Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-8217-463-0
Tradução: Rogério Bettoni
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Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
Apenas um Deus que sofre pode nos salvar – Slavoj Žižek
“Para Hegel, a codependência desses dois
aspectos da kenosis – a autoalienação
de Deus e a alienação do indivíduo em relação a Deus, indivíduo que experimenta
a si mesmo como sozinho num mundo ímpio, abandonado por Deus, que habita em
algum Além transcendente e inacessível – atinge sua máxima tensão no
protestantismo. O protestantismo e a crítica do Esclarecimento às superstições
religiosas são a frente e o verso da mesma moeda. O ponto de partida desse
movimento inteiro é o pensamento católico medieval de pensadores como Tomás de
Aquino, para quem a filosofia deveria ser subordinada da fé: fé e conhecimento,
teologia e filosofia, suplementam-se como uma distinção harmoniosa e não
conflituosa dentro (sob o predomínio) da teologia. Por mais que Deus em si
continue sendo um mistério imperscrutável para nossas capacidades cognitivas
limitadas, a razão também pode nos levar na direção dele ao nos permitir
reconhecer seus traços na realidade criada – essa é a premissa das cinco
versões de Aquino da prova de Deus (a observação racional da realidade material
como uma rede de causas e efeitos nos leva à percepção necessária de como deve
haver uma Causa primária para todas as coisas, etc.). Com o protestantismo,
essa unidade se rompe: de um lado temos o universo sem Deus, o objeto peculiar
de nossa razão, e o Além divino e imperscrutável está separado dele por um
hiato. Confrontados com essa ruptura, podemos fazer duas coisas: ou negamos
qualquer significado a um Além sobrenatural, descartando-o como uma ilusão
supersticiosa, ou continuamos religiosos e libertamos nossa fé do domínio da razão,
concebendo-a precisamente como um ato de pura fé (sentimento interno autêntico,
etc.). O que aqui interessa a Hegel é como essa tensão entre filosofia
(pensamento racional esclarecido) e religião acaba em um “mútuo aviltamento e
abastardamento”¹. Em um primeiro momento, a Razão parece estar na ofensiva, e a
religião, na defensiva, tentando desesperadamente forjar um espaço para si
mesma fora do domínio da Razão: sob a pressão da crítica do Esclarecimento e
dos avanços da ciência, a religião se retira humildemente para o espaço interno
dos sentimentos autênticos. No entanto, o preço final é pago pela própria Razão
esclarecida: essa derrota da religião acaba em sua autoderrota, em sua
autolimitação, de modo que, na conclusão de todo esse movimento, a lacuna entre
fé e conhecimento reaparece, mas transposta para o campo do próprio saber
(Razão):
A razão – que desse modo já tinha descido em si e por apreender a
religião apenas como algo positivo, mas não idealmente – não pôde fazer nada de
melhor depois da luta do que daqui para adiante olhar para si mesma, chegar ao
seu conhecimento de si, reconhecendo o seu não ser ao pôr, já que é apenas
entendimento, o que é melhor do que ela em uma fé fora e acima de si, como um
para-além, tal como aconteceu nas filosofias de Kant, Jacobi e Fichte, e
reconhecendo que ela se fez novamente criada de uma fé.²
Os dois polos, portanto, são aviltados: a
Razão se torna o mero “intelecto”, uma ferramenta para manipular objetos
empíricos, um mero instrumento pragmático do animal humano, e a religião se
torna um sentimento interior impotente que nunca pode ser realmente efetivado,
pois no momento em que se tenta transpô-lo para a realidade exterior,
regressa-se à idolatria católica que fetichiza os objetos naturais
contingentes. O epítome desse desenvolvimento é a filosofia de Kant: Kant
começou como o grande destruidor, com sua crítica implacável à teologia, e
acabou – segundo ele mesmo disse – limitando o escopo da Razão para criar
espaço para a fé. O que ele coloca de maneira exemplar é como a denigração
implacável e a limitação, realizada pelo Esclarecimento, de seu inimigo
exterior (a fé, à qual é negado qualquer status cognitivo – a religião é um
sentimento sem valor cognitivo de verdade) invertem-se para a autodenigração e
a autolimitação da Razão (a Razão só pode legitimamente com os objetos da
experiência fenomenal; a verdadeira Realidade lhe é inacessível). A insistência
protestante na fé apenas, em como os verdadeiros templos e altares a Deus
deveriam ser construídos no coração do indivíduo, e não na realidade exterior,
é um indício de como a atitude antirreligiosa do Esclarecimento não pode
resolver “seu próprio problema, o problema da subjetividade dominada pela
absoluta solidão”³. O resultado final do Esclarecimento, portanto, é a
singularidade absoluta do sujeito destituído de todo conteúdo substancial,
reduzido a um ponto vazio de negatividade autorrelativa, um sujeito totalmente
alienado do conteúdo substancial, inclusive de seu próprio conteúdo. E, para Hegel, a passagem por esse ponto zero
é necessária, pois a solução não é dada por nenhum tipo de síntese renovada da
reconciliação entre Fé e Razão: com o advento da modernidade, a mágica do
universo encantado se perde para sempre, a realidade permanecerá cinza para sempre.
