Editora: Companhia
das Letras / Penguin Classics
ISBN: 978-85-63560-28-5
Organização e introdução: Alfredo Bosi
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Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 760
Sinopse: O enfático juízo de Fernando Pessoa sobre Antônio Vieira contido num verso
de Mensagem conserva sua plena validade
neste início de século XXI. O perfeito domínio das sutilezas da retórica seiscentista,
a impressionante erudição bíblica e literária e a inigualada capacidade de instruir,
comover e deleitar simultaneamente continuam a fazer da prosa do “imperador da língua
portuguesa” um clássico absoluto nas duas margens do Atlântico, mais de três séculos
após sua primeira publicação. Embora o mundo monárquico, escravista e radicalmente
dogmático de Vieira já tenha há muito desaparecido, sua extensa obra continua a
iluminar a história e a literatura da lusofonia. Jesuíta, político e pregador, confessor
de reis e profeta do Quinto Império, autor de centenas de sermões e de uma riquíssima
correspondência, Vieira foi um homem de múltiplos interesses, unificados por sua
fé inquebrantável e pela crença nos altos destinos de Portugal. Essencial Padre
Antônio Vieira é uma generosa amostra de sua eloquente produção literária, incluindo
alguns de seus melhores sermões, cartas e textos proféticos, além de uma esclarecedora
introdução de Alfredo Bosi, membro da Academia Brasileira de Letras, e do texto
inédito em português A chave dos profetas.
Antônio Vieira: Vida e obra — Um esboço
Alfredo Bosi
“A retórica
foi definida por Aristóteles como exercício da “faculdade de observar, em qualquer
situação, os meios disponíveis de persuasão” (Retórica, livro i, cap. 2).
Nessa proposição estão casados os fins e os meios. Os fins são políticos, no sentido
amplo da palavra, que abrange os discursos proferidos na pólis, lugar de interação
social por excelência, onde não faltam ocasiões para persuadir, isto é, influir
no ânimo e no comportamento dos concidadãos. Os meios são as palavras e os gestos
do orador. Para os discursos, invenção, composição, elocução.
Para os gestos, ação. Servindo a uns e a outros, memória.
Para
alcançar os fins, é necessário que o orador conheça e reavive os sentimentos, as
ideias e os valores dos ouvintes: daí a combinação de retórica e ética, que Aristóteles
considera peculiar à arte de convencer:
Há, portanto, três meios de efetuar
a persuasão. O homem que se propõe dominá-los deve certamente: 1) ser capaz de raciocinar
logicamente, 2) compreender o caráter e a bondade humana em suas várias formas,
e 3) compreender as emoções — isto é, nomeá-las e descrevê-las para conhecer as
suas causas e o modo como são excitadas. Assim vê-se que a retórica é um ramo da
dialética e também dos estudos éticos.
Haveria,
pois, uma dimensão específica na atividade retórica, que envolve o estudo do comportamento
humano (objeto comum à ética e à psicologia, se pensarmos nos termos das ciências
modernas); e uma dimensão transversal e universal, logo formal e não específica,
que interessa a todos os discursos (históricos, filosóficos, científicos), enquanto
trata dos procedimentos gramaticais e estilísticos necessários à formulação dos
diversos tipos de conhecimento.
A retórica,
entendida filosoficamente, como fizeram Aristóteles e Isócrates, forma o cidadão
justo e prestante e, ao mesmo tempo, o orador perito na arte de mover eficazmente
os corações e as mentes dos ouvintes.”
“Os
anos que medeiam entre a chegada de Vieira a Lisboa e a sua partida para o Maranhão
(1641-52) foram marcados por uma atividade febril. O orador sacro, elevado a pregador
do Paço e valido do rei, descobria em si o arquiteto da política no xadrez das potências
europeias. O fato é que Portugal restaurado, mas sangrado, precisava absolutamente
estreitar relações estratégicas com a França e com a própria inimiga Holanda, sob
pena de regressar à sujeição castelhana e perder parte do seu império tão duramente
conquistado na América, na África, na Ásia. O zelo imoderado da pátria, que Vieira
confessava como sua paixão avassaladora, guiou (e não raro transviou) o embaixador
de d. João IV em suas viagens à França, à Holanda e aos domínios pontifícios.
