Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1667-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 600
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Sinopse: Ver Parte
I
“NÃO
SÓ O DESLUMBRAMENTO de um Colombo divisava as suas Índias e as pintava, ora
segundo os modelos edênicos provindos largamente de esquemas literários, ora
segundo os próprios termos que tinham servido aos poetas gregos e romanos para
exaltar a idade feliz, posta no começo dos tempos, quando um solo generoso, sob
constante primavera, dava de si espontaneamente os mais saborosos frutos, onde
os homens, isentos da desordenada cobiça (pois tudo tinham sem esforço e de
sobejo), não conheciam “ferros, nem aço, nem armas”, nem eram aptos para eles —
são feitas, aliás, as próprias palavras de que se servirá o genovês ao tratar
dos gentios das ilhas descobertas1 —, mas até os de mais profundo e
repousado saber se inclinavam a encarar os mundos novos sob a aparência dos
modelos antigos.
O
historiador sueco Sverder Arnoldsson, bem familiarizado com a historiografia
hispano-americana do período colonial, pôde dizer, sem exagero, em estudo
recente, que, além de Colombo, numerosos cronistas da conquista se valeram
usualmente, ao descreverem as Índias, e em particular os indígenas do Novo
Mundo, das próprias palavras de Ovídio sobre a Idade de Ouro, copiadas, citadas
e inúmeras vezes lidas durante mil e quinhentos anos2. Bem
ilustrativas desse fato são as expressões de um humanista da altura de Pedro
Mártir de Anghiera, que em várias ocasiões se mostra cauteloso ou cético no acolher
informações dos viajantes quando se refere aos primitivos moradores da Espanola
e de Cuba.
Os
trechos que Arnoldsson em parte reproduz do original das Décadas do Orbe Novo,
e que vão a seguir, de acordo com a versão de Temístocle Celotti, não só aludem
expressamente à Idade de Ouro como chegam a ser, por vezes, um decalque literal
do texto célebre das Metamorfoses. Assim é que, dos naturais da Espanola, o
humanista de Anghiera, depois de observar que tinham muitos reis, cada qual
mais poderoso do que o outro, “como se diz que o lendário Eneias encontrou o
Lácio dividido entre Latino, Mesêncio, Turno e Tarconte”, reinando sobre
minúsculos territórios, logo ajunta: “Sou de parecer, entretanto, que os nossos
ilhéus da Espanola hão de ser mais afortunados do que aqueles, desde que
aprendam a religião; pois que nus, sem pesos ou medidas, sem a mortífera
pecúnia, vivendo na idade de ouro, sem leis, sem caluniosos juízes, sem livros,
contentam-se com o estado da natureza, nada preocupados com o porvir”3.
Isso está dito no segundo livro da primeira Década, que Pedro Mártir redigiu,
com o subsequente, por instâncias do Cardeal Ascânio Sforza, durante o biênio
de 1493-1494, quando as notícias ainda frescas do descobrimento e as esperanças
a que davam lugar ainda permitiam essa visão imaculada.
Mas
no próprio livro terceiro, que só se lançará em 1500, época em que já são bem
notórias as malícias e tiranias dos canibais antilhanos, reafirma-se, com
ênfase ainda maior, esse quadro sedutor da aurea aetas (era de ouro). Tratando
ali dos habitantes de Cuba, escreve ele que “era de todos a terra, assim como o
sol e a água, que o meu e o teu, germes de todos os males, não
existiam para aquela gente [...]. Vivem na idade de ouro, não circundam as
herdades de fossos, muros ou sebes. Moram em hortas abertas, sem leis, sem
livros, sem juízes, e seguem naturalmente o bem. E têm por odioso aquele que se
compraz em praticar o mal, seja contra quem for”4. E
na Década III, redigida só em 1516, segundo testemunho do autor,
reitera-se, no livro VIII, a mesma imagem, a propósito daqueles homens
habituados a sustentar-se de frutos nascidos sem plantio: “Homines vivere
aiunt [...] sylvestribus fruetibus contentos [...] ut legitur de aurea aetate”
(“As pessoas dizem que vivem [...] contentes com frutas silvestres [...] enquanto
lemos sobre a idade de ouro”).
