa o estudo de Marx sobre a tecnologia no contexto da
totalidade das relações que constituem uma formação social capitalista. Também
assume, sem nenhum bom motivo, que deve haver um motor principal.
No Livro
I, Marx nos convida a considerar como todos os diferentes “momentos”
listados acima (aos quais acrescentei arranjos institucionais dos tipos
descritos no segundo capítulo do Livro
I para completar a lista) interagem e se relacionam uns com os outros.
Nossas concepções espirituais dependem, por exemplo, de nossa habilidade de
ver, medir, calibrar; hoje, temos telescópios e microscópios, raios-x,
tomografias computadorizadas etc. que nos ajudam a compreender como o cosmo e o
corpo humano funcionam. Mas, isso posto, devemos considerar por que alguém em
determinado lugar concebeu algo como o telescópio ou o microscópio e quem
descobriu os cortadores de lentes e artesãos para fabricá-los, além de um mecenas
para usá-los (em geral em situação de antagonismo e oposição). O resultado foi
o desenvolvimento de novas maneiras de ver, novas concepções do mundo da
natureza e de nosso lugar nele por intermédio desses novos instrumentos. Como o
poeta William Blake disse certa vez: “What now is proved was once only
imagin’d” [Aquilo que hoje
está comprovado não foi outrora senão imaginado].
Todos os sete momentos — tecnologias, relação
com a natureza, relações sociais, modo de produção material, vida cotidiana,
concepções espirituais e estruturas institucionais — se relacionam no interior
da totalidade do capitalismo em um processo de evolução contínua, movido pela
circulação contínua de capital, que opera, por assim dizer, como o motor da
totalidade. Desenvolvimentos em todos os sete momentos — todos autônomos e
independentes, mas ao mesmo tempo sobrepostos e vinculados uns aos outros —
podem conduzir a totalidade em uma ou outra direção. Pelo mesmo motivo,
recalcitrância ou imobilidade em torno de qualquer um dos momentos podem
atravancar transformações em processos que estão ocorrendo nos outros.
Inovações tecnológicas na forma-dinheiro não levam a lugar algum, como vimos
anteriormente, se não forem acompanhadas de no mínimo transformações paralelas
nas relações sociais, nas concepções espirituais e nos arranjos institucionais.
Novas tecnologias (como a internet e as mídias sociais) prometem um futuro
socialista utópico, mas, na ausência de outras formas de ação, acabam cooptadas
pelo capital e transformadas em novas formas e modos de exploração e
acumulação. Mas, pelo mesmo motivo, mudanças autônomas em um dos momentos podem
provocar transformações dramáticas em todo o conjunto. O surgimento repentino
de novos patógenos, como HIV/Aids, ebola ou zika, exige rápida adaptação ao
longo de todos os sete momentos. A dificuldade de nos organizarmos para lidar
com a mudança climática é que isso exige mudanças drásticas em todos os sete
momentos. O fato de algumas pessoas negarem o problema (concepções espirituais)
ou acreditarem ingenuamente que há uma solução tecnológica única (capitalismo
verde) que, como uma bala de prata, pode ser implementada sem mudar mais nada
(como, por exemplo, as relações sociais dominantes e a vida cotidiana) faz com
que as iniciativas sejam fadadas ao fracasso.
Boa parte da literatura nas ciências sociais
favorece algum tipo de teoria unicausal da transformação social.
Institucionalistas favorecem as inovações institucionais, deterministas
econômicos privilegiam as novas tecnologias de produção, socialistas e
anarquistas priorizam a luta de classes, idealistas preferem a mudança das
concepções espirituais, teóricos culturais se concentram nas transformações da
vida cotidiana, e assim por diante. Marx não pode nem deve ser lido como um
teórico unicausal, ainda que diversas representações de sua obra o vejam assim.
O Livro
I d’O capital, em particular, não pode ser analisado dessa
maneira, embora o texto dê muita ênfase aos impactos das adaptações e do
dinamismo tecnológicos. Na obra substancial de Marx, não há um primeiro motor,
mas um emaranhado de movimentos frequentemente contraditórios pelos diferentes
momentos e entre eles que precisam ser identificados e destrinchados.
