Editora: Ruptura
ISBN: 978-65-981805-2-2
978-85-60281-49-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 304
Sinopse: “A batalha
pela memória – reflexões sobre o socialismo e a revolução no século XX”, do
historiador, militante e comunicador Jones Manoel é uma coletânea de artigos, em
sua maioria inéditos, que tratam de aspectos centrais do retrato distorcido fornecido
pelos “vencedores” do século passado: o papel histórico de Stálin, o revisionismo
histórico acerca do pacto de não-agressão germano-soviético, a leitura de Rosa Luxemburgo
como uma “socialista democrática”, a importância de Mao Zedong e da Revolução Chinesa
na história do socialismo, o papel do leninismo nas lutas anticoloniais, especialmente
em África, o papel democrático dos comunistas ao longo do século passado no Brasil
e em todo mundo e a contribuição do marxismo na construção dos movimentos antirracistas
nos Estados Unidos são todos temas tratados pelo autor, que insiste que “não precisamos
de mais autocrítica. Precisamos de uma outra autocrítica. Uma autocrítica
que combata a hegemonia liberal forjada pelos vencedores da ‘Guerra Fria’ e coloque
a análise do nosso legado comunista em termos marxistas. Para termos chance de futuro,
é fundamental disputar o nosso passado.”
“Tive contato com uma literatura marxista que tinha como premissa a
ideia de que todas as tentativas de revolução do século passado haviam dado
errado, ou seja, foram um festival de repressão, brutalidade, violência, fome,
autoritarismo, burocratismo e privilégios para uma elite governante – e coisas
do tipo. Tudo que fizemos no século XX foi uma tragédia resumível em poucas
palavras: Stalin, stalinismo, gulag, totalitarismo e mais totalitarismo,
revolução traída etc., porém vamos tentar tudo de novo e, dessa vez – com a
graça de Deus, a “volta a Marx” ou colocando “democracia” e “liberdade” depois
do nome socialismo –, vai dar tudo certo.
Basicamente, se você é comunista, precisa ter vergonha de toda história
do movimento comunista. Repudiar todo seu passado. Repudiar todas e cada uma
das experiências de transição socialista. Só proferir palavras negativas sobre
Lenin, Stálin, Mao Zedong, Fidel Castro, Ho Chi Minh, Kim Il-Sung, Marechal Tito
e fingir que nunca existiram líderes comunistas na África, América Central e
outras regiões. É um tipo de “marxismo” que só gosta de quem morreu em
martírio, sem tocar no poder político ou o exercendo por pouco tempo, como
Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Che Guevara e José Carlos Mariátegui – uma espécie
de versão laica do cristianismo, adornado com aparência de marxismo, em que só
é bonito e belo a imagem do comunista “pregado na cruz” e sangrando.”
“Imagine uma revolução socialista no Brasil. Que hoje, enquanto escrevo
essa apresentação, o povo trabalhador comece um movimento para tomar o poder.
Os latifundiários, mineradores e madeireiros do Brasil iriam assistir calados?
Claro que não. E eles estão armados até os dentes. Milícias, facções que são
empresas capitalistas, grupos privados de segurança e as forças repressivas do
Estado burguês também ficariam parados, aceitando a vontade da maioria da
população? Também não. Teríamos, concretamente, um problema objetivo para
solucionar: como derrotar uma contrarrevolução armada e violenta?
A esse problema político-militar se somaria outro, que foi uma
constante no século XX: como reprimir a contrarrevolução sem ferir de morte a
democracia socialista que tenta nascer? Desde sempre, guerras e conflitos
militares não estimulam democracia e liberdade, antes o contrário.
Aliado a isso, a contrarrevolução, necessariamente, teria uma dimensão
internacional. Como vamos combater a força militar e de espionagem dos Estados
Unidos – e outros países imperialistas – presentes, inclusive, em nossas
fronteiras? Como fazer florescer a liberdade de expressão e a consciência
crítica, indispensáveis na construção socialista, em um contexto de cerco e
guerra permanentes do imperialismo, como vive Cuba?
Certamente, também sofreríamos com bloqueios e sanções econômicas.
Dependemos de outros países para garantir insumos agrícolas, trigo, remédios,
máquinas e equipamentos, combustível, eletroeletrônicos e afins. Como vamos
garantir uma política centralizada, planejada e de curto prazo – baseada em
intensa mobilização popular – para aumentar a produtividade, realizar
substituição de importações e adequar o aparato produtivo para reduzir os
efeitos das sanções e, ao mesmo tempo, estimular a autogestão operária e a
democracia socialista nos locais de produção?
Como vamos saber diferenciar, no calor das batalhas de vida ou morte, o
que são críticas e insatisfações corretas ou insuflamentos artificiais de
descontentamento movidos pelo aparato de propaganda do imperialismo e da classe
dominante interna? Como vamos tratar movimentos separatistas, que cresceriam
muito a partir do financiamento dos Estados Unidos (lembrando que, antes do
golpe de 1964, os EUA financiavam movimentos separatistas no Brasil)?
Como vamos garantir a segurança de cada represa, estação de tratamento
de água, metrô, aeroporto, estação de distribuição elétrica, fazenda, porto,
fábrica e afins, sujeitos à sabotagem de órgãos do imperialismo como a CIA? Se
20% das polícias e do Exército aderirem à contrarrevolução, teremos milhares de
homens e mulheres armados, com treinamento militar e bom conhecimento do
território. O que fazer para enfrentar isso?
Falar que a democracia é “um valor universal”, soltar palavras de
condenação abstrata contra a violência, criticar o “modelo” de planejamento
soviético ou maldizer o “culto à personalidade” em torno de Mao Zedong e Stálin
não resolve nenhuma dessas questões. Nunca é demais lembrar que frente a um
governo reformista e bem limitado, como o de João Goulart, empresários e
latifundiários já estavam prontos para uma guerra civil, e os Estados Unidos
posicionaram uma esquadra na costa brasileira, prontos para uma invasão
terrestre.
Essas são algumas das questões concretas que devem servir de norte para
pensar a transição socialista no século passado e hoje. O socialismo e a guerra
se entrelaçam. Não por escolha dos marxistas, mas da burguesia dos países onde
aconteceu a revolução e do imperialismo, que nunca aceitou pacificamente a
criação de um poder operário-popular. Exemplo paradigmático disso é o Chile de
Salvador Allende. De nada adiantou o líder socialista defender, com unhas e
dentes, uma “revolução” pacífica seguindo a moldura constitucional chilena. No
final, o Palácio de La Moneda foi bombardeado do mesmo jeito – só que com o
povo trabalhador desarmado e sem capacidade técnico-militar de resistir.”
“O trotskismo, assim como outras tendências teórico-políticas como o
anarquismo e a socialdemocracia, vê-se diante de um aparente paradoxo. Com a
crise do movimento comunista, muitos esperavam ser a sua vez de ter a direção –
ou exercê-la de forma absoluta, como a socialdemocracia – no movimento operário
e popular. Tudo podia acontecer, mas, no fim, nada aconteceu em relação a essas
esperanças. A classe trabalhadora amarga uma época contrarrevolucionária em que
é possível registrar em vários países 30 anos seguidos de perdas salariais,
fechamento dos espaços democráticos, ampliação do aparato penal-burguês,
crescimento do neofascismo etc.
Onde ocorreu uma relativa reorganização política, teórica e
sindical-partidária da classe trabalhadora – a exemplo de Venezuela, Bolívia,
Equador e até certo ponto Grécia, Espanha e Estados Unidos –, o trotskismo está
bem longe de ser a força hegemônica. Muitos seguidores do fundador do Exército Vermelho
tentaram se colar a experiências do dito “socialismo democrático”, algo
profundamente estranho ao pensamento de Trótski, para buscar maior influência
de massas. As experiências até agora com o Syriza (Grécia), Podemos (Espanha) e
os Socialistas Democráticos da América (Estados Unidos – grupo interno do
Partido Democrata), para ficar nos exemplos mais significativos, não são
animadoras, para dizer o mínimo.
Ficou claro algo que muitos pensadores já tinham observado: o
trotskismo se configurou como uma tradição política em negativo, existia por
contraste e crítica ao movimento comunista hegemonizado pelo marxismo soviético.
Ser uma alternativa interna de crítica e disputa aos rumos da URSS e posteriormente
do chamado “campo socialista” era o principal ativo dos continuadores de
Trótski. É notório, contudo, que outras alternativas internas, como o maoísmo e
o foquismo-castrismo, apresentaram-se frente ao marxismo soviético e tiveram
uma audiência de massas bem maior que os partidários da teoria da revolução
permanente. Todavia, o trotskismo tinha uma vantagem: não exercia poder,
consequentemente não estava sujeito às contradições de governar, por isso
poderia apresentar sempre uma crítica de princípios que, diante do existente,
era sedutora.
Essa dinâmica de “parasitar” frente ao “campo socialista” e ao
movimento comunista, ganhando notoriedade com a perda de prestígio desses
atores políticos, foi captada anos atrás por Louis Althusser:
O que explica,
diga-se de passagem, não poucos fenômenos de aparência paradoxal como, por
exemplo, 50 depois da Revolução de Outubro e 20 anos depois da Revolução
Chinesa, o fortalecimento de Organizações que subsistem há 40 anos sem terem
obtido nenhuma vitória histórica (pois, ao contrário dos ‘esquerdismos’ atuais,
elas são organizações e têm uma teoria): as organizações trotskistas (Althusser,
Posições I, 1978, p. 56).
Esse efeito de prestígio por contraste e tradição em nega tivo se
manteve nos anos seguintes à contrarrevolução no leste europeu. Poucos
marxistas podiam dizer que nunca tiveram simpatias pela URSS, China Popular,
Iugoslávia, algum país do Leste Europeu, Coreia Popular, Albânia ou Cuba.
Quando reverbera o discurso liberal de que “Mao Zedong matou 70 milhões”,
por exemplo, ao contrário de muitos marxistas que tiveram seus anos de amores
com o maoísmo, os trotskistas podiam dizer: “É verdade! E nós desde sempre
denunciamos esse ‘autoritarismo’”.
Sem dúvida, esse era um ativo importante nos anos 90 e primeira década
dos anos 2000.
Essa possibilidade de viver em negativo, porém, está acabando e, em
alguns países, está totalmente terminada. Os motivos são bem simples. Onde a
luta de classes conhece um altíssimo grau de acirramento, como a Venezuela, a
crítica ao “stalinismo” ou o repúdio ao “socialismo autoritário” do século
passado não é a questão central. Para completar, Cuba, com todas as suas
dificuldades, mantém-se como um ponto de resistência socialista fundamental na
América Latina, e, frente às nossas misérias, as “três coisas que funcionam” em
Cuba – saúde, educação e segurança (como disse um liberal) – parecem muito
luminosas.
O novo papel geopolítico da China e as mudanças na sua política
interna, notadamente desde 2013 com a liderança de Xi Jinping, além do “redescobrimento”
do Vietnã, países governados por partidos que reivindicam o marxismo-leninismo,
reacendem em alguns círculos intelectuais e políticos um novo “olhar” sobre a
história e o legado do movimento comunista. Não deixa de ser curioso que o
citado historiador Perry Anderson, tão empolgado com o trotskismo e crítico ao
maoísmo em 1976, hoje tenha uma visão muito positiva da experiência chinesa em
curso16.”
16. Em termos taxonômicos, a RPC [China] do século XXI é um novum
histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério
convencional, apresenta-se por ora uma economia predominantemente capitalista,
com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é
incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em
seu gênero. Politicamente, os efeitos dessa contradição deixam marcas em toda a
organização social, na qual eles se fundem ou se mesclam. Nunca tantos saíram
tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca as indústrias modernas e
infraestrutura moderníssima foram implantadas em escala tão colossal e em tão
pouco tempo; nunca também uma classe média florescente emergiu tão rapidamente
junto com elas. Nunca a hierarquia das potências foi alterada tão dramaticamente,
alimentando o orgulho popular de modo tão espontâneo (ANDERSON, Considerações
sobre o marxismo ocidental, 2018, p. 68). Um complemento para ficar claro:
Anderson não é apenas elogios a China, mas os elogios de hoje são mais
significativos do que as críticas, considerando sua trajetória como marxista.
“Mesmo com todos os problemas que existiam nas experiências passadas,
os trabalhadores tinham a certeza de que teriam um emprego, casa, educação,
esporte, cultura e saúde, tanto para eles quanto para suas famílias, e de que
na velhice poderiam contar com uma aposentadoria. A sensação de ter certeza de
que seu filho teria, no mínimo, acesso às mesmas, ou a melhores, condições que
você – sem o risco de cair na miséria – é poderosa frente à precariedade, à
pobreza, à miséria e à instabilidade econômica do neoliberalismo. Longe de
combinar a segurança econômica do socialismo com o padrão de consumo do
capitalismo europeu e estadunidense, o que o povo trabalhador recebeu com a
contrarrevolução de 1989-91 foi desemprego estrutural, intensificação sempre
constante dos ritmos de trabalho, velhice desamparada, ausência de saúde,
privatização da cultura, educação e oportunidades.
Essa síntese sobre a União Soviética, em contraste com o que existe
hoje, é ilustrativa:
[...] O sociólogo
americano Albert Szymanski passou em revista uma série de estudos ocidentais
sobre a distribuição de rendimentos e o nível de vida soviético. Apurou que as
pessoas mais bem pagas da União Soviética eram artistas proeminentes,
escritores, professores universitários, administradores, cientistas, que
auferiam quantias entre 1200 e os 1500 rublos; os diretores empresariais entre
190 a 400 rublos mensais; os trabalhadores cerca de 150 rublos mensais.
Consequentemente, os rendimentos mais elevados correspondiam a apenas 10 vezes
o salário do trabalhador médio; ao passo que nos Estados Unidos as mais altas
chefias empresariais recebiam 115 vezes o salário de um trabalhador. Os
privilégios associados a altos cargos do Estado, como lojas especiais e
automóveis oficiais, permaneciam baixos e limitados e não contrariavam uma tendência
contínua de quarenta anos no sentido de um maior igualitarismo. [...] Szymanski
concluiu: ‘embora a estrutura social soviética não possa corresponder ao ideal
comunista ou socialista, é ao mesmo tempo qualitativamente diferente e mais
igualitária que a dos países capitalistas ocidentais. O socialismo representou
uma diferença radical em favor da classe trabalhadora’ (Keeran; Kenny, O
socialismo traído, 2008, p. 13-14, grifos nossos).
O jovem precarizado, terceirizado, desempregado, sem dinheiro para
pagar a faculdade e sem muita perspectiva de futuro, escuta seu pai/mãe ou
avô/avó falando de outra época em que, dentre outras coisas, o emprego era
garantido e as oportunidades educacionais eram gratuitas ou de baixíssimo
custo. Alguns podem falar que isso é uma distorção política da memória ditada
pelas condições conjunturais, gritando com escândalo o quão absurdo é
relativizar a Stasi, os expurgos da era stalinista ou os tanques soviéticos
entrando em Praga e na Hungria. O problema, nesse caso, é que toda memória é
uma construção política (inclusive a memória de negação total do socialismo dos
anos de 1990) e o repúdio moral não vai mudar o sentimento de massa em vários
setores dos trabalhadores e da juventude. Gostando-se ou não, o fenômeno existe
– e precisa ser mais bem estudado e compreendido.”
“É nessa situação sociopolítica que a obra losurdiana ganha força e
impacto social. Mas por que Losurdo, e não outro autor, causa todo esse
barulho? É bem simples. O filósofo italiano, como falamos, busca pensar uma contra-história
da modernidade destacando a questão colonial como central.
Muitos setores do marxismo, profundamente eurocêntricos, não podem aceitar essa contra-história. Como falamos anteriormente, ao citar Vijay Prashad, o trotskismo passou ao largo de qualquer protagonismo nas guerras de libertação nacional e revoluções socialistas na periferia. Os liberais também não podem permitir esse debate sobre a questão colonial. Com a questão colonial – e, acrescento, racial – em jogo, fica impossível, por exemplo, sustentar o mito do totalitarismo e ocultar a ligação de continuidade entre liberalismo e nazifascismo. É sempre importante lembrar uma clássica reflexão de Aimé Césaire sobre Ocidente e nazifascismo (que Losurdo dá continuidade e adensa):
Sim, valeria a pena
estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de um Hitler e do hitlerismo e
revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX
que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é
seu demônio, que ele o vitupera, é por falta de lógica e, no fundo, o que ele
não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a
humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do
homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que
atingiram até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os
negros da África (Césaire, [1950], 2020, Discurso sobre o colonialismo, p.
18).
Combinado a isso, Losurdo é o autor, como também já dito, da contra-história
do liberalismo. Poucos autores, mesmo no marxismo, são capazes de
desenvolver uma crítica ao liberalismo como o italiano. E desse pensamento
também emerge – friso esse ponto – um novo balanço crítico das experiências
socialistas. Para quem se sustenta afirmando uma negativa total das
experiências socialistas, reivindicando e defendendo no máximo a Comuna de
Paris e os primeiros cinco ou seis anos da Revolução Russa, esse novo balanço é
disfuncional para sua legitimidade política.
Essa disfuncionalidade se explica pelo “culto da derrota”. Chamo de culto
da derrota a visão cultural, histórica e política que predica que todas as
experiências históricas de construção do socialismo são uma tragédia, mas que o
marxismo continua sendo o caminho, porém um caminho não contaminado por essas
experiências. O culto da derrota em sua dimensão total gera como subproduto um
autoelogio. É como se o sujeito falasse, “sim, Cuba, China, Coreia, URSS,
Iugoslávia e afins foram uma tragédia, mas eu não tenho nada com isso; o meu
marxismo é limpo”. É bem estranho que uma “filosofia
da práxis“ – como Antonio Gramsci chamava o marxismo – tenha como um dos
seus principais ativos nunca ter se “contaminado” pela práxis de tentar
construir o socialismo.”
“A União Soviética não representava “apenas” a primeira tentativa de
construção do socialismo. A URSS combateu firmemente as teorias do “racismo
científico”, foi o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo (na
Constituição Soviética de 1936), manteve em todos os âmbitos de sua produção
cultural, educacional e artística uma ampla propaganda antirracista e
anticolonialista, apoiou a luta dos povos colonizados de diversas formas, e as
seções nacionais da III Internacional eram obrigadas a combater de fato o
colonialismo e o chauvinismo – nenhuma conciliação era tolerada. A União
Soviética representava a tentativa de ruptura com o capitalismo e, talvez
até com mais sucesso, com toda tradição colonial-racista da modernidade
europeia e os elementos atualizados na fase colonial-imperialista19.
(...)
Podemos caminhar para uma conclusão nesse ponto. Enquanto o projeto
nazifascista representava uma radicalização do projeto colonial-imperialista
por parte de países de desenvolvimento capitalista retardatário que buscavam
alterar a partilha do mundo, reatualizando todos os métodos bárbaros do colonialismo-imperialista
(terror sistêmico, extermínio em massa, campos de concentração, subjugação
político-militar, estupros coletivos, destruição das economias locais etc.), o
projeto soviético convocava os povos das colônias, as minorias nacionais oprimidas
e o proletariado de todo o mundo a quebrar suas correntes e a construir um novo
mundo sem exploração e opressão racial e nacional. E, ainda que se possa dizer
que na prática o projeto soviético não se materializou como o programa previa
no plano político-ideológico, não pode ser desprezada a diferença programática
de projeto e objetivo.”
19. Sobre o tema, conferir os dois primeiros volumes da Coleção
Quebrando as Correntes: Revolução Africana: uma antologia do pensamento
marxista (Autonomia Literária, 2019) e Raça, classe e revolução: a luta
pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, 2020), ambos organizados
por Jones Manoel e Gabriel Landi.
“Marx não discordava do procedimento de Lenin e Engels de defender
sempre, mas em particular nos momentos de derrota e reorganização, a memória e
a história do movimento operário. Esse procedimento parte da compreensão de que
a ação política humana não é determinada por uma relação de identidade imediata
entre necessidade e ação. É possível que alguém tenha fome e considere
que a culpa disso é do imigrante; ou que alguém esteja desempregado e culpe,
por sua situação, a mulher ou o negro ao seu lado. Não existe uma relação de
transparência, de sentido claro e cristalino, entre as relações sociais, suas
causas, encadeamentos, estruturas e dinâmicas. A forma como a classe
trabalhadora encara as relações de exploração e opressão do capitalismo é
mediada pela política e por seus processos de subjetivação e formação de
consciência.
A classe trabalhadora, no capitalismo, tem interesses comuns
como classe em si, uma vez que ela se confronta com os proprietários dos meios
de produção enquanto portadora apenas de sua força de trabalho, vendida
temporariamente em troca de um salário. Toda ação coletiva no sentido de lutar
por melhores salários, condições de trabalho, direitos sociais, econômicos e
democráticos e, em última instância, pela conquista do poder e pela construção
do socialismo, é objetivamente do interesse de toda a classe
trabalhadora. Ao mesmo tempo, essa classe também é composta de indivíduos “livres
como pássaros”, que só têm como fonte de sustento a venda da sua força de
trabalho no mercado capitalista, confrontando-se com outros indivíduos na mesma
condição, em uma relação de concorrência.
Essa relação de concorrência permanente é parte própria da dinâmica do
capitalismo, mas é potencializada pela ação político-ideológica da classe
dominante. Individualizar, isolar e quebrar os vínculos associativos da classe
é parte essencial da luta de classes da burguesia contra o proletariado.
Fornecendo base material para tanto, a concorrência no seio da classe
trabalhadora se estrutura de acordo com os marcadores histórico-estruturais da
classe, como as determinações de gênero, raciais, linguísticas, nacionais,
ético-culturais, sexuais e religiosas. A classe, que é em si uma, em sua
existência econômico-formal sob o modo de produção capitalista, revela,
sob uma apreensão histórico-concreta, toda a sua diversidade. E essa
diversidade pode ser um elemento de potencialização da concorrência e
individualização no interior da classe.
A passagem do proletariado de uma classe em si para uma classe para
si é um processo político historicamente específico, que pode avançar ou
retroceder a depender da luta de classes. Esse processo é mediado pela ação
política do movimento socialista, que busca disseminar as ideias proletárias
revolucionárias e organizar a classe em sindicatos, partidos, movimentos
populares, em suma, sob as diversas formas históricas de ação organizada da
classe trabalhadora29. Contudo, nem mesmo nessa atividade
organizativa existe, novamente, uma relação de igualdade imediata entre interesse
e ação; essa relação é sempre mediada pela cultura, pelo imaginário, pelo
simbolismo, pela compreensão teórica do mundo, pela memória histórica. A forma
como a classe (cada um dos indivíduos que a compõem concretamente) se vê e vê o
mundo potencializa (ou não) formas de ação de classe.
Quando Lenin, na sua obra máxima sobre o problema da organização
revolucionária, o clássico Que fazer?, atribuiu – seguindo Engels – o
mesmo peso tático-estratégico30 às três formas da luta de classes
(econômica, política e teórica), o líder bolchevique expressou a compreensão de
que não basta afirmar ao proletariado sua exploração, mas é preciso submergi-lo
em toda uma compreensão teórica de mundo (que envolve também uma conformação
específica de afetos, memórias, solidariedade de classe e subjetividade) que o
convença da existência da exploração, que ofereça uma explicação dessa realidade,
que revele sua historicidade e a possibilidade de superar esse estado de
coisas.
Pensar o próprio hoje como algo em construção e disputa,
mediante a ação política, negando qualquer essência humana a-histórica e
naturalização das relações sociais, passa também pela conformação de um tipo de
memória histórica. Compreendemos como memória histórica o conjunto de
relações materiais e simbólicas que dão sentido de tempo e pertencimento
histórico a determinado grupo social, povo ou classe, e que pode se
materializar através de tradições orais, folclore, festas, monumentos, datas
comemorativas, indústria cultural, ensino oficial de história e afins. A
memória histórica, como tudo na sociedade capitalista, existe atravessada pela
luta de classes. É contraditória, conflitiva e está em constante disputa.”
29. “A classe molda o comportamento político de indivíduos tão-somente
se os que são operários foram organizados politicamente como tal. Se os
partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como ‘as
massas’, ‘o povo’, ‘consumidores’, ‘contribuintes’, ou simplesmente ‘cidadãos’,
os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe”
(Przeworski, Capitalismo e socialdemocracia, 1991, p. 42).
30. “Citaremos as observações feitas por Engels em 1874 acerca da
relevância da teoria para o movimento socialdemocrata. Engels reconhece na
grande luta da socialdemocracia não duas formas (a política e a econômica) –
como se dá entre nós – mas três, colocando ao lado a luta teórica” (Lenin, Que
fazer?, 2015, p. 72).
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