quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O Evangelho segundo Jesus Cristo (Parte I), de José Saramago

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★

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ISBN: 978-85-359-3033-7

Páginas: 448

Sinopse: “O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”.

Todos conhecem a história do filho de José e Maria, mas nesta narrativa ela ganha tanta beleza e tanta pungência que é como se estivesse sendo contada pela primeira vez. Nas palavras de José Paulo Paes: “Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão”.



“O que é que em nós sonha o que sonhamos, Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a seguir, e isto era uma resposta.”

 

 

“Em verdade, em verdade vos digo, não há limites para a malícia das mulheres, sobretudo as mais inocentes.”

 

 

José estava enfadado, uma notícia de tal importância deveria ter sido comunicada por ele, à mulher, em primeira mão, usando as palavras adequadas e sobretudo o tom justo, não desta maneira descabelada, os vizinhos a entrarem-lhe pela casa dentro, aos gritos. Para disfarçar a contrariedade deu ao rosto uma expressão de composta sisudez e disse, É certo que Deus nem sempre quer poder o que pode César, mas César nada pode onde só Deus pode. Fez uma pausa, como se necessitasse penetrar-se do sentido profundo das palavras que pronunciara, e acrescentou, Celebrarei a Páscoa em casa, como já tinha decidido, e irei a Belém, uma vez que assim terá de ser, e se o Senhor o permite estaremos de volta a tempo de Maria dar à luz em casa, mas se, pelo contrário, o não quiser o Senhor, então o meu filho nascerá na terra dos seus antepassados, Se não tiver de nascer no caminho, murmurou Chua, porém não tão baixo que a não ouvisse José, que disse, Muitos foram os filhos de Israel que nasceram no caminho, o meu será mais um.

A sentença era de peso, irrefutável, e como tal a receberam Ananias e a mulher, de repente sem palavras. Tinham ido ali para confortar os vizinhos pela contrariedade duma viagem forçada e comprazer-se na sua própria bondade, e agora parecia-lhes que estavam sendo postos na rua, sem cerimónia, foi nesta altura que Maria veio para Chua e lhe disse que entrasse na casa, que queria pedir-lhe conselho sobre uma lã que ali tinha para cardar, e José, querendo emendar a secura com que havia falado, disse a Ananias, Peço-te, como bom vizinho, que durante a minha ausência veles pela minha casa, que mesmo correndo tudo pelo melhor nunca estarei de volta antes de passado um mês, contando o tempo da viagem, mais os sete dias de isolamento da mulher, ou o que em cima disso tiver de ser se lhe vem a nascer uma filha, que não o permita o Senhor. Respondeu Ananias que sim, ficasse ele descansado, que da casa lhe cuidaria como se sua própria fosse, e perguntou, veio-lhe de repente, não o tinha pensado antes, Quererás tu, José, honrar-me com a tua presença na celebração da Páscoa, reunindo-te aos meus parentes e amigos, pois que não tens família em Nazaré, nem tua mulher a tem também, depois que lhe morreram os pais, tão avançados já em idade quando ela nasceu que ainda hoje as pessoas se andam perguntando como foi possível a Joaquim engendrar em Ana uma filha. Disse José, risonhamente repreensivo, Ó Ananias, lembra-te daquela murmuração de Abraão, entre a boca e as barbas, incrédulo, quando o Senhor lhe anunciou que lhe daria descendência, se poderia uma criança nascer de um homem de cem anos e se uma mulher de noventa anos seria capaz de ter filhos, ora Joaquim e Ana não estavam em tão provecta idade quanto a de Abraão e Sara em aqueles dias, portanto muito mais fácil terá sido a Deus, mas para Ele não há impossíveis, suscitar entre os meus sogros uma vergôntea. Disse o vizinho, Eram outros os tempos, o Senhor manifestava-se em presença todos os dias, não apenas nas suas obras, e José respondeu, forte em razões de doutrina, Deus é o próprio tempo, vizinho Ananias, para Deus o tempo é todo um, e Ananias ficou sem saber que resposta dar, não era agora a altura de trazer ao colóquio a controversa e nunca resolvida polémica acerca dos poderes, tanto os consubstanciais como os delegados, de Deus e de César.”

