Editora: Rocco
ISBN: 978-85-325-2989-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
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Sinopse: Maria e
Arthur se encontram em Paris no início de 1968. Ela estuda filosofia na
Sorbonne, ele é poeta e artista de rua. Juntos vivem os excessos daqueles anos
de revoluções e utopias e fogem da ditadura no Brasil, divididos entre o
deslumbramento pelo que o Velho Mundo lhes oferece e a permanente sensação de
que são intrusos na grande festa que é Paris. Maria passa o dia lendo Descartes
e tenta seguir à risca as orientações do professor de filosofia sobre métodos
de simetria e perfeição na condução de sua vida. Arthur é um libertário,
idealista e sonhador, inimigo da rotina e artista nato. A realidade do Brasil,
imerso numa ditadura violenta, é a sombra que permeia a relação dos dois, e
também o apartamento ao lado, onde outro brasileiro, conhecido como “Marechal”,
reúne estrangeiros que passam pelo mesmo problema em seus países e articulam um
modo de resistir ao poder brutal das armas. Duas vezes ganhadora do prêmio
Jabuti, Luciana Hidalgo narra em seu segundo romance uma história de amor,
sonhos e desilusões, tendo como pano de fundo um período conturbado da
história, tanto na Europa quanto no Brasil, com uma prosa poética e potente.
Neste livro, a autora reforça outra característica sua, bem presente nas obras
anteriores: a identificação com aqueles que vivem à margem, os que se opõem ao
sistema e não se permitem levar a vida certinha que lhes oferecem, os que lutam
contra injustiças e pagam com a própria vida, os chamados loucos, com suas
realidades essencialmente próprias, personagens sempre capazes de proporcionar
uma rica literatura.
“A construção que abriga a Sorbonne é bonita e marrom. Os prédios em
Paris são todos de um bege amarronzado, quase preto, como se deprimidos pela
poeira do progresso. Rodeada por tons pastéis, Maria conclui: a mudança recente
de cidades, Rio-Paris, tem sido, antes de tudo, uma mudança de cor.
Em volta, pessoas passam em trajes escuros,
introspectivas. Talvez o inverno exija mesmo certo luto, pela ausência do
sorriso fácil dos trópicos, pela morte do calor, que é um pouco a morte do
calor humano, o baixo índice de humanidade.”
“Arthur aproveita para contar vantagens, peripécias, andanças pelo mundo.
Ele se pretende um herói expatriado a rodar por continentes, girar nos
calcanhares, atravessar oceanos. Mas aí, ao lado de Maria, parece pequeno
diante de tantas histórias, geografias e solidões que insinua. Tudo bem, pensa
ela, a verdade agora não tem a menor importância.”
“Maria ao volante, ele lê:
– O
deserto é aquele em que se fala para o vazio, mas não se cala, aquele aonde se
retira o santo, o perseguido pelos demônios, o doente da humanidade, o sôfrego
de Deus. O deserto é onde não corre o tempo, e é, no entanto, o domínio do
Tempo. Ele abole a história e a bússola, o cronômetro aqui não terá muito o que
marcar. No deserto, homens em caravanas desconhecem o norte e o sul, têm a
sabedoria de nunca chegar a parte alguma. O vento apaga e enterra diariamente
pegadas e traços. Um punhado de areia que se joga para o alto modifica o
deserto.”
“Para ele, pouco importa Maria em sua pré-história, raízes ou heranças.
Importa o destino que compõem os dois a cada frase que silenciam, na memória
que recalcam. Fatos familiares se perdem no caminho de um até o outro. Eles se
inventam aí onde faltam.
Ela
aceita o método de Arthur, convincente e conveniente. Falam pouco do passado,
enterrado num cemitério de famílias. Basta criar um futuro dissociado da
genealogia, os dois concordam. Jogam uma pá de cal no pretérito, desprezam
vícios de gerações. Ingenuamente se acreditam maiores do que tudo aquilo que os
formou.
Ele
faz isso sozinho há mais tempo, petulante, chutando todo e qualquer risco. E
ela o acompanha, avessa aos abusos do passado. Afinal, ninguém escolhe a
infância e é quase uma obrigação apagá-la, inventar outra no lugar. Pais
manipulam filhos como marionetes no seu teatro doméstico, restando aceitar os
papéis que lhes cabem. Até que a adolescência chega, estraga o espetáculo, e
vai cada um para o seu lado. É o que ela pensa, mas não fala. Odeia se mostrar
pessimista (mesmo quando é).”
“(...)
sem notar o quanto Arthur aos poucos se torna o seu método, nada cartesiano,
pouco confiável, o antimétodo. Divaga cada vez menos sobre si mesma, mais sobre
ele. Um defeito disso a que chamam paixão?, ela se questiona, jovem demais para
compreender que se trata afinal da maior qualidade disso a que chamam paixão.
Distrair-se do eu com um outro, quem não quer.”
“Para
apagar a impressão do sonho ruim, ela acende a luz e um cigarro que pouco fuma.
Enquanto a brasa cresce, pensa em Arthur: por onde anda, a que velocidade. Está
a cada dia mais impressionada com ele, isto é, com eles.
Já
percebeu, são muitos os tipos que o habitam e, somados, o totalizam. Tem o que
escreve e o que flana, o que passa o dia entre castelos de areia e o que
fabrica teorias sólidas sobre tudo, o que acorda ao seu lado e não volta, o que
dorme com ela e na madrugada se manda.
É até
divertido assistir a eles, aos daimons que o circundam, soprando maus
conselhos em seus ouvidos. O que um cala o outro diz, o que um guarda o outro
revela. Mas a pior disputa é, sem dúvida, entre o que persegue um método e o
que endoidece.
Verdade
seja dita: cada louco monta a sua própria lógica, é o cristo da sua religião, o
napoleão da sua guerra íntima. Maria, perdida entre tanta imaginação e tanto
ímpeto, às vezes se pergunta se ele não seria assim meio doido. Mas em volta
outros vivem também dessa forma, intensos, à margem dos sistemas, e tem até
quem os rotule: hippies. Arthur odeia ser chamado assim, por isso mantém o
cabelo reto, que o distinga.”
“–
Milico é milico em qualquer lugar do mundo: inimigos em tempos de guerra,
cúmplices e conspiradores em tempos de paz. Eu é que não me iludo.”
“(...) Concordam os dois, todo estrangeiro se corrompe
um pouco todos os dias. Quando, por exemplo, pede une baguette s’il vous
plaît na padaria, forçando os músculos do rosto para acertar as vogais
internas da língua francesa e agradar o padeiro (que pouco liga). Quando adota
códigos sociais que não os seus contra a vontade. Quando fala pela primeira vez
uma gíria estrangeira, fingindo uma intimidade com a linguagem que não tem,
nunca terá, soando artificial e colonizado.
Maria
passou por tudo isso. Como todo recém-chegado, logo viu que quanto mais rápido
se adaptasse ao novo país, mais integrada estaria, o que de imediato
significaria: menos solidão. E tome mimetismo, mudança gradual das roupas, do
estilo das roupas, das cores das roupas, até se misturar sem ser notada e só
então ser bem-vinda, até mesmo querida, por gentilhommes como Luc. Nesse
longo processo, forasteiros como ela podem não perder totalmente a identidade,
mas se corrompem.”
“Ah, a juventude. É toda feita de instantes assim: certezas absolutas,
conclusões inéditas, grandes epifanias em minutos e que, minutos depois, valem
nada. Importa nelas apenas a grande descoberta, ou melhor, a doce ilusão da
grande descoberta.”
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