Os
cronistas castelhanos não duvidarão, por sua vez, em seguir tão ilustre
exemplo, servindo-se das palavras textuais do poeta de Sulmona, e não só com
relação a tribos primitivas, mas também a populações mais distanciadas das
condições dos antigos moradores das Antilhas5. Em suas Antiguidades de la
Nueva Espana, de fins do século XVI, ainda escreve, por exemplo, Francisco
Hernandez que “todo lo producia espontaneamente la tierra” equivale preciso do
“per se dabat omnia tellus” ovidiano. E em princípios do século imediato ainda
pode rastrear-se o influxo de concepções antigas, bebidas provavelmente nas
Metamorfoses, mesmo em escritos como os do índio semiculto Dom Filipe Haumán Poma
de Ayala, onde subdivide toda a História humana em quatro idades distintas, a
saber: a do ouro, a da prata, a do cobre e a do ferro, cada qual menos
“civilizada” e também menos feliz e engenhosa do que a anterior.
Essas
lembranças clássicas costumam ser postas principalmente em estreita relação com
a teoria da excelência do estado natural, que já é um traço da aurea aetas
dos antigos, ou com as opiniões eclesiásticas e, em verdade, cristãs, sobre o statu
innocentiae, compendiadas na Suma
Teológica de Santo Tomás de Aquino, que um e outras, por intermédio
talvez de Montaigne
e, em menor grau, de Las Casas, hão de frutificar, com o tempo, no postulado,
rico em consequências, da bondade natural do homem.
O
problema já tem sido objeto de muitas e sábias dissertações, e mal cabe
retomá-lo aqui, senão de passagem. Contudo é fora de dúvida que, abrangido num
painel maior, que compreenda os demais aspectos, por onde facilmente se irmana
com os motivos edênicos, de ação direta sobre a própria atividade colonial do
europeu no Novo Mundo, irá ganhar sentido mais amplo e mais rico essa exaltação
da vida primitiva.
De
uma parte, a polêmica dirigida contra a miséria do tempo presente, amparada no
louvor e nostalgia de um passado venturoso e idílico, iria aparentemente favorecê-la.
Essa polêmica sabe-se que é de todos os tempos, mas quando se torna
singularmente viva é nos tempos medievais, dando causa até a fórmulas
estereotípicas como a do ubi sunt (onde eles estão), de que a balada
mais célebre de François Villon é exemplo ilustre, mas não único.
Por
outro lado, a ideia da corrupção deste nosso mundo e da natureza, em
consequência do Pecado e da Queda, acha-se implantada em todo o sentimento e
pensamento cristãos, e deita claramente suas raízes nas Sagradas Escrituras.
Não custaria distingui-la já no Gênesis, quando alude à maldição divina lançada
sobre a própria terra, que passaria agora a dar cardos e abrolhos. E ainda,
para também recorrer ao Novo Testamento, naquele passo da Epístola
aos Romanos (8:22), onde está dito que toda a criação, e não somente a
espécie humana, “geme e padece até hoje” por culpa do primeiro homem.
Mas
esse pessimismo fundamental já não seria o ponto de partida necessário para a
glorificação de outros mundos, das terras incógnitas, porventura ainda virgens
e indenes dessa decadência geral, como se neles não tivesse ocorrido o Pecado e
nem ficassem, deste, as marcas fatídicas? A Idade Média se achava tão afeita,
com certeza, à noção de que o mundo presente é simples lugar de passagem que a
esperança de nele se encontrar algum porto seguro se tornara, ao cabo,
irrelevante. A ruindade ou deterioração da Natureza, a miséria da terra,
resgatava-se num divino plano de salvação que, por sua vez, não deixaria de
valorizar, de algum modo, os próprios males e as misérias do presente. Mesmo a
obsessão da materialidade do Paraíso Terrestre, abundante em todos aqueles bens
de que carece a natureza corrompida e mortal, é um modo de denunciar, com a
vivacidade do contraste, esse fundo senso da transitoriedade das coisas terrenas.
Ora,
sucede que o Paraíso Terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos
homens, ou, na melhor hipótese, só pode, talvez, ser alcançado à custa de
ingentes e sobre-humanos esforços. De fato, só com o declinar do mundo medieval
é que a ideia da corrupção e degenerescência da Natureza poderá afetar mais
vivamente aqueles para quem a salvação eterna se torna, cada vez mais, um ideal
longínquo e póstumo. Ao mesmo tempo irá esbater-se pouco a pouco, embora
teoricamente ainda válida, a crença de que o Céu, um Céu sempre mais distante,
cuida de interferir a todo momento nos negócios profanos.