A única solução é, como já vimos, a própria duplicação da alienação, a
constatação de como minha alienação em relação ao Absoluto coincide com a
autoalienação do Absoluto: eu sou “em” Deus em minha própria distância dele.”
1: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lectures
on the Philosophy of Religion.
2: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fé
e saber.
3: MALABOU. The Future of Hegel.
“De acordo com uma anedota do período de Maio
de 1968, havia uma frase grafitada num muro em Paris: “Deus está morto –
Nietzsche”. No dia seguinte, apareceu outra frase grafitada em baixo:
“Nietzsche está morto – Deus”. O que há de errado com essa piada? Por que ela é
reacionária de uma maneira tão clara? Não é apenas que a declaração invertida
seja baseada numa platitude moralista sem verdade inerente; sua falha é mais
profunda e diz respeito à forma da própria reversão. O que faz a piada ser ruim
é a simetria pura da reversão – a alegação subjacente da primeira frase, “Deus
está morto. Assinado, Nietzsche (obviamente, o ser vivo)”, é revertida numa
declaração que implica: “Nietzsche está morto, enquanto eu ainda vivo.
Assinado, Deus”. O que é fundamental para o efeito propriamente cômico não é a
diferença naquilo que esperamos ver igualdade, mas sim a igualdade naquilo que
esperamos a diferença – é por isso que, como apontou Alenka Zupančič, a versão
propriamente cômica da piada seria mais ou menos assim: “Deus está morto. E, na
verdade, também não me sinto muito bem...”.
“De acordo com a perspectiva-padrão da
filosofia da finitude, a tragédia grega sinaliza a aceitação da lacuna, do
fracasso, da derrota, do não fechamento, como horizonte definitivo da
existência humana, ao passo que a comédia cristã fia-se na certeza de que um
Deus transcendente garante um final feliz, a “suprassunção” da lacuna, a
reversão do fracasso em triunfo final. O excesso da fúria divina como anverso
do amor cristão nos permite perceber o que essa visão-padrão deixa passar: que
a comédia cristã do amor só pode ocorrer no contexto da perda radical da
dignidade humana, de uma degradação que destrói de maneira precisa a
experiência trágica: só é possível experimentar uma situação como “trágica”
quando a vítima retém um mínimo de dignidade. Por esse motivo, não é apenas
errado, mas também eticamente obsceno definir um Muselmann¹ no campo de concentração, ou uma vítima de um
julgamento-espetáculo stalinista, como trágico – a situação deles é terrível
demais para merecer essa designação. “Cômico” também representa um domínio que
surge quando o horror de uma situação excede os confins do trágico. E é nesse
ponto que o amor propriamente cristão entra em ação: não o amor pelo homem como
herói trágico, mas um amor pelo abjeto miserável a que homens e mulheres são
reduzidos depois de serem expostos ao acesso arbitrário de fúria divina.”
1: “Muselmann”,
que literalmente significa “muçulmano”, era o termo alemão usado amplamente nos
campos de concentração para se referir às vítimas prisioneiras que sofriam um
extermínio gradual provocado por exaustão, inanição ou falta total de
esperança. (N.T.)
