quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Essencial (Parte I), de Padre Antônio Vieira

Editora: Companhia das Letras / Penguin Classics

ISBN: 978-85-63560-28-5

Organização e introdução: Alfredo Bosi

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

Sinopse: O enfático juízo de Fernando Pessoa sobre Antônio Vieira contido num verso de Mensagem conserva sua plena validade neste início de século XXI. O perfeito domínio das sutilezas da retórica seiscentista, a impressionante erudição bíblica e literária e a inigualada capacidade de instruir, comover e deleitar simultaneamente continuam a fazer da prosa do “imperador da língua portuguesa” um clássico absoluto nas duas margens do Atlântico, mais de três séculos após sua primeira publicação. Embora o mundo monárquico, escravista e radicalmente dogmático de Vieira já tenha há muito desaparecido, sua extensa obra continua a iluminar a história e a literatura da lusofonia. Jesuíta, político e pregador, confessor de reis e profeta do Quinto Império, autor de centenas de sermões e de uma riquíssima correspondência, Vieira foi um homem de múltiplos interesses, unificados por sua fé inquebrantável e pela crença nos altos destinos de Portugal. Essencial Padre Antônio Vieira é uma generosa amostra de sua eloquente produção literária, incluindo alguns de seus melhores sermões, cartas e textos proféticos, além de uma esclarecedora introdução de Alfredo Bosi, membro da Academia Brasileira de Letras, e do texto inédito em português A chave dos profetas.


Antônio Vieira: Vida e obra — Um esboço

Alfredo Bosi

 

 

“A retórica foi definida por Aristóteles como exercício da “faculdade de observar, em qualquer situação, os meios disponíveis de persuasão” (Retórica, livro i, cap. 2). Nessa proposição estão casados os fins e os meios. Os fins são políticos, no sentido amplo da palavra, que abrange os discursos proferidos na pólis, lugar de interação social por excelência, onde não faltam ocasiões para persuadir, isto é, influir no ânimo e no comportamento dos concidadãos. Os meios são as palavras e os gestos do orador. Para os discursos, invenção, composição, elocução. Para os gestos, ação. Servindo a uns e a outros, memória.

Para alcançar os fins, é necessário que o orador conheça e reavive os sentimentos, as ideias e os valores dos ouvintes: daí a combinação de retórica e ética, que Aristóteles considera peculiar à arte de convencer:

Há, portanto, três meios de efetuar a persuasão. O homem que se propõe dominá-los deve certamente: 1) ser capaz de raciocinar logicamente, 2) compreender o caráter e a bondade humana em suas várias formas, e 3) compreender as emoções — isto é, nomeá-las e descrevê-las para conhecer as suas causas e o modo como são excitadas. Assim vê-se que a retórica é um ramo da dialética e também dos estudos éticos.

 

Haveria, pois, uma dimensão específica na atividade retórica, que envolve o estudo do comportamento humano (objeto comum à ética e à psicologia, se pensarmos nos termos das ciências modernas); e uma dimensão transversal e universal, logo formal e não específica, que interessa a todos os discursos (históricos, filosóficos, científicos), enquanto trata dos procedimentos gramaticais e estilísticos necessários à formulação dos diversos tipos de conhecimento.

A retórica, entendida filosoficamente, como fizeram Aristóteles e Isócrates, forma o cidadão justo e prestante e, ao mesmo tempo, o orador perito na arte de mover eficazmente os corações e as mentes dos ouvintes.”

 

 

“Os anos que medeiam entre a chegada de Vieira a Lisboa e a sua partida para o Maranhão (1641-52) foram marcados por uma atividade febril. O orador sacro, elevado a pregador do Paço e valido do rei, descobria em si o arquiteto da política no xadrez das potências europeias. O fato é que Portugal restaurado, mas sangrado, precisava absolutamente estreitar relações estratégicas com a França e com a própria inimiga Holanda, sob pena de regressar à sujeição castelhana e perder parte do seu império tão duramente conquistado na América, na África, na Ásia. O zelo imoderado da pátria, que Vieira confessava como sua paixão avassaladora, guiou (e não raro transviou) o embaixador de d. João IV em suas viagens à França, à Holanda e aos domínios pontifícios.

