Editora: Edipro
Opinião: ★★★★☆
Tradução e
prefácio: Laurent de Saes
Análise em vídeos: Parte I - Parte II - Parte III
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ISBN: 978-85-7283-957-0
Páginas: 464
Sinopse: Ver Parte I
“Profundamente dedicado à
tradição, mas de costumes violentos e de caráter instável, o homem das idades
feudais era, apesar de tudo, muito mais propenso a venerar as regras do que a
sujeitar-se a elas com certa constância. Não deparámos já com essas reações
contraditórias, a propósito dos laços de sangue? Porém, parece que nesse caso,
a origem da antinomia deve ser procurada mais longe: na própria instituição
vassálica, nas suas vicissitudes e nas suas variantes.”
“Nada de mais variável, conforme
os lugares, em cada senhorio, nada de mais diverso do que os encargos do
detentor da concessão, na primeira idade feudal. Em dias fixos, vemo-lo levar
ao oficial do senhor, ou algumas moedinhas, ou, na maior parte das vezes,
produtos colhidos nos seus campos, frangos da sua capoeira, favos de cera
tirados das suas colmeias ou dos enxames da floresta mais próxima. Noutros
momentos, ele trabalha nos campos ou nos prados do domínio. Ou ainda o vemos
transportar, por conta do senhor, pipas de vinho ou sacos de trigo, para
residências mais distantes. É à custa do suor dos seus braços que são reparados
os muros ou os fossos do castelo. Se o senhor tem visitas, o camponês cede a
sua própria cama para fornecer os leitos necessários para os hóspedes. Quando
chegam as grandes caçadas, é ele quem sustenta a matilha de cães. Se finalmente
rebenta a guerra, é ele ainda que, sob o estandarte desfraldado pelo chefe da
aldeia, se faz soldado de infantaria ou criado do exército. (...)
A dependência das explorações
camponesas face a um senhor comum traduzia-se pelo pagamento de uma espécie de
aluguer da terra. Neste ponto, o trabalho da primeira idade feudal foi, acima
de tudo, de simplificação. Um mero bastante grande de rendas que, na época
franca, eram deduzidas separadamente, acabaram por se fundir numa única renda
fundiária, que, em França, quando era paga em dinheiro, era conhecida,
geralmente, pelo nome de cens (foro). Na verdade, entre as taxas
primitivas, algumas havia que, originariamente, só tinham sido recebidas, em
princípio, pelas administrações senhoriais por conta do Estado. Tais como os
fornecimentos devidos ao exército real ou os pagamentos de substituição que
tinham lugar. A sua reunião a um encargo que, aproveitando apenas ao senhor,
era concebido como a expressão dos seus direitos superiores sobre o solo,
atesta, com particular clareza, a preponderância adquirida pelo poder próximo
do pequeno chefe de grupo, à custa de qualquer ligação mais elevada.
O problema da hereditariedade, um
dos mais apaixonantes que levantou a instituição do feudo militar, quase não
ocupou lugar na história das concessões rurais. Pelo menos, durante a era
feudal. Quase universalmente, os camponeses sucediam-se, de geração em geração,
nos mesmos campos. Por vezes, como adiante se explicará, em verdade, os
colaterais eram excluídos, quando o foreiro era de condição servil. Pelo
contrário, o direito dos descendentes devia ser sempre respeitado, a menos que
tivessem abandonado prematuramente o círculo familiar. As regras sucessórias
eram fixadas pelos velhos usos regionais, sem outras intervenções por parte dos
senhores, a não ser os seus esforços, em certas épocas e em algumas regiões,
para velar pela indivisibilidade do bem, considerada necessária para a exata
cobrança dos encargos. Quanto ao resto, a vocação hereditária dos foreiros
parecia tão evidente que, na maior parte das vezes, os textos, supondo o
princípio previamente estabelecido, nem se dignavam mencioná-lo, a não ser por
alusão. Seria porque a hereditariedade tinha sido, para a maioria das
explorações camponesas, o costume imemorial, pouco a pouco alargado aos mansi
mais recentemente amputados no domínio? Sem dúvida. Mas também porque os
senhores não tinham qualquer interesse em romperem com este hábito. Naquele
tempo em que a terra era mais abundante do que o homem, em que, além disso, as
condições econômicas impediam que se valorizassem vastíssimas reservas, com o
auxílio de uma mão-de-obra assalariada ou sustentada no domicílio, mais valia,
em vez de unir parcela a parcela, dispor, permanentemente, dos braços e da
força rendível de dependentes, capazes de se manterem a si próprios.
De todas as “cobranças” novas,
impostas aos foreiros, as mais características foram, sem dúvida, os
monopólios, muito variados, que o senhor se atribuiu em detrimento daqueles.
Umas vezes reservava-se, durante certos períodos do ano, a venda do vinho ou da
cerveja; outras, reivindicava o direito exclusivo de fornecer, mediante
pagamento, o touro ou o varrasco necessário à reprodução dos rebanhos, ou ainda
os cavalos que, em certas regiões do Sul serviam para a debulha dos cereais, na
eira. Mais frequentemente, obrigava os camponeses a moerem no seu moinho, a
cozerem o pão no seu forno, a fazerem o vinho no seu lagar. Até o nome dessas
obrigações era significativo. Eram chamadas, vulgarmente, banalités (banalidades).
Ignoradas na época franca, não tinham outro fundamento a não ser o poder de
mandar, reconhecido ao senhor e designado pela velha palavra germânica ban. Poder
inseparável, é evidente, de qualquer autoridade de chefe, portanto, em si
mesmo, como parte da autoridade senhorial, muito antigo, mas que fora
extremamente reforçado, nas mãos dos pequenos potentados locais, pelo
desenvolvimento do seu papel de juízes.”
“A “ajuda” pecuniária, ou “talha” dos foreiros
rurais, tal como a “talha” dos vassalos, nasceu, na mesma época, do dever geral
que impunha a qualquer subordinado, como lei, ajudar o seu chefe. Do mesmo modo
que aquela, adoptou de início expressamente o disfarce de um presente,
recordado até ao fim por alguns dos nomes com que foi designada: em França,
“demande” ou “queste”, na Alemanha Bede, que significa pedido. Mas, com
mais sinceridade, também se lhe chamava “toulte”, do verbo tolir, “tomar”.