“Durante décadas, circulou uma piada clássica
entre os lacanianos que exemplifica o papel-chave do saber do Outro: um homem
que acredita ser uma semente é levado para uma instituição mental onde os
médicos fazem o melhor que podem para convencê-lo de que ele não é uma semente,
mas um homem. No entanto, depois que é curado e autorizado a deixar o hospital,
ele volta imediatamente, tremendo, com medo – há uma galinha do lado de fora, e
ele está com medo de ser comido por ela. “Meu caro”, diz o médico, “você sabe
muito bem que não é uma semente, mas sim um homem.” “É claro que eu sei”,
responde o paciente, “mas será que a galinha sabe disso?” Nisso consiste o
verdadeiro teste do tratamento psicanalítico: não basta convencer o paciente da
verdade inconsciente de seus sintomas, é preciso fazer o próprio Inconsciente
assumir essa verdade. É nesse aspecto que Hannibal Lecter, aquele
protolacaniano, estava errado: o verdadeiro núcleo traumático do sujeito não é
o silêncio dos cordeiros, mas a ignorância das galinhas... Exatamente o mesmo
não é válido para a noção marxiana de fetichismo da mercadoria? Vejamos o
início da famosa seção 4 do capítulo 1 de O capital, sobre “O caráter fetichista
da mercadoria e seu segredo”: “À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa
trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada,
cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”.¹
Essas linhas deveriam nos surpreender, uma vez
que invertem o procedimento-padrão de desmistificar um mito teológico,
reduzindo-o a sua base terrestre: Marx não diz, como de costume na crítica do
Esclarecimento, que a análise crítica deveria demonstrar como o que aparece
como ente teológico misterioso na verdade surgiu de processos “ordinários” da
vida real; ele diz, ao contrário, que a tarefa da análise crítica é revelar
“sutilezas metafísicas e manhas teológicas” no que parece, à primeira vista,
ser apenas um objeto ordinário. Em outras palavras, quando um crítico marxista
encontra um sujeito burguês imerso no fetichismo da mercadoria, a reprimenda
que o marxista faz a ele não é “A mercadoria pode lhe parecer um objeto mágico
dotado de poderes especiais, mas na verdade não passa de uma expressão reificada
das relações entre as pessoas”, mas sim “Você pode pensar que a mercadoria lhe
parece ser uma simples incorporação das relações sociais (que, por exemplo, o
dinheiro é apenas um tipo de voucher
que lhe garante o direito a uma parte do produto social), mas não é assim que
as coisas de fato lhe parecem – em sua realidade social, através de sua
participação na troca social, você atesta o fato estranho de que uma mercadoria
realmente aparece para você como um objeto mágico dotado de poderes especiais”.
Em outras palavras, podemos imaginar um sujeito burguês fazendo um curso sobre
marxismo no qual aprende sobre o fetichismo da mercadoria; no entanto, quando o
curso acaba, ele se dirige ao professor e reclama que continua sendo vítima do
fetichismo da mercadoria. O professor lhe diz: “Mas agora você sabe como são as
coisas, você sabe que as mercadorias são apenas expressões das relações
sociais, que não existe nada de mágico nelas!”, ao que o aluno responde: “É
claro que sei disso tudo, mas as
mercadorias com as quais eu lido parecem não saber disso!”. (...)