Já
agora, porém, o mundo não há de ser um vale de lágrimas, apenas dulcificado
pela certeza da redenção ultraterrena. Não é num futuro póstumo, ou fora do
mundo, mas na própria vida de todos os dias que a condição humana há de
encontrar sua razão de ser. O Humanismo, que impregnará largamente o pensamento
e a atividade renascentistas, acha-se alicerçado, e desde o início, numa
confiança ilimitada no homem e nas suas possibilidades criadoras quase
infrenes. Em seu tratado sobre a dignidade humana, Giovanni Pico della
Mirandola parte do pressuposto de que o homem, esse “grande milagre”, segundo o
dito de Hermes Trismegisto, que domina o discurso, é o mais feliz, sem comparação,
dos entes animados, merecedor, por isso, de todas as admirações. E ainda de que
sua condição na ordem universal é invejável, não só para os brutos, mas até
para os astros e os espíritos do além-mundo6.
Mas,
para que aquelas possibilidades e capacidades sejam verdadeiramente eficazes,
fazendo-se por sua vez realidades, é mister supor um mundo e uma natureza
dóceis às ambições dos homens e solidários com elas. Natureza essa ativa e
infinitamente criadora, concebida à imagem do homem novo, bem diferente da
outra, inerte ou mortalmente ferida por uma calamidade de proporções cósmicas.
De sorte que esse exasperado otimismo, fundado na doutrina da excelência e
dignidade da condição humana, também há de admitir, necessariamente, a
excelência, a dignidade, a virilidade da própria natureza.”
1 Carta ao Tesoureiro
Rafael Sanches, in D. Martin Fernandez de NAVARRETE, Colección de los Viajes y
Descubrimientos, I, pág. 312.
2 Sverder ARNOLDSSON, Los
Momentos Históricos de América, pág. 10.
3 P. MARTIRE D’ANGHIERA. Mondo
Nuovo (De Orbe Novo), pág. 120.
4 P. MARTIRE D’ANGHIERA, Mondo
Nuovo, pág. 154
5 S. ARNOLDSSON, Los Momentos
Históricos de América, pág. 11. Reproduz o autor a passagem de uma versão castelhana das Metamorfoses
impressa em Évora, 1574, que poderia oferecer um modelo a muitos desses
escritores. Diz esta o seguinte: “En
aquel tiempo reynaua en la tierra verdad y justicia: los hõbres andauã seguros
por todas partes, y biuiã en paz, y sossiego, sin saber que era necessáio Rey,
ni alcaide, alguazil, ni escriuano, verdugo, ni pregonero: porque todos biuian
en mucha hermãdad tratando verdad y justicia. En este tiepo los hombres no
sabiã que ra torre ni castillo, lãça, ni espada, ames, ni otras cosas desta
qualidad: porq biuiã sin aver defensores. La tierra que no era rõpida ni
labrada, porq au no sabiã q era açada, teja arado: ni otro algu instrumeto de
hierro y sin fatiga humana todas las cosas necessárias a la vida y sustentaciõ
de los hõbres, las quaies cõ saluaticas sustãcias delos cerezos, mançanas,
çarças, zoras y espinas: de cuya produciõ, y de vellotas, q del enzina arbor
dedicada a Júpiter cayã, se otetauã”
(Naquela época reinava na terra verdade e justiça: os homens
andavam seguros por todos os lados, em boa paz, e sossego, sem saber que era necessário
Rei, nem alcaide, alguazil, nem escrivão, carrasco nem pregoeiro: todos viviam
em muita irmandade lidando com a verdade e a justiça. Neste tempo os homens não
sabiam o que era torre ou castelo, espada ou arnês, ou outras coisas desta
qualidade: porque viviam sem ter defensores. A terra que não foi quebrada ou
arada, porque você não sabia que estava arada, arado de telha: nem qualquer
outro algum instrumento de ferro e sem fadiga humana todas as coisas
necessárias à vida e ao sustento do lúpulo, o quais com substâncias selváticas
das cerejeiras, macieiras, sarças, espinhos e espinhos: de cuja produção, e das
pelotas, que do caramanchão enzina dedicado a Júpiter cayã, e otetauã). Na presente transcrição acham-se
por extenso algumas das muitas palavras abreviadas no texto original
reproduzido por Arnoldsson.