A sua história, por ter começado tardiamente, não deixou de ter analogia com a
dos monopólios senhoriais. Muito difundida em França, importada na Inglaterra
pelos conquistadores normandos, manteve-se na Alemanha o privilégio dum mais
reduzido número de senhores: os que manejavam os poderes superiores de justiça,
ali menos divididos do que entre nós. De tal modo que o senhor entre os
senhores, na era feudal, é que era sempre o juiz. Tal como a talha dos
vassalos, a dos camponeses não escaparia à ação reguladora do uso, mas com
resultados sensivelmente diferentes. Como os contribuintes, neste caso, não
tinham, na maioria das vezes, a força necessária para impor uma estrita
definição dos casos, o imposto, que no começo fora excepcional — à medida que a
circulação monetária se tornava mais intensa — foi-lhes exigido com intervalos
cada vez mais frequentes. No entanto, neste particular, havia grandes
variedades, de senhorio para senhorio. Na Île-de-France, cerca do ano 1200,
terras onde as cobranças eram anuais, e até bianuais, ladeavam outras onde
aquelas só se realizavam de longe em longe. O direito, quase por toda a parte,
era incerto. Pois esta recém-chegada ao mundo dos impostos, para se incorporar
facilmente na rede dos “bons costumes”, não só era demasiado recente, mas
também a sua periodicidade mal definida e, mesmo nos locais onde o seu ritmo se
tinha estabilizado, a irregularidade da quantia que de cada vez era exigida
conservavam-lhe uma característica arbitrária. Nos meios eclesiásticos, “pessoas
de bem”, como diz um texto parisiense, contestavam a sua legitimidade. A talha
era especialmente odiosa aos olhos dos camponeses, tendo, por várias vezes,
suscitado vivas revoltas entre eles. Semicristalizada numa época em que o
dinheiro era raro, a tradição do senhorio não enfrentava sem dificuldades as
necessidades duma nova economia.
Assim, o foreiro do fim do século
XII, paga a dízima, a talha e os múltiplos impostos derivados do uso de coisas
pertencentes ao senhor: obrigações que, mesmo nas regiões onde o regime
senhorial era mais antigo, o seu antepassado do século VIII, por exemplo, não
tinha conhecido. Incontestavelmente, as obrigações de pagar foram-se agravando,
não sem compensações do lado das obrigações de trabalho, pelo menos em certos
países.
Na verdade, por uma espécie de
prolongamento da divisão de que o latifundium romano havia outrora sido
vitima-os senhores, numa grande parte da Europa, tinham-se posto a lotear
vastas porções das suas reservas: fosse para as distribuírem, lote por lote,
aos seus antigos foreiros; fosse para assim obterem novas tenências, por
vezes, até, para formarem com elas pequenos feudos vassálicos, que depressa
seriam, por sua vez, fragmentados em censives camponesas. Provocado,
essencialmente, por causas de ordem econômica, cujo exame não poderia ser
abordado aqui, o movimento tinha começado pelos séculos X e XI, ao que parece,
em França e na Lotaríngia, tal como em Itália; um pouco mais tarde tinha
alcançado a Alemanha transrenana e, mais lentamente ainda, e com uma trajetória
aliás caprichosa, a Inglaterra, onde o próprio regime senhorial estava
estabelecido mais recentemente. Ora, dizer domínio diminuído era dizer também,
forçosamente, corveias abolidas ou aliviadas. Enquanto que o foreiro, no tempo
de Carlos Magno, tinha que trabalhar vários dias por semana, na França de
Filipe Augusto ou de São Luís, apenas trabalhava nos campos ou nas planícies da
propriedade, alguns dias por ano. O desenvolvimento das novas “cobranças” não
foi apenas, em cada país, proporcional ao monopólio, mais ou menos avançado, do
direito de mandar; operou-se também na razão direta do abandono da valorização
pessoal, por parte do senhor. Por dispor simultaneamente, de mais tempo e de
mais terra, o camponês podia pagar mais. E o senhor, naturalmente, procurava
compensar num lado o que perdia no outro: privado dos sacos de trigo da
reserva, o moinho senhorial francês, sem o monopólio de moer, era obrigado a
parar as mós. No entanto, ao deixar assim de exigir dos seus súbditos, ao longo
do ano, um trabalho de equipas de obreiros, ao transformá-los definitivamente
em produtores, pesadamente coletados, é certo, mas economicamente autônomos, ao
transformar-se a ele próprio em simples proprietário de solos arrendados, o
senhor, onde esta evolução se processou até ao fim, negligenciava
inevitavelmente o laço de dominação humana. Tal como a história do feudo, a
história da tenência rural foi, afinal, a da passagem duma estrutura
social fundamentada na prestação de serviços a um regime de rendas fundiárias.”
“Mas os senhores só se mostravam tão generosos,
na aparência, porque estavam longe de terem que ceder tudo. Não há nada mais
variado, à primeira vista, do que o regime jurídico das libertações, no Estado
franco do século IX. As tradições do mundo romano, por um lado, os diversos
direitos germânicos, por outro, forneciam uma multidão de meios diferentes para
levar a cabo a operação e fixavam a condição dos seus beneficiários em termos
de uma variedade espantosa. No entanto, se nos regularmos pelos resultados práticos,
todas elas estão de acordo em fornecerem a escolha entre duas grandes
categorias de atos. Ou o liberto daí em diante escapava a qualquer autoridade
privada diferente daquela cujo apoio, mais tarde, ele podia procurar, de sua
livre vontade, ou, pelo contrário, continuava obrigado, no seu novo estatuto, a
alguns deveres de submissão, fosse para com o antigo dono, fosse para com um
novo patrono — por exemplo, uma igreja — ao qual aquele concordava em cedê-lo.