Isso não significa que em certos lugares e
tempos um ou outro desses sete momentos não possa assumir um papel predominante
na disrupção das configurações existentes ou na resistência obstinada a
mudança. Assim, quando falamos de revoluções tecnológicas, revoluções
culturais, revoluções políticas, revolução informacional ou revoluções nas
concepções espirituais, além de contrarrevoluções em qualquer um desses campos,
estamos reconhecendo a maneira contingente com que a história do capital se
desenrola em geral por esses diferentes momentos e ao longo deles. Marx, é
claro, almejava algum tipo de revolução socialista ou comunista (e em diversos
momentos adotou uma visão um tanto teleológica do progresso inevitável rumo ao
comunismo). Mas nunca foi capaz de especificar qual configuração desses sete
momentos poderia suscitar tais transformações. O fracasso do comunismo
soviético pode ser atribuído em larga medida à forma como a interação entre os
sete momentos foi ignorada, em benefício de uma teoria unicausal segundo a qual
o caminho correto para o comunismo eram as revoluções nas forças produtivas.
Em estudos históricos mais detalhados, assim
como no próprio O
capital, Marx ilustra a contingência disso tudo. O que constitui uma
revolução não é um movimento político ou um evento disruptivo como a tomada do
Palácio de Inverno. A revolução é um processo contínuo de movimentos que
percorre cada um dos diferentes momentos. O capital é inerentemente
revolucionário, de acordo com Marx, porque é valor em movimento sob condições
de contínuo crescimento e contínua inovação tecnológica. Transformações perpétuas
na tecnologia da valorização tem reverberações em toda parte. Mas a revolução
neoliberal foi tanto uma revolução nas concepções espirituais populares quanto
uma revolução institucional e tecnológica6. A mudança revolucionária
consciente, por outro lado, implica uma redefinição e um redirecionamento de
movimentos existentes em todos os momentos. As pessoas podem até mudar suas
concepções espirituais, mas isso não significa nada, se elas não estiverem
dispostas a mudar suas relações sociais, sua vida cotidiana, sua relação com a
natureza, seu modo de produção e suas estruturas institucionais.
Mas, se é verdade que as formas
organizacionais e as modalidades de operação são tão importantes quanto o
hardware e o software é se a incorporação das relações sociais, do
conhecimento, das habilidades e mentalités em forma de hardware é
inelutável, então toda a questão do significado e do impacto da tecnologia na
vida social e em nossa relação com a natureza, bem como em nossas relações
sociais, torna-se muito mais complexa e difusa. Essa é, em meu entender, a
grande importância do comentário de Marx numa nota de rodapé importante do
capítulo 13 do Livro I. No entanto, eliminar as certezas que vem associadas a
um reducionismo estreito (tecnológico, no sentido estrito de hardware, neste
caso) tem a desvantagem do confronto com um mundo em que tudo está relacionado
com tudo. Daí o anseio, ao qual devemos resistir, de designar um primeiro
motor. Daí também a tendência a fetichizar a mudança tecnológica, não apenas como
primeiro motor, mas também como resposta a todos os males.