6 G. PICO DELLA MIRANDOLA, De Homine
Dignitate. Heptaplus. De Ente et Uno, pág. 102: “[...] cur felicissimum
proindeque dignum omni admiratione animal sit homo, et quae sit demum illa
conditio quam in universi serie sortitus sit, non bruti modo, sed astris, sed
ultramondani mentibus invidiosam”. (Sobre a
Dignidade do Homem. Heptaplus Sobre Ser e Um, p. 102: “[...] por que o homem é
o animal mais feliz e, portanto, digno de toda admiração, e qual a condição que
lhe foi atribuída na série do universo, não à maneira de um bruto, mas do
estrelas, mas invejáveis para as mentes do outro mundo”).
“A
constante reiteração da ideia de uma Natureza em declínio ou francamente
corrupta pelo contágio do Pecado Original pode sugerir, mesmo em obras de pura
imaginação, que esse pensamento seria largamente partilhado, e tanto pelos
autores como pelos leitores de tais obras. Os comentários esotéricos ao Gênese,
cuja cronologia permitira esperar-se o próximo ou iminente fim do mundo,
segundo notou um historiador, referindo-se de modo expresso à Inglaterra e a épocas
mais tardias — mas suas observações, neste particular, também se aplicam, e
talvez com maior nitidez, ao que ocorre na Itália, com o amanhecer dos tempos
modernos —, tendiam a dar uma base aritmética à teoria da decadência do homem e
da natureza.
A visão
clássica da História, que admitia essa decadência progressiva, fazendo preceder
a Idade do Ouro à da Prata, do Bronze e do Ferro, que sucessivamente e nessa
ordem se substituem uma à outra, entrosava-se sem dificuldade, como ainda
acentua o mesmo escritor, na doutrina cristã da Queda e fornecia mesmo uma
ampla estrutura para a teoria de um mundo que se deteriora cada vez mais e em
todas as suas partes. Ao lado disso, as Ideias ou Formas de Platão acham por
onde inserir-se nas doutrinas relativas à catástrofe cósmica, pois, confrontado
com as normas ideais existentes em algum lugar, deste ou daquele modo, o nosso
mundo, em constante declínio, será uma espécie de cópia esmaecida e degradada.
A concepção do mal como privatio, de acordo com Santo Agostinho, que se
funda, de fato, em Aristóteles, e ainda as noções aristotélicas sobre a
oposição entre elementos “contrários” (Metafísica, lib. 5, cap. 22), são
eminentemente adaptáveis às mesmas doutrinas. Pois o que significa a depravação
do mundo senão a privação da “virtude” que nele infundira o Senhor, em sua
glória primeira e virginal? E que hipótese se revelaria mais serviçal, em suma,
tendo-se em conta as mudanças do mundo e suas incessantes vicissitudes, do que
uma teoria que postula a instabilidade daqueles elementos?7
Não é
por acaso se justamente entre italianos, mais familiarizados, então, do que
outros povos, com especulações de tal porte, tenda a desprender-se, aqui e ali,
de um pessimismo adverso à tranquilidade de ânimo que propugnam os humanistas,
a esperança e procura de alguma solução terrena Nem falta quem, como um
Maquiavel, chegue a aceitar, sem ilusões, o mundo como é, imaginando mesmo uma
ordem civil edificada sobre esse material imprestável que são os homens, de
sorte que a velha ruindade venha a sujeitar-se a novas leis que a neutralizem,
num verdadeiro equilíbrio de egoísmos, e que do próprio mal possa brotar o bem,
com o soldar-se dos indivíduos corruptos no Estado forte. Ou quem, como
Guicciardini, refute o valor dos “exemplos” grandiosos dos romanos, em que
ainda se apraz seu compatriota, para abraçar um critério mais acomodatício, em
que a própria depravação dos homens, ao menos segundo o retrato malevolente,
mas em parte justificável, que de suas ideias nos deixou De Sanctis, parece
codificar-se e erigir-se em regra de vida8.