Como estas obrigações estavam geralmente concebidas como sendo destinadas a
transmitirem-se de geração em geração, acabavam sempre na criação duma
verdadeira clientela hereditária. O primeiro tipo de “manumissão” — para usar a
linguagem da época — era raro. O segundo, pelo contrário, era muito frequente,
por ser o único que correspondia às necessidades ambientes. O “manumissor”, ao
aceitar renunciar a um escravo, fazia questão de conservar um dependente. O
próprio “manumisso”, que não ousava viver sem defensor, encontrava, assim, de
repente, a desejada proteção. A subordinação contraída desse modo era
considerada tão forte que a Igreja, que se via obrigada a exigir dos seus
padres uma independência plena, tinha relutância em conceder a ordenação a
estes novos homens livres, manietados ainda, apesar do seu nome, por laços
demasiado apertados, na sua opinião. Habitualmente, o liberto era
simultaneamente foreiro do seu senhor, ou por ter sido já “acasado” por ele
antes de sacudir o jugo servil, ou porque a alforria tivesse sido acompanhada
duma dádiva de terra. Além do mais, as obrigações de caráter mais pessoal
muitas vezes vinham reforçar a sujeição. Por vezes, era uma parte da herança,
recebida pelo patrão após cada morte. Mais frequentemente ainda, era uma taxa
por cabeça, a qual de ano para ano atingia o liberto, tal como, depois dele,
cada indivíduo da sua descendência. Ao mesmo tempo que proporcionava um
rendimento regular, cujo montante total não era para desprezar, o “chevage”,
graças à curta periodicidade das cobranças, impedia que o encargo caísse no
esquecimento, por má vontade do subordinado ou pela negligência do superior. O
seu modelo havia sido fornecido por certas modalidades da alforria germânica.
Depressa foi imitado em quase todas as libertações, desde que incluíssem “a
obediência”.
Parte cobrada sobre a sucessão; chevage:
estas duas expressões da sujeição estavam votadas a um longo futuro, nas
sociedades medievais. Pelo menos a segunda, que cedo deixara de estar confinada
ao pequeno mundo das pessoas libertadas da servidão. Tal como o provam,
expressamente, certas cartas de alforria, e as moedas ou favos de cera, pagos
anualmente, passavam por representação do preço da proteção que o senhor,
transformado em patrono, estendia ao seu antigo escravo. Ora os libertos não
eram os únicos homens considerados livres que, por sua vontade ou à força,
tinham sido levados a colocar-se sob o “maimbour” dum poderoso. Desde o século
IX, este tributo, alastrando como óleo, aparecia já como o sinal específico de
todo um grupo de dependências pessoais que, como características comuns,
superiores a todos os caprichos da terminologia, tinham, por parte do
subordinado, uma submissão bastante humilde, geralmente hereditária e, por
parte do protetor, um forte direito de mando, que dava origem a cobranças lucrativas.
Assim, no caos das relações de homem para homem, ainda muito confusas,
começavam a desenhar-se algumas linhas de força, em torno das quais as
instituições da idade seguinte iriam cristalizar pouco a pouco. (...)
Ter um senhor não parecia mesmo
contrário à liberdade. Mas quem o não tinha? Porém, concebeu-se a ideia de que
esta qualidade terminava onde acabava a faculdade da escolha, exercida ao menos
uma vez na vida. Por outras palavras, qualquer laço hereditário era considerado
como destinado por uma característica servil. O vínculo invencível que a
criança adquiria “já no ventre da mãe” não tinha sido uma das maiores
crueldades da escravatura tradicional? O sentimento desta obrigatoriedade quase
física é maravilhosamente traduzido na expressão “homem de corpo”, forjada pela
língua popular, como sinônimo de servo. O vassalo, cuja homenagem não era
herdada, era, como já vimos, essencialmente “livre”. Pelo contrário, chegou-se
ao ponto de englobar sob o rótulo de uma servidão comum, com os descendentes, pouco
numerosos, dos escravos foreiros, a multidão, muito mais densa, dos dependentes
cujos antepassados tinham comprometido, com as suas próprias pessoas, a sua
posteridade: herdeiros de libertos, ou humildes recomendados. Do mesmo modo,
por um novo recorte significativo, o mesmo acontecia com os bastardos, os
estrangeiros ou “forasteiros” e com os Judeus, algumas vezes. Privados de
qualquer apoio natural na família ou no povo, estes tinham sido automaticamente
confiados, pelos antigos direitos, à custódia do príncipe ou do chefe da sua
residência; a era feudal fez deles servos, submetidos, a este título, ao senhor
da terra sobre a qual viviam, ou, pelo menos, àquele que nela detinha os
poderes superiores de justiça. Na época carolíngia, um número crescente de
protegidos tinha pago tributos. Na condição, contudo, de conservarem o estatuto
de homens livres. Na verdade, a escravatura tinha um senhor, que podia
apoderar-se de tudo o que ela tinha; não um defensor, ao qual fosse devia uma
compensação. Todavia, pouco a pouco, viu-se esta obrigação, outrora considerada
como perfeitamente honrosa, carregar-se dum matiz de desprezo; depois,
finalmente, ser contada perante os tribunais entre os sinais característicos da
servidão. Ela continuava a ser exigida às mesmas famílias que outrora e por
razões que eram fundamentalmente as mesmas. Só o lugar que era atribuído ao
vínculo de que a renda parecia ser a expressão é que mudava, na classificação
corrente.
Quase imperceptível aos olhos dos
contemporâneos, como todas as mutações semânticas, esta grande transformação do
quadro dos valores sociais tinha-se feito anunciar, desde o final da época
franca, por um emprego muito impreciso do vocabulário da servidão, o qual desde
então começava a oscilar entre as duas acepções do passado e do futuro. Estas
hesitações prosseguiram durante muito tempo. Segundo as regiões e conforme os
clérigos chamados para estabelecerem os documentos, os limites da nomenclatura
variavam. Em várias províncias, certos grupos, provenientes de escravos libertos
há pouco mediante “obediência”, conservaram até aos começos do século XII, como
um rótulo de origem, a sua designação particular de culverts, derivada
do latim collibertus, “liberto”. Com desprezo pela alforria de outrora,
eram considerados daí em diante como privados da “liberdade”, no sentido novo
do termo. Mas eram tidos como componentes duma classe superior aos simples
“servos”. A outras famílias, aqui e além, apesar duma assimilação de fato a
todas as obrigações da condição servil, as palavras “recomendados” ou “gente de
avouerie” (sendo este último substantivo sinônimo de proteção) ficaram
ligadas durante muito tempo. Se um homem se colocava, com a sua descendência,
sob a dependência dum senhor, ao qual, entre outras obrigações, prometia pagar
o chevage, umas vezes, o registo era expressamente tratado como servidão
voluntária, outras, pelo contrário, era-lhe inserida uma cláusula de
salvaguarda da liberdade, tal como na antiga fórmula franca de “proteção”. Ou
ainda, na redação, era prudentemente evitada qualquer expressão comprometedora.