Mas
esse mesmo zelo abriu-lhe o entendimento e dele fez um persistente defensor da “gente
de nação”, como eram chamados os judeus e os cristãos-novos. Se nada restou das
suas manobras diplomáticas, certamente a luta nunca esmorecida pela reforma dos
“estilos” do Santo Ofício português em favor dos judeus perseguidos o torna credor
de nossa estima, se é justo que nos arroguemos o direito de ser membros do tribunal
da História.
Convém
começar pelos fins últimos. A razão de ser do Vieira diplomata e conselheiro de
ousados projetos econômicos e políticos, que incluíam a defesa dos judeus e cristãos-novos,
era uma só: consolidar a restauração de Portugal e erguê-lo à categoria de potência
colonial então ameaçada pelos Estados concorrentes, dentre os quais a Holanda era
decerto o mais temível. No decênio de 1640 esses objetivos foram perseguidos mediante
a procura de alianças matrimoniais do príncipe d. Teodósio, herdeiro do trono e
pupilo de Vieira, com princesas ou nobres de altos títulos da França, da Áustria
e até mesmo da Espanha. Tudo em vão. Foram recusadas todas as propostas mediadas
por Vieira e pelos embaixadores de Portugal junto aos respectivos governos. O Estado
português, assediado nas fronteiras pela Espanha e nas colônias pela Holanda, parecia
não ser um bom partido para as casas reais europeias.17
Vieira
percebeu sagazmente que se faziam necessários meios mais potentes para fortalecer
de maneira duradoura a situação da pátria. Como familiar do monarca, propôs a criação
de uma Companhia das Índias Ocidentais, a exemplo das congêneres inglesa e holandesa.
O projeto carecia de fortes cabedais, que Vieira esperava obter de empréstimos dos
mercadores cristãos-novos ainda residentes em Portugal ou aninhados em cidades francesas
e flamengas, Rouen, Bordeaux, Nantes e Amsterdam, Haia e Antuérpia. A dificuldade
maior consistia na ação antissemita da Inquisição, particularmente intensa e arbitrária
em Portugal. Era no Santo Ofício e na mentalidade difusa entre nobres e clero que
se entrincheiravam os maiores inimigos da empresa. O projeto, se executado, impediria
a expulsão dos judeus e o confisco de seus bens.
Na Proposta
feita a el-rei d. João IV, em que se lhe representava o miserável estado
do Reino, e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam
por diversas partes da Europa, datada de 3 de julho de 1643, Vieira começa demonstrando
a condição precária em que se encontrava Portugal, havia pouco restaurado em sua
soberania. Dependendo do resultado do conflito franco-espanhol, o reino não estava
em nenhum caso assegurado. Vitoriosa Castela, os inimigos estariam à porta. Vitoriosa
a França, não haveria por que confiar em uma nação “naturalmente inconstante, inquieta,
amiga de novidades e fácil de corromper-se por dinheiro”.18
E se ambas as nações contratassem paz entre si, nem por isso Portugal ficaria livre
de uma perfídia de uma ou de outra, “porque nenhum segue mais leis que as da conveniência
própria. Imaginar o contrário é querer emendar o mundo, negar a experiência, e esperar
impossíveis”.19 Fala aqui o jesuíta em termos que Maquiavel
teria subscrito sem hesitação.”
17 As marchas e contramarchas envolvidas
nas gestões diplomáticas de Vieira vêm narradas com vivacidade nas cartas que enviou
de Paris ao marquês de Nisa e ao residente Antônio Moniz de Carvalho (1646-7), e
nas cartas que enviou de Haia ao mesmo marquês e a Pedro Vieira da Silva (secretário
de Estado), em 1647 e 1648. Essas cartas, ricas em dados históricos, incluem as
tentativas de manter acordos de paz com a Holanda, ainda que vendendo Pernambuco
aos invasores, projeto de Vieira constante do chamado Papel Forte, drasticamente
rejeitado pelos conselheiros de d. João IV e naturalmente ignorado pelos insurretos
pernambucanos. Ver o 1o volume de Cartas na edição coordenada
e anotada por João Lúcio de Azevedo.
