quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Dialética da Natureza (Parte II), de Friedrich Engels

Editora: Boitempo

ISBN: 978-65-5717-023-6

Tradução: Nélio Schneider

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I



Duas tendências filosóficas, a metafísica com suas categorias fixas, a dialética (Arist[óteles] e especialmente Hegel) com suas categorias fluidas, demonstrando que esses antagonismos fixos de razão e consequência, causa e efeito, identidade e diferença, aparência e essência não se sustentam, que a análise demonstra um polo como já existente in nuce [embrionariamente] no outro, que, em determinado ponto, um polo se converte no outro e que toda a lógica só se desenrola com base nesses antagonismos progressivos. – Isso no próprio Hegel é místico, porque as categorias são preexistentes e a dialética do mundo real aparece como simples reflexo delas. Na realidade é o inverso: a dialética dentro da cabeça é apenas reflexo das formas de movimento do mundo real, tanto da natureza quanto da história.”

 

 

“É da história da natureza e da história da sociedade humana que são abstraídas as leis da dialética. Estas são apenas as leis mais gerais dessas duas fases do desenvolvimento histórico, como do próprio pensamento. Elas se reduzem, mais precisamente, sobretudo a três:

• A lei da conversão de quantidade em qualidade e vice-versa;

• A lei da interpenetração dos opostos;

• A lei da negação da negação2.

Todas as três foram desenvolvidas por Hegel ao seu modo idealista como simples lei do pensamento: a primeira na primeira parte da Lógica, na teoria do ser; a segunda ocupa toda a segunda parte de sua Lógica, que é de longe a mais importante, a teoria da essência; a terceira, por fim, figura como lei fundamental para a construção de todo sistema. O erro reside em que essas leis, na condição de leis do pensamento, são impostas à natureza e à história e não deduzidas destas. O resultado, então, é toda essa construção forçada, muitas vezes de arrepiar os cabelos: o mundo, querendo ou não, deve se orientar por um sistema de pensamento que, por sua vez, não passa de produto de determinado estágio do desenvolvimento do pensamento humano. Se invertermos a coisa, tudo se torna simples e as leis dialéticas, que na filosofia idealista têm um aspecto extremamente misterioso, imediatamente se tornam simples e claras como o sol.”

2 Ver também Friedrich Engels, Anti-Dühring, cit., p. 150-71.

 

 

“(...) Todo mundo vê que esse é o mesmo tipo de ciência que declara natural o que ela consegue explicar e atribui a causas sobrenaturais o que lhe é inexplicável. Se chamo de acaso ou de deus a causa do inexplicável é totalmente indiferente para a questão em si. Ambos são apenas outro modo de dizer “eu não sei” e, por conseguinte, não fazem parte da ciência. Esta cessa onde falha o nexo necessário.”

 

 

“A mudança da natureza pelo ser humano, e não só a natureza como tal, é o fundamento mais essencial e mais imediato do pensamento humano, e a inteligência do ser humano cresceu na mesma proporção em que ele aprendeu a modificar a natureza.”

 

 

“Em contraposição à lógica antiga, meramente formal, a lógica dialética não se contenta, como aquela, com enumerar e postar lado a lado, sem conexão umas com as outras, as formas do movimento do pensamento, isto é, as diferentes formas de juízo e dedução. Pelo contrário, ela deriva essas formas umas das outras, subordina umas às outras, em vez de coordená-las; desenvolve as formas superiores a partir das inferiores.”

 

 

A forma de desenvolvimento da ciência natural, na medida em que ela pensa, é a hipótese. Um novo fato é observado e inviabiliza o modo de explicação usado até então para os fatos que pertencem ao mesmo grupo. A partir daí, novas maneiras de explicar se tornam necessárias – primeiramente fundadas apenas em uma quantidade limitada de fatos e observações. Material adicional de observação depura essas hipóteses, elimina uma, corrige a outra, até que, por fim, a lei é formulada de modo puro. Caso se esperasse até que o material estivesse puro para a lei, isso implicaria suspender a pesquisa reflexiva realizada até aquele momento e, já por isso, a lei jamais tomaria forma.

 

 

““Somos capazes de conhecer somente o que é finito etc.” Isso está totalmente correto na medida em que somente objetos finitos entram no âmbito do nosso conhecimento. Porém essa sentença também necessita do seguinte complemento: no fundo, somos capazes de conhecer somente o que é infinito. De fato, todo conhecer real e exaustivo consiste apenas em que elevemos, por meio do pensamento, o singular da individualidade à particularidade e desta à universalidade*, que encontremos e constatemos o infinito no finito, o eterno no transitório. Porém a forma da universalidade é a forma do ser completo em si mesmo e, portanto, da infinitude; ela é a síntese dos muitos finitos em um infinito. Sabemos que cloro e hidrogênio, dentro de certos limites de pressão e temperatura e sob a incidência da luz, combinam-se mediante explosão em gás cloreto de hidrogênio e, assim que ficamos sabendo disso, também sabemos que isso ocorrerá em toda parte e sempre que as condições acima estiverem dadas. E é indiferente se isso se repete uma ou milhões de vezes e em quantos corpos cósmicos. A forma da universalidade na natureza é a lei, e não há ninguém que proclame mais a eternidade das leis da natureza do que os pesquisadores da natureza. Portanto, quando N[ägeli] diz que tornamos o finito insondável quando não queremos investigar apenas esse finito, mas misturamos a ele coisas eternas, ele está negando a cognoscibilidade das leis da natureza ou sua eternidade. Todo verdadeiro conhecimento da natureza é conhecimento do eterno, do infinito, e, por conseguinte, ele é essencialmente absoluto.

Porém esse conhecimento absoluto apresenta uma dificuldade considerável. Do mesmo modo que a infinitude da substância cognoscível é composta somente de finitudes, também a infinitude do pensamento absolutamente cognoscente é composta de uma quantidade infinita de mentes humanas finitas, que, paralela e sucessivamente, trabalham nesse conhecimento infinito, cometem erros primários de ordem prática e teórica, partem de pressupostos equivocados, unilaterais e falsos, trilham caminhos errados, tortuosos e inseguros e, com frequência, não fazem a coisa certa nem quando dão de cara com ela (Priestley)68. Por conseguinte, conhecer o infinito é um processo cercado de dificuldades dobradas e, por sua natureza, só se pode efetuar em um progresso infinito assintótico. E isso nos basta inteiramente para podermos dizer: o infinito é cognoscível e incognoscível na mesma medida, e isso é tudo de que precisamos.”

*: Singularidade, particularidade, universalidade: estas são as três determinações em cujo âmbito se move toda a “teoria do conceito”49. Sob elas, progride-se então, não em uma modalidade, mas em muitas modalidades, do singular para o particular e deste para o universal, e isso é exemplificado muitas vezes por Hegel como progressão “indivíduo, espécie, gênero”.

[49] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Wissenschaft der Logik, Th. 2: Die subjective Logik, oder: Die Lehre vom Begriff, cit.

68 Em 1774, Joseph Priestley descreveu o oxigênio sem desconfiar de que havia descoberto um novo elemento químico que provocaria uma reviravolta na química.

 

 

“Todo equilíbrio é apenas relativo e temporário.”

 

 

A descoberta prática da transformação de movimento mecânico em calor é tão antiga que poderíamos datar dela o início da história da humanidade. Não importando quais foram as ferramentas inventadas e a domesticação de animais que o precederam, foi com o fogo por fricção que os humanos pela primeira vez puseram a seu serviço uma força inanimada da natureza. E ainda hoje a superstição popular mostra quanto o alcance imensurável desse gigantesco progresso se impregnou em seu sentimento. A invenção da faca de pedra, que foi a primeira ferramenta [inventada], foi celebrada ainda muito tempo depois da introdução do bronze e do ferro, na medida em que todos os atos religiosos de sacrifício eram levados a cabo com facas de pedra. De acordo com a saga judaica, Josué mandou circuncidar com facas de pedra os homens nascidos no deserto2; celtas e germanos usavam exclusivamente facas de pedra em seus sacrifícios humanos. Tudo isso desapareceu há muito. Não foi isso o que aconteceu com o fogo por fricção. Muito tempo depois de se tomar conhecimento de outras maneiras de fazer fogo, na maioria dos povos todo fogo sagrado tinha de ser produzido por fricção. Mas, até hoje, na maioria dos países europeus, a superstição popular insiste que o fogo milagroso (por exemplo, o nosso Notfeuer [fogo para situações de necessidade] na Alemanha) só pode ser aceso por meio de fricção. Assim, até o nosso tempo, persiste – de modo semiconsciente – na superstição popular, nos resquícios da memória mitológica pagã dos povos mais cultos do mundo, a grata comemoração da primeira grande vitória humana sobre a natureza.

Entretanto, no caso do fogo por fricção, o processo ainda é unilateral. Movimento mecânico é transformado em calor. Para completar o processo, é preciso invertê-lo, é preciso que o calor seja transformado em movimento mecânico. Só então se satisfaz a dialética do processo, o processo é esgotado em seu ciclo – pelo menos num primeiro momento. Porém a história tem um ritmo próprio e, por mais dialético que acabe sendo seu curso, a dialética frequentemente precisa esperar pela história. Deve ser medido em dezenas de milhares de anos o tempo que transcorreu entre a descoberta do fogo por fricção até que Heron de Alexandria (cerca de 120 [d.C.])3 inventou uma máquina que produzia movimento de rotação por meio do vapor d’água que passava por ela. E de novo transcorreram quase 2 mil anos até que fosse fabricada a primeira máquina a vapor, a primeira instalação destinada à transformação de calor em movimento mecânico realmente aproveitável.

A máquina a vapor foi a primeira invenção realmente internacional e esse fato anuncia, mais uma vez, um enorme progresso histórico. Quem a inventou foi o francês [Denis] Papin, mas fez isso na Alemanha. O alemão Leibniz, como sempre espalhando ideias geniais a sua volta sem cogitar se o mérito delas seria atribuído a ele ou a outros – Leibniz, como sabemos agora pela correspondência de Papin (publicada por Gerland)4, deu-lhe a ideia principal: o uso de cilindros e êmbolos. Logo depois, os ingleses [Thomas] Savery e [Thomas] Newcomen inventaram máquinas parecidas; por fim, seu conterrâneo [James] Watt as colocou em princípio em seu estado atual, introduzindo um condensador separado5. O ciclo de invenções nessa área se completou: a transformação de calor em movimento mecânico fora produzida. O que veio depois foram melhoramentos isolados.

Portanto, a práxis resolveu à sua maneira a questão das relações entre movimento mecânico e calor. Em primeiro lugar, transformou o primeiro no segundo e, depois, o segundo no primeiro.”

2 Livro de Josué, 5,2-3; Êxodo 4,25.

3 Heron de Alexandria, inventor e matemático, descreve em Pneumática a eolípila, um aparelho que usa vapor para produzir movimento.

4 Gottfried Wilhelm von Leibniz e Christiaan Huygens, Briefwechsel mit Papin: nebst der Biographie Papin’s und einigen zugehörigen Briefen und Actenstücken (org. Ernst Gerland, Berlim, Akademie der Wissenschaften, 1881), p. 233-9.

5 Ver Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 451.

 

 

Vida e morte. Já é fato que nenhuma fisiologia é considerada científica se não conceber a morte como momento essencial da vida. Nota sobre Hegel (Enc[yclopädie, v.] I, p. 152-3)1: a negação da vida contida na própria vida como algo essencial, de modo que a vida é pensada constantemente em relação ao seu resultado necessário, sempre contido embrionariamente nela, a saber, a morte. A concepção dialética da vida nada mais é que isso. Porém, para quem já entendeu isso, todo falatório sobre a imortalidade da alma está descartado. Ou a morte é a dissolução do corpo orgânico do qual não sobra nada além dos componentes químicos que formaram sua substância, ou ele deixa para trás um princípio de vida, mais ou menos uma alma, que se perpetua para além de todos os organismos vivos, não só do ser humano. Aqui, portanto, uma aclaração simples por meio da dialética sobre a natureza de vida e morte, suficiente para eliminar uma superstição antiquíssima. Viver significa morrer.

1 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften, cit., §81, adendo 1.