No entanto, quando a compilação, como a da abadia de Saint-Pierre, de Gand,
abrange vários séculos, não é difícil, à medida que o tempo decorre, detectar
nela os progressos duma fraseologia cada vez mais unicamente servil.”
“Por outro lado, tinha-se elaborado um
verdadeiro estatuto, definido sobretudo por um feixe de encargos específicos.
Tendo modalidades infinitamente variáveis, conforme os costumes de grupos,
estes, nas suas linhas mestras, eram semelhantes por toda a parte: contraste
cem cessar repetido numa sociedade ao mesmo tempo dividida e fundamentalmente
una. Era o chevage. Era — salvo uma permissão especial que se pagava
caro — a proibição de se “casar contra a lei”, isto é, de contrair casamento
com uma pessoa que não fosse da mesma condição e que não dependesse do mesmo
senhor. Era, finalmente, uma espécie de imposto pago sobre a herança. Nos
países picardos e flamengos, esta “mão-morta” tomava geralmente a forma duma
taxa sucessória regular, pela qual o senhor, de cada vez que alguém morria,
vinha retirar da herança ou uma pequena quantia ou, na maior parte das vezes, o
melhor móvel ou a melhor cabeça de gado. Aliás, baseava-se no reconhecimento da
comunidade familiar: se o defunto deixava filhos (às vezes, irmãos) que
tivessem vivido com ele, em torno do mesmo “fogo”, o senhor não recebia nada,
no caso contrário, ele confiscava tudo.
Ora, por mais pesadas que estas
obrigações pudessem parecer, num certo sentido, eram a antítese da escravatura,
pois supunham, nas mãos do devedor, a existência dum verdadeiro patrimônio. Na
sua qualidade de foreiro, o servo tinha exatamente os mesmos deveres e os
mesmos direitos que qualquer outro: a sua posse já não era precária e o seu
trabalho, uma vez satisfeitos os tributos e os serviços, só a ele pertencia.
Não o imaginemos, neste caso, à imagem do colono adstrito “à sua gleba”. É
certo que os senhores procuravam reter os seus camponeses. Sem o homem, o que
valia a terra? Mas era difícil impedir a sua partida, pois a divisão da
autoridade opunha-se, mais do que nunca, a qualquer constrangimento policial
efetivo e, por outro lado, sendo o solo virgem ainda muito abundante, não
servia de muito ameaçar o fugitivo com a confiscação, pois ele estava sempre
mais ou menos certo de encontrar um novo local para se fixar. Pois
principalmente era o abandono da tenência em si-mesmo que se tentava
evitar, com maior ou menor êxito; o estatuto particular do explorador pouco
importava. Vemos duas personagens combinarem no sentido de cada uma recusar
aceitar os motivos da outra? Geralmente, nenhuma distinção é feita entre as
condições, servil ou livre, dos indivíduos cujas migrações convém, assim,
entravar.”
“Se a posse de senhorios era o sinal duma dignidade verdadeiramente
nobiliária e, juntamente com os tesouros em moedas ou em joias, a única forma
de fortuna que parecia compatível com uma posição elevada, era-o em primeiro
lugar por causa dos poderes de comando que ela fazia supor sobre outros homens.
Houve alguma vez motivo mais seguro de prestígio do que o de poder dizer: “eu
quero”? Mas acontecia também que a própria vocação do nobre lhe proibia
qualquer atividade econômica direta. Ele pertencia de corpo e alma à sua função
própria: a do guerreiro. Este último traço, que é fundamental, explica a parte
que coube aos vassalos militares na formação da aristocracia medieval. Mas esta
não foi constituída apenas por eles. Como excluiríamos os donos dos senhorios
alodiais, prontamente incorporados, aliás, pelos hábitos, nos vassalos
enfeudados e por vezes mais poderosos do que estes? Os grupos vassálicos, no
entanto, representaram bem o elemento de base. Neste ponto, ainda, a evolução
do vocabulário anglo-saxão ilustra admiravelmente a passagem da velha noção de
definição de nobreza pelo género de vida. Onde as leis antigas opunham eorl
e ceorl — nobre, no sentido germânico da palavra, e simples homem livre —
as mais recentes, conservando o segundo termo da antítese, substituem a
primeira por palavras tais que thegn, thegnborn, gesithcund: companheiro
ou vassalo — acima de tudo, o vassado real — ou mesmo nascido de vassalos.
Evidentemente, não quer dizer que
o vassalo fosse o único a poder, dever e mesmo gostar de se bater. Como poderia
isso ser durante esta primeira idade feudal, impregnada, de alto abaixo da
sociedade, pelo gosto ou pelo medo da violência? As leis que deviam esforçar-se
por restringir ou proibir o porte de armas pelas classes inferiores só apareceram
depois da segunda metade do século XII; elas coincidiram ao mesmo tempo com os
progressos da hierarquização jurídica e com o apaziguamento relativo das
perturbações. O mercador, em caravana, deslocava-se com “a espada na sela”, tal
como o descreve uma constituição de Frederico Barba Ruiva; uma vez regressado
ao balcão, conservava os hábitos contraídos no decorrer daquela vida de
aventuras que era então o negócio. Podia dizer-se, acerca de muitos burgueses,
no tempo do turbulento renascimento urbano, como dizia Gilbert de Mons a
propósito dos de Saint-Trond, que eram “muito poderosos nas armas”. Na medida
em que não é puramente lendário, o tipo tradicional do lojista inimigo da
violência corresponde à época do comércio estável, oposto ao antigo nomadismo dos
“pés poeirentos”: coisa do século XIII, o mais cedo. Aliás, por pouco numerosos
que fossem os exércitos medievais, o seu recrutamento nunca se limitou apenas
ao elemento nobiliário. O senhor recrutava a sua infantaria entre os seus
camponeses. E se, a partir do século XII, vemos as obrigações militares destes
diminuírem progressivamente, se, especialmente a limitação, muito frequente, da
duração de presença ao espaço dum dia teve como efeito fixar o emprego dos
contingentes rurais a simples operações de polícia local, esta transformação
foi exatamente contemporânea do enfraquecimento do próprio serviço dos feudos.