 

 

“(...) Quando voltou, achou José de cabeça perdida, sem saber que fazer, e não devemos censurá-lo, que aos homens não os ensinam a comportar-se utilmente em situações destas, nem eles querem saber, o mais de que hão-de vir a ser capazes é pegar na mão da mulher sofredora e ficar à espera de que tudo se resolva em bem. Maria, porém, está sozinha, o mundo acabaria de assombro se um judeu deste tempo ousasse cometer esse pouco. Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua. José já ali não está, nem sequer à entrada da cova. Fugiu para não ouvir os gritos, mas os gritos vão atrás dele, é como se a própria terra gritasse, a tais extremos que três pastores que andavam por perto com os seus rebanhos de ovelhas foram para José e perguntaram-lhe, Que é isto, que parece que a terra está gritando, e ele respondeu, É a minha mulher que dá à luz além naquela cova, e eles disseram, Não és destes sítios, não te conhecemos, Viemos de Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegámos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo. O crepúsculo mal deixava ver os rostos dos quatro homens, em pouco tempo todos os traços se iriam apagar, mas as vozes prosseguiam, Tens comida, perguntou um dos pastores, Pouca, respondeu José, e a mesma voz, Quando tudo estiver terminado vem dizer-me e levar-te-ei leite das minhas ovelhas, e logo a segunda voz se ouviu, E eu queijo te darei. Houve um longo e não explicado silêncio antes que o terceiro pastor falasse. Finalmente, numa voz que parecia, também ela, vir de debaixo da terra, disse, E eu pão lhe hei-de levar.

O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. (...)

Descendo a encosta, aproximam-se três homens. São os pastores. Entram juntos na cova. Maria está recostada e tem os olhos fechados. José, sentado numa pedra, apoia o braço na borda da manjedoura e parece guardar o filho. O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.”

 

 

“Às tantas, o infante (recém-nascido) Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas.”

 

 

Aí está o Templo. Visto assim de perto, do plano inferior em que estamos, é uma construção que dá vertigens, uma montanha de pedras sobre pedras, algumas que nenhum poder do mundo pareceria ser capaz de aparelhar, levantar, assentar e ajustar, e contudo estão ali, unidas pelo próprio peso, sem argamassa, tão simplesmente como se o mundo fosse todo ele uma construção de armar, até às altíssimas cimalhas que, olhadas de baixo, parecem roçar o céu, como outra e diferente torre de Babel que a protecção de Deus, contudo, não logrará salvar, pois um igual destino a espera, ruína, confusão, sangue derramado, vozes que mil vezes perguntarão, Porquê, imaginando que há uma resposta, e que mais cedo ou mais tarde acabam por calar-se, porque só o silêncio é certo.”

 

 

“Sorte dos nossos filhos e nossa, que não vivemos em Belém, E já se sabe por que nos mandam matar os meninos de Belém, perguntou um soldado, O chefe não me disse, cuido que ele próprio não sabe, é ordem do rei, e basta. O outro soldado, riscando o chão com o coto da lança, como o destino que parte e reparte, disse, Muito desgraçados somos nós, que não nos chega praticarmos a parte de mal que nos coube por natureza, e ainda temos de ser braço da maldade de outros e do seu poder.”

 

 

Maria chegou-se ao filho que continuava a dormir, indiferente a medos, agitações e mortes violentas, e, com ele ao colo, foi sentar-se ao pé da candeia, à espera. Decorreu algum tempo, o filho acordou, porém sem abrir de todo os olhos, fez uma súbita cara de choro que Maria, já madre sabedora, deteve com o simples gesto de abrir a túnica e oferecer o peito à boca sôfrega da criança. Assim estavam os dois quando se ouviram passos fora. No primeiro instante, pareceu a Maria que o coração se lhe parava, Serão os soldados, mas eram passos de uma só pessoa, se fossem soldados viriam juntos, pelo menos dois, como é táctica e costume, e sendo caso de buscas com mais razão ainda, um cobrindo o outro por causa de surpresas inesperadas, É José, pensou, e temeu que ele lhe ralhasse por ter acendido a candeia. Os passos, lentos, aproximaram-se mais, José já vinha entrando mas de súbito um arrepio percorreu o corpo de Maria, estes não eram, pesados, duros, os passos de José, acaso será um maltês à procura de abrigo por uma noite, tinha acontecido antes duas vezes, e se nessas ocasiões Maria não sentira medo, por não ser imaginável que um homem, por mais amargo e infame de coração que fosse, pudesse atrever-se a fazer mal a uma mulher com o filho nos braços, não se lembrou Maria de que mesmo agora mataram os meninos de Belém, alguns, quem sabe, no próprio colo das mães, como no da sua se encontra Jesus, ainda os inocentes sugavam o leite da vida e já a lâmina do punhal lhes feria a delicada pele e penetrava na carne tenra, porém haviam sido os soldados esses assassinos, não uns vagabundos quaisquer, faz a sua diferença, e nada pequena. Não era José, não era soldado à procura de um feito de guerra que não tivesse de partilhar, não era maltês sem pouso nem trabalho, era, sim, novamente em figura de pastor, aquele que em figura de mendigo aparecera uma vez e outra, aquele que falando de si mesmo anunciara ser um anjo, contudo sem dizer de que céu ou inferno. Maria não pensara, primeiro, que pudesse ser ele, agora compreendia que não poderia ser outro.

Disse o anjo, A paz seja contigo, mulher de José, seja também a paz com o teu filho, ele e tu afortunados por nesta cova terdes casa, que, não sendo assim, agora estaria um de vós despedaçado e morto, enquanto o outro se acharia a si mesmo vivo mas despedaçado. Disse Maria, Ouvi os gritos. Disse o anjo, Sim, apenas os ouviste, mas um dia os gritos que não deste hão-de gritar por ti, e ainda antes desse dia ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Disse Maria, Meu marido foi à estrada ver se os soldados já se foram, não seria bom que ele aqui te encontrasse. Disse o anjo, Que isso não te dê cuidado, ir-me-ei antes que ele chegue, vim só para dizer-te que não voltarás a ver-me tão cedo, tudo o que era necessário que acontecesse aconteceu, faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. Disse o anjo, Tu o sabes, não queiras ser tão criminosa como ele. Disse Maria, Juro. Disse o anjo, Não jures, ou então jura, se quiseres, que um juramento feito diante de mim é como um sopro de vento que não sabe aonde vai. Disse Maria, Que fizemos nós. Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem, podiam, por exemplo, ir esconder-se no deserto, fugir para o Egipto, à espera de que morresse Herodes, que está por pouco. Disse Maria, Não pensou. Disse o anjo, Não, não pensou, e isso não o desculpa. Disse Maria, chorando, Tu, que és um anjo, perdoa-lhe. Disse o anjo, Não sou anjo de perdões. Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. Disse Maria, Que vamos fazer. Disse o anjo, Vivereis e sofrereis como toda a gente. Disse Maria, E o meu filho. Disse o anjo, Sobre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho. Disse Maria, Infelizes de nós. Disse o anjo, Assim é, e não tereis remédio. Maria curvou a cabeça, apertou mais o filho contra si como para defendê-lo das prometidas desventuras, e quando tornou a olhar já o anjo ali não estava. Mas desta vez, e ao contrário do que antes tinha sucedido, quando ele se aproximara, não se ouviram passos, Foi-se embora voando, pensou Maria. Depois, levantou-se, foi até à entrada da caverna, se ainda haveria rasto aéreo do anjo, ou já vinha perto José. O nevoeiro dissipara-se, luziam metálicas as primeiras estrelas, da aldeia continuavam a ouvir-se os lamentos. E foi então que um pensamento de presunção desmedida, de talvez pecaminoso orgulho, sobrepondo-se às negras advertências do anjo, fez girar a cabeça de Maria, se a salvação de seu filho não teria sido um gesto de Deus, por força tem um significado escapar alguém à dura morte quando ali ao lado outros que tiveram de morrer já nada mais podem fazer que esperar uma ocasião para ao mesmo Deus perguntarem, Por que foi que nos mataste, e contentarem-se com a resposta, qualquer que seja. Não durou muito o delírio de Maria, no instante seguinte já imaginava que poderia estar embalando um filho morto, como agora certamente as mães de Belém, e, para benefício do seu espírito e salvação da sua alma, as lágrimas voltaram-lhe aos olhos, correndo como fontes. Ali estava quando José chegou, ouviu-o vir, mas deixou-se ficar, de nada se lhe dava que ele ralhasse, Maria estava agora chorando com as outras mulheres, todas sentadas em círculo, com os filhos no regaço, à espera da ressurreição. José viu-a chorar, compreendeu e calou-se.”

 

 

Onde quer que estejamos e quem quer que sejamos, não fazemos mais na vida do que procurar o lugar onde iremos ficar para sempre. Nem sempre é assim, cismava José, com uma amargura tão funda que nela não entrara a resignação que dulcifica as maiores dores e apenas podia revestir-se do espírito de renúncia de quem deixou de contar com remédio, nem sempre é assim, repetia, muitos houve que nunca saíram do lugar onde nasceram e a morte foi lá buscá-los, com o que se prova que a única coisa realmente firme, certa e garantida é o destino, é tão fácil, santo Deus, basta ficar à espera de que todo o da vida se cumpra e já poderemos dizer, Era o destino, foi o destino de Herodes morrer em Jericó e ser levado de carroça para o seu palácio e fortaleza de Herodium, mas às crianças de Belém poupou-lhes a morte todas as viagens. E aquela de José, que ao princípio, vendo os factos pelo lado optimista, parecia fazer parte de um desígnio transcendente para salvar as inocentes criaturas, afinal não serviu de nada, pois o nosso carpinteiro ouviu e calou, foi a correr salvar o filho e deixou os dos outros entregues ao fatal destino, nunca palavra veio tão a propósito. Por isso José não dorme, ou sim dorme e em ânsias desperta, atirado para uma realidade que não o faz esquecer-se do sonho, a ponto de poder-se dizer que, acordado, sonha o sonho de quando dorme, e, dormindo, ao mesmo tempo que busca desesperadamente fugir-lhe, já sabe que é para tornar a encontrá-lo, outra vez e sempre, este sonho é uma presença sentada no limiar da porta que está entre o dormir e o velar, saindo e entrando José tem de enfrentar-se com ela. Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa duma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor.”

 

 

“Com o passar do tempo, melhor ou não tanto, chegaram a habituar-se, mas o mais velho, porque alguma coisa, mas não ainda um sonho, o assustava no meio do seu próprio sono, acordava sempre, ao princípio ainda perguntava à mãe, Que tem o pai, e ela respondia como quem não dá importância, São sonhos maus, não podia dizer ao filho, Teu pai estava a sonhar que ia com os soldados de Herodes na estrada de Belém, Qual Herodes, O pai deste que nos governa, E era por isso que gemia e gritava, Por isso era, Não compreendo que ser soldado de um rei que já morreu traga sonhos ruins, Teu pai nunca foi soldado de Herodes, o seu ofício sempre foi de carpinteiro, Então por que sonha, As pessoas não escolhem os sonhos que têm, São, pois, os sonhos que escolhem as pessoas, Nunca o ouvi dizer a ninguém, mas assim deve ser, Porquê os gritos, minha mãe, porquê os gemidos, É que teu pai todas as noites sonha que te vai matar, está visto que Maria não podia chegar a tais extremos, revelar a causa do pesadelo do marido justamente a quem tinha, nesse pesadelo, como Isaac, filho de Abraão, o papel de vítima nunca consumada, mas condenada inexoravelmente. Um dia, Jesus, numa ocasião em que ajudava o pai a juntar as partes duma porta, cobrou-se de ânimo e fez-lhe a pergunta, e ele, depois de um silêncio demorado, sem levantar os olhos, disse isto apenas, Meu filho, já conheces os teus deveres e obrigações, cumpre-os a todos e encontrarás justificação diante de Deus, mas cuida também de procurar na tua alma que deveres e obrigações haverá mais, que não te tenham sido ensinados, Esse é o teu sonho, pai, Não, é só o motivo dele, ter um dia esquecido um dever, ou ainda pior, Pior, como, Não pensei, E o sonho, O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia, agora tenho-o comigo todas as noites, não posso esquecê-lo, E que era o que devias ter pensado, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas. (...) Mas é bem verdade que a recta escrita de Deus só em pouco coincide com as tortas linhas dos homens, veja-se o dito caso de Abraão, a quem apareceu o anjo a dizer, no último momento, Não levantes a mão sobre o menino, e veja-se o caso de José, que tendo Deus, em lugar do anjo, posto no seu caminho um cabo e três soldados faladores, não aproveitou o tempo que tinha para salvar da morte os meninos de Belém. Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor. E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens.”

 

 

Escuta-me tu, José, seja qual for a voz que fale pela minha boca, tenho hoje a idade do meu pai quando morreu, e ele fez muito mais na vida do que este seu filho que nem filhos pôde ter, não sou sábio como tu para vir a ser um ancião na sinagoga, daqui para diante não terei nada mais para fazer que esperar todos os dias a morte, ao lado duma mulher que já não quero, Divorcia-te, então, A questão não está em divorciar-me dela, a questão estaria em divorciar-me de mim, e isso não é coisa que se possa, E tu, que vais poder tu na guerra, com essas poucas forças, Vou para a guerra como se pensasse ir fazer um filho, Nunca tal ouvi dizer, Eu também não, mas esta foi a ideia que me veio agora, Cuidarei da tua casa até voltares, Se eu não voltar, se te disserem que morri, promete-me que mandarás avisar Chua para que ela tome posse do que lhe pertence, Prometo, Vamos embora, agora estou em paz, Em paz quando decides ir para a guerra, em verdade, não compreendo, Ai, José, José, por quantos séculos ainda teremos de ir acrescentando a ciência do Talmude até podermos chegar à compreensão das coisas mais simples, Por que foi que viemos aqui, não era preciso afastarmo-nos tanto, Queria falar-te diante de testemunhas, Bastaria a testemunha absoluta que Deus é, este céu que nos cobre para onde quer que vamos, Estas pedras, As pedras são surdas e mudas, não podem testemunhar, É verdade que o são, mas, amanhã, se tu e eu decidíssemos mentir sobre o que aqui foi dito, acusar-nos-iam e continuariam a acusar-nos até se transformarem elas em pó e nós em coisa nenhuma, Vamo-nos, Vamos. Durante o caminho, Ananias voltou-se algumas vezes para trás para olhar as pedras, por fim desapareceram da vista delas por trás de um cerro, foi nessa altura que José perguntou, Chua já sabe, Sim, disse-lho, E ela, Ficou calada, depois disse-me que mais valia que eu a repudiasse, agora anda lá a chorar pelos cantos, Coitada, Quando estiver com a família esquece--se de mim, se eu morrer tornará a esquecer-me, é a lei da vida, o esquecimento. Entraram na aldeia, e quando chegaram a casa do carpinteiro, que era a primeira das duas para quem ia deste lado, Jesus, que brincava na rua com Tiago e Judas, disse que a mãe estava em casa do vizinho. Quando os dois homens se afastavam, ouviu-se a voz de Judas, que dizia em tom de autoridade, Eu sou Judas o Galileu, então Ananias virou-se para o olhar e disse a José, sorrindo, Vês ali o meu capitão, não teve o carpinteiro tempo para responder porque outra voz soou, a de Jesus, dizendo, Então o teu lugar não é aqui. José sentiu como uma picada no coração, era como se tais palavras lhe estivessem a ser dirigidas, como se o jogo infantil fosse instrumento doutra verdade, lembrou-se então das três pedras e tentou, mas sem saber por que o fazia, imaginar a sua vida como se diante delas é que devesse, doravante, pronunciar todas as palavras e cometer todos os actos, porém, no instante seguinte entrou-lhe no coração um sentimento de puro terror porque compreendera que se havia esquecido de Deus. Em casa de Ananias foram encontrar Maria que tentava consolar a lacrimosa Chua, mas o choro parou assim que os homens entraram, não que Chua tivesse deixado de chorar, a questão é que as mulheres aprenderam com a dura experiência a engolir as lágrimas, por isso é que dizemos, Tanto choram como riem, e não é verdade, em geral estão a chorar para dentro. Não para dentro, mas com todas as ânsias da alma e todas as lágrimas dos olhos, chorou a mulher de Ananias no dia em que ele partiu. Uma semana depois vieram buscá-la aqueles seus parentes que viviam na borda do mar. Maria acompanhou-a até à saída da aldeia, e aí se despediram. Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces.”

 

 

Teu pai sonhava que ia de soldado, com outros soldados, a matar-te, A matar-me, Sim, Esse é o meu sonho, Sim, confirmou ela, aliviada, Afinal foi simples, pensou, e em voz alta, Agora já sabes, voltemos para casa, os sonhos são como as nuvens, vêm e vão, foi só por muito quereres a teu pai que lhe herdaste o sonho, mas ele não te matou, nem nunca te mataria, e ainda que tivesse sido por uma ordem do Senhor, no último momento o anjo lhe deteria a mão, como fez a Abraão quando ia sacrificar seu filho Isaac, Não fales do que não sabes, cortou secamente Jesus, e Maria viu que o vinho amargo teria de ser bebido até ao fim.”

 

 

“Não é possível ver a morte e continuar como antes.”

 

 

“Na manhã seguinte, depois de comer, e quando o maioral se preparava para dar uma volta ao rebanho em jeito de reconhecimento, a ver se alguma irrequieta cabra não resolvera ir de aventura pelos arredores, Jesus anunciou numa voz firme, Vou-me embora. Pastor parou, olhou-o sem mudar de expressão, apenas disse, Boa viagem, não preciso dizer-te que não és meu escravo nem há contrato legal entre nós, podes partir quando entenderes, Não queres saber por que me vou, A minha curiosidade não é tão forte que me obrigue a perguntar-to, Parto porque não devo viver ao lado duma pessoa que não cumpre as suas obrigações para com o Senhor, Que obrigações, As mais elementares, as que se exprimem pelas bênçãos e pelas graças. Pastor ficou calado, com um meio sorriso que se revelava mais nos olhos que na boca, depois disse, Não sou judeu, não tenho de cumprir obrigações que não são minhas. Jesus recuou um passo, escandalizado. Que a terra de Israel fervilhasse de estrangeiros e seguidores de deuses falsos, por de mais o sabia, mas nunca lhe sucedera dormir ao lado de um deles, comer do seu pão e beber do seu leite. Por isso, como se segurasse diante de si uma lança e um escudo protector, exclamou, Só o Senhor é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem resposta. Agora o rebanho rodeava-os, atento, num grande silêncio. O sol já nascera e a sua luz toucava de vermelho-rubi o velo das ovelhas e os cornos das cabras. Jesus disse, Vou-me embora, mas não se moveu. Apoiado ao cajado, tão calmo como se soubesse ter todo o tempo futuro à sua disposição, Pastor esperava. Enfim, Jesus deu alguns passos, abrindo caminho entre as ovelhas, mas parou de repente e perguntou, Que sabes tu de remorso e pesadelos, Que és o herdeiro de teu pai. Estas palavras não as pôde suportar Jesus.”

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