Mas esse mesmo zelo abriu-lhe o entendimento e dele fez um persistente defensor da “gente de nação”, como eram chamados os judeus e os cristãos-novos. Se nada restou das suas manobras diplomáticas, certamente a luta nunca esmorecida pela reforma dos “estilos” do Santo Ofício português em favor dos judeus perseguidos o torna credor de nossa estima, se é justo que nos arroguemos o direito de ser membros do tribunal da História.

Convém começar pelos fins últimos. A razão de ser do Vieira diplomata e conselheiro de ousados projetos econômicos e políticos, que incluíam a defesa dos judeus e cristãos-novos, era uma só: consolidar a restauração de Portugal e erguê-lo à categoria de potência colonial então ameaçada pelos Estados concorrentes, dentre os quais a Holanda era decerto o mais temível. No decênio de 1640 esses objetivos foram perseguidos mediante a procura de alianças matrimoniais do príncipe d. Teodósio, herdeiro do trono e pupilo de Vieira, com princesas ou nobres de altos títulos da França, da Áustria e até mesmo da Espanha. Tudo em vão. Foram recusadas todas as propostas mediadas por Vieira e pelos embaixadores de Portugal junto aos respectivos governos. O Estado português, assediado nas fronteiras pela Espanha e nas colônias pela Holanda, parecia não ser um bom partido para as casas reais europeias.17

Vieira percebeu sagazmente que se faziam necessários meios mais potentes para fortalecer de maneira duradoura a situação da pátria. Como familiar do monarca, propôs a criação de uma Companhia das Índias Ocidentais, a exemplo das congêneres inglesa e holandesa. O projeto carecia de fortes cabedais, que Vieira esperava obter de empréstimos dos mercadores cristãos-novos ainda residentes em Portugal ou aninhados em cidades francesas e flamengas, Rouen, Bordeaux, Nantes e Amsterdam, Haia e Antuérpia. A dificuldade maior consistia na ação antissemita da Inquisição, particularmente intensa e arbitrária em Portugal. Era no Santo Ofício e na mentalidade difusa entre nobres e clero que se entrincheiravam os maiores inimigos da empresa. O projeto, se executado, impediria a expulsão dos judeus e o confisco de seus bens.

Na Proposta feita a el-rei d. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino, e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa, datada de 3 de julho de 1643, Vieira começa demonstrando a condição precária em que se encontrava Portugal, havia pouco restaurado em sua soberania. Dependendo do resultado do conflito franco-espanhol, o reino não estava em nenhum caso assegurado. Vitoriosa Castela, os inimigos estariam à porta. Vitoriosa a França, não haveria por que confiar em uma nação “naturalmente inconstante, inquieta, amiga de novidades e fácil de corromper-se por dinheiro”.18 E se ambas as nações contratassem paz entre si, nem por isso Portugal ficaria livre de uma perfídia de uma ou de outra, “porque nenhum segue mais leis que as da conveniência própria. Imaginar o contrário é querer emendar o mundo, negar a experiência, e esperar impossíveis”.19 Fala aqui o jesuíta em termos que Maquiavel teria subscrito sem hesitação.”

17 As marchas e contramarchas envolvidas nas gestões diplomáticas de Vieira vêm narradas com vivacidade nas cartas que enviou de Paris ao marquês de Nisa e ao residente Antônio Moniz de Carvalho (1646-7), e nas cartas que enviou de Haia ao mesmo marquês e a Pedro Vieira da Silva (secretário de Estado), em 1647 e 1648. Essas cartas, ricas em dados históricos, incluem as tentativas de manter acordos de paz com a Holanda, ainda que vendendo Pernambuco aos invasores, projeto de Vieira constante do chamado Papel Forte, drasticamente rejeitado pelos conselheiros de d. João IV e naturalmente ignorado pelos insurretos pernambucanos. Ver o 1o volume de Cartas na edição coordenada e anotada por João Lúcio de Azevedo.

18 Proposta feita a el-rei d. João IV…, em Obras inéditas do padre Antônio Vieira. Lisboa: J. M. C. Seatra & T. Q. Antunes, 1856, v. ii, p. 30.