Os lanceiros ou archeiros camponeses não cederam então o lugar aos vassalos;
tornaram-se inúteis pelo recurso aos mercenários, o que simultaneamente
permitia compensar as insuficiências da cavalaria enfeudada. Mas, vassalo ou
mesmo senhor de alódios, onde os havia, o “nobre” dos primeiros tempos feudais,
perante tantos soldados de ocasião, tinha como característica própria ser um
guerreiro melhor armado e um guerreiro profissional.
O nobre combatia a cavalo; ou,
pelo menos, se por acaso durante a ação tinha que pôr o pé em terra, só se
deslocava montado. Além disso, combatia com o equipamento integral. Ofensivo:
lança e espada, algumas vezes clava. Defensivo: o elmo, que protegia a cabeça;
depois, cobrindo o corpo, uma cota metálica, toda ou só em parte; no braço,
finalmente, o escudo, triangular ou redondo. Não era apenas o cavalo que,
propriamente falando, fazia o cavaleiro. Não dispensava, também, o seu mais
humilde companheiro, o escudeiro, encarregado de cuidar dos animais e de
conduzir, durante o caminho, as montadas sobresselentes. Algumas vezes, até, os
exércitos incluíam, ao lado da pesada cavalaria, outros cavaleiros mais
levemente equipados, geralmente chamados sergents. O que caracterizava a
classe mais elevada dos combatentes era a união do cavalo e do armamento
completo.
Os aperfeiçoamentos deste último,
depois da época franca, ao tornarem-no a um tempo mais caro e mais difícil de
manejar, tinham fechado cada vez mais rigorosamente o acesso a esta maneira de
fazer a guerra a quem não fosse rico, ou fiel dum rico, e homem de ofício.
Aproveitando todas as possibilidades da adopção do estribo, cerca do século X,
foi abandonada a curta lança anteriormente usada, empunhada à força de braço,
como um dardo, substituída pela longa e pesada lança moderna que o guerreiro,
na luta corpo a corpo, mantinha segura na axila e, em repouso, apoiava no
próprio estribo. Ao elmo foi acrescentada a proteção nasal e mais tarde a
viseira. Finalmente, a “brogne”, espécie de cota de couro ou tecido, sobre a
qual eram cosidos anéis ou placas de ferro, cedeu o lugar à loriga, imitada
talvez dos árabes; inteiramente tecida de malhas metálicas, era de fabrico muito
mais delicado, quando não importada até. Pouco a pouco, aliás, o monopólio de
classe, que de princípio tinha sido imposto por simples necessidades práticas,
começou a passar ao direito. Os monges de Beaulieu, pouco depois de 970,
proibiam o porte do escudo e da espada aos oficiais senhoriais que eles se
esforçavam por manter numa tranquila mediocridade; os de Saint-Gall, cerca da
mesma época, reprovavam aos seus senhores o terem armas demasiado boas238.
Ora, imaginemos, na sua essencial
dualidade, uma tropa daquele tempo. Dum lado, uma infantaria mal apetrechada
tanto para atacar como para se defender, lenta em correr para o assalto e na
fuga, depressa esgotada por longas caminhadas em más pistas ou através dos
campos. Do outro, olhando sobranceiramente de cima dos seus cavalos os pobres
diabos que, “vilãmente”, como diz um romance cortês, arrastam os seus passos na
lama e no pó, sólidos soldados, orgulhosos de poderem combater e manobrar
prontamente, sabiamente, eficazmente: a única força, na realidade, cujo cálculo
vale a pena fazer, quando se procede ao recenseamento dum exército, como diz o
biógrafo do Cid239. Numa civilização em que a guerra
era coisa de todos os dias, não havia contraste mais vivo do que aquele.
Tornado quase sinônimo de vassalo, “cavaleiro” tornou-se, também, o equivalente
de nobre, reciprocamente, vários textos elevam ao valor dum termo quase
jurídico, aplicando-o às classes inferiores, o nome desprezível de pedones, “infantes”
— atrever-nos-emos a traduzir: empurra-calhaus? Entre os Francos, diz o emir
árabe Usâma, “toda a preeminência pertence aos cavaleiros. Estes são,
verdadeiramente, os únicos homens que contam. A eles cabe dar conselhos, a eles
cabe fazer a justiça”240.
Ora, aos olhos duma opinião que
tinha boas razões para ter em alta consideração a força, sob os seus aspectos
mais elementares, como não havia de ser o combatente, por excelência, o mais
temível, procurado e respeitado dos homens? Uma teoria então muito difundida,
representava a comunidade humana como dividida em três “ordens”: aqueles que
oram, aqueles que lutam e aqueles que trabalham. E isto, de acordo unânime,
pondo o segundo muito acima do terceiro. Mas o testemunho da epopeia vai ainda
mais longe; o soldado não hesitava em considerar a sua missão superior até à do
especialista da oração. O orgulho é um dos ingredientes essenciais de toda a
consciência de classe. O dos “nobres” da era feudal foi, acima de tudo, um
orgulho de guerreiro.
Tanto mais que a guerra, para
eles, não era apenas um dever ocasional: para com o senhor, para com o rei,
para com a linhagem. Ela representava muito mais: uma razão de viver.”
238 DELOCHE, Cartulaire de l’abbaye de Beaulieu. n.º L. — Casus
S. Galli. c. 48.
239
Fritz MEYER, Die Stände... dargestelt nach den altfr. Artus-und Abenteurromanen. 1892, p. 114. — Poema
del mio Cid. ed. Menendez Pidal, v. 918.
240 H. DERENBOURG. Ousâma Ibne Mounkidh. t.
I, (Publications Ec. Langues Orientales, 2.º série, t.
XII, p. 476.