Na medida em que tudo isso configura uma
visão da obra de Marx um tanto diferente daquela que costuma ser propagada
tanto por marxistas quanto por críticos de Marx, devo fornecer brevemente a evidência
que a sustenta. Essa evidência é mais bem representada pela estrutura e pelo
argumento do Livro
I d’O capital. O capital não poderia ter surgido sem que
certas condições preexistentes já estivessem estabelecidas. A troca mercantil,
um sistema monetário apropriado, um mercado de trabalho em funcionamento,
arranjos institucionais mínimos (como o indivíduo jurídico, as leis e a
propriedade privada) e um mercado de consumo para absorver as mercadorias
produzidas, todos esses elementos eram requisitos mínimos. Também um certo
nível de produtividade e qualificação do trabalhador, bem como a
disponibilidade de certos meios de produção básicos (como terra, ferramentas e
outros instrumentos de trabalho, além de infraestrutura física, como
transporte). Marx reconheceu que a produtividade inicial do trabalho dependia
também de condições naturais (fertilidade e dádivas gratuitas da natureza, tais
como cachoeiras, recursos minerais, processos biológicos de crescimento e
reprodução de plantas e animais etc.), assim como de histórias e conquistas
culturais (acumulação de habilidades, conhecimentos, concepções espirituais,
relações sociais habituais, disciplina temporal etc.) de diferentes povos. As
dádivas gratuitas da natureza e da história cultural da natureza humana são a
base para a acumulação do capital começar. Essas dádivas gratuitas continuam a
ser de grande importância, uma vez que o capital busca cada vez mais cercá-las
e privatizá-las para extrair renda (por exemplo, impondo um preço sobre o
conhecimento, que não possui valor).
Leia o Livro
I d’O capital com cuidado e você verá com que frequência Marx
reitera esses pontos. No capítulo 24 do Livro I, ele descreve quantas dessas
precondições foram produzidas através dos processos de acumulação primitiva. A
chave para o capital propriamente dito está, entretanto, na passagem da
fabricação dos produtos (alguns dos quais podem ser trocados no mercado) à
produção de mais-valor pela produção sistemática de mercadorias para o mercado.
Esta última constitui o objetivo exclusivo dos produtores diretos. Tais
produtores são definidos como capitalistas.
O capital se apropria dos processos e
condições existentes e os transforma em algo perfeitamente ajustado aos
requisitos de um modo de produção capitalista. O mesmo vale para as técnicas.
Ele se apropria de antigas capacidades de cooperação (como aquelas demonstradas
na construção das pirâmides do Egito) e as combina em uma forma organizacional
adequada à reprodução de uma classe capitalista que procura colher para si todos
os ganhos de produtividade advindos da cooperação e das crescentes economias de
escala. Com isso, transforma as relações sociais entre o capital e o trabalho
(com capatazes e administradores entre eles) no interior do processo de
trabalho (ver capítulo 11 do Livro I). Da mesma maneira, apropria-se das
divisões de trabalho preexistentes e separa cada uma delas em divisões
planejadas de trabalho no interior da forma capitalista e em divisões de
trabalho na sociedade coordenadas por indicadores do mercado. Cria novas
hierarquias no processo de trabalho e sujeita tanto o capital quanto o trabalho
à disciplina do capital na produção e à indisciplina dos processos anárquicos
de mercado (ver o capítulo 12 do Livro I). Radicaliza técnicas antigas em larga
medida por meio de transformações na escala da produção e na complexidade dos
diferentes ofícios reunidos sob o comando do capital. Subdivide as divisões de
trabalho existentes em divisões cada vez mais especializadas, formando partes
de um todo muito maior. Por fim, chega-se a um ponto em que o capital precisa
controlar o próprio processo de trabalho pela criação do sistema fabril. Marx
caracteriza esse ponto como a passagem de uma subsunção formal (coordenações
por intermédio de mecanismos de mercado) a uma subsunção real (sob a supervisão
direta do capital) do trabalho no capital7. A tecnologia é
organizada de maneira puramente capitalista pela instalação de uma fonte de
energia externa situada para além da força manual do trabalhador.
O ponto alto vem com a produção de máquinas
por máquinas (um insight espantoso de Marx, que somente agora, com o
advento da inteligência artificial, está sendo plenamente elaborado). Repare
que a construção de forças produtivas adaptadas a um modo de produção
capitalista surge no fim dessa sequência, de modo que é muito difícil ver como
as forças produtivas poderiam constituir a força motriz da transformação
histórica, dada a narrativa construída por Marx8. Elas são
efetivamente o resultado histórico desse processo. Seria típico de Marx tornar
a defender que o que em determinada etapa é um resultado pode num momento
posterior se tornar um agente motriz fundamental (algo que é provavelmente mais
verdadeiro para a tecnologia e a forma organizacional de hoje do que para a do
século XVIII).