19 Id., ibid., p. 31.

 

 

“O lugar, a que se refere o orador, e onde se acham os ouvintes, é a capela real, com d. João IV, a nobreza e o alto clero presentes. A esses destinatários, que se creem “bem-nascidos”, dirige Vieira o discurso em que os adverte da isenção divina no dies irae [dia da ira] universal. A eles contrapõe Pedro e os apóstolos, homens de modestíssima condição que Deus fará juízes das doze tribos de Israel. A desigualdade, a “malsofrida desigualdade”, obra da natureza, é compensada pela equidade na hora da ressurreição: “Não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a eleição de ressuscitar. A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio”. Quando forem separados o trigo e o joio, de nada valerá ter nascido fidalgo. O pregador não exclui ninguém e tem a ousadia de indigitar, entre os que podem ser condenados, a reis e príncipes, papas e bispos, gente de toda casta. Tudo indica que o púlpito fosse na época uma tribuna relativamente livre de censura em uma nação vigiada por todos os lados e modos.

Fala o tomista que postula a força do livre-arbítrio, o “alvedrio”, graças ao qual o desvalido de berço, trilhando o caminho da virtude, alcançará a regeneração eterna. Decorrência dessa prometida mudança final de estado é o elogio das obras e a execração do ócio. “No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos de nossas obras.”

Viria da condição apenas remediada dos pais e antepassados a ambivalência do pregador em relação à nobreza, ora tratada com público respeito, ora desqualificada enquanto simples filiação? Qualquer que fosse a motivação dessa dualidade, o fato é que a exaltação do pobre estava escorada nos Evangelhos, começando pela simplicidade do lar do carpinteiro José e confirmando-se na condição de pescadores da maioria dos primeiros apóstolos. Vieira explora o tema da identidade de João Batista instado a dizer quem é pelos emissários do Templo. A resposta do profeta não se funda na substância do nome, mas na ação do verbo: Sou a voz que clama no deserto. A identidade se faz e se mostra somente pelo ato de clamar, e não mediante referência aos pais ou ascendentes (sou filho de…, da tribo de…), como era praxe antiga, e não só judaica, de autonomear-se. “Só de suas ações formou a sua definição: Ego Vox clamantis.” Daí à apologia das obras e à relativização do status herdado vai um passo. Que é dado por um dos sermões da terceira dominga da Quaresma:

Muito tempo há que tenho dous escândalos contra a nossa gramática portuguesa nos vocábulos do nobiliário. A fidalguia chamam-lhe qualidade, e chamam-lhe sangue. A qualidade é um dos dez predicamentos a que reduziram todas as cousas os filósofos. O sangue é um dos quatro humores de que se compõe o temperamento do corpo humano. Digo, pois, que a chamada fidalguia não é somente qualidade, nem somente sangue; mas é de todos os dez predicamentos, e de todos os quatro humores. Há fidalguia que é sangue, e por isso há tantos sanguinolentos; há fidalguia que é melancolia, e por isso há tantos descontentes; há fidalguia que é cólera, e por isso há tantos malsofridos e insofríveis; e há fidalguia que é fleuma, e por isso há tantos que prestam para tão pouco. De maneira que os que adoecem de fidalguia, não só lhes peca a enfermidade no sangue, senão em todos os quatro humores. […] Há fidalguia que é sustância, porque alguns não têm mais sustância que a sua fidalguia; há fidalguia que é quantidade: são fidalgos porque têm muito de seu; há fidalguia que é qualidade, porque muitos, não se pode negar, são muito qualificados; há fidalguia que é relação: são fidalgos por certos respeitos; há fidalguia que é paixão: são apaixonados de fidalguia; há fidalguia que é ubi: são fidalgos porque ocupam grandes lugares; há fidalguia que é sítio, e desta casta é a dos títulos, que estão assentados, e os outros em pé; há fidalguia que é hábito: são fidalgos porque andam mais bem-vestidos; há fidalguia que é duração: fidalgos por antiguidade. E qual destas é a verdadeira fidalguia? Nenhuma. A verdadeira fidalguia é ação. Ao predicamento da ação é que pertence a verdadeira fidalguia. Nam genus, et proavos, et quae non fecimus ipsi, vix ea nostra voco, disse o grande fundador de Lisboa [Nota de Vieira: Ulysses apud Ovidium, Metamorf. Trad.: “Pois com muito custo chamo nossos a estirpe, os antepassados e as coisas que nós próprios não fizemos”.]: As ações generosas, e não os pais ilustres, são as que fazem fidalgos. Cada um é suas ações, e não é mais nem menos, como o Batista: Ego vox clamantis in deserto.32