“A VIDA NOBRE
I. A guerra
“Muito me agrada o alegre tempo
da Páscoa — que faz chegar as folhas e as flores; — e agrada-me ouvir a alegria
— das aves que fazem ressoar — os seus cantos pelo arvoredo. — Mas também me
agrada quando vejo, nos prados, — tendas e pavilhões levantados; — e sinto
grande júbilo — quando vejo, alinhados nos campos, — cavaleiros e cavalos
aparelhados; — e agrada-me quando os batedores —fazem fugir as gentes e o gado;
— e agrada-me, quando vejo, atrás deles — uma grande massa de homens de armas
que vêm juntos; e o meu coração alegra-se — quando vejo fortes castelos
cercados — e as sebes destruídas e tombadas — e o exército, na margem, — toda
rodeada de fossos, — com uma linha de robustas estacas entrelaçadas ... —
Clavas, espadas, elmos de cores, — escudos, vê-lo-emos feitos em pedaços —
desde o começo do combate — e muitos vassalos feridos juntamente, — por onde
andarão à aventura os cavalos dos mortos e dos feridos. — E quando entrar no
combate, — que cada homem de boa linhagem — não pense senão em partir cabeça e
braços; — pois mais vale morto do que vivo e vencido. — Digo-vos, já não
encontro tanto sabor — no comer, no beber, no dormir — como quando ouço o grito
“Avante!” — elevar-se dos dois lados, o relinchar dos cavalos sem cavaleiros na
sombra — e os brados “Socorro! Socorro!”; — quando vejo sair, para lá dos
fossos, grandes e pequenos na erva; quando vejo, enfim, os mortos que, nas
entranhas, — têm ainda cravados os restos das lanças, com as suas flâmulas”.
Assim cantava, na segunda metade
do século XII, um trovador, que talvez se possa identificar com o fidalgoie do
Périgord, Bertrand de Born241. A precisão visual e o
belo entusiasmo que contrastam com a insipidez duma poesia geralmente mais
comedida são a marca dum talento acima do comum. O sentimento, pelo contrário,
nada tinha de excepcional: testemunham-no muitas outras peças, provenientes do
mesmo meio, nas quais se exprime, com menos vivacidade, sem dúvida, mas com
igual espontaneidade. Na guerra “fresca e alegre”, como diria, nos nossos dias,
alguém que estava destinado a vê-la menos de perto, o nobre apreciava primeiro
o desencadear duma força física de animal belo, sabiamente adestrada por
exercícios constantes, começados na infância. Repetindo o velho provérbio
carolíngio, “aquele que, sem saber montar a cavalo, ficou na escola até aos
doze anos, só serve para padre”, diz um poeta alemão242.
As intermináveis descrições de combates singulares de que a epopeia está
cheia, são eloquentes documentos psicológicos. O leitor de hoje, a quem a sua
monotonia aborrece, tem dificuldade em se convencer de que o ouvinte de antanho
tenha podido, visivelmente, retirar delas tanto prazer; atitude do homem de
gabinete perante o relato de competições desportivas! Nas obras de imaginação,
tal como nas crônicas, o retrato do bom cavaleiro insiste, acima de tudo, nas
suas qualidades de atleta: ele é “ossudo”, “membrudo”, de corpo “bem modelado”
e sulcado por honrosas cicatrizes, de ombros largos, e larga também — como
convém a um cavaleiro — a distância entre as pernas. E como este vigor tem que
ser alimentado, só um apetite robusto parecia apanágio do homem valente. Na
velha Chanson de Guillaume, de tão bárbaras ressonâncias, ouçamos a dama
Guibourc que, depois de ter servido à grande mesa do castelo, o jovem Girart,
sobrinho do seu esposo, se dirige a este último:
“Por Deus! Belo senhor! Este é bem da vossa linhagem,
Quem come assim um grande pernil de porco
e em dois tragos bebe um sesteiro* de vinho;
Bem dura guerra deve fazer ao seu vizinho.”243
Mas um corpo ágil e musculoso, é
quase supérfluo dizê-lo, não é o bastante para fazer o cavaleiro ideal. É
preciso ainda acrescentar a coragem. E é também porque proporciona a esta
virtude a ocasião de se manifestar que a guerra põe tanta alegria no coração
dos homens, para os quais a audácia e o desprezo da morte são, de algum modo,
valores profissionais. Decerto que esta valentia nem sempre exclui os pânicos
loucos — vimos o exemplo diante dos Vikings — nem, sobretudo, o recurso a
estratagemas de primitivos. Que, apesar disso, a classe dos cavaleiros soube
bater-se, a história, neste particular, está de acordo com a lenda. O seu
heroísmo indiscutível alimentava-se de muitos elementos diversos, alternando
cada um por sua vez: simples descontração física dum ser são; raiva desesperada
— o “sensato” Olivier, ele próprio, quando se sente “desesperado até à
morte”, desfere tão terríveis golpes apenas para “se vingar até mais não poder”
—; dedicação a um chefe ou, quando se trata da Guerra Santa, a uma causa;
paixão da glória, pessoal ou coletiva; aquela aceitação fatalista de que a
literatura oferece os seus exemplos mais pungentes em alguns dos últimos cantos
do Nibelungenlied, perante o destino inevitável; finalmente, esperança
nas recompensas do outro mundo, asseguradas, não só a quem morre pelo seu Deus,
mas também a quem morre pelo seu senhor.
Habituado a não temer o perigo, o
cavaleiro encontrava na guerra um outro encanto ainda: o dum remédio contra o
tédio. Pois para os homens cuja cultura, durante longo tempo, permaneceu
rudimentar e que — exceptuando alguns altos barões e os que os rodeavam — não
estavam ocupados com pesados cuidados de administração, a vida decorria facilmente
numa cinzenta monotonia. Assim nasceu uma vontade de diversões que, quando o
solo natal lhe não oferecia alimento suficiente, procurava a sua satisfação em
terras longínquas. Inclinado a exigir dos seus vassalos um serviço pontual,
Guilherme, o Conquistador, dizia dum deles, cujos feudos acabava de confiscar,
para o castigar por ter ousado, sem a sua autorização, partir para a cruzada de
Espanha: “Não creio que possa encontrar-se, entre os guerreiros, um cavaleiro
melhor; mas é inconstante, pródigo e passa todo o tempo a correr através dos
países.”244 A quantos outros não se aplicaria esta
frase? Esta índole nômada foi, sem discussão, particularmente frequente nos
Franceses. Porque a sua pátria não lhes oferecia, como a Espanha meio
muçulmana, ou, em menor grau, a Alemanha, com a sua fronteira eslava, terrenos
próximos de conquistas ou de surtidas; nem, como a Alemanha, ainda, as
limitações e os prazeres das grandes expedições imperiais. Provavelmente,
também, a classe dos cavaleiros ali era mais numerosa do que noutros lugares,
por conseguinte, mais pobre. Na própria França, muitas vezes se tem observado
que a Normandia foi, de todas as províncias, a mais rica de audazes
aventureiros. Já o alemão Otão de Freising falava da “gente muito inquieta dos Normandos”.