 

 

Struggle for Life [luta pela vida]66. Até Darwin aparecer, seus atuais adeptos enfatizavam justamente a cooperação harmônica da natureza orgânica, o reino vegetal fornecendo alimento e oxigênio aos animais e estes fornecendo adubo, amoníaco e ácido carbônico às plantas. Bastou Darwin ser reconhecido para que essas mesmas pessoas passassem a ver em toda parte apenas luta. Ambas as concepções têm sua razão de ser dentro de limites estreitos, mas ambas são igualmente unilaterais e tacanhas. A interação de corpos naturais sem vida implica harmonia e colisão, a dos vivos implica cooperação consciente e inconsciente, bem como luta consciente e inconsciente. Portanto, já na natureza não é permitido propugnar exclusivamente a “luta” unilateral. Porém totalmente infantil é querer subsumir toda a riqueza multifacetada do desenvolvimento e entrelaçamento históricos sob a fraseologia mirrada e unilateral da “luta pela existência”. Ela expressa menos que nada.

Toda a teoria darwiniana da luta pela sobrevivência é simplesmente a transposição para a natureza animada da teoria hobbesiana do bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos]67 e da teoria burguesa da concorrência econômica, bem como da teoria populacional de [Thomas] Malthus68. Depois dessa façanha (cuja razão absoluta de ser, especialmente no que se refere à teoria de Malthus, ainda é muito questionável), fica muito fácil transpor essas teorias da história da natureza novamente para a história da sociedade, e constitui uma ingenuidade a toda prova afirmar que desse modo se comprovaram essas afirmações como leis naturais eternas da natureza.

Aceitemos a frase “luta pela existência” por um momento, for argument’s sake [para fins de argumentação]. O animal chega no máximo à coleta, o ser humano produz; ele produz meios de vida, no sentido mais amplo do termo, que a natureza não teria produzido sem ele. Desse modo, está inviabilizada toda transposição sem mais nem menos de leis vitais das sociedades animais para as humanas. A produção faz rapidamente com que a assim chamada struggle for existence [luta pela existência] não gire mais só em torno dos meios de subsistência, mas gire também em torno dos meios de fruição e desenvolvimento. A esse ponto – o dos meios de desenvolvimento socialmente produzidos – já não se aplicam de maneira nenhuma as categorias do reino animal. Por fim, sob o modo de produção capitalista, a produção atingiu um nível tal que a sociedade não consegue mais consumir os meios de vida, fruição e desenvolvimento produzidos, porque o acesso a esses meios é barrado artificial e violentamente à grande massa dos produtores; que, portanto, a cada dez anos uma crise restabelece o equilíbrio pela aniquilação não só dos meios de vida, fruição e desenvolvimento produzidos mas também de grande parte das próprias forças produtivas – que, portanto, a assim chamada luta pela existência assume a seguinte forma: proteger os produtos produzidos pela sociedade capitalista burguesa e as forças produtivas contra os efeitos destruidores e aniquiladores da própria ordem social capitalista, tirando a condução da produção social e da distribuição das mãos da classe capitalista, que se tornou incapaz de fazer isso, e passando-a para as mãos da massa produtora – isso é a revolução socialista.

A concepção da história como uma série de lutas de classes já tem muito mais conteúdo e é mais profunda do que a mera redução a fases pouco diferenciadas da luta pela sobrevivência.”

66 O ensejo para essa anotação foi a carta de Friedrich Engels a Piotr Lavrovitch Lavrov em 12-17 de novembro de 1875.

67 Thomas Hobbes, Elementa philosophica de cive (Amsterdã, D. Elzevirium, 1669), p. 79 [ed. bras.: Do cidadão, trad. Renato Janine Ribeiro, 3. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2002]. Sobre isso, ver Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel (trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo, Boitempo, 2005), p. 61, e Sobre a questão judaica (trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2010), p. 41-2.

68 Thomas Robert Malthus, An Essay on the Principle of Population (Londres, J. Johnson, 1798) [ed. port.: Ensaio sobre o princípio da população, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio d’Água, 2014].