32 Sermão da terceira dominga do Advento. Pregado na capela real, no ano de 1642. Ver p. 425 desta edição.

 

 

“UM PUNCTUM DOLENS: VIEIRA

E A ESCRAVIZAÇÃO DOS NEGROS

Quando os escravos já não são ameríndios, mas africanos, abre-se um hiato embaraçoso entre a doutrina evangélica, o pressuposto da “natural liberdade” e as práticas coloniais. O corpus, nesse caso, são homilias pregadas sobre a devoção do rosário, bem como afirmações de Vieira esparsas em sua correspondência.

A escravidão negra é tema dos sermões décimo quarto, vigésimo e vigésimo sétimo do Rosário, cujo culto era reservado às irmandades de pretos. No Sermão décimo quarto, Vieira, então noviço e novato, entra no mundo do escravo pelo atalho mais curto e direto da descrição existencial do seu cotidiano: como vive o negro o “doce inferno” dos engenhos de açúcar? De que maneira o tratam os senhores brancos? Quais os passos do seu dia a dia desde que nasce até que morre? Ao desdobrar as questões, o orador firma um princípio de analogia na esfera dos valores, um eixo que vai norteá-lo pelo sermão adentro ministrando-lhe um esquema de apoio para toda a argumentação: a vida do escravo semelha a Paixão de Cristo.

A linguagem da identificação torna-se sobremodo forte e envolvente quando os ouvintes a quem se destina são os próprios escravos. É o que acontece nesse sermão do Rosário pregado à irmandade de pretos em um engenho baiano em 1633. Mediante o uso intensivo do símile, a narração dos trabalhos e das penas sofridas é sentida e ressentida pelos negros, seus sujeitos, e, ao mesmo tempo, deslocada e sublimada, enquanto se projeta no corpo humano de Jesus Cristo, que, assim, se torna o mesmo a quem se fala e o Outro de quem se fala.

O trânsito da imanência subjetiva à transcendência aciona-se a partir de um presente vivido e sofrido, aqui e agora, mas à luz de um passado exemplar que a palavra litúrgica faz reviver: o drama da Paixão. Estreitas correspondências asseguram a coesão interna do significado:

Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado […] porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dous madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que Lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.57

Vieira não se contenta em insistir na pena física: a sua palavra fere com rigor a divisão social que está na raiz do trabalho compulsório. Impõe-se, nessa altura, a nomeação das duas classes antagônicas, os senhores e os escravos; eles e vós:

Eles mandam, e vós servis: eles dormem, e vós velais: eles descansam, e vós trabalhais: eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.58

Marx diria dois séculos depois: “Por certo o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, mas choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz a beleza, porém para o trabalhador só fealdade”.59

No sermão vigésimo sétimo do Rosário, a tônica existencial recai na perplexidade do orador diante das causas mesmas da abissal diferença de condição entre homens todos criados por Deus. A epígrafe que dá o mote do sermão fala da migração dos hebreus para a Babilônia, texto tirado da genealogia de Cristo na abertura do Evangelho de Mateus. O tema é o exílio sofrido por um povo inteiro escravizado à força. A comparação com os africanos arrancados de suas terras vem a primeiro plano:

Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias, salvando com tiros e fumos de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato: entra uma nau de Angola, e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. Os israelitas atravessaram o mar Vermelho, e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América e para viver e morrer cativos. Infelix genus hominum (disse bem deles Mafeu) et ad servitutem natum. Os outros nascem para viver, estes para servir.60

A exclamação é sinal de consciência lúcida e indignada: “Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os ricos das próprias!”. E novamente a contraposição incisiva entre senhores e escravos, “os senhores poucos, e os escravos muitos”, “os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros”, “os senhores em pé apontando para o açoute, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão, e espetáculos da extrema miséria”. De um lado, homens tratados como brutos; de outro, homens tratados como deuses.

Vejamos como Vieira enfrenta e tenta desfazer a percepção de sem sentido que os olhos trouxeram ao entendimento; e como a mercancia, dita diabólica, acaba resolvendo-se, apesar da flagrante contradição, em desígnio insuspeitado, “juízos ocultos” da providência divina.