A
maior parte, no entanto, ainda prefere a essa cumplicidade desencantada com a
“verdade efetiva da coisa”, a que alude Maquiavel9,
isto é, com o fato reconhecido da decadência e corrupção do mundo, um ideal
mais puro e imaginário, prefere, em outras palavras, palavras tiradas do
próprio Príncipe, ao “como se vive” o “como se deveria viver”, ao ser um
dever ser. E é bem compreensível, nestas circunstâncias, se numerosos
marinheiros e exploradores que se movem, quase por necessidade de ofício,
conforme os juízos dos astrólogos, tendam a fazer baixar o seu “dever ser”, os
seus paraísos, daqueles mundos irreais para a realidade ainda nublada que lhes
oferecem as terras incógnitas e remotas.
O
espetáculo, ou a simples notícia de algum continente mal sabido e que, tal como
a cera, se achasse apto a receber qualquer impressão e assumir qualquer forma,
suporta assim, entre muitos deles, as idealizações mais inflamadas.
Idealizações estas de que seria como um “negativo” fotográfico este nosso mundo
entorpecido e incolor, e em que parecia ganhar atualidade histórica a
possibilidade de remissão. Se isso é especialmente verdadeiro no caso de um
Colombo, que por sinal julgava próximo o fim do mundo, precisando mesmo que se
daria no ano de 1656, nem antes nem depois10, não
o deixa de ser nos de outros navegantes que o antecederam ou sucederam, como
Cadamosto, Vespúcio, os dois Gabotos, até Verrazzano.”
7
Ronald W. HEPBURN, “George Hakewill: The Virility of Nature”, Journal of the
History of Ideas, XVI (abril de 1955), pág. 136.
8
Francesco DE SANCTIS, Storia della Letteratura Italiana, II, pág. 109. O
famoso e discutido retrato das ideias de Guicciardini por De Sanctis
encontra-se em “L’uomo del Guicciardini”, De Sanctis, Scritti Critici,
págs. 254-274. Para uma
tentativa de revisão desse retrato, que se baseia principalmente nos Ricordi
do florentino, cf. Vinorio DE CAFRARIS, Francesco Guicciardini: Dalla Potitica
alia Storia, Bari, 1850.
9
Niccolò MACHIAVELLI, Il Príncipe, XV (Tutte le Opere, I, pág. 48):
“[...] sendo Fintento mio scrivere cosa utile a chi la intende, mi è parso più
conveniente andare drieto alia verità effetuale della cosa, che alia
imaginazione di essa. E molti si sono imaginate republiche e principati che non
si sono mai visti né conosciuti essere in vero. Perchè egli è tanto discosto da
come se vive a come si doverrebbe vivere, che colui che lascia quello che si fa
per quello che si doverrebbe fare, impara puitosto la ruina che la
perseverazione sua: perchè uno uomo che voglia fare in tute le parte
professione di buono, conviene ruini infra tanti che non sono buoni. Onde
necessário a un príncipe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non
buono, e usarlo o non l'usare secondo la necessita.” (“Mas, sendo minha
intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais
conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação
destes, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou
conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de
como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que se faz por
aquilo que deveria fazer, aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de
sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer
profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos não são bons. Donde é
necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder e usar ou não
da bondade, segundo a necessidade.”)
10 No Libro
de las Profecias, organizado pelo descobridor, lê-se, de fato, em apostila
de 1501, conforme a reprodução de Navarrete, o seguinte: “De la creación del
mundo ó de Adan, fasta el avenimiento de nuestro Senor Jesucrito son cinco mil
é trecientos y cuarenta é três anos, y trecientos y diez é ocho dias, por la
cuenta del Rey Don Alonso, la cual se tiene por la mas cierta, p. de a.
e.a.e.e.t. et h. u sobre el verbo X, con los cuales poniendo mil y quingentos y
uno imperfeito, son por todos seis mil ochocientos curante é cinco imperfectos.