 

 

“Aliás, não é preciso dizer que nem nos ocorre negar que os animais tenham capacidade de agir com planejamento e premeditação. Pelo contrário. O modo de agir conforme um plano já existe de modo latente onde quer que exista e reaja o protoplasma, a proteína viva, isto é, onde haja movimentos, por mais simples que sejam, em consequência de certos estímulos externos. Essa reação acontece onde ainda nem existe célula, muito menos uma célula nervosa. O modo como as plantas insetívoras capturam sua presa aparece igualmente, em certo sentido, como se seguissem um plano, embora isso seja completamente inconsciente. Nos animais desenvolve-se uma capacidade de ação consciente e planejada na proporção da evolução do sistema nervoso e, nos mamíferos, já atinge um nível elevado. Na caça à raposa praticada pelos ingleses, pode-se observar diariamente com que precisão a raposa sabe usar o seu profundo conhecimento do local para escapar de seus perseguidores e quanto ela está ciente das vantagens que o terreno lhe oferece para ocultar seu rastro. Nos animais domésticos mais evoluídos pela convivência com os humanos, pode-se observar cotidianamente lances de inteligência que se encontram exatamente no mesmo nível dos das crianças humanas. Pois do mesmo modo que a história da evolução do embrião humano no útero materno representa apenas uma repetição abreviada de milhões de anos de história da evolução física dos nossos ancestrais animais, começando com o verme, o desenvolvimento da criança humana é uma repetição, só que ainda mais abreviada, do desenvolvimento intelectual dos mesmos ancestrais, pelo menos dos posteriores11. Porém toda ação planejada de todos os animais não conseguiu imprimir na Terra o carimbo de sua vontade. Para isso foi preciso o ser humano.

Em suma, o animal apenas usa a natureza exterior e, por sua simples presença, Enobrecimento causa modificações nela; o ser humano a põe a serviço de seus fins por meio das modificações que introduz nela; ele a domina. E essa é a última diferença essencial entre o ser humano e os outros animais, e novamente é o trabalho que faz essa diferença.

Entretanto, não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias humanas sobre a natureza. Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo. Cada vitória até leva, num primeiro momento, às consequências com que contávamos, mas, num segundo e num terceiro momentos, tem efeitos bem diferentes, imprevistos, que com demasiada frequência anulam as primeiras consequências. As pessoas que acabaram com as florestas na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares para obter terreno cultivável nem sonhavam que estavam lançando a base para a atual desertificação dessas terras, retirando delas, junto com as florestas, os locais de acúmulo e reserva de umidade. Quando consumiram na encosta sul dos Alpes os bosques de pinheiros que eram cultivados com tanto cuidado na encosta norte, os italianos não desconfiaram de que estivessem cortando pela raiz a produção de laticínios de sua região; desconfiaram menos ainda de que, desse modo, estivessem drenando a água de suas fontes montanhosas durante a maior parte do ano, para que, na época das chuvas, pudessem derramar torrentes tanto mais caudalosas sobre a planície. Os introdutores da batata-inglesa na Europa não sabiam que, com o tubérculo farináceo, estavam disseminando também a escrofulose12. E, assim, a cada passo somos lembrados de que não dominamos de modo nenhum a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, ou seja, como alguém que se encontra fora da natureza – mas fazemos parte e estamos dentro dela com carne e sangue e cérebro e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, distinguindo-nos de todas as outras criaturas, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las corretamente13.

E, de fato, a cada dia aprendemos a entender mais corretamente as suas leis e as consequências mais imediatas e mais a longo prazo de nossas interferências no curso habitual da natureza. Principalmente após os tremendos avanços da ciência natural neste século, estamos cada vez mais em condições de aprender a conhecer e, desse modo, a controlar até mesmo as consequências naturais de mais longo prazo, pelo menos de nossas atividades produtivas mais habituais. Porém, quanto mais o fizermos, tanto mais os seres humanos voltarão não só a se sentir em unidade com a natureza, mas também a ter ciência disso, e tanto mais inviável se tornará aquela representação absurda e antinatural de um antagonismo entre espírito e matéria, homem e natureza, alma e corpo, que surgiu após a decadência da Antiguidade clássica na Europa e alcançou no cristianismo o seu maior aprimoramento.