Mas, ao estudar essas transições, Marx
descreve cuidadosamente as outras transformações que precisam ocorrer para que
esse movimento revolucionário seja efetivamente completado. Ele argumenta, por
exemplo, que a produção, que antigamente era considerada uma arte repleta de
mistérios, aprendidos por certa dinâmica de aprendizagem, deve se tornar uma
ciência que, quando combinada com o controle capitalista do processo de
trabalho, efetivamente define a tecnologia como uma esfera distinta de ação,
própria do capital9. Sociedades pré-capitalistas possuíam techné,
mas o capitalismo possui uma tecnologia que não admite mistérios, que
disseca cientificamente a natureza a fim de exercer controle. Isso implica uma
mudança de mentalidade não apenas em relação à produção em si mas também no que
diz respeito à natureza, que tem de ser construída como um objeto morto (em vez
de fecundo e vivo) aberto à dominação e manipulação humana (Marx cita Descartes
aqui)10.
Enquanto isso, o trabalhador se torna um
“indivíduo parcial”, preso em uma função particular da divisão do trabalho, sob
o domínio da máquina — em vez de uma pessoa inteira, controlando seu próprio
processo de trabalho11. A forma organizacional da fábrica e o
sistema fabril constituem uma ruptura radical, como vimos, em relação à
produção artesanal. A destruição desta última e sua transformação em trabalho
fabril muda a natureza das relações sociais, assim como o emprego de mulheres e
crianças e a reconfiguração da vida familiar e do trabalho no interior das
classes trabalhadoras. Cria-se um novo fundamento econômico para uma forma
superior da família12. A flexibilidade e a fluidez exigidas do
trabalhador impõem:
a substituição dessa realidade monstruosa, na qual uma miserável
população trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer as
necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela
disponibilidade absoluta do homem para cumprir as exigências variáveis do
trabalho; a substituição do indivíduo parcial, mero portador de uma função social
de detalhe, pelo indivíduo plenamente desenvolvido, para o qual as diversas
funções sociais são modos alternantes de atividade.13
A regulação estatal se torna importante no
que diz respeito à jornada de trabalho e às leis trabalhistas; ao mesmo tempo,
o Estado determina a educação compulsória para garantir uma força de trabalho
letrada e prontamente adaptável às necessidades cambiantes dos processos de
trabalho em evolução do capital. Todas essas mudanças são mencionadas no
capítulo 13 do Livro I.
Marx também assinala que:
O revolucionamento do modo de produção numa esfera da indústria
condiciona seu revolucionamento em outra. [...] Assim, a fiação mecanizada
tornou necessário mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a
revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no tingimento. Por
outro lado, a revolução na fiação do algodão provocou a invenção da gin para
separar a fibra do algodão da semente, o que finalmente possibilitou a produção
de algodão na larga escala agora exigida. Mas a revolução no modo de produção
da indústria e da agricultura provocou também uma revolução nas condições
gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e
transporte [...] o sistema de comunicação e transporte foi gradualmente ajustado
ao modo de produção da grande indústria por meio de um sistema de navios
fluviais, transatlânticos a vapor, ferrovias e telégrafos.14
Em determinado momento, entretanto, “a grande
indústria teve [...] de se apoderar de seu meio característico de produção, a
própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Somente assim ela
criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés”15.
É nesse ponto de O capital que Marx mapeia os efeitos da externalidade
pelos quais se consolidou e se completou aquilo que ele denominava a “revolução
industrial”.