Alenka Zupančič leva esse ponto até o fim e
imagina um exemplo brilhante referente a Deus:
Na sociedade esclarecida, digamos, do terror revolucionário, um homem é
preso porque acredita em Deus. De diversas maneiras, mas sobretudo por meio de
uma explicação esclarecida, é-lhe transmitido o conhecimento de que Deus não
existe. Quando sai da prisão, o homem volta correndo e explica que tem muito
medo de ser punido por Deus. É claro que ele sabe que Deus não existe, mas Deus
também sabe disso?²
E, é claro, é exatamente isso que aconteceu
(apenas) no cristianismo quando, ao morrer na cruz, Cristo diz: “Pai, pai, por
que me abandonaste?” – aqui, por um breve momento, Deus não acredita em si
mesmo – ou, como coloca G. K. Chesterton de maneira enfática:
O mundo foi abalado e o sol desapareceu do céu não no momento da
crucificação, mas no momento do grito do alto da cruz: o grito que confessou
que Deus foi abandonado por Deus. E agora deixemos que os revolucionários
escolham um credo dentre todos os credos e um deus dentre todos os deuses do
mundo, ponderando com cuidado todos os deuses de inevitável recorrência e poder
inalterável. Eles não encontrarão um outro deus que tenha ele mesmo passado
pela revolta. Não (a questão torna-se difícil demais para a fala humana), mas
deixemos que os próprios ateus escolham um deus. Eles encontrarão apenas uma
divindade que chegou a expressar a desolação deles; apenas uma religião em que
Deus por um instante deixou a impressão de ser ateu.³
Nesse sentido preciso, a era atual talvez
seja menos ateísta que a anterior: estamos todos prontos para nos entregar ao
completo ceticismo e à distância cínica, à exploração dos outros “sem quaisquer
ilusões”, à violação de todos os limites éticos, a práticas sexuais extremas,
etc. – protegidos pela consciência silenciosa de que o grande Outro ignora tudo
isso:
O sujeito está pronto para agir consideravelmente, para mudar
radicalmente, somente se puder permanecer inalterado no Outro (no Simbólico como
mundo exterior no qual, em termos hegelianos, está incorporada a consciência
que o sujeito tem de si, materializada como algo que ainda não sabe de si como
consciência). Nesse caso, a crença no Outro (na forma moderna de acreditar que
o Outro não sabe) é justamente o que ajuda a manter o mesmo estado de coisas,
independentemente de todas as mutações e permutações subjetivas. O universo do
sujeito vai realmente mudar apenas no momento em que ele atingir o conhecimento
de que o Outro sabe (que não existe).4
Niels Bohr, que deu a resposta correta à
frase “Deus não joga dados”, de Einstein (“Não diga a Deus o que fazer!”),
também deu o exemplo perfeito de como a renegação fetichista da crença funciona
na ideologia: ao ver uma ferradura na porta da casa de Bohr, o visitante
surpreso perguntou se ele acreditava na superstição de que a ferradura dava
sorte, ao que Bohr respondeu: “É claro que não, mas me disseram que funciona
mesmo se a gente não acreditar!”. Esse paradoxo esclarece a atitude reflexiva
da crença: nunca se trata apenas de acreditar – é preciso acreditar na própria
crença. Por isso Kierkegaard estava certo ao dizer que não acreditamos
realmente (em Cristo), apenas acreditamos que acreditamos – Bohr nos coloca de
frente com a negativa lógica dessa reflexividade (também é possível não acreditarmos em nossas crenças...).
Nesse aspecto, os Alcóolicos Anônimos
encontram Pascal: “Finja até conseguir”. No entanto, essa causalidade pelo
hábito é mais complexa do que parece: longe de oferecer uma explicação de como
surge a crença, ela mesma pede uma explicação. A primeira coisa a esclarecer é
que a máxima “Ajoelhe-se e acreditará!”, de Pascal, tem de ser entendida como
algo que envolve um tipo de causalidade autorreferencial: “Ajoelhe-se e você
acreditará que ajoelhou porque acreditava!”. A segunda coisa é que, no
funcionamento cínico “normal” da ideologia, a crença é deslocada para o outro,
para um “sujeito suposto acreditar”, de modo que a verdadeira lógica é:
“Ajoelhe-se e assim você fará alguém
acreditar!”. É preciso tomar isso literalmente e ainda arriscar um tipo de
inversão da fórmula de Pascal: “Você acredita demais, diretamente demais? Acha
que sua crença é opressora demais em sua imediaticidade? Então se ajoelhe, aja
como se acreditasse e você se livrará de
sua crença – não mais terá de acreditar, sua crença já existirá objetificada
no seu ato de oração!”. Ou seja, e se o sujeito ajoelha e reza não para reobter
sua própria crença, mas sim, ao contrário, para se livrar dela, para obter uma distância mínima de sua proximidade
excessiva, um espaço para respirar? Acreditar “diretamente” – sem a mediação
exteriorizadora de um ritual – é um fardo pesado, opressor e traumático que,
através de um ritual, o sujeito tem a chance de transferir para um Outro. Se
existe uma injunção ética freudiana, é a injunção de que deveríamos ter a coragem
de nossas próprias convicções, não deveríamos ter medo de assumir totalmente
nossas próprias identificações. E o mesmo se aplica ao casamento: o pressuposto
implícito (ou melhor, a injunção) da ideologia-padrão do casamento é justamente
que no casamento não deveria ter amor. A fórmula pascaliana do casamento,
portanto, não é: “Você não ama seu parceiro? Então se case com ele, passe pelo
ritual de uma vida compartilhada, e o amor surgirá por si mesmo!”, mas, ao
contrário: “Você está muito apaixonado por alguém? Então se case, ritualize sua
relação para se curar do apego apaixonado excessivo e substituí-lo por uma
rotina enfadonha – e se não puder resistir à tentação da paixão, sempre haverá
casos extraconjugais...”.