Segundo esta cuenta no falta sao ciento é cincuenta y cinco anos para
complimiento de siete mil, en los quaies digo arriba por las autoridades dichas
que habrá de fenecer el mundo.” (“Desde a criação
do mundo ou de Adão, até o advento de nosso Senhor Jesus Cristo, há cinco mil
trezentos e quarenta e três anos e trezentos e dezoito dias, segundo o relato
do rei Don Alonso, que é considerado o mais verdadeiro, p. de a. e.a.e.e.t. et
h. sobre o Verbo, com o qual colocando mil quinhentos e um imperfeitos, há para
todos seis mil e oitocentos perfeitos e cinco imperfeitos. Segundo esta conta
não faltam cento e cinquenta e cinco anos para completar sete mil, nos quais
afirmo acima pelas referidas autoridades que o mundo vai acabar.”) D.M.F. de NAVARRETE, Colleccón de
los Viajes y Descubrimientos, II, pág. 308. Há engano parcial nas iniciais contidas no
primeiro parágrafo. Deveria estar p. de a.e.a.c.c.t. et h.n. correspondentes a
Pierre D'Ailly, [Tructatis ehtcidarius astronomiee concordie cum theologia et
[cum] histórica narratione. O “Rey Don Alonso” é Afonso X de Castela, o das Tablas
alfonsinas].
“Seja
como for, o quadro que a Nóbrega inspirou o primeiro contato com o Novo Mundo
parece corresponder à sedução que exerciam, em toda parte, ainda em sua época,
os velhos motivos edênicos. Mas é mister notar que também corresponde a uma
tendência geral, entre seus conterrâneos, ao menos no século XVI, e no Brasil,
para reduzi-los constantemente às dimensões do verossímil. Em outras palavras,
não se pode afirmar que participassem então os portugueses, menos do que outros
povos, daquela sedução universal. O provável, no entanto, é que os motivos
edênicos facilmente se refrangiam entre eles, privando-se da primeira
intensidade para chegarem ao que se pode chamar sua atenuação plausível.
Não é talvez sem interesse o exame dessa circunstância e de tudo quanto dela
resultou para o desenvolvimento da exploração e colonização do Brasil.”
“QUE A SUPOSTA longevidade dos índios fosse
efeito dos bons céus, bons ares, boas águas de que desfrutavam eles, é o que a
todos resulta patente: nisto, em verdade, não se parecem distinguir das
opiniões mais correntes as dos cronistas lusitanos. Sem aquelas qualidades,
como explicar, segundo as ideias do tempo, o fato de não grassarem aqui, antes
da conquista, várias enfermidades já notórias ao europeu, as únicas, por isso
mesmo, de que tinham estes uma experiência ancestral? Era coisa por demais
sabida que a ausência de tais enfermidades revelava não se achar o ar corrupto
nestes lugares pela ação dos miasmas gerados da umidade e podridão. E ainda que
esse ar corrupto se relacionava, de acordo com os juízos dos astrólogos, a
ajuntamentos de certos corpos celestiais responsáveis pelas influências
malignas.
Se bem que a Astrologia, na parte
em que presume terem aqueles corpos algum poder sobre as coisas deste mundo, já
houvesse encontrado sérias contraditas, e entre estas, sem falar no debate
aberto por Giovanni Pico della Mirandola, a do frade português Antônio de Beja,
que, em opúsculo impresso em 1527, defende, dentro da tradição escolástica, a
incompatibilidade da influição astral com o livre-arbítrio e a concepção cristã
da Providência Divina1, a verdade é que ela resistiu longamente à pressão dos métodos
experimentais e racionais. Mesmo entre aqueles que a combatiam em nome de tais
métodos, já se sabe que muitos se deixaram enfeitiçar pelo exercício das estrelas.”
1 Desse opúsculo
existe edição recente publicada pelo Senhor Joaquim de Carvalho: Frei
Antônio de Beja, Contra os Juízos dos Astrólogos, Coimbra, 1943.
“Ainda
mais: desde 1537 a própria Santa Sé havia proibido, sob pena de excomunhão, que
se tolhesse a liberdade dos índios, inclusive a liberdade de se manterem fora
do grêmio da Igreja. E nada prova melhor o pleno assentimento de Sua Santidade
o Papa Paulo III à campanha dos que, em Casta e na Índias de Castela, se batiam
por essa liberdade, do que seu ato nomeando em 1543 Frei Bartolomeu de Las
Casas Bispo de Chiapa.
Pode
imaginar-se que aquelas ordens e cominações fossem rigorosamente respeitadas?