Herança do sangue dos Vikings? Talvez. Mas sobretudo efeito da relativa paz que
os duques cedo fizeram reinar neste principado notavelmente centralizado: era
forçoso ir procurar fora a ocasião para os sonhados golpes de espada. A
Flandres, onde as condições políticas não eram muito diferentes, forneceu um
contingente quase igual às peregrinações guerreiras.
Estes cavaleiros andantes — a
expressão é daquele tempo245 — ajudaram na Espanha
os cristãos indígenas a reconquistarem o Norte da península ao Islão; criaram,
na Itália do Sul, os Estados normandos; fizeram-se contratar, antes da primeira
cruzada, como mercenários ao serviço de Bizâncio, nos caminhos do Oriente;
encontraram, finalmente, na conquista e na defesa do Túmulo de Cristo o seu
campo de ação preferido. Quer fosse da Espanha ou da Síria, a Guerra Santa não
oferecia a atração duma aventura que era também uma obra pia? “Já não é preciso
levar vida dura na mais rigorosa das ordens...”, canta um trovador; “por feitos
que são honrosos, escapar ao mesmo tempo do inferno: o que de melhor desejar?246 “Estas migrações contribuíram para manter as ligações entre
mundos que estavam separados por distâncias tão longas e de contrastes tão
vivos: elas propagaram a cultura ocidental e especialmente a francesa, para
além dos seus limites próprios. Por exemplo, o destino dum Hervé, o
“Francopoule”, aprisionado por um emir, em 1507, quando era comandante junto do
lago Van, não tem matéria que chegue para fazer sonhar? Ao mesmo tempo, as
sangrias assim praticadas nos grupos mais turbulentos do Ocidente evitavam à
civilização morrer sufocada pelas guerrilhas. Os cronistas bem sabiam que
sempre, quando partia uma cruzada, os velhos países, reencontrando um pouco de
paz, respiravam melhor247.
Obrigação jurídica, algumas
vezes, prazer, muitas, a guerra podia também ser imposta ao cavaleiro como
ponto de honra. Não vemos, no século XII, o Périgord ensanguentado porque um
senhor, achando que um dos seus nobres vizinhos tinha aspecto de ferreiro, teve
o mau gosto de não o reconhecer?248. Mas a guerra
era ainda, e acima de tudo, talvez, uma fonte de lucro. Na verdade, era a
indústria nobiliária por excelência.
Citámos mais atrás as efusões
líricas de Bertrand de Born. Ora, ele próprio não fazia segredo das razões menos
gloriosas que, acima de tudo, o inclinavam a “não encontrar prazer na paz”. Diz
ele, algures, porque desejo eu “que os ricos homens se odeiem entre eles”? “É
que um rico homem é muito mais nobre, generoso e acolhedor na guerra do que na
paz”. E, mais cruamente, quando eram anunciadas as hostilidades: “Vamos rir.
Pois os barões apreciar-nos-ão... e se quiserem que fiquemos com eles, hão-de
dar-nos “barbarins” (era uma moeda de Limoges).” Mas este grande amor pelos
combates tem ainda outro motivo: “Trompas, tambores, bandeiras e flâmulas — e
estandartes e cavalos brancos e negros, — eis o que veremos daqui a pouco. E
será um tempo bom pois tomaremos os bens dos usurários — e pelas estradas não
mais circularão animais de carga, — de dia, em toda a segurança; nem burgueses
destemidos — nem o mercador que se encaminha para França; — mas será rico
aquele que se “apoderar com gosto”. O poeta pertencia àquela classe de pequenos
possuidores de feudos — de vassasseurs (vassalos de vassalos), como ele
próprio se intitulava — cuja vida na casa ancestral não carecia apenas de
alegria; nem sempre era fácil, também. A guerra trazia um remédio para isso,
proporcionando as generosidades dos grandes chefes e as boas pilhagens.
Para com os próprios vassalos que
os mais estritos deveres do serviço chamavam para junto de si, a preocupação do
seu prestígio, bem como do seu interesse, bem entendido, ordenava ao barão que
não poupasse as larguezas. Se se pretendia reter os homens do feudo para além
do tempo estabelecido, levá-los mais longe ou requisitá-los mais vezes do que o
costume, que cada vez se tornava mais rigoroso, o permitia, era forçoso
redobrar de liberalidades. Enfim, perante a crescente insuficiência dos
contingentes vassálicos, bem depressa não existia exército que pudesse
dispensar o concurso dessa massa errante de guerreadores sobre os quais tão
fortemente se exercia a atração da aventura, desde que a esperança do lucro se
aliasse à dos grandes golpes de espada. Cinicamente, o nosso Bertrand
oferecia-se ao conde de Poitiers. “Posso ajudar-vos. Já tenho o escudo no braço
e o elmo na cabeça... Porém, sem dinheiro, como posso entrar na campanha?”249
Mas entre as dádivas do chefe, a
mais bela parecia certamente a permissão de fazer pilhagem. Era este também o
principal proveito que, nas pequenas guerras locais, o cavaleiro, combatendo só
para si, esperava dos combates. Dupla presa, aliás: de homens e de coisas. Sem
dúvida que a lei cristã já não permitia reduzir os cativos à escravatura:
quando muito, transferiam-se, por vezes, à força alguns camponeses ou artesãos.
Pelo contrário, o resgate era de uso corrente. Bom para um soberano duro e
sábio, como Guilherme, o Conquistador, que não largava os inimigos até à morte,
quando caíam nas suas mãos. O comum dos guerreiros não via tão longe.
Universalmente difundida, a prática do resgate tinha por vezes consequências
mais atrozes do que a antiga servidão. Na noite da batalha, conta o poeta, que
decerto se inspirava no que tinha visto, Girard de Roussillon e os seus
massacram a multidão anônima dos prisioneiros e dos feridos, poupando apenas os
“possuidores de castelos”, únicos capazes de se resgatarem contra metal sonante250. Quanto à pilhagem, era, tradicionalmente, uma fonte de
lucro tão regular que, nas épocas familiares à linguagem escrita, os textos
jurídicos a mencionam calmamente como tal: leis bárbaras e contratos de
alistamento militar do século XIII referem-se-lhe, duma ponta à outra da Idade
Média. Pesados carros, destinados a transportarem o produto das pilhagens, seguiam
os exércitos. O mais grave era que uma série de tradições, quase insensíveis
para as almas bastante simples, regulava as formas quase legítimas destas
violências — requisições indispensáveis aos exércitos desprovidos de
intendência; represálias exercidas contra o inimigo ou os seus súbditos até ao
puro banditismo, brutal e mesquinho; mercadores despojados ao longo das
estradas; ovelhas, queijos, frangos roubados nos currais ou capoeiras, tal como
fazia, nos começos do século XIII, um fidalgote catalão, obstinado em molestar
os seus vizinhos da abadia de Canigou. Os melhores contraíam estranhos hábitos.