Por fim, e possivelmente mais importante de
tudo, a própria tecnologia se torna um negócio16. Com a invenção da
máquina a vapor, surgiu uma inovação que teve múltiplas aplicações no campo dos
transportes, da mineração, da lavoura e da moagem, sem falar das fábricas e
seus teares mecânicos. É precisa aqui a analogia com os computadores nos dias
de hoje e suas inúmeras aplicações. Uma vez que se torna um negócio, a
tecnologia produz uma mercadoria — novas tecnologias ou formas organizacionais
— que precisa encontrar ou até mesmo criar um novo mercado. Não estamos mais
diante do empreendedor individual que tenta encontrar maneiras de aprimorar a
produtividade por meio de invenções e inovações em seu próprio estabelecimento
de produção, e sim de um vasto setor da indústria especializado em inovação e
dedicado a vender inovações para os demais (tanto produtores quanto
consumidores). A mercearia ou a loja de ferragens da esquina é instigada, persuadida
e eventualmente forçada (pelas autoridades tributárias) a adotar uma
sofisticada máquina de negócios para gerir seu estoque e controlar vendas,
compras e impostos. O custo dessa tecnologia pode excluir do setor os pequenos
negócios em benefício de grandes lojas e centros atacadistas, favorecendo,
portanto, a crescente centralização de capital. A adoção de muitas dessas
inovações depende de sua capacidade de disciplinar e desempoderar os
trabalhadores, elevar a produtividade da mão de obra e aumentar a eficiência e
a velocidade da rotação do capital tanto na produção quanto na circulação. Com
isso, o capitalismo como um todo cai de amores pela transformação tecnológica e
pela certeza do progresso econômico. A crença fetichista nas soluções e
inovações tecnológicas como resposta a todos os problemas enraíza-se ainda
mais, bem como a falsa ideia de que deve haver um primeiro motor. Essa crença
fetichista é alimentada por aquele segmento do capital que transforma inovação
e tecnologia em um grande negócio, com consultores especializados em formas
organizacionais vendendo receitas para melhorar a gestão, empresas
farmacêuticas criando remédios para doenças que não existem e peritos em
informática insistindo em sistemas de automação que ninguém, além de uns poucos
iniciados, consegue compreender. Empreendedores e corporações capitalistas não
adotam inovações porque querem, mas porque são persuadidos a fazê-lo ou porque
precisam fazê-lo a fim de obter ou manter sua fatia de mercado e assim garantir
sua reprodução enquanto capitalistas.
Não é preciso aceitar o aparato conceitual de
Marx para ver a coerência de seus argumentos a respeito das origens do
fetichismo tecnológico. O fetichismo não é puramente imaginário, ele possui uma
base muito real. A produtividade aparece como a grande chave para a
estabilidade e o crescimento capitalista, e a taxa de lucro é crucialmente
determinada por ela. Quando Alan Greenspan mostra que a questão dos ganhos de
produtividade é colocada como o centro da dinâmica do capitalismo estadunidense,
ele não está embarcando em divagações fictícias. O perigo, como vimos na
recente conturbação dos mercados de capital, é atribuir aos ganhos de
produtividade um papel que simplesmente não podem cumprir. Os ganhos de
produtividade contribuíram para produzir a mazela da instabilidade e da
volatilidade. Da mesma maneira, descompassos na produtividade produzem sérios
problemas para a espiral de acumulação infindável17. Seria,
portanto, completamente equivocado (e fetichista) procurar uma solução tecnológica
para os dilemas atuais da instabilidade econômica. A resposta, com quase toda a
certeza, terá de ser encontrada na transformação das relações sociais e
políticas, bem como nas concepções espirituais, nos sistemas de produção e em
todos os demais momentos do processo evolutivo, em combinação com as
transformações tecnológicas e organizacionais que forem apropriadas para
determinados fins sociais.
Isso não significa que o ímpeto geral da
evolução tecnológica seja arbitrário e sem direção. A crença fetichista em
soluções tecnológicas sustenta a visão naturalista segundo a qual o progresso
tecnológico é ao mesmo tempo inevitável e bom, e não há nenhuma maneira de
podermos ou até mesmo tentarmos controlá-lo ou redirecioná-lo coletivamente,
muito menos circunscrevê-lo. Mas é característico dos construtos fetichistas
tornar a ação social sujeita a crenças míticas. Embora tenham um fundo
material, essas crenças escapam das restrições materiais para, uma vez
aplicadas, acarretar consequências materiais muito claras.