18 Proposta
feita a el-rei d. João IV…, em Obras inéditas do padre Antônio
Vieira. Lisboa: J. M. C. Seatra & T. Q. Antunes, 1856, v. ii, p. 30.
19 Id., ibid., p. 31.
“O lugar,
a que se refere o orador, e onde se acham os ouvintes, é a capela real, com d. João
IV, a nobreza e o alto clero presentes. A esses destinatários, que se creem “bem-nascidos”,
dirige Vieira o discurso em que os adverte da isenção divina no dies irae
[dia da ira] universal. A eles contrapõe Pedro e os apóstolos, homens de modestíssima
condição que Deus fará juízes das doze tribos de Israel. A desigualdade, a “malsofrida
desigualdade”, obra da natureza, é compensada pela equidade na hora da ressurreição:
“Não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a eleição de ressuscitar.
A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio”. Quando forem separados o trigo
e o joio, de nada valerá ter nascido fidalgo. O pregador não exclui ninguém e tem
a ousadia de indigitar, entre os que podem ser condenados, a reis e príncipes, papas
e bispos, gente de toda casta. Tudo indica que o púlpito fosse na época uma tribuna
relativamente livre de censura em uma nação vigiada por todos os lados e modos.
Fala
o tomista que postula a força do livre-arbítrio, o “alvedrio”, graças ao qual o
desvalido de berço, trilhando o caminho da virtude, alcançará a regeneração eterna.
Decorrência dessa prometida mudança final de estado é o elogio das obras e a execração
do ócio. “No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos
de nossas obras.”
Viria
da condição apenas remediada dos pais e antepassados a ambivalência do pregador
em relação à nobreza, ora tratada com público respeito, ora desqualificada enquanto
simples filiação? Qualquer que fosse a motivação dessa dualidade, o fato é que a
exaltação do pobre estava escorada nos Evangelhos, começando pela simplicidade do
lar do carpinteiro José e confirmando-se na condição de pescadores da maioria dos
primeiros apóstolos. Vieira explora o tema da identidade de João Batista instado
a dizer quem é pelos emissários do Templo. A resposta do profeta não se funda
na substância do nome, mas na ação do verbo: Sou a voz que clama no deserto.
A identidade se faz e se mostra somente pelo ato de clamar, e não mediante
referência aos pais ou ascendentes (sou filho de…, da tribo de…), como era praxe
antiga, e não só judaica, de autonomear-se. “Só de suas ações formou a sua definição:
Ego Vox clamantis.” Daí à apologia das obras e à relativização do status
herdado vai um passo. Que é dado por um dos sermões da terceira dominga da Quaresma:
Muito tempo há que tenho dous escândalos
contra a nossa gramática portuguesa nos vocábulos do nobiliário. A fidalguia chamam-lhe
qualidade, e chamam-lhe sangue. A qualidade é um dos dez predicamentos a que reduziram
todas as cousas os filósofos. O sangue é um dos quatro humores de que se compõe
o temperamento do corpo humano. Digo, pois, que a chamada fidalguia não é somente
qualidade, nem somente sangue; mas é de todos os dez predicamentos, e de todos os
quatro humores. Há fidalguia que é sangue, e por isso há tantos sanguinolentos;
há fidalguia que é melancolia, e por isso há tantos descontentes; há fidalguia que
é cólera, e por isso há tantos malsofridos e insofríveis; e há fidalguia que é fleuma,
e por isso há tantos que prestam para tão pouco. De maneira que os que adoecem de
fidalguia, não só lhes peca a enfermidade no sangue, senão em todos os quatro humores.
[…] Há fidalguia que é sustância, porque alguns não têm mais sustância que a sua
fidalguia; há fidalguia que é quantidade: são fidalgos porque têm muito de seu;
há fidalguia que é qualidade, porque muitos, não se pode negar, são muito qualificados;
há fidalguia que é relação: são fidalgos por certos respeitos; há fidalguia que
é paixão: são apaixonados de fidalguia; há fidalguia que é ubi: são fidalgos
porque ocupam grandes lugares; há fidalguia que é sítio, e desta casta é a dos títulos,
que estão assentados, e os outros em pé; há fidalguia que é hábito: são fidalgos
porque andam mais bem-vestidos; há fidalguia que é duração: fidalgos por antiguidade.
E qual destas é a verdadeira fidalguia? Nenhuma. A verdadeira fidalguia é ação.
Ao predicamento da ação é que pertence a verdadeira fidalguia. Nam genus, et
proavos, et quae non fecimus ipsi, vix ea nostra voco, disse o grande fundador
de Lisboa [Nota de Vieira: Ulysses apud
Ovidium, Metamorf. Trad.: “Pois com muito custo chamo nossos a estirpe, os
antepassados e as coisas que nós próprios não fizemos”.]: As ações generosas, e
não os pais ilustres, são as que fazem fidalgos. Cada um é suas ações, e não é mais
nem menos, como o Batista: Ego vox clamantis in deserto.32”
32 Sermão da terceira dominga do
Advento. Pregado na capela real, no ano de 1642. Ver p. 425 desta edição.
“UM PUNCTUM DOLENS: VIEIRA
E A ESCRAVIZAÇÃO DOS NEGROS
Quando
os escravos já não são ameríndios, mas africanos, abre-se um hiato embaraçoso entre
a doutrina evangélica, o pressuposto da “natural liberdade” e as práticas coloniais.
O corpus, nesse caso, são homilias pregadas sobre a devoção do rosário, bem como
afirmações de Vieira esparsas em sua correspondência.
A escravidão
negra é tema dos sermões décimo quarto, vigésimo e vigésimo sétimo do Rosário, cujo
culto era reservado às irmandades de pretos. No Sermão décimo quarto, Vieira,
então noviço e novato, entra no mundo do escravo pelo atalho mais curto e direto
da descrição existencial do seu cotidiano: como vive o negro o “doce inferno” dos
engenhos de açúcar? De que maneira o tratam os senhores brancos? Quais os passos
do seu dia a dia desde que nasce até que morre? Ao desdobrar as questões, o orador
firma um princípio de analogia na esfera dos valores, um eixo que vai norteá-lo
pelo sermão adentro ministrando-lhe um esquema de apoio para toda a argumentação:
a vida do escravo semelha a Paixão de Cristo.
A linguagem
da identificação torna-se sobremodo forte e envolvente quando os ouvintes a quem
se destina são os próprios escravos. É o que acontece nesse sermão do Rosário pregado
à irmandade de pretos em um engenho baiano em 1633. Mediante o uso intensivo do
símile, a narração dos trabalhos e das penas sofridas é sentida e ressentida pelos
negros, seus sujeitos, e, ao mesmo tempo, deslocada e sublimada, enquanto se projeta
no corpo humano de Jesus Cristo, que, assim, se torna o mesmo a quem se fala e o
Outro de quem se fala.
O trânsito
da imanência subjetiva à transcendência aciona-se a partir de um presente vivido
e sofrido, aqui e agora, mas à luz de um passado exemplar que a palavra litúrgica
faz reviver: o drama da Paixão. Estreitas correspondências asseguram a coesão interna
do significado:
Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado
[…] porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na
sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dous madeiros, e a
vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes
entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para
a esponja em que Lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir,
parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo
despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado,
e vós maltratados em tudo.57
Vieira
não se contenta em insistir na pena física: a sua palavra fere com rigor a divisão
social que está na raiz do trabalho compulsório. Impõe-se, nessa altura, a nomeação
das duas classes antagônicas, os senhores e os escravos; eles e vós:
Eles mandam, e vós servis: eles dormem, e vós velais:
eles descansam, e vós trabalhais: eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que
vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os
das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem
disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas
colmeias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.58
Marx
diria dois séculos depois: “Por certo o trabalho humano produz maravilhas para os
ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, mas choupanas
é o que toca ao trabalhador. Ele produz a beleza, porém para o trabalhador só fealdade”.59
No sermão
vigésimo sétimo do Rosário, a tônica existencial recai na perplexidade do orador
diante das causas mesmas da abissal diferença de condição entre homens todos criados
por Deus. A epígrafe que dá o mote do sermão fala da migração dos hebreus para a
Babilônia, texto tirado da genealogia de Cristo na abertura do Evangelho de Mateus.
O tema é o exílio sofrido por um povo inteiro escravizado à força. A comparação
com os africanos arrancados de suas terras vem a primeiro plano:
Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias,
salvando com tiros e fumos de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato:
entra uma nau de Angola, e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil
escravos. Os israelitas atravessaram o mar Vermelho, e passaram da África à Ásia,
fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar oceano na sua maior largura, e passam
da mesma África à América e para viver e morrer cativos. Infelix genus hominum
(disse bem deles Mafeu) et ad servitutem natum. Os outros nascem para viver,
estes para servir.60
A exclamação
é sinal de consciência lúcida e indignada: “Oh trato desumano, em que a mercancia
são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias,
e os ricos das próprias!”. E novamente a contraposição incisiva entre senhores e
escravos, “os senhores poucos, e os escravos muitos”, “os senhores nadando em ouro
e prata, os escravos carregados de ferros”, “os senhores em pé apontando para o
açoute, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos
atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão, e espetáculos da extrema miséria”.
De um lado, homens tratados como brutos; de outro, homens tratados como deuses.
Vejamos
como Vieira enfrenta e tenta desfazer a percepção de sem sentido que os olhos trouxeram
ao entendimento; e como a mercancia, dita diabólica, acaba resolvendo-se, apesar
da flagrante contradição, em desígnio insuspeitado, “juízos ocultos” da providência
divina.
Em primeiro
lugar, vêm as interrogações da mente perplexa: “Estes homens não são filhos do mesmo
Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo?
Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não
os cobre o mesmo Céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que
os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”.61
A última
pergunta remete ao universo da fatalidade dominado pelos astros. Supõe o influxo
de uma estrela adversa que predetermina a sorte dos escravos desigualando cruelmente
o seu destino quando confrontado com o dos brancos, seus senhores. Saímos, por essa
brecha, da esfera do entendimento, que ponderava as igualdades (“mesmo Adão, mesma
Eva, mesmo sangue de Cristo, mesmo nascimento e morte, mesmo ar, mesmo céu, mesmo
Sol”) e pasmava com as diferenças: “Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo
os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo
o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e
não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança,
como os demais, os predestinasse para dous infernos um nesta vida, outro na outra”.
As semelhanças
entre os homens, todos feitos à imagem de Deus, conduzem à intuição do absurdo:
“não posso entender”. A saída do impasse, Vieira a encontra na divisão platônica
e agostiniana do ser humano em corpo e alma. Só a dualidade permite separar os destinos.
A carne sofrida é mortal. A alma crente é imortal; e é a sobrevivência à morte temporal
que vai abrir a porta da esperança aos escravos. Os negros, desterrados filhos de
Eva, esperam a transmigração final, não da África para a América, mas da América
para o céu. Como corpos, são meras “peças”, palavra que Vieira ressalta como prova
do seu discurso dualista, para daí inferir que os senhores compram só a parte material
do escravo. Peça, isto é, mercancia, e não almas, pois estas pertencem a Deus, e
não aos senhores do corpo. É preciso que os escravos cuidem da salvação da própria
alma fazendo do sofrimento nos trabalhos matéria de sacrifício propiciatório que
certamente os salvará. “Mas é particular providência de Deus, e sua [da Mãe do Redentor],
que vivais de presente escravos e cativos, para que por meio do mesmo cativeiro
temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna”.62
Se compararmos
esses textos com a defesa coerente e sistemática que Vieira empreendeu da liberdade
dos índios, não deixaremos de estranhar o que parece incongruência, para não dizer
flagrante injustiça. Em relação aos negros trazidos da África, em que pese a intuição
da violência senão do absurdo que o tráfico e a escravização do negro significava,
vemos que Vieira se comporta como os demais jesuítas e missionários de outras ordens,
que os consideravam escravos legalmente introduzidos no Brasil. Diabólica mercancia,
mas, ao fim e ao cabo, necessária! Daí o caráter contraditório de suas tiradas de
vibrante denúncia que, afinal, desaguam em fórmulas compensatórias pelas quais o
cativeiro teria por justificativa a salvação das almas dos africanos escapos à idolatria
dos seus cultos e ao império dos maometanos.”
57 Ver pp. 194-5 desta edição.
58 Ver pp. 204-5 desta edição.
59 Karl Marx, Manuscritos
econômico-filosóficos. Tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro:
Zahar, s.d., p. 77.
60 Ver p. 532-3 desta edição.
61 Ver p. 533 desta edição.
62 Ver p. 556 desta edição. Desenvolvi
a análise dos sermões do Rosário no ensaio “Antônio Vieira, profeta e missionário:
Um estudo sobre a pseudomorfose e a contradição”, Estudos Avançados, São
Paulo, Universidade de São Paulo, n. 65, jan./abr. 2009, pp. 247-70.
Fim da Introdução de Alfredo Bosi
XXXXXXXXXXXXXXXXX
“Se
a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra
de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara
com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara
um homem, já o mundo fora santo.”
(Sermão
da Sexagésima)
“Os
ouvintes, ou são maus ou são bons: se são bons, faz neles grande fruto a palavra
de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito.”
(Sermão
da Sexagésima)
“Entre
o semeador e o que semeia há muita diferença: Uma cousa é o soldado, e outra cousa
o que peleja; uma cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira,
uma cousa é o semeador, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o
que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e
as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador
de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem
o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É
o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje
por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente
pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiro sem bala; atroam, mas
não ferem. A funda de Davi derrubou ao gigante, mas não o derrubou com o estalo,
senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus.13
As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram
vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat
citharam, et percutiebat manu sua.14 Por isso
Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar, que é falar, faz-se com a boca;
o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras;
para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus
frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram
cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois
palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter
o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus
enquanto Deus é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum.
O Filho de Deus enquanto Deus e Homem é palavra de Deus e obra de Deus juntamente:
Verbum caro factum est.15 De maneira que até
de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na
união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação
do mundo. Verbo divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras
sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras
ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos
olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. (...)
Sabem,
padres pregadores, por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos
aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Por que convertia o Batista tantos pecadores?
Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos
olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam:18 Homens, fazei penitência; e o exemplo clamava: Ecce
homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As
palavras do Batista pregavam jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula:
e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que se sustenta de
gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia,
e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce homo:
eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e cilício à raiz
da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das
ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que
deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem
uma cousa e veem outra, como se hão de converter? Jacó punha as varas manchadas
diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados.19 Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos,
têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber virtudes? Se a minha
vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas
nas minhas obras, se uma cousa é o semeador, e outra o que semeia, como se há de
fazer fruto?”
13 1Sm 17,49 [“Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra,
atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu”].
14 1Sm 16,23 [“Todas as vezes que o espírito de Deus atacava
Saul, Davi pegava a harpa e tocava. Então Saul se acalmava, sentia-se melhor, e
o espírito mau o deixava”].
15 Jo 1,14 [“E a Palavra se fez homem e habitou entre nós.
(...)”].
18 Mt 3,2 [“Convertam-se, porque o Reino do Céu está
próximo”].
19 Factumque
est ut oves intuerentur virgas er parerent maculosa. (Gn 30,39) [Os animais se acasalavam diante das
varas e pariam crias listradas, pintadas e malhadas.].
(Sermão
da Sexagésima)
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