Não havia de faltar quem comentasse ironicamente o zelo que assim demonstrava o
Santo Padre da causa dos naturais de terras tão remotas e bárbaras, quando lhe
faltavam forças, ah na Itália, na própria Roma, para impedir que prosseguisse
sob o seu Pontificado, e continuaria ainda depois dele, o vergonhoso tráfico e
cativeiro de infiéis33.
Sabe-se, por outro lado, que nas possessões ultramarinas sempre valera o
“obedezea-se, pero no se cumpla”, e isso era tão verdadeiro das colônias
lusitanas quanto o era, notoriamente, das castelhanas.
Os
portugueses, e em particular a Coroa portuguesa, tinham outras razões mais
poderosas para que não os perturbassem muito os tais decretos. Eles não feriam,
de fato, os interesses da mesma Coroa, associados de longa data ao tráfico de
negros africanos. O próprio Vitória não tivera dúvidas em poupar esses
interesses quando, em carta a Frei Bernardino de Vique, pretendera que ao rei
de Portugal assistiam razões para permitir semelhante negócio.
Assim,
por exemplo, no caso em que se originasse de guerras entre as tribos, o
cativeiro era perfeitamente lícito, e nem o traficante tinha a obrigação de
inquirir se se tratara de guerra justa. O que não aprovava decididamente era a
captura de negros com enganos, mas também não acreditava fosse, esse, um uso
generalizado, porque, a sê-lo, diz, estaria comprometida a consciência do
soberano português34.
Las
Casas, é certo, tendo aconselhado primeiramente a introdução de negros nas
Índias, caiu depois em si, vendo a injustiça com que os tomavam os portugueses.
Porque, diz, “la misma
razon es dellos que de los indios”35. Contudo, a Historia de las
Índias, onde figura essa retratação, apesar de ter circulado logo em
manuscritos, só encontraria seu primeiro impressor três séculos após a morte de
Las Casas. De qualquer modo, sua denúncia do tráfico e escravidão dos negros
não encontrou a larga ressonância que tivera a campanha pela liberdade dos
índios.”
33
Ludwig von PASTOR, Geschichte der Püpste, V, pág. 721.
34 Cf.
Sílvio ZAVALA, Filosofia de la Conquista, pág. 104.
35 Fray
Bartolomé de LAS CASAS, Historia de las Índias, III, pág. 177. O afã
abolicionista, segundo nota Zavala, manifesta-se pela mesma época entre
numerosos tratadistas espanhóis, e não só os da Ordem dos Predicadores. É
significativo o que o Arcebispo do México, Frei Alonso de Montúfar, este aliãs
dominicano, como Vitória e Las Casas, escreveu ao Rei de Castela a 30 de junho
de 1560: “no sabemos”, dizia a carta, “que causa haya para que los negros sean
cautivos mas que los índios, pues ellos, segun dicen, de buena voluntad reciben
d evangelio y no hacen guerra a los cristianos”, S. ZAVALA, Filosofia de la
Conquista, pág. 105 e segs.
“É POSSÍVEL,
desta excursão já demorada à volta dos mitos geográficos difundidos na era dos
grandes descobrimentos marítimos, tirarem-se conclusões válidas para um relance
sobre a formação brasileira, especialmente durante o período colonial?
Tentou-se mostrar, ao longo destas páginas, como os descobridores, povoadores,
aventureiros, o que muitas vezes vêm buscar, e não raro acabam encontrando nas
ilhas e terra firme do Mar Oceano, é uma espécie de cenário ideal, feito de
suas experiências, mitologias ou nostalgias ancestrais.
Os
portugueses quinhentistas não formam certamente exceção a essa regra. Pode-se,
porém, dizer, tendo como base sobretudo os depoimentos de seus cronistas e
historiadores, quase os nossos únicos guias disponíveis para esta viagem, que é
comparativamente reduzida, entre eles, no contato dos novos mundos, a sedução
de tais motivos. Não os inquieta vivamente, ao menos no Brasil, a insopitável
esperança de impossíveis, que tão frequentemente acompanha, entre outros povos,
as empresas de descobrimento e conquista para além das raias do mundo
conhecido. São razões menos especulativas, em geral, ou fantásticas, do que
propriamente pragmáticas, o que incessantemente inspira aqueles cronistas,
ainda quando, em face do espetáculo novo, chegam a diluir-se em êxtases
enamorados.”
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