Considere, por exemplo, o controle sobre o
processo de trabalho, algo que sempre foi central para a valorização. A
fantasia de que o trabalhador pode ser transformado em mero apêndice da
circulação do capital entranha-se nesse processo. Muitos inovadores industriais
adotam essa fantasia como sua principal meta. Um industrial francês, renomado
por suas inovações na indústria de máquinas-ferramenta, proclamou abertamente
que seus três objetivos eram estes: aumentar a precisão, aumentar a
produtividade e desempoderar o trabalhador18. O sistema fabril, o
taylorismo, a automação, a robotização e a derradeira eliminação do trabalho
vivo por meio da inteligência artificial (IA) respondem a esse desejo. Robôs
(exceto na ficção científica) não reclamam, não respondem, não processam, não
adoecem, não fazem operação tartaruga, não perdem o foco, não entram em greve,
não exigem salários melhores, não se preocupam com as condições de trabalho,
não exigem pausas para o café e muito menos deixam de comparecer ao trabalho19.
A fantasia fetichista de controle total sobre o trabalhador e da derradeira
substituição deste por meio da tecnologia tem suas raízes no imperativo de
aumentar a produtividade por qualquer meio possível.
No mercado de trabalho, o desemprego tecnologicamente
induzido enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores. Expedientes de
desqualificação [deskilling] e homogeneização do processo de trabalho
eliminam os poderes monopólicos que derivam de habilidades de trabalho não
replicáveis. John Stuart Mili considerava “questionável que todas as invenções
mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser
humano”. Para Marx, isso era mais do que evidente, pois em seu entendimento o
objetivo da maquinaria nunca foi aliviar a carga de trabalho, e sim elevar a
extração de lucro do trabalho20. Ocasionalmente, os capitalistas
reconhecem que a fantasia de controle total sobre a força de trabalho pela
tecnologia das máquinas é débil e voltam-se para formas organizacionais de
cooperação, colaboração, autonomia responsável, círculos de controle de
qualidade, especialização flexível etc. O capital pode incorporar qualquer
forma organizacional que os próprios trabalhadores possam propor e moldá-la
conforme sua própria finalidade, que é a produção de mais-valor. O sonho se
torna um pesadelo. Frankenstein está à solta, HAL, o computador de 2001: uma
odisseia no espaço, segue sua vontade própria, os replicantes de Blade
Runner buscam o poder e a perpetuação. Os poderes sombrios do antivalor
surgem das sombras para desafiar a autonomia dos trabalhadores.
Se o trabalho vivo é fonte de valor e lucro,
substituí-lo por trabalho morto ou robotizado não faz sentido nem político nem
econômico. Para Marx, essa é uma das contradições centrais do capitalismo. Ela
mina sua capacidade de se manter em trajetória de crescimento equilibrado. Mas
também produz as consequências indesejadas que Marx explicita nos Grundrisse:
à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza
efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de
trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo
de trabalho, poder que — sua poderosa efetividade —, por sua vez, não tem
nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas
que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da
tecnologia, ou da aplicação dessa ciência a produção. (Por seu lado, o próprio
desenvolvimento dessa ciência, especialmente da ciência natural e, com esta,
todas as demais, está relacionado ao desenvolvimento da produção material.)
[...] [O trabalhador] interpõe o processo natural, que ele converte em um
processo industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se
assenhora. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu
agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de
sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato que o
próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de
sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza
por sua existência como corpo social — em suma, o desenvolvimento do indivíduo
social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se
baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo
fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo
o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o
tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em
consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. O trabalho
excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza
geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do
desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a
produção baseada no valor de troca [...]. O próprio capital é a contradição em
processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo,
ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e
fonte da riqueza. [...] Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças
da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio
social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo
de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas
forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos
para conservar o valor já criado como valor.21
Isso tem sido destacado como a contradição
central da evolução do capital, uma contradição com consequências de amplo
alcance.
