segunda-feira, 28 de abril de 2025

Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Parte II), de Raymundo Faoro

Editora: Globo

ISBN: 978-85-2503-339-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 913

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Sinopse: Ver Parte I



“Eu quisera” – escreve o cético comparsa – “dar a esta data a denominação seguinte: 15 de novembro do primeiro ano da República; mas não posso, infelizmente, fazê-lo”.

“O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era”.

“Como trabalho de saneamento, a obra é edificante”.

“Por ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”.

“O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo (na proclamação da república) uma parada. Mas o que fazer?” (Aristides Lobo).”

 

 

“A insatisfação, já provada nas ruas com a despedida debaixo de vaia de Campos Sales, irrompe em 1904, no Rio de Janeiro, a pretexto da vacina obrigatória. “A revolta de novembro de 1904” – observa José Maria dos Santos – “foi um movimento de natureza essencialmente econômica, com as suas verdadeiras origens na absoluta indiferença dos meios políticos e governamentais ante o sofrimento geral da população. A vacinação obrigatória, por si só, não a explicaria. O pronunciamento militar Sodré-Travassos foi apenas um enxerto apressado e de última hora. A relativa indulgência reservada posteriormente aos seus diretos responsáveis, a contrastar com a dureza do tratamento usado para com os elementos populares, mostra bem que neste ponto o governo não tinha dúvidas. Foi mesmo a partir daquele momento que se tornaram correntes na nossa polícia os hábitos de grosseira e infinita brutalidade que especialmente a caracterizam, nas suas relações com a gente pobre”.”

 

 

“O cético não é só pessimista, senão sobretudo realista.”

 

 

“‘Entre as instituições militares e o militarismo vai,’ – dirá Rui Barbosa, em 1909, com a correção quase sociológica dos termos – ‘em substância, o mesmo abismo de uma contradição radical. O militarismo, governo da nação pela espada, arruína as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As instituições militares organizam juridicamente a força. O militarismo a desorganiza. O militarismo está para o Exército, como o fanatismo para a religião, como o charlatanismo para a ciência, como o industrialismo para a indústria, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a realeza, como o demagogismo para a democracia, como o absolutismo para a ordem, como o egoísmo para o eu’.”

 

 

“Hermes da Fonseca, diante da ameaça de perder o apoio civil, com a maioria no Congresso, incapaz de, com os elementos militares, resistir às unidades federadas em armas, cede para não perder tudo. Esta será a última manobra do senador e chefe: ‘Agarrando nas suas mãos potentes uma revolução militar, quebrou-a, fingindo que brincava com ela e a ela servia, entregando-a ao país aniquilada, destruída, sem sentir o que havia sido, submetida à lei e à Constituição. Sustentara-se assim mais uma vez por seu intermédio e aí, então, através do seu completo sacrifício, a República civil de que ele é, depois de Prudente, o verdadeiro consolidador’ (Gilberto Amado).

 

 

“E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça.” (Victor Nunes Leal)

 

 

“(No final do século XIX e início do século XX) As poucas oposições municipais, como a formada em Araras, contra o domínio do senador Lacerda Franco, eram combatidas ou pela violência, no nascedouro, ou pela fraude, nas farsas eleitorais. (...) ‘Houve um caso típico’ – conta um “borgista”, carregando sobre a fraude do outro lado – ‘na seção de Cachoeira, em que tomei assento como fiscal do meu Partido. A certa hora apresentou-se um cidadão, e ia depositar a cédula pró Assis Brasil, na urna, quando eu, sabendo sem dúvida que ele não era a pessoa cujo nome figurava no título, indaguei: ‘Como se chama?’ O homem titubeou. Terminou virando-se para trás e perguntando em voz alta aos que o tinham levado: ‘Como é mesmo o meu nome?’...