Guilherme, o Marechal, era decerto um valente cavaleiro. No entanto, quando,
jovem e sem terras, percorria a França de torneio em torneio, tendo encontrado no
seu caminho um monge que fugia com uma jovem nobre e, para cúmulo, confessava
candidamente a intenção de aumentar o seu dinheiro pelo exercício da usura, não
teve qualquer escrúpulo de se apropriar dos dinheiros do pobre diabo, a título
de castigo por tão negros desígnios. E um dos seus companheiros ainda lhe
censurou o não se ter apoderado também do cavalo251.
Semelhantes costumes fazem supor,
é óbvio, um grande desprezo pela vida e pelo sofrimento humano. A guerra da
idade feudal nada tinha de uma guerra de punhos de renda. Era acompanhada de
práticas que hoje não nos parecem nada corteses: tais como, frequentemente, o
massacre ou a mutilação das guarnições que haviam resistido “demasiado tempo”.
Isto, por vezes, com desprezo até do juramento. A guerra comportava, como um
acessório natural, a devastação das terras inimigas. Aqui e além, um poeta,
como aquele de Huon de Bordeaux, mais tarde um piedoso rei, como São Luís,
podem hem protestar contra este “gast” dos campos, que originava, para os
inocentes, misérias horríveis. Fiel intérprete da realidade, a epopeia, tanto
alemã como francesa, está cheia das imagens de países que “deitam fumo” em
redor. “Não há verdadeira guerra sem fogo e sem sangue”, dizia o sincero
Bertrand de Born252.
Em duas passagens, dum
significativo paralelismo, o poeta de Girard de Roussillon e o biógrafo anônimo
do imperador Henrique IV mostram-nos o que o regresso à paz significava para os
“pobres cavaleiros”: o receio do desprezo a que, daí em diante, serão votados
pelos grandes, que não terão já necessidade deles; as exigências dos usurários;
o pesado cavalo da lavoura, a substituir o cavalo transpirado das batalhas, as
esporas de ferro, em vez das de oiro — numa palavra, uma crise econômica e uma
crise de prestígio253. Para o comerciante, pelo
contrário, e para o camponês, era a possibilidade de voltar a trabalhar, de se
alimentar, em suma, de viver. Demos a palavra, uma vez mais, ao inteligente
trovador de Girard de Roussillon. Proscrito e arrependido, Girard, com sua
mulher, erra através do país. A duquesa pensa ser prudente persuadir uns
mercadores que encontraram de que o bandido, cujas feições eles julgam
reconhecer, já não existe; diz: “Girard morreu; vi enterrá-lo! — “Deus seja
louvado!” respondem os mercadores, “porque ele fazia constantemente guerras e
por causa dele sofremos bastante”. Ao ouvir estas palavras, Girard exaltou-se;
se tivesse a sua espada “teria morto um deles”. Episódio vivido, que ilustra a
antítese que definia as classes e que tinha dois gumes. Pois o cavaleiro, do
alto da sua coragem e da sua destreza, desprezava por sua vez o povo alheio às
armas, imbellis: vilãos, que, perante os exércitos, fugiam “como
veados”; e, mais tarde, os burgueses, cujo poder econômico lhe parecia tanto
mais odioso quanto era obtido por meios a um tempo misteriosos e diretamente
opostos à sua própria atividade. Se a tendência para os gestos sangrentos
estava espalhada por toda a parte — vários abades até pereceram, vítimas de
ódios de claustro — a concepção da guerra necessária, como origem de honra e
como ganha-pão, era verdadeiramente aquilo que distinguia a pequena sociedade
das pessoas “nobres”.”
241 Ed. Appel, n.° 40; comparar,
por exemplo, Girart de Vienne, ed. Yeandle, v. 2108 e seg.
242
HARTMANN VON AUE, Gregorius, v. 1547-1533.
*: medida antiga de capacidade, equivalente
aproximadamente a 0,4 litros. (N. da T.)
243 La chançun de Guillelme. ed. Suchler, v. 1055 e seg.
244 ORDERIC VIDAL. Histoire ecclésiastique, ed. Le Prevost, t. III, p. 248.
245 Guillaume le Maréchal, ed. P. Meyer, v. 2777 e 2782 (trata-se, aliás, de cavaleiros que percorrem
os torneios).
246
PONS DE CHAPDEUIL, em RAYNOUARD, Choix, IV, pp. 89 e 92.
247
ERDMANN, Die Entstehung des Kreuzzugsgedankens, 1935 (“Fors-chungen zur
Kirchen-und Geistesgeschichte”, VI), pp. 312-313.
248 GEOFFROI DE VIGEOIS,
I, 6 em LABBE, Bibliotheca, t. II, p. 281.
249
BERTRAND DE B., ed. Appel, 10, 2; 35, 2; 37, 3; 28, 3.
250
GUIBERT DE NOGENT. De vita, ed. Bourgin, I, c. 13, p.
43 — Girart de Roussillon, trad. P. MEYER. p. 42.
251 Por. exemplo, acerca
da pilhagem, Codex Euricianus, c. 323; MARLOT, Histoire de l’eglise
de Reims, t. III, O. just. n.° LXVII (1127); — Os carros: Garin le
Lorrain, ed. P. Paris. t. I, pp. 195 e 197. — As reclamações dos monges de
Canigou: LUCHAIRE, La sociêté française au temps de Philippe Auguste, 1909,
p. 265.
252
Huon, ed. F. Guessard, p. 41, v. 1353-54 — LOUIS IX. Enseignements. c.
23. em Ch. V. LANGLOIS. La vie spirituelle, p. 40 — B. DE BORN. 26, v.
15.
253
Girart de Roussillon, trad. P. MEYER. §§ 633 e 637 — Vita Henrici, ed. W. Eberhard. c. 8
Um comentário:
Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
Desta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.
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