Uma vez que se tornou um negócio, a
tecnologia fez o que todo negócio procura fazer: estender seu alcance,
construir novos mercados e atrair investimentos de capital portador de juros
para sustentar e ampliar sua posição como próspera esfera de criação de valor e
mais-valor no interior da divisão geral de trabalho. Na época em que Marx
escrevia, esse negócio estava ainda em suas etapas incipientes, formativas. No
entanto, ele reconheceu claramente que as indústrias de máquinas-ferramenta e
de engenharia mecânica (com o motor a vapor à frente) estavam destinadas a
desempenhar um papel poderoso no setor da tecnologia por meio da criação de
tecnologias genéricas. Mas, na medida em que estava concentrado sobretudo no
processo de valorização no Livro I de O capital, Marx não chegou a
investigar a fundo as novas tecnologias e formas organizacionais que estavam se
desenvolvendo na realização, no consumo e na reprodução social (incluindo a
reprodução da força de trabalho). Hoje, as tecnologias utilizadas num domicílio
médio dos Estados Unidos estão muito além de qualquer coisa que Marx pudesse
imaginar. Ele também não examinou em detalhes a complexa arena da distribuição
(embora tenha reconhecido a importância das formas de organização industrial,
como a empresa de capital aberto e as inovações no mundo bancário e financeiro,
assim como a florescente esfera de criação de antivalor no interior do sistema
de crédito). Marx não tinha muito que dizer sobre as rápidas transformações que
ocorriam no campo das infraestruturas físicas, embora, é claro, os canais, os
barcos a vapor, as ferrovias, os telégrafos e a iluminação a gás, assim como o
abastecimento de água, tenham sido dignos de nota em seus escritos. Mas são
mencionadas as tecnologias de administração estatal, saúde pública, educação e
inovação militar. Está última é há tempos um centro importante de inovação no
que diz respeito à concepção de novos produtos e novos modos de organização,
softwares e hardwares. Formas militarizadas de vigilância e controle, de
policiamento e regulação tornaram-se amplamente disseminadas. A tecnologia como
negócio não demonstrou absolutamente nenhuma inibição a se aventurar onde Marx
não se arriscou. Ela colonizou com gosto todas essas áreas.
A impressão que nos fica, ao ler Marx, é a do
capital circulando com as combinações tecnológicas em constante transformação,
muitas vezes de maneira disruptiva, no momento da produção, enquanto o restante
do processo de circulação — realização, distribuição e reinvestimento —
permanece intocado. A verdade, é claro, é que as tecnologias de circulação
também sofreram mudanças dramáticas. A questão é saber até que ponto os insights
e os comentários prescientes de Marx resistem ao escrutínio contemporâneo,
considerados seus evidentes pontos cegos.
Penso que ninguém diria que mudanças
tecnológicas na esfera da valorização são irrelevantes. Na medida em que Marx
demonstra, em seu estudo, que o capital tem de ser tecnologicamente dinâmico a
todo custo, isso configura uma afirmação universal a respeito da natureza do
capital que vale tanto para a época de Marx quanto para a nossa. A transformação
tecnológica e organizacional é endógena e inerente ao capital, e não exógena e
acidental (como muitos estudos frequentemente a apresentam).
Marx identifica uma série de fatos
relacionados que merecem nossa atenção. Em primeiro lugar, as inovações em uma
esfera provocam efeitos de externalidade que proliferam de tal forma que há uma
consequente difusão de impulsos tecnológicos e organizacionais ao longo da
totalidade de qualquer sistema capitalista. Em segundo lugar, quando a
tecnologia se torna um negócio autônomo, ela deixa de responder primariamente a
determinadas necessidades e passa a criar inovações que precisam encontrar e
definir novos mercados. A partir desse momento, ela precisa criar ativamente
novas vontades, necessidades e desejos não apenas nos produtores (pelo consumo
produtivo), mas também, como todos nós testemunhamos cotidianamente a nossa
volta, nos consumidores. O negócio prospera e promove ativamente a crença
fetichista na existência de soluções tecnológicas para todos os problemas. Em
terceiro lugar, a maneira pela qual Marx situa essas mudanças tecnológicas em
relação a concepções espirituais, relações sociais, relação com a natureza,
vida cotidiana, materialidade da produção de mercadorias e arranjos
institucionais do Estado e da sociedade civil segue firme como um modo de
pensar que precisa urgentemente ser desenvolvido e articulado. Dessa
perspectiva — que me parece uma maneira brilhante de organizar nossas próprias
reflexões críticas —, é possível atacar todas aquelas teorias unicausais sobre
a transformação histórica, inclusive a que é indevidamente jogada nas costas de
Marx.