 

 

“As reações dos vencidos, por três vezes, sacodem a nação: em 1910, com menos intensidade, em 1922, abalando as instituições, em 1930, destruindo a ordem. Num crescendo, cada vez mais capaz de reagir, levanta-se o protesto, em nome da legitimidade democrática, talvez, na verdade, sem a maioria, atada está a interesses e tradições antigas. Sob a teia das eleições, mantidas por amor de preconceitos construídos sobre o liberalismo adulterado, agitavam-se grupos sociais autônomos, não atendidos nas respostas do sistema. As elites, presas às suas raízes de classe, não eram flexíveis, dúcteis para se sobrepor aos dissídios, ordenando e dirigindo os conflitos. Esta missão só o estamento preencherá, fundido em outros moldes, desde que, nos fins do século XIX, ele é escorraçado, perseguido nos seus resíduos ardentes, vivos sob a cinza. A plebe rural, abandonada e desajustada no quadro institucional, refugia-se no messianismo e no cangaceirismo, em protesto difuso e sem alvo. Nas cidades, as duas classes médias – a do pequeno comerciante e do pequeno industrial, bem como a dos empregados de colarinho branco – não se conformam ao afastamento da política, obra apenas de chefes. Contra esse fermento anarquizante, a República pune, vinga e reprime, com os instrumentos de suas oligarquias e de seus coronéis.”

 

 

“Os amigos da mocidade de Getúlio Vargas, os aliados políticos, os adversários descobrem, para surpresa de suas lembranças íntimas, que a nova encarnação do príncipe maquiavélico, marcado de domjuanismo sedutor, caminha sem direção e sem bússola, cavalgando todas as oportunidades. Flores da Cunha percebe, espantado, que o chefe revolucionário (Getúlio) não era apenas dúplice, mas multíplice. João Neves vê o timoneiro que zomba de compromissos, “sem plano preconcebido, sem rumos previamente traçados, sem persistência nas diretrizes que adota, marchando e contramarchando, entre vacilações habituais. “Uma vela em cada altar, até que os acontecimentos se encarregassem de situar o perfil da situação.”  “Hoje tudo, amanhã menos, no dia seguinte quase nada. Sempre a velha tática das concessões e recuos, a farmacopeia dos emolientes, aquelas murmurações monossilábicas, cedendo aqui para recuperar alhures. Política reptiliana, buscando tornar estável a instabilidade do equilíbrio. Especialmente, dilatando, adiando, dividindo, prometendo, no compromisso dos interesses e rivalidades.” (João Neves da Fontoura). Moysés Velhinho, um escritor, que o frequentou, diria, reproduzindo impressões antigas, que “Getúlio Vargas impusera ao país uma ditadura em nome de coisa nenhuma. O que se via e sentia era simplesmente o exercício vegetativo do poder”. Para o povo, o chefe do governo aparece como o não político que, em ágil golpe de capoeira, estatela no chão seus oponentes ou companheiros de jornadas. Na imagem ingênua das ruas, o quadro, antes de ser grotesco, satisfaz aspirações ocultas e vinga agravos anônimos: o homem de casaca, chapéu alto, solene, recebe um golpe certeiro, inesperadamente, chaplinianamente entre as gargalhadas do auditório. Na outra face, ou dentro dela, emerge o mito, personificado no protetor das classes desamparadas. No jogo inconsequente das manobras de cúpula, o “homem providencial”, formado nas entrelinhas da ideologia colorida de utopia do tenentismo, amalgamadas ao povo, o presidente encarna o condutor das transformações, em rumos novos. Muitos de seus seguidores lamentam, é verdade, a cautela dos seus passos, o temor de abrir as velas aos ventos, o que seria explicado por suas raízes oficiais. Ele será, na hora do trânsito, o agente da transformação de um sistema de poder tradicional, calcado no coronelismo e nas oligarquias, para o delírio manso da chefia carismática. A estrutura racional, de fundo liberal, tais as decepções e a incapacidade de operar nos fatos, perde-se, rapidamente, nas sombras de sonhos teóricos, obra de copiadores dos modelos norte-americanos. A urbanização tumultuaria, o desligamento dos vínculos rurais dos trabalhadores emigrados da lavoura, sugere que, de golpe, a sociedade de massas tumultua a ordem social. Os detentores do poder, oriundos das categorias socialmente superiores e das situações políticas dominantes, correm para o mito em gestação, rédea flexível para controlar o caos iminente. Dessa matriz gera-se o populismo, identificado com o líder, um líder hesitante e arguto, não entregue a si mesmo, mas enquadrado estamentalmente. Antecipando a hora decisiva, o teórico de 1937 sonda o futuro, armado com a lâmina fascista, temperada em leituras nacional-socialistas. Para a transição, a doutrina do mito soreliano, instrumento pragmático, salva os dedos sem sacrificar os anéis. No máximo, dar-se-á a sombra das coisas, guardando-as ao preço da violência policial. A contradição – repressão policial e concessões sociais – é de substância do esquema em preparo. Combina-se o irracionalismo romântico das massas com o ceticismo dos líderes, flutuando entre a mistificação e a verdade, materiais que forjam o César nativo. “Não tem sentido indagar,” – diz, catedraticamente, Francisco Campos – “a propósito de um mito, de seu valor de verdade. O seu valor é de ação. O seu valor prático, porém, depende, de certa maneira, da crença no seu valor teórico, pois um mito que se sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em que o mito tem um valor de verdade, é que ele possui um valor de ação, ou um valor pragmático”.”