Em primeiro lugar, vêm as interrogações da mente perplexa: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo Céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”.61

A última pergunta remete ao universo da fatalidade dominado pelos astros. Supõe o influxo de uma estrela adversa que predetermina a sorte dos escravos desigualando cruelmente o seu destino quando confrontado com o dos brancos, seus senhores. Saímos, por essa brecha, da esfera do entendimento, que ponderava as igualdades (“mesmo Adão, mesma Eva, mesmo sangue de Cristo, mesmo nascimento e morte, mesmo ar, mesmo céu, mesmo Sol”) e pasmava com as diferenças: “Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos um nesta vida, outro na outra”.

As semelhanças entre os homens, todos feitos à imagem de Deus, conduzem à intuição do absurdo: “não posso entender”. A saída do impasse, Vieira a encontra na divisão platônica e agostiniana do ser humano em corpo e alma. Só a dualidade permite separar os destinos. A carne sofrida é mortal. A alma crente é imortal; e é a sobrevivência à morte temporal que vai abrir a porta da esperança aos escravos. Os negros, desterrados filhos de Eva, esperam a transmigração final, não da África para a América, mas da América para o céu. Como corpos, são meras “peças”, palavra que Vieira ressalta como prova do seu discurso dualista, para daí inferir que os senhores compram só a parte material do escravo. Peça, isto é, mercancia, e não almas, pois estas pertencem a Deus, e não aos senhores do corpo. É preciso que os escravos cuidem da salvação da própria alma fazendo do sofrimento nos trabalhos matéria de sacrifício propiciatório que certamente os salvará. “Mas é particular providência de Deus, e sua [da Mãe do Redentor], que vivais de presente escravos e cativos, para que por meio do mesmo cativeiro temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna”.62

Se compararmos esses textos com a defesa coerente e sistemática que Vieira empreendeu da liberdade dos índios, não deixaremos de estranhar o que parece incongruência, para não dizer flagrante injustiça. Em relação aos negros trazidos da África, em que pese a intuição da violência senão do absurdo que o tráfico e a escravização do negro significava, vemos que Vieira se comporta como os demais jesuítas e missionários de outras ordens, que os consideravam escravos legalmente introduzidos no Brasil. Diabólica mercancia, mas, ao fim e ao cabo, necessária! Daí o caráter contraditório de suas tiradas de vibrante denúncia que, afinal, desaguam em fórmulas compensatórias pelas quais o cativeiro teria por justificativa a salvação das almas dos africanos escapos à idolatria dos seus cultos e ao império dos maometanos.”

57 Ver pp. 194-5 desta edição.

58 Ver pp. 204-5 desta edição.

59 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p. 77.

60 Ver p. 532-3 desta edição.

61 Ver p. 533 desta edição.

62 Ver p. 556 desta edição. Desenvolvi a análise dos sermões do Rosário no ensaio “Antônio Vieira, profeta e missionário: Um estudo sobre a pseudomorfose e a contradição”, Estudos Avançados, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 65, jan./abr. 2009, pp. 247-70.

 

Fim da Introdução de Alfredo Bosi

 

 

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“Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Os ouvintes, ou são maus ou são bons: se são bons, faz neles grande fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: Uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeador, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiro sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou ao gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus.13 As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua.14 Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus enquanto Deus é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O Filho de Deus enquanto Deus e Homem é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est.15 De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. (...)

Sabem, padres pregadores, por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Por que convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam:18 Homens, fazei penitência; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Batista pregavam jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula: e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma cousa e veem outra, como se hão de converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados.19 Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador, e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?”

13 1Sm 17,49 [“Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu”].

14 1Sm 16,23 [“Todas as vezes que o espírito de Deus atacava Saul, Davi pegava a harpa e tocava. Então Saul se acalmava, sentia-se melhor, e o espírito mau o deixava”].

15 Jo 1,14 [“E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. (...)”].

18 Mt 3,2 [“Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo”].

19 Factumque est ut oves intuerentur virgas er parerent maculosa. (Gn 30,39) [Os animais se acasalavam diante das varas e pariam crias listradas, pintadas e malhadas.].

(Sermão da Sexagésima)

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