Isso nos leva ao chamado “fundamentalismo”, o
oposto da atitude “tolerante” da crença deslocada: aqui, o funcionamento
“normal” da ideologia na qual a crença ideológica é transposta para o Outro é
perturbado pelo retorno violento da crença imediata – o fundamentalista
“realmente acredita”. Ou seriam eles? E se a fé neo-obscurantista em todas as
suas formas, desde teorias da conspiração a misticismos irracionais, na verdade
surgir quando a própria fé, a confiança básica no grande Outro ou na ordem
simbólica, fracassa? Não é esse o caso da atualidade?
Isso nos leva à fórmula do fundamentalismo: o
que é forcluído do simbólico (crença) retorna no real (de um conhecimento
direto). O fundamentalista não acredita, ele sabe diretamente. Dito de outra
forma: o cinismo cético liberal e o fundamentalismo compartilham uma característica subjacente básica: a perda da
capacidade de acreditar no sentido próprio do termo. Para ambos, as declarações
religiosas são declarações quase-empíricas do conhecimento direto: os
fundamentalistas as aceitam como tal, enquanto os cínicos céticos as
ridicularizam. Impensável para eles é o ato “absurdo” de decisão que estabelece cada crença autêntica, uma decisão que não
pode ser fundamentada na cadeia de “razões”, no conhecimento positivo: a
“hipocrisia sincera” de Anne Frank, que, diante da depravação terrível dos
nazistas, num verdadeiro ato de credo
quia absurdum, afirmou sua crença na bondade fundamental de todos os seres
humanos. (Nesse sentido, o estatuto dos “direitos humanos universais” também é
o de uma crença pura: eles não podem ser fundamentados em nosso conhecimento de
natureza humana, são um axioma posto por nossa decisão.) Desse modo, somos
forçados a chegar à conclusão paradoxal: na oposição entre os humanistas
seculares tradicionais e os fundamentalistas religiosos, os humanistas
representam a crença, e os fundamentalistas representam o conhecimento – em
suma, o verdadeiro perigo do fundamentalismo não está no fato de ele
representar uma ameaça ao conhecimento científico secular, mas sim no fato de
ele representar uma ameaça à própria crença autêntica.”
1: MARX, Karl. O capital.
2 e 4: 102 ZUPANČIČ. The “Concrete
Universal”, and What Comedy Can Tell Us About I.
3: CHESTERTON, G. K. Ortodoxia
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A emocionante aventura da ortodoxia radical: exercícios espirituais –
Boris Gunjević
“Seguindo Agostinho, a ortodoxia radical, em
seus textos, quer mostrar que o desejo em si é escravizado e maculado pelo
pecado porque não é direcionado por Deus, mas por nós mesmos, e por isso “nosso
coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. Essa inquietude da alma,
segundo a Ortodoxia Radical, é evidente na obsessão pós-moderna com várias
formas perversas de sexualidade que destroem o eros, o amor e o corpo,
moldando-os nos termos das leis do mercado, em que tudo se torna mercadoria. O
desejo, nesse caso, é definido como falta e escassez perpetuamente voltadas
para nós mesmos. Nunca satisfazemos plenamente esse desejo. Por esse motivo, de
modo mimético, desejamos o que os outros desejam. Esse é o princípio
fundamental da racionalidade capitalista, segundo a qual funcionam as leis do
mercado, escravizando “ontologicamente” o desejo.
Interpretando Gilles Deleuze, Daniel M. Bell
Jr. argumenta que o capitalismo é uma disciplina pecaminosa do desejo. O
capitalismo é “uma forma de desejo, um modo de vida que capta e distorce o
desejo humano de acordo com a regra de ouro da produção para o mercado”¹.
Parece que a produção capitalista prevalece porque sua vitória é “ontológica”,
uma vez que se funda na disciplina efetiva do desejo como poder humano constitutivo.
Para nos libertarmos dessa “tecnologia do desejo”, precisamos de uma “terapia”
do desejo muito específica. Precisamos de uma antiprática teológica que vai
curar nosso desejo, como Pickstock notou tão apropriadamente. A ortodoxia
radical está convencida de que apenas o cristianismo pode remodelar e
redirecionar o desejo. Vivenciada pela física da liturgia, a beleza da
narrativa cristã pode curar o eros ferido ao redirecionar o desejo para a
plenitude infinita da beleza de Deus. O curso do desejo e a abertura do eros
ferido podem ser arrancados da racionalidade capitalista do mercado de uma
maneira romântica, através de uma terapia litúrgica que não interpretará a
natureza como dada, mas como dádiva. Pickstock observa que Aquino já falava
sobre modular o desejo pela liturgia, e que o próprio ato de preparação para a
liturgia está intimamente ligado ao desejo humano. Pickstock resumiu essa
questão da seguinte maneira:
Vemos, portanto, que a Eucaristia é desejo. Embora conheçamos pelo
desejo, ou pela vontade de conhecer, e embora essa circunstância apenas resolva
a aporia da aprendizagem, para além disso nós descobrimos que o que há para se
conhecer é o desejo. Mas não o desejo como ausência, falta e adiamento
perpétuo; antes, o desejo como fluxo livre de efetivação, perpetuamente
renovado e jamais forcluído².”
1: BELL, Daniel M. Liberation
Theology After the End of History: The Refusal to Cease Suffering. London:
Routledge, 2001. p. 2.
2: PICKSTOCK, Catherine. Thomas
Aquinas and the Quest for the Eucharist. Modern Theology, v. 15, n. 2,
Apr. 1999, p. 178-179.
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Rezai e observai: a subversão messiânica – Boris Gunjević
“Vale destacar que no texto de Marcos os
demônios obedecem vontade de Jesus, enquanto as pessoas têm a chance de
escolher.”
“• Os momentos-chave para entender o texto de
Marcos não são as perguntas feitas a Jesus, tampouco as respostas dadas por ele
ou suas ações simbólicas (cura, exorcismos, milagres alimentando os famintos),
muito menos suas palavras, mas sim as perguntas que faz aos discípulos, aos
adversários e, na verdade, aos leitores, como estas: “É permitido, no sábado,
fazer o bem ou fazer o mal?”, “Quem são minha mãe e meus irmãos?”, “Por que
tendes medo? Ainda não tendes fé?”, “Então, nem vós tendes inteligência?”,
“Quem dizem os homens que eu sou?”, “E vós, quem dizeis que eu sou?”, “Sobre o
que discutíeis no caminho?”, “Podeis beber o cálice que eu vou beber e ser
batizado com o batismo com que serei batizado?”, “De quem é esta imagem e a inscrição?”,
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”. Essas perguntas são primeiro
voltadas para nós, leitores, hoje, e não para os personagens da história. Jesus
não responde explicitamente nenhuma pergunta, mas usa parábolas e histórias.
• Usando a ironia de forma abundante (o cego
Bartimeu é o único que vê quem é Jesus, e, ao curá-lo, Jesus mostra que todos
ao redor de Bartimeu são cegos), Marcos não retrata Jesus como um errante
milagreiro e carismático, mas principalmente como um Messias pacífico e como
Filho apocalíptico do Homem que radicalmente redefine e subverte a estrutura
hierárquica social e cultural do poder, que, como sabemos, está sempre
codificada simbolicamente. Essa taxonomia simbólica é fundada no discurso
religioso da elite judaica e legitimada pela prática política e econômica da
violência perpetrada pelo Império Romano.
• Desde o princípio do relato, o Jesus de
Marcos questiona a “ortodoxia social” que legitima o construto da realidade
patriarcal. Jesus, na Galileia, cura a mãe da esposa de Pedro, “e ela se pôs a
servi-los” (Marcos 1, 31). Isso não
significa que ela lhes preparou um delicioso jantar, mas sim que ela os serviu
(diakonia) da maneira característica
de quem responde ao chamado messiânico e vê sua efetivação em Jesus. O termo diakonia é mencionado apenas duas vezes
no texto inteiro. A segunda menção desse mesmo verbo está na frase mais
importante: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para...” (Marcos 10, 45). As mulheres, no texto de
Marcos, são apresentadas como modelos paradigmáticos da prática messiânica. Ao
círculo interno de discípulos privilegiados formado por Pedro, Tiago e João, o
escritor justapõe três mulheres: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé
(Marcos 15, 40-1). Uma desconhecida o
unge e o reconhece como Messias, enquanto um discípulo o trai. As mulheres dão
testemunho de sua agonia na cruz. Elas o seguem e o servem desde o início da
missão na Galileia. Muitas outras mulheres de Jerusalém se juntam a elas. Elas
são as primeiras a se dirigirem ao sepulcro, fazendo a pergunta: “Quem rolará a
pedra da entrada do túmulo para nós?” (Marcos
16, 3), pois o sepulcro de Cristo estava fechado por uma rocha. As mulheres
querem corroborar a verdade das palavras de Jesus. Em seus discursos, ele
prometeu ressuscitar. As mulheres, encarnando o modelo dos discípulos, vão ao
sepulcro do Messias e demonstram a necessidade de uma visão bilateral da
realidade: “E erguendo os olhos, viram que a pedra já fora removida” (Marcos 16, 4).
Quase metade do relato de Marcos fala do
sofrimento e da morte de Jesus, portanto não admira que ele fale do sofrimento
de Jesus depois de uma longa introdução. Os leitores de Marcos precisam ser
convencidos de que Jesus é o apocalíptico Filho de Deus, e não um curandeiro
misericordioso, carismático e apolítico. Com sua taumaturgia, os curandeiros da
Antiguidade legitimavam o status quo político e social e, ao fazê-lo, garantiam
para si mesmos privilégios econômicos e sociais. Isso é totalmente o oposto da
prática messiânica na qual insiste o carpinteiro de Nazaré. Se Jesus tiver sido
um carismático apolítico, um curandeiro errante, como muitos outros no Oriente
Médio da Antiguidade, não haverá motivo nenhum para a coalizão inescrupulosa
entre herodianos e fariseus ter conspirado contra ele, como relatado nos
primeiros capítulos do Evangelho (Marcos 3, 6). Nestes, Jesus exorciza um
homem possuído por um espírito impuro em Cafarnaum, cura a doença de diversas
pessoas e reúne alguns poucos discípulos, violando abertamente certos tabus e
colocando em questão a estratificação social na purificação ritual. Logo depois
da conspiração, Jesus consolida sua comunidade de iguais radicais, declarando
uma guerra ideológica à elite política e religiosa que se opunha a sua missão (Marcos 3, 20-35). Rodeado por uma
multidão de seguidores, o Jesus relatado por Marcos sabe do impacto de sua
própria missão, que deve ir além das margens da sociedade (o deserto e os
vilarejos da Galileia) até o centro (Jerusalém), onde o confronto final
acontecerá com os representantes corruptos do Templo e a elite urbana, que,
junto às forças que ocupam Roma, será responsável por sua morte. A guerra
ideológica é declarada por uma simples parábola e por exemplos da vida de quem
cultiva o solo (Marcos 4, 1-34), que
o público de Jesus entendia prontamente. Os comentários sobre as parábolas de
Jesus são inspiradores, porque são voltados para a comunidade de leitores, ou
seja, nós atualmente.”
“No texto de Marcos, a multidão como objeto
de práticas repressoras do Império diz respeito basicamente às pessoas
socialmente excluídas e dependentes, aos marginalizados pela fé, aos
deficientes físicos, aos doentes mentais e aos de espírito manso. Marcos
argumenta que é justamente entre essas pessoas que a nova ordem social é
semeada. Isso inclui leprosos, pessoas com necessidades especiais, prostitutas,
viúvas, órfãos, coletores de impostos – em outras palavras, as pessoas que
vivem às margens da sociedade. Jesus recorre à tática do discurso específico em
suas parábolas. Com isso, descreve e recria a realidade do Reino de Deus, além
de renovar o poder de imaginação e a percepção destruída da multidão oprimida,
de modo que ela possa participar das práticas messiânicas inauguradas por
Jesus. As parábolas de Jesus não são apenas histórias
terrenas com um significado divino,
elas também são descrições concretas de uma prática acessível à multidão
privada de direitos. Parábolas desse tipo costumam conter reviravoltas
imprevisíveis e surpreendentes, que questionam as suposições já arraigadas da
multidão. A parábola sobre o semeador subversivo descreve com uma clareza
cristalina a realidade da pobreza e do trabalho agrícola, cheia de dificuldades
bem conhecidas de todos os residentes da Judeia. Essa é a realidade determinada
pelo solo árido e não irrigado da Judeia ocupada.
O camponês espalha a semente e a esperança
pelo melhor. Esse método de semeadura era típico em toda a Palestina. Primeiro
a semente é plantada, depois o campo é arado para que as sementes se assentem o
mais profundo possível no solo, cultivado durante muitas gerações. Não há lugar
para o otimismo nesse processo. O melhor que se pode esperar é um bom ano,
apesar das ervas daninhas e do solo pobre. Essa imagem do semeador é a imagem
da pobreza agrária e sua crítica. O camponês não deve apenas alimentar sua
família e pagar os impostos territoriais, ele também deve pagar impostos sobre
os ganhos do que vende de sua colheita. Se tiver poucas ferramentas, ele
precisa alugá-las com diversos locatários, o que só aumenta os custos. Para
dificultar ainda mais as coisas, ele precisa guardar sementes para que tenha o
suficiente para o replantio no ano seguinte. Esse tipo de política agrária de
reprimir a multidão explica o fato de 75% do plantio de sementes ser perdido
porque as sementes não brotam nunca. Se no final do ano a colheita não tiver
sido satisfatória, o camponês precisa recorrer a empréstimos dos grandes
proprietários de terras a juros exorbitantes, o que o força a hipotecar o pouco
de terra que tem e incorrer na servidão do devedor. Por fim, ele chega a uma
situação em que precisa vender suas terras por um preço muito inferior ao valor
de mercado. Desse modo, ele se torna uma mão de obra barata ou, nos casos mais
extremos, vende-se à escravidão durante algum tempo para conseguir liquidar o
valor do empréstimo. Os grandes proprietários de terras tornam-se cada vez mais
ricos, enquanto os pobres tornam-se cada vez mais pobres e desesperados.
Nesse momento, Jesus fala de uma boa semente
que brota além da crença e traz uma colheita abundante, algo que confunde a
multidão. Era algo realista esperar uma colheita de 30 vezes mais do que foi
semeado, mas 100 vezes mais parecia um exagero. Na verdade, não seria nada
excessivo para um camponês com família para alimentar, impostos a pagar,
sementes a estocar para o plantio do ano seguinte e a necessidade de um
excedente para dividir com as pessoas que não têm nada. Talvez pareça que Jesus
investiu perigosamente na racionalidade dos pobres e devastados em termos
materiais e psicológicos. Mas Jesus, ao falar das práticas messiânicas, tem
algo mais em mente e o transmite apenas enigmaticamente. Quem quiser ouvir a
parábola da semente, do semeador e do solo fértil deve ter ouvidos para ouvir.
Nada pareceria mais fácil. Examinemos com mais detalhes a parábola do semeador,
que, para Marcos, era a mais importante de todas e, como veremos depois,
fornece a chave hermenêutica para a compreensão de todas as parábolas de
Jesus¹.”
1: Além dessa, só há mais duas parábolas no
texto de Marcos: sobre o crime na vinha (Marcos
12, 1-12) e sobre a teologia da observação revolucionária (Marcos 13, 1-36).
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