 

 

“Getúlio Vargas evitaria o comunismo, conciliando o operariado, e se afastaria do fascismo, oficializando os grupos de pressão capitalistas. O centro de equilíbrio, igualmente afastado dos extremismos, não se situa na democracia, nem no liberalismo. Não seria ele homem de, convidado por tantas oportunidades, afastar o poder, em nome de escrúpulos constitucionais, seja dos vigentes ou dos por ele próprio outorgados. “Somente os países economicamente fortes” – confidenciará mais tarde – “são realmente livres. E é essa a liberdade que eu desejaria dar ao meu país. A Constituição de 1937 [...] é apenas uma tentativa, uma experiência transitória, para atravessarmos a tempestade que se aproxima com o mínimo de sacrifícios possível. Digamos que é um meio para atingir um fim, e não um fim em si próprio”.  Não haveria, para legitimá-la, nem plebiscito, nem o chefe do governo se comunicaria com a nação por meio de partidos – ou do partido único –: entre o Povo e o ditador só a burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num vínculo ardente com as massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil para evitar o predomínio de outros grupos.

(...) O perfil autoritário do sistema, que dispensa a participação popular, não logra dominar a sociedade, situando-se mais como árbitro de dissídios do que diretor de opinião. Por isso, não conseguiu oficializar nenhuma ideologia, disfarçando-se o poder sob a ditadura pessoal. O curso do sistema levaria, de acordo com suas inspirações iniciais, sugeridas pelo temor ao comunismo, ao tradicionalismo, não conservador, mas reformista, ao modelo de Salazar, de onde se buscou o nome da ordem nova. Mas, do caráter de conciliação pendular de contrários do regime, de ondulação dialética do comando, se condensaria a corrente capaz de, ao ativá-lo, provocar-lhe o abalo que o abateria.”

 

 

“O populismo, fenômeno político não especificamente brasileiro, funda-se no momento em que as populações rurais se deslocam para as cidades, educadas nos quadros autoritários do campo. O coronel cede o lugar aos agentes semi-oficiais, os pelegos, com o chefe do governo colocado no papel de protetor e pai, sempre autoritariamente, pai que distribui favores simbólicos e castigos reais. O número de operários, no Brasil, entre 1940 e 50 cresceu em sessenta por cento, enquanto a população aumentou em vinte e seis por cento. O preço desta transformação, na qual grupos errantes se integram numa sociedade diversa, quase traumaticamente, se processa no ambiente de tensões e crises. Daí o conteúdo do getulismo ou do “queremismo” dos meados da década de 40 – que se enreda no dilema de suas origens e evolução. Criado para substituir a participação política, controlá-la e canalizá-la, anulando-lhe a densidade reivindicatória, não conseguiu estruturar um programa de respostas, primeiro aos pedidos de ajuda e socorro, depois às exigências.”

 

 

“No clima de desabamento, o chefe do governo revolucionário (Getúlio) eleva a tônica ao extremo, acentuando que “problema máximo, pode dizer-se, básico da nossa economia, é o siderúrgico”, que se resolveria não mais pelo esquema capitalista internacional. “Completado, finalmente,” – afirma já em 23 de fevereiro de 1931 – “o meu pensamento, no tocante à solução do magno problema, julgo oportuno insistir ainda em um ponto: a necessidade de ser nacionalizada a exploração das riquezas naturais do país, sobretudo a do ferro. Não sou exclusivista, nem cometeria o erro de aconselhar o repúdio do capital estrangeiro a empregar-se no desenvolvimento da indústria brasileira, sob a forma de empréstimos, no arrendamento de serviços, concessões provisórias ou em outras múltiplas aplicações equivalentes.

“Mas quando se trata da indústria do ferro, com o qual havemos de forjar toda a aparelhagem dos nossos transportes e da nossa defesa; do aproveitamento das quedas d’água, transformadas na energia, que nos ilumina e alimenta as indústrias de paz e de guerra; das redes ferroviárias de comunicação interna, por onde se escoa a produção e se movimentam, em casos extremos, os nossos exércitos; quando se trata – repito – da exploração de serviços de tal natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, cumprindo-nos, previdentemente, manter sobre eles o direito de propriedade e de domínio.” Volvidos três meses da definição de princípios, o chefe do governo provisório torna mais claras suas palavras: “Dispomos de grandes possibilidades de expansão econômica. Somos país rico em matérias-primas, inexploradas e em produtos exóticos, e, simultaneamente, vasto mercado consumidor. Nestas condições, a política econômica brasileira deve, em parte, orientar-se no sentido de defender a posse e exploração das nossas fontes permanentes de energia e riqueza, como sejam as quedas d’água e as jazidas minerais. Julgo ainda aconselhável a nacionalização de certas indústrias e a socialização progressiva de outras, resultados possíveis de serem obtidos, mediante rigoroso controle dos serviços de utilidade pública e lenta penetração na gerência das empresas privadas, cujo desenvolvimento esteia na dependência de favores oficiais” (4 de maio de 1931). Essa orientação, depois de medidas provisórias de 1931, se cristaliza no Código de Águas e no Código de Minas de 1934. O movimento se prolonga nas iniciativas, mais tarde consagradas, da Cia. Siderúrgica Nacional, cujo esboço será a Comissão do Plano Siderúrgico Nacional (1940), a Petrobrás (1953) e a Eletrobrás, de criação recente, inspirada nos mesmos princípios. As águas e as minas ficavam, desta sorte, dependentes do governo, de sua orientação e estímulo, num complexo nacionalista que se extrema da socialização, embora a esta recorra numa conjuntura de escassez de capitais estrangeiros.”

 

 

“Será o tipo de Estado gerado pelas circunstâncias, mas moldado historicamente num leito permanente, embora transitoriamente obscurecido, que ensejará as reformas de maior profundidade, algumas alheias às diretas pressões da sociedade. Das peças lançadas, entre extravios e indecisões, formar-se-á o esquema autoritário de 1937. Obviamente, o modelo não será obra do capricho dos homens, da inspiração arbitrária dos governantes ou da fantasia dos utopistas. O poder estatal já se sentia em condições de comandar a economia – num regresso patrimonialista, insista-se –, com a formação de uma comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática que aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das classes. O primeiro passo dessa jornada será a disciplina social e jurídica do proletariado, com a fixação de seus direitos e seu capitaneamento governamental. As reivindicações operárias, antes de 1930, não conseguiram, apesar de leis votadas e não aplicadas, conquistar posição de barganha na sociedade, nem reconhecimento oficial. Perdidas entre o anarquismo e o comunismo, sofriam a hostilidade dos grupos dominantes, que as encaravam como ameaças à ordem pública. O Conselho Nacional do Trabalho, instituído em 1923, não chegou, na verdade, a funcionar. Na Câmara dos Deputados, em 1920, um congressista, ao advogar melhores salários aos empregados, é repelido como “agente do bolchevismo”. Um deputado traduz o pensamento dominante: “O trabalho, em sua origem, nos seus inícios foi escravo e só pela evolução natural da sociedade humana tornou-se livre. Que mais pode aspirar? [...] Com a capa de reivindicações o que se quer de fato é o gozo, o luxo [...]” (Brígido Tinoco). O problema, posto que colocado ao debate nacional por Rui Barbosa e Nilo Peçanha, esbarrara, na sua solução, na concepção liberal do Estado, correspondente aos interesses da República Velha. Washington Luís, candidato presidencial, declara que “a questão operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social”, expressões caricaturadas com a réplica de que “a questão social é uma questão de polícia”. A Aliança Liberal adotou outro rumo, no propósito inicial de aliciar às suas fileiras os descontentamentos sociais. No poder, cria o Ministério do Trabalho – Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio –, acenando, na pluralidade de tarefas, com a política conciliatória de classes, em repúdio implícito à linha contestatória dos frágeis movimentos operários anteriores. O chefe do governo provisório, aprovando a orientação do primeiro ocupante da nova pasta – a “conjugação dos interesses patronais e operários” –, mostra o sentido da reforma, que oficializa os sindicatos: “As leis, há pouco decretadas, reconhecendo essas organizações, tiveram em vista, principalmente, seu aspecto jurídico, para que, em vez de atuarem como força negativa, hostis ao poder público, se tornassem, na vida social, elemento proveitoso de cooperação no mecanismo dirigente do Estado. Explica-se, assim, a conveniência de fazê-las compartilhar da organização política, com personalidade própria, semelhante à dos partidos, que se representam de acordo com o coeficiente das suas forças eleitorais” (4 de maio de 1931). A sindicalização abrangia operários e patrões, com organismos próprios, para solverem seus dissídios sob a supervisão ministerial, ampliado largamente o campo dos direitos dos trabalhadores – lei dos dois terços de trabalhadores brasileiros, oito horas de trabalho, férias, etc. A conciliação legal não valida, entretanto, os reclamos operários, reprimidos severamente, como antes, se apelassem para a greve, assimilada à violência. Em São Paulo, o interventor João Alberto – nem ele, com seus antecedentes revolucionários, tolera o desafio à ordem. Não obstante, o governo federal não admite a suspensão, mesmo provisória, das leis trabalhistas. Sob a cor do amparo e proteção ao capital e ao trabalho, num esquema ainda liberal na pena do autor das medidas reformistas – liberal com tintas herdadas de Augusto Comte e emprestadas do uruguaio Battle y Ordóñez –, o alvo seria o controle estatal, para a eventual direção, do industrial e do operário. Protestam, contra o ambicioso plano, patrões e operários – somadas as críticas no“signo criminoso da incaracterística e da imperfeição. A sua [de Lindolfo Collor] obra era eclética, cinzenta, privada de seiva vital [...] S. Ex.ª, bom moço, vestindo boas roupas, desejava ardentemente a simpatia dos homens rudes do trabalho sem, contudo, ousar desgostar os magnatas da indústria e do comércio” (Virgínio Santa Rosa). O norte estava traçado, favorecido pelos acontecimentos: a oficialização dos sindicatos, transformado o líder operário em agente designado, o pelego, substituto urbano do coronel, e o líder industrial em cliente blandicioso e humilde do Tesouro e suas agências. A Constituição de 1934 reage, todavia, à ameaça de domesticação, com o sindicato livre, prometido pela lei. A pluralidade sindical, praticamente banida desde 1931 (Decreto 19770), volta a imperar, fruto extemporâneo do liberalismo, apesar dos temperos sub-reptícios opostos ao texto legal, que a subtraem à proliferação (José Alberto Rodrigues). Depois de outorgada a Carta de 1937, tudo volta à normalidade, com o desvanecimento do risco – agora grave risco – do liberalismo econômico, que conduz ao comunismo, por meio da anarquia, segundo o pontífice intelectual da ordem reformulada (Francisco Campos). O que não se poderia prever, no caos em dissipação, seria que a crisálida tentasse voar com asas libertas, para a aventura populista.”

 

 

“Nem a calculada firmeza de José Bonifácio, nem a astúcia flexível de dom Pedro II ou o maquiavelismo de Vargas explicam a realidade, a todos superior, condutora e não passivamente moldada.”

 

 

“Característico principal, o de maior relevância econômica e cultural, será o do predomínio, junto ao foco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de aristocrático (em tempos idos), se burocratiza progressivamente, em mudança de acomodação e não estrutural.”

 

 

“A burocracia, como burocracia, é um aparelhamento neutro, em qualquer tipo de Estado, ou sob qualquer forma de poder.”

 

 

“O estamento, por sobranceiro às classes, divorciado de uma sociedade cada vez mais por estas composta, desenvolve movimento pendular, que engana o observador, não raras vezes, supondo que ele se volta contra o fazendeiro, em favor da classe média, contra ou a favor do proletariado. Ilusões de óptica, sugeridas pela projeção de realidades e ideologias modernas num mundo antigo, historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos. As formações sociais são, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio móveis, valorizados aqueles que mais a sustentam, sobretudo capazes de fornecer-lhe os recursos financeiros para a expansão – daí que, entre as classes, se alie as de caráter especulativo, lucrativo e não proprietário. O predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana –, condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos semânticos ou nominais sem correspondência com o mundo que regem.”

 

 

“A minoria governa sempre, em todos os tempos, em todos os sistemas políticos.”

 

 

“No governo estamental, tal como se estrutura neste ensaio, há necessariamente, como sistema político, a autocracia de caráter autoritário e não a autocracia de forma totalitária. “O conceito 'autoritário” – escreve Loewenstein – “caracteriza uma organização política na qual um único detentor do poder – uma só pessoa ou ‘ditador’, uma assembleia, um comitê, uma junta ou um partido – monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus destinatários a participação real na formação da vontade estatal. O único detentor impõe à comunidade sua decisão política fundamental, isto é, dita-a aos destinatários do poder. O termo ‘autoritário’refere-se mais à estrutura governamental do que à ordem social. Em geral, o regime autoritário se satisfaz com o controle político do Estado sem pretender dominar a totalidade da vida socioeconômica da comunidade, ou determinar sua atitude espiritual de acordo com sua imagem.” (Karl Loewenstein). Este sistema é compatível, e ordinariamente se compatibiliza, com órgãos estatais separados, assembleias ou tribunais, numa ordenação formalmente jurídica. De outro lado, o regime autoritário convive com a vestimenta constitucional, sem que a lei maior tenha capacidade normativa, adulterando-se no aparente constitucionalismo – o constitucionalismo nominal, no qual a Carta Magna tem validade jurídica mas não se adapta ao processo político, ou o constitucionalismo semântico, no qual o ordenamento jurídico apenas reconhece a situação de poder dos detentores autoritários (Karl Loewenstein). A autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político. Em última análise, a soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo. Já na estrutura normativamente constitucional, democrática na essência, os detentores do poder participam na formação das decisões estatais, mediante mecanismos de controle que atuam na participação popular. Não importa que o encadeamento que vai da cúpula à base esteja enrijecido por minorias diretoras, contanto que o circuito percorra a escala vertical. Este último sistema – normativamente constitucional e democrático – se ajusta ao quadro das elites, mais ou menos sujeitas ao controle, necessariamente preocupadas com as agências de comando, sejam os círculos eleitorais, as oligarquias estaduais entrosadas às municipais, como na República Velha, ou os partidos. A soberania popular não se reduz à emanação da vontade de baixo para cima, cabendo às minorias as decisões e à maioria o controle, de acordo com a fórmula de Sieyès: “a autoridade vem de cima, a confiança vem de baixo”. A astúcia, a habilidade, a sagaz manipulação são qualidades psicológicas ajustadas ao comando elitário, enquanto nos estamentos prevalece a decisão de utilizar a violência, a direção voltada à eficiência, o cálculo nas intervenções sobre o mecanismo jurídico. ”

 

 

“O estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta ante a mudança interna e no ajustamento à ordem internacional. Gravitando em órbita própria não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo de todas as classes. Em lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica e autoritariamente as reservas para seus quadros, cooptando-os, com a marca de seu cunho tradicional.”

 

 

“A nação e o Estado, nessa dissonância de ecos profundos, cindem-se em realidades diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se desconhecem. Duas categorias justapostas convivem, uma cultivada e letrada, outra, primária, entregue aos seus deuses primitivos, entre os quais, vez ou outra, se encarna o bom príncipe. Onde a mobilização de ideais manipulados não consegue manter o domínio, a repressão toma o seu lugar, alternando o incentivo à compressão.”

 

 

“A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensados de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou.

A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Sousa, reiterada na travessia de dom João VI, ainda o regente de dona Maria I, a louca, dementada pelos espectros da Revolução Francesa. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem rei, não conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, heróis oficiais de uma grande empresa, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama – herói burocrata. A máquina estatal resistiu a todas as setas, a todas as investidas da voluptuosidade das índias, ao contato de um desafio novo – manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa, aristocraticamente superior. Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity (Arnold Toynbee), segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.”

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