segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Sociedade Feudal (Parte IV), de Marc Bloch

Editora: Edipro

Opinião: ★★★★☆

Tradução e prefácio: Laurent de Saes

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Análises em vídeos: Parte I - Parte II - Parte III

ISBN: 978-85-7283-957-0

Páginas: 464

Sinopse: Ver Parte I


 

Especialmente, à margem da população camponesa, como grupos votados às honrosas tarefas do mando, tinham sempre existido núcleos isolados de comerciantes e de artesãos. Destes germens, a revolução econômica da segunda idade feudal fez surgir, acrescida de inúmeros contributos novos, a massa poderosa e bem diferenciada das classes urbanas. O estudo das sociedades dum caráter tão claramente profissional não poderia ser empreendido fora dum exame aprofundado da sua economia. Uma rápida classificação será aqui suficiente para indicar a sua posição sobre o pano de fundo do feudalismo.

Nenhuma das línguas faladas da Europa feudal dispunha de termos que permitissem distinguir claramente, na sua qualidade de lugar habitado, a cidade da aldeia. Ville, town, Stadt, aplicavam-se indiferentemente aos dois tipos de agrupamento. Burg designava qualquer espaço fortificado. Cité era reservada às capitais de diocese, ou, por extensão, a alguns outros centros de importância excepcional. A partir do século XI, em contrapartida, às palavras cavaleiro, clérigo, vilão, opõe-se, num contraste sem ambiguidade; a palavra burguês, francesa de origem, mas depressa adoptada pelo uso internacional. Se o aglomerado, em si, permanece anônimo, os homens que lá vivem ou, pelo menos, nesta população, os elementos mais ativos e, pelas suas atividades comerciais ou artesanais, os mais especificamente urbanos possuem, portanto, na nomenclatura social, um lugar próprio. Um instinto muito seguro tinha-se apercebido de que a cidade se caracterizava, acima de tudo, por ser o local duma humanidade especial.

Evidentemente, seria demasiado fácil forçar a antítese. Com o cavaleiro, o burguês da primeira época urbana partilha o humor guerreiro e o porte habitual das armas. Vemo-lo durante muito tempo, como um camponês, tão depressa prestar atenção ao cultivo dos campos, cujos sulcos por vezes se alongavam até ao próprio interior da muralha, como, fora dos muros, levar os gados a pastar a erva de terrenos comunais ciosamente guardados. Assim que enriquecia, fazia-se, por sua vez, comprador de senhorios rurais. Nada de mais enganador, aliás, bem o sabemos, do que imaginar uma classe de cavaleiros idealmente desligada de qualquer preocupação de fortuna. Mas, para o burguês, as atividades que parecem assim aproximá-lo das outras classes, na verdade, não são mais do que um acessório e, na maior parte das vezes, como que testemunhos retardados de antigos modos de existência pouco a pouco repudiados.

Essencialmente, vive de trocas. Retira a sua subsistência da diferença entre o preço de compra e o de venda, ou entre o capital emprestado e o valor do reembolso. E como a legitimidade deste lucro intermédio, desde que não se trate dum simples salário de obreiro ou de transportador, é negado pelos teólogos e cuja natureza é mal compreendida pelos meios cavaleirescos, o seu código de conduta encontra-se deste modo em flagrante antagonismo com as morais ambientes. Porque se obstina em poder especular sobre os terrenos, os entraves senhoriais, sobre os seus bens-de-raiz, são-lhe incomportáveis. Por ter necessidade de tratar rapidamente dos seus negócios e porque estes, ao desenvolverem-se, não deixam de levantar novos problemas jurídicos, as lentidões, as complicações, o arcaísmo das justiças tradicionais exasperam-no. A multiplicidade das dominações entre as quais a própria cidade se reparte chocam-no, como um obstáculo à boa fiscalização das transações e como um insulto à solidariedade da sua classe. As várias imunidades de que gozam os seus vizinhos da Igreja ou da espada parecem-lhe outros tantos entraves à sua liberdade de lucros. Nas estradas, que percorre sem descanso, envolve num ódio igual as exigências dos coletores de pedágios e os castelos donde se lançam, sobre as caravanas, os senhores salteadores. Numa palavra, nas instituições criadas por um mundo onde ele ocupava apenas um modesto lugar, quase tudo o ofende ou molesta. Dotada de facilidades conquistadas pela violência, ou obtidas a custo de metal sonante, organizada num grupo solidamente armado para a expansão econômica e, ao mesmo tempo, para as necessárias represálias, a cidade que ele sonha construir será, na sociedade feudal, como um corpo estranho.”

 

 

Um ato, entre todos significativo, marcava geralmente a entrada em cena da nova comunidade urbana, com vista à revolta ou à organização: o juramento mútuo dos burgueses. Até aí, só houvera indivíduos isolados; doravante, tinha nascido um ser coletivo. Era a associação jurada assim criada que propriamente se chamava, em França, “comuna”. Jamais palavra alguma foi carregada de mais paixões. Grito de reunião dos burgueses, na hora da revolta, grito de chamamento do burguês em perigo, acordava nas classes que anteriormente eram as únicas dirigentes longas ecos de ódio. Por que motivo, em relação a “este novo e detestável nome”, como diz Guibert de Nogent, havia tanta hostilidade? Muitos sentimentos, certamente, contribuíram para isso: inquietação dos poderosos, diretamente ameaçados na sua autoridade, nos seus rendimentos, no seu prestígio; receios que, não sem motivo, as ambições de grupos muito pouco respeitadores das “liberdