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terça-feira, 30 de setembro de 2025

A batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e revolução no século XX (Parte I), de Jones Manoel

Editora: Ruptura

ISBN: 978-65-981805-2-2

978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 304

Sinopse: A batalha pela memória – reflexões sobre o socialismo e a revolução no século XX”, do historiador, militante e comunicador Jones Manoel é uma coletânea de artigos, em sua maioria inéditos, que tratam de aspectos centrais do retrato distorcido fornecido pelos “vencedores” do século passado: o papel histórico de Stálin, o revisionismo histórico acerca do pacto de não-agressão germano-soviético, a leitura de Rosa Luxemburgo como uma “socialista democrática”, a importância de Mao Zedong e da Revolução Chinesa na história do socialismo, o papel do leninismo nas lutas anticoloniais, especialmente em África, o papel democrático dos comunistas ao longo do século passado no Brasil e em todo mundo e a contribuição do marxismo na construção dos movimentos antirracistas nos Estados Unidos são todos temas tratados pelo autor, que insiste que “não precisamos de mais autocrítica. Precisamos de uma outra autocrítica. Uma autocrítica que combata a hegemonia liberal forjada pelos vencedores da ‘Guerra Fria’ e coloque a análise do nosso legado comunista em termos marxistas. Para termos chance de futuro, é fundamental disputar o nosso passado.”



“Tive contato com uma literatura marxista que tinha como premissa a ideia de que todas as tentativas de revolução do século passado haviam dado errado, ou seja, foram um festival de repressão, brutalidade, violência, fome, autoritarismo, burocratismo e privilégios para uma elite governante – e coisas do tipo. Tudo que fizemos no século XX foi uma tragédia resumível em poucas palavras: Stalin, stalinismo, gulag, totalitarismo e mais totalitarismo, revolução traída etc., porém vamos tentar tudo de novo e, dessa vez – com a graça de Deus, a “volta a Marx” ou colocando “democracia” e “liberdade” depois do nome socialismo –, vai dar tudo certo.

Basicamente, se você é comunista, precisa ter vergonha de toda história do movimento comunista. Repudiar todo seu passado. Repudiar todas e cada uma das experiências de transição socialista. Só proferir palavras negativas sobre Lenin, Stálin, Mao Zedong, Fidel Castro, Ho Chi Minh, Kim Il-Sung, Marechal Tito e fingir que nunca existiram líderes comunistas na África, América Central e outras regiões. É um tipo de “marxismo” que só gosta de quem morreu em martírio, sem tocar no poder político ou o exercendo por pouco tempo, como Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Che Guevara e José Carlos Mariátegui – uma espécie de versão laica do cristianismo, adornado com aparência de marxismo, em que só é bonito e belo a imagem do comunista “pregado na cruz” e sangrando.”

 

 

“Imagine uma revolução socialista no Brasil. Que hoje, enquanto escrevo essa apresentação, o povo trabalhador comece um movimento para tomar o poder. Os latifundiários, mineradores e madeireiros do Brasil iriam assistir calados? Claro que não. E eles estão armados até os dentes. Milícias, facções que são empresas capitalistas, grupos privados de segurança e as forças repressivas do Estado burguês também ficariam parados, aceitando a vontade da maioria da população? Também não. Teríamos, concretamente, um problema objetivo para solucionar: como derrotar uma contrarrevolução armada e violenta?

A esse problema político-militar se somaria outro, que foi uma constante no século XX: como reprimir a contrarrevolução sem ferir de morte a democracia socialista que tenta nascer? Desde sempre, guerras e conflitos militares não estimulam democracia e liberdade, antes o contrário.

Aliado a isso, a contrarrevolução, necessariamente, teria uma dimensão internacional. Como vamos combater a força militar e de espionagem dos Estados Unidos – e outros países imperialistas – presentes, inclusive, em nossas fronteiras? Como fazer florescer a liberdade de expressão e a consciência crítica, indispensáveis na construção socialista, em um contexto de cerco e guerra permanentes do imperialismo, como vive Cuba?

Certamente, também sofreríamos com bloqueios e sanções econômicas. Dependemos de outros países para garantir insumos agrícolas, trigo, remédios, máquinas e equipamentos, combustível, eletroeletrônicos e afins. Como vamos garantir uma política centralizada, planejada e de curto prazo – baseada em intensa mobilização popular – para aumentar a produtividade, realizar substituição de importações e adequar o aparato produtivo para reduzir os efeitos das sanções e, ao mesmo tempo, estimular a autogestão operária e a democracia socialista nos locais de produção?

Como vamos saber diferenciar, no calor das batalhas de vida ou morte, o que são críticas e insatisfações corretas ou insuflamentos artificiais de descontentamento movidos pelo aparato de propaganda do imperialismo e da classe dominante interna? Como vamos tratar movimentos separatistas, que cresceriam muito a partir do financiamento dos Estados Unidos (lembrando que, antes do golpe de 1964, os EUA financiavam movimentos separatistas no Brasil)?

Como vamos garantir a segurança de cada represa, estação de tratamento de água, metrô, aeroporto, estação de distribuição elétrica, fazenda, porto, fábrica e afins, sujeitos à sabotagem de órgãos do imperialismo como a CIA? Se 20% das polícias e do Exército aderirem à contrarrevolução, teremos milhares de homens e mulheres armados, com treinamento militar e bom conhecimento do território. O que fazer para enfrentar isso?

Falar que a democracia é “um valor universal”, soltar palavras de condenação abstrata contra a violência, criticar o “modelo” de planejamento soviético ou maldizer o “culto à personalidade” em torno de Mao Zedong e Stálin não resolve nenhuma dessas questões. Nunca é demais lembrar que frente a um governo reformista e bem limitado, como o de João Goulart, empresários e latifundiários já estavam prontos para uma guerra civil, e os Estados Unidos posicionaram uma esquadra na costa brasileira, prontos para uma invasão terrestre.

Essas são algumas das questões concretas que devem servir de norte para pensar a transição socialista no século passado e hoje. O socialismo e a guerra se entrelaçam. Não por escolha dos marxistas, mas da burguesia dos países onde aconteceu a revolução e do imperialismo, que nunca aceitou pacificamente a criação de um poder operário-popular. Exemplo paradigmático disso é o Chile de Salvador Allende. De nada adiantou o líder socialista defender, com unhas e dentes, uma “revolução” pacífica seguindo a moldura constitucional chilena. No final, o Palácio de La Moneda foi bombardeado do mesmo jeito – só que com o povo trabalhador desarmado e sem capacidade técnico-militar de resistir.”

 

 

“O trotskismo, assim como outras tendências teórico-políticas como o anarquismo e a socialdemocracia, vê-se diante de um aparente paradoxo. Com a crise do movimento comunista, muitos esperavam ser a sua vez de ter a direção – ou exercê-la de forma absoluta, como a socialdemocracia – no movimento operário e popular. Tudo podia acontecer, mas, no fim, nada aconteceu em relação a essas esperanças. A classe trabalhadora amarga uma época contrarrevolucionária em que é possível registrar em vários países 30 anos seguidos de perdas salariais, fechamento dos espaços democráticos, ampliação do aparato penal-burguês, crescimento do neofascismo etc.

Onde ocorreu uma relativa reorganização política, teórica e sindical-partidária da classe trabalhadora – a exemplo de Venezuela, Bolívia, Equador e até certo ponto Grécia, Espanha e Estados Unidos –, o trotskismo está bem longe de ser a força hegemônica. Muitos seguidores do fundador do Exército Vermelho tentaram se colar a experiências do dito “socialismo democrático”, algo profundamente estranho ao pensamento de Trótski, para buscar maior influência de massas. As experiências até agora com o Syriza (Grécia), Podemos (Espanha) e os Socialistas Democráticos da América (Estados Unidos – grupo interno do Partido Democrata), para ficar nos exemplos mais significativos, não são animadoras, para dizer o mínimo.

Ficou claro algo que muitos pensadores já tinham observado: o trotskismo se configurou como uma tradição política em negativo, existia por contraste e crítica ao movimento comunista hegemonizado pelo marxismo soviético. Ser uma alternativa interna de crítica e disputa aos rumos da URSS e posteriormente do chamado “campo socialista” era o principal ativo dos continuadores de Trótski. É notório, contudo, que outras alternativas internas, como o maoísmo e o foquismo-castrismo, apresentaram-se frente ao marxismo soviético e tiveram uma audiência de massas bem maior que os partidários da teoria da revolução permanente. Todavia, o trotskismo tinha uma vantagem: não exercia poder, consequentemente não estava sujeito às contradições de governar, por isso poderia apresentar sempre uma crítica de princípios que, diante do existente, era sedutora.

Essa dinâmica de “parasitar” frente ao “campo socialista” e ao movimento comunista, ganhando notoriedade com a perda de prestígio desses atores políticos, foi captada anos atrás por Louis Althusser:

O que explica, diga-se de passagem, não poucos fenômenos de aparência paradoxal como, por exemplo, 50 depois da Revolução de Outubro e 20 anos depois da Revolução Chinesa, o fortalecimento de Organizações que subsistem há 40 anos sem terem obtido nenhuma vitória histórica (pois, ao contrário dos ‘esquerdismos’ atuais, elas são organizações e têm uma teoria): as organizações trotskistas (Althusser, Posições I, 1978, p. 56).

Esse efeito de prestígio por contraste e tradição em nega tivo se manteve nos anos seguintes à contrarrevolução no leste europeu. Poucos marxistas podiam dizer que nunca tiveram simpatias pela URSS, China Popular, Iugoslávia, algum país do Leste Europeu, Coreia Popular, Albânia ou Cuba. Quando reverbera o discurso liberal de que “Mao Zedong matou 70 milhões”, por exemplo, ao contrário de muitos marxistas que tiveram seus anos de amores com o maoísmo, os trotskistas podiam dizer: “É verdade! E nós desde sempre denunciamos esse ‘autoritarismo’”.

Sem dúvida, esse era um ativo importante nos anos 90 e primeira década dos anos 2000.

Essa possibilidade de viver em negativo, porém, está acabando e, em alguns países, está totalmente terminada. Os motivos são bem simples. Onde a luta de classes conhece um altíssimo grau de acirramento, como a Venezuela, a crítica ao “stalinismo” ou o repúdio ao “socialismo autoritário” do século passado não é a questão central. Para completar, Cuba, com todas as suas dificuldades, mantém-se como um ponto de resistência socialista fundamental na América Latina, e, frente às nossas misérias, as “três coisas que funcionam” em Cuba – saúde, educação e segurança (como disse um liberal) – parecem muito luminosas.

O novo papel geopolítico da China e as mudanças na sua política interna, notadamente desde 2013 com a liderança de Xi Jinping, além do “redescobrimento” do Vietnã, países governados por partidos que reivindicam o marxismo-leninismo, reacendem em alguns círculos intelectuais e políticos um novo “olhar” sobre a história e o legado do movimento comunista. Não deixa de ser curioso que o citado historiador Perry Anderson, tão empolgado com o trotskismo e crítico ao maoísmo em 1976, hoje tenha uma visão muito positiva da experiência chinesa em curso16.”

16. Em termos taxonômicos, a RPC [China] do século XXI é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora uma economia predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero. Politicamente, os efeitos dessa contradição deixam marcas em toda a organização social, na qual eles se fundem ou se mesclam. Nunca tantos saíram tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca as indústrias modernas e infraestrutura moderníssima foram implantadas em escala tão colossal e em tão pouco tempo; nunca também uma classe média florescente emergiu tão rapidamente junto com elas. Nunca a hierarquia das potências foi alterada tão dramaticamente, alimentando o orgulho popular de modo tão espontâneo (ANDERSON, Considerações sobre o marxismo ocidental, 2018, p. 68). Um complemento para ficar claro: Anderson não é apenas elogios a China, mas os elogios de hoje são mais significativos do que as críticas, considerando sua trajetória como marxista.

 

 

“Mesmo com todos os problemas que existiam nas experiências passadas, os trabalhadores tinham a certeza de que teriam um emprego, casa, educação, esporte, cultura e saúde, tanto para eles quanto para suas famílias, e de que na velhice poderiam contar com uma aposentadoria. A sensação de ter certeza de que seu filho teria, no mínimo, acesso às mesmas, ou a melhores, condições que você – sem o risco de cair na miséria – é poderosa frente à precariedade, à pobreza, à miséria e à instabilidade econômica do neoliberalismo. Longe de combinar a segurança econômica do socialismo com o padrão de consumo do capitalismo europeu e estadunidense, o que o povo trabalhador recebeu com a contrarrevolução de 1989-91 foi desemprego estrutural, intensificação sempre constante dos ritmos de trabalho, velhice desamparada, ausência de saúde, privatização da cultura, educação e oportunidades.

Essa síntese sobre a União Soviética, em contraste com o que existe hoje, é ilustrativa:

[...] O sociólogo americano Albert Szymanski passou em revista uma série de estudos ocidentais sobre a distribuição de rendimentos e o nível de vida soviético. Apurou que as pessoas mais bem pagas da União Soviética eram artistas proeminentes, escritores, professores universitários, administradores, cientistas, que auferiam quantias entre 1200 e os 1500 rublos; os diretores empresariais entre 190 a 400 rublos mensais; os trabalhadores cerca de 150 rublos mensais. Consequentemente, os rendimentos mais elevados correspondiam a apenas 10 vezes o salário do trabalhador médio; ao passo que nos Estados Unidos as mais altas chefias empresariais recebiam 115 vezes o salário de um trabalhador. Os privilégios associados a altos cargos do Estado, como lojas especiais e automóveis oficiais, permaneciam baixos e limitados e não contrariavam uma tendência contínua de quarenta anos no sentido de um maior igualitarismo. [...] Szymanski concluiu: ‘embora a estrutura social soviética não possa corresponder ao ideal comunista ou socialista, é ao mesmo tempo qualitativamente diferente e mais igualitária que a dos países capitalistas ocidentais. O socialismo representou uma diferença radical em favor da classe trabalhadora’ (Keeran; Kenny, O socialismo traído, 2008, p. 13-14, grifos nossos).

O jovem precarizado, terceirizado, desempregado, sem dinheiro para pagar a faculdade e sem muita perspectiva de futuro, escuta seu pai/mãe ou avô/avó falando de outra época em que, dentre outras coisas, o emprego era garantido e as oportunidades educacionais eram gratuitas ou de baixíssimo custo. Alguns podem falar que isso é uma distorção política da memória ditada pelas condições conjunturais, gritando com escândalo o quão absurdo é relativizar a Stasi, os expurgos da era stalinista ou os tanques soviéticos entrando em Praga e na Hungria. O problema, nesse caso, é que toda memória é uma construção política (inclusive a memória de negação total do socialismo dos anos de 1990) e o repúdio moral não vai mudar o sentimento de massa em vários setores dos trabalhadores e da juventude. Gostando-se ou não, o fenômeno existe – e precisa ser mais bem estudado e compreendido.”

 

 

“É nessa situação sociopolítica que a obra losurdiana ganha força e impacto social. Mas por que Losurdo, e não outro autor, causa todo esse barulho? É bem simples. O filósofo italiano, como falamos, busca pensar uma contra-história da modernidade destacando a questão colonial como central.

Muitos setores do marxismo, profundamente eurocêntricos, não podem aceitar essa contra-história. Como falamos anteriormente, ao citar Vijay Prashad, o trotskismo passou ao largo de qualquer protagonismo nas guerras de libertação nacional e revoluções socialistas na periferia. Os liberais também não podem permitir esse debate sobre a questão colonial. Com a questão colonial – e, acrescento, racial – em jogo, fica impossível, por exemplo, sustentar o mito do totalitarismo e ocultar a ligação de continuidade entre liberalismo e nazifascismo. É sempre importante lembrar uma clássica reflexão de Aimé Césaire sobre Ocidente e nazifascismo (que Losurdo dá continuidade e adensa): 

Sim, valeria a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de um Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é seu demônio, que ele o vitupera, é por falta de lógica e, no fundo, o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiram até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África (Césaire, [1950], 2020, Discurso sobre o colonialismo, p. 18).

Combinado a isso, Losurdo é o autor, como também já dito, da contra-história do liberalismo. Poucos autores, mesmo no marxismo, são capazes de desenvolver uma crítica ao liberalismo como o italiano. E desse pensamento também emerge – friso esse ponto – um novo balanço crítico das experiências socialistas. Para quem se sustenta afirmando uma negativa total das experiências socialistas, reivindicando e defendendo no máximo a Comuna de Paris e os primeiros cinco ou seis anos da Revolução Russa, esse novo balanço é disfuncional para sua legitimidade política.

Essa disfuncionalidade se explica pelo “culto da derrota”. Chamo de culto da derrota a visão cultural, histórica e política que predica que todas as experiências históricas de construção do socialismo são uma tragédia, mas que o marxismo continua sendo o caminho, porém um caminho não contaminado por essas experiências. O culto da derrota em sua dimensão total gera como subproduto um autoelogio. É como se o sujeito falasse, “sim, Cuba, China, Coreia, URSS, Iugoslávia e afins foram uma tragédia, mas eu não tenho nada com isso; o meu marxismo é limpo”. É bem estranho que uma “filosofia da práxis“ – como Antonio Gramsci chamava o marxismo – tenha como um dos seus principais ativos nunca ter se “contaminado” pela práxis de tentar construir o socialismo.”

 

 

“A União Soviética não representava “apenas” a primeira tentativa de construção do socialismo. A URSS combateu firmemente as teorias do “racismo científico”, foi o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo (na Constituição Soviética de 1936), manteve em todos os âmbitos de sua produção cultural, educacional e artística uma ampla propaganda antirracista e anticolonialista, apoiou a luta dos povos colonizados de diversas formas, e as seções nacionais da III Internacional eram obrigadas a combater de fato o colonialismo e o chauvinismo – nenhuma conciliação era tolerada. A União Soviética representava a tentativa de ruptura com o capitalismo e, talvez até com mais sucesso, com toda tradição colonial-racista da modernidade europeia e os elementos atualizados na fase colonial-imperialista19. (...)

Podemos caminhar para uma conclusão nesse ponto. Enquanto o projeto nazifascista representava uma radicalização do projeto colonial-imperialista por parte de países de desenvolvimento capitalista retardatário que buscavam alterar a partilha do mundo, reatualizando todos os métodos bárbaros do colonialismo-imperialista (terror sistêmico, extermínio em massa, campos de concentração, subjugação político-militar, estupros coletivos, destruição das economias locais etc.), o projeto soviético convocava os povos das colônias, as minorias nacionais oprimidas e o proletariado de todo o mundo a quebrar suas correntes e a construir um novo mundo sem exploração e opressão racial e nacional. E, ainda que se possa dizer que na prática o projeto soviético não se materializou como o programa previa no plano político-ideológico, não pode ser desprezada a diferença programática de projeto e objetivo.”

19. Sobre o tema, conferir os dois primeiros volumes da Coleção Quebrando as Correntes: Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista (Autonomia Literária, 2019) e Raça, classe e revolução: a luta pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, 2020), ambos organizados por Jones Manoel e Gabriel Landi.

 

 

“Marx não discordava do procedimento de Lenin e Engels de defender sempre, mas em particular nos momentos de derrota e reorganização, a memória e a história do movimento operário. Esse procedimento parte da compreensão de que a ação política humana não é determinada por uma relação de identidade imediata entre necessidade e ação. É possível que alguém tenha fome e considere que a culpa disso é do imigrante; ou que alguém esteja desempregado e culpe, por sua situação, a mulher ou o negro ao seu lado. Não existe uma relação de transparência, de sentido claro e cristalino, entre as relações sociais, suas causas, encadeamentos, estruturas e dinâmicas. A forma como a classe trabalhadora encara as relações de exploração e opressão do capitalismo é mediada pela política e por seus processos de subjetivação e formação de consciência.

A classe trabalhadora, no capitalismo, tem interesses comuns como classe em si, uma vez que ela se confronta com os proprietários dos meios de produção enquanto portadora apenas de sua força de trabalho, vendida temporariamente em troca de um salário. Toda ação coletiva no sentido de lutar por melhores salários, condições de trabalho, direitos sociais, econômicos e democráticos e, em última instância, pela conquista do poder e pela construção do socialismo, é objetivamente do interesse de toda a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, essa classe também é composta de indivíduos “livres como pássaros”, que só têm como fonte de sustento a venda da sua força de trabalho no mercado capitalista, confrontando-se com outros indivíduos na mesma condição, em uma relação de concorrência.

Essa relação de concorrência permanente é parte própria da dinâmica do capitalismo, mas é potencializada pela ação político-ideológica da classe dominante. Individualizar, isolar e quebrar os vínculos associativos da classe é parte essencial da luta de classes da burguesia contra o proletariado. Fornecendo base material para tanto, a concorrência no seio da classe trabalhadora se estrutura de acordo com os marcadores histórico-estruturais da classe, como as determinações de gênero, raciais, linguísticas, nacionais, ético-culturais, sexuais e religiosas. A classe, que é em si uma, em sua existência econômico-formal sob o modo de produção capitalista, revela, sob uma apreensão histórico-concreta, toda a sua diversidade. E essa diversidade pode ser um elemento de potencialização da concorrência e individualização no interior da classe.

A passagem do proletariado de uma classe em si para uma classe para si é um processo político historicamente específico, que pode avançar ou retroceder a depender da luta de classes. Esse processo é mediado pela ação política do movimento socialista, que busca disseminar as ideias proletárias revolucionárias e organizar a classe em sindicatos, partidos, movimentos populares, em suma, sob as diversas formas históricas de ação organizada da classe trabalhadora29. Contudo, nem mesmo nessa atividade organizativa existe, novamente, uma relação de igualdade imediata entre interesse e ação; essa relação é sempre mediada pela cultura, pelo imaginário, pelo simbolismo, pela compreensão teórica do mundo, pela memória histórica. A forma como a classe (cada um dos indivíduos que a compõem concretamente) se vê e vê o mundo potencializa (ou não) formas de ação de classe.

Quando Lenin, na sua obra máxima sobre o problema da organização revolucionária, o clássico Que fazer?, atribuiu – seguindo Engels – o mesmo peso tático-estratégico30 às três formas da luta de classes (econômica, política e teórica), o líder bolchevique expressou a compreensão de que não basta afirmar ao proletariado sua exploração, mas é preciso submergi-lo em toda uma compreensão teórica de mundo (que envolve também uma conformação específica de afetos, memórias, solidariedade de classe e subjetividade) que o convença da existência da exploração, que ofereça uma explicação dessa realidade, que revele sua historicidade e a possibilidade de superar esse estado de coisas.

Pensar o próprio hoje como algo em construção e disputa, mediante a ação política, negando qualquer essência humana a-histórica e naturalização das relações sociais, passa também pela conformação de um tipo de memória histórica. Compreendemos como memória histórica o conjunto de relações materiais e simbólicas que dão sentido de tempo e pertencimento histórico a determinado grupo social, povo ou classe, e que pode se materializar através de tradições orais, folclore, festas, monumentos, datas comemorativas, indústria cultural, ensino oficial de história e afins. A memória histórica, como tudo na sociedade capitalista, existe atravessada pela luta de classes. É contraditória, conflitiva e está em constante disputa.”

29. “A classe molda o comportamento político de indivíduos tão-somente se os que são operários foram organizados politicamente como tal. Se os partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como ‘as massas’, ‘o povo’, ‘consumidores’, ‘contribuintes’, ou simplesmente ‘cidadãos’, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe” (Przeworski, Capitalismo e socialdemocracia, 1991, p. 42).

30. “Citaremos as observações feitas por Engels em 1874 acerca da relevância da teoria para o movimento socialdemocrata. Engels reconhece na grande luta da socialdemocracia não duas formas (a política e a econômica) – como se dá entre nós – mas três, colocando ao lado a luta teórica” (Lenin, Que fazer?, 2015, p. 72).

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