Por fim, as indicações sombrias de Marx a
respeito do pensamento e da política equivocada que derivam do fetichismo
tecnológico demandam atenção. Por exemplo, é simplesmente ridícula a ideia de
que a construção de cidades inteligentes, geridas por meio da mineração de
vastos conjuntos de dados, possa ser a resposta para erradicar todos os males
urbanos, como a pobreza, as desigualdades, as discriminações racial e de classe
e a extração de riqueza por meio de despejos e outras formas de acumulação por
espoliação. É contraproducente, se não contrarrevolucionária. Cria uma névoa
fetichista — uma grande distração — entre o ativismo político e as realidades
urbanas, os prazeres e os desafios da vida cotidiana que precisam ser
enfrentados.
A crença na inevitabilidade do progresso
tecnológico e organizacional é antiga. Recentemente, sofreu alguns baques e, se
pudermos nos fiar na cultura popular contemporânea, vem sendo cada vez mais
desafiada por imaginários distópicos. Marx nos mostra uma maneira de sair do
binarismo utópico/distópico e procurar caminhos tecnológicos práticos que
encaram a necessidade gritante de novas relações sociais, novas concepções espirituais,
novas formas de nos relacionar com a natureza e todas as outras transformações
exigidas para sairmos do atoleiro atual. A tendência de fetichizar a tecnologia
é um empecilho que precisa ser eliminado e, nesse ponto, Marx é um crítico tão
bom quanto qualquer outro. No entanto, também é verdade que a gama de
possibilidades e de combinações tecnológicas que hoje nos cerca é maior do que
nunca na história humana. Sobre esse ponto, permanece firme o insight marxista
básico: o problema da política emancipatória é liberar as imensas forças
produtivas de suas amarras sociais e políticas, em suma, da dominação do
capital e de uma forma particularmente nefasta de certo aparato estatal de
mentalidade imperial e cada vez mais autoritário. Essa tarefa não poderia ser
mais clara.”
4 Ibidem, n, 89, p. 446.
5 Turan Subasat (org.), The Great Meltdown of 2008, cit.; Neil
Larsen et al. (orgs.), Marxism and the Critique of
Value, cit.
6 David Harvey, O neoliberalismo: história
e implicações (trad. Adail
Ubirajara Sobral e Maria Stela Goncalves, São Paulo, Loyola, 2005).
7 Karl Marx, “The Results of the Immediate Process of Production”, cit.,
p. 1.019-49.
8 David Harvey, “Crisis Theory and the Falling Rate of Profit”, cit.;
Karl Marx, O capital, Livro I, cit.
9 Karl Marx, O capital, Livro I, cit.,
p. 556.
10 Idem.
11 Ibidem, p. 558.
12 Ibidem, p. 560.
13 Ibidem, p. 558.
14 Ibidem, p. 457-8.
15 Ibidem, p. 458.
16 Idem, Grundrisse, cit., p. 654-5.
17 Robert J. Gordon, The Rise and Fall of American Growth; The U.S.
Standard of Living since the Civil War (Princeton, Princeton University
Press, 2016).
18 Denis Poulot, Le sublime (Paris, Maspero, 1980).
19 Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, The Second Machine Age: Work,
Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies (Nova York,
Norton, 2014).
20 Karl Marx, O capital, Livro I, p.
445.
21 Karl Marx, Grundrisse, cit., p.
588-9.
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