Porém, se milênios de trabalho foram exigidos até que aprendêssemos a calcular aproximadamente os efeitos naturais de longo prazo das ações que efetuamos no sentido da produção, isso foi muito mais difícil ainda no que se refere aos efeitos sociais de longo prazo dessas ações. Mencionamos as batatas-inglesas e, na esteira delas, a disseminação da escrófula. Mas o que é a escrófula em comparação com os efeitos que teve sobre a condição de vida das massas populares de países inteiros o fato de a alimentação dos trabalhadores reduzir-se a batatas, [ou] em comparação com a fome que atingiu a Irlanda em 1847, na esteira da praga das batatas, e enterrou 1 milhão de irlandeses comedores de batatas, e quase só de batatas, e forçou 2 milhões a emigrar para além-mar? Quando aprenderam a destilar álcool, nem em sonho os árabes imaginavam que estavam criando um dos principais instrumentos com os quais seriam eliminados do mundo os indígenas da América, que naquela época ainda nem fora descoberta. E, quando [Cristóvão] Colombo descobriu essa América, ele não sabia que estava ressuscitando a escravidão, que havia muito estava superada na Europa, e lançando a base para o comércio de negros. Os homens que nos séculos XVII e XVIII trabalharam na fabricação da máquina a vapor nem desconfiavam de que estivessem construindo a ferramenta que, mais do que qualquer outra, revolucionaria as condições sociais do mundo inteiro e principalmente da Europa, quando, mediante concentração da riqueza nas mãos da minoria e a falta de posses de parte da gigantesca maioria, proporcionou primeiro à burguesia o domínio social e político, mas depois gerou uma luta de classes entre burguesia e proletariado que só poderá ser encerrada com a derrubada da burguesia e a abolição de todos os antagonismos de classe. – Porém, também nesse campo, pela experiência longa e muitas vezes dura e pela compilação e investigação do material histórico, aprendemos aos poucos a ter clareza sobre os efeitos sociais não imediatos e de longo prazo de nossa atividade produtiva e isso nos dá a possibilidade de controlar e regular também esses efeitos.”

11 Ver Ernst Haeckel, Generelle Morphologie der Organismen, v. 2, cit., p. 300: “A ontogênese é a recapitulação breve e rápida da filogênese”.

12 A relação direta entre a escrofulose (tuberculose linfática) e a batata-inglesa somente se manteve até Robert Koch descobrir o causador da tuberculose em 1882. A relação indireta consiste em que a batata-inglesa é um alimento de baixo valor nutritivo (“comida de pobre”) e ajuda a criar as condições para a manifestação da tuberculose.

13 Friedrich Engels, Anti-Dühring, cit., p. 145-6: “A liberdade não reside na tão sonhada independência em relação às leis da natureza, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade proporcionada por ele de fazer com que elas atuem, conforme um plano, em função de determinados fins”.

 

 

“A ciência social da burguesia, a economia política clássica, ocupou-se de modo preponderante somente dos efeitos sociais visados de imediato pelas ações humanas direcionadas à produção e ao intercâmbio. Isso corresponde inteiramente à organização social da qual ela é expressão teórica. Onde capitalistas individuais produzem e trocam em função do lucro imediato, só podem entrar em cogitação, em primeira linha, os resultados mais próximos e imediatos. O fabricante e o comerciante individual se contentam em vender a mercadoria fabricada ou comprada, obtendo seu lucrinho usual, e não se preocupam mais com o que acontece depois com a mercadoria e seus compradores. O mesmo vale para os efeitos naturais das mesmas ações. Os plantadores espanhóis em Cuba, que queimaram as florestas das encostas montanhosas e encontraram nas cinzas adubo suficiente para uma geração de cafezais altamente rentáveis – por que eles se importariam se depois as torrenciais chuvas tropicais carregassem encosta abaixo a terra sem proteção deixando apenas a rocha descalvada? Tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade, o atual modo de produção considera preponderantemente apenas o êxito primário e mais palpável; e depois ainda se admiram de que as consequências de longo prazo das ações direcionadas para isso sejam bem diferentes, na maioria das vezes inteiramente opostas; ; de que a harmonia entre procura e oferta tenha sua polaridade invertida, como mostra o curso de cada ciclo decenal da indústria, do qual a Alemanha experimentou um pequeno prelúdio na “quebra [da Bolsa]”14; de que a propriedade privada fundada no trabalho próprio necessariamente avance para a falta de propriedade dos trabalhadores, enquanto toda a posse vai se concentrando cada vez mais nas mãos de não trabalhadores.”

14 A primeira crise econômica mundial a atingir em cheio a Alemanha começou em maio de 1873 com uma “quebra” da Bolsa de Valores de Viena, a assim chamada “quebra dos fundadores [de firmas muitas vezes com fins especulativos]”, e durou até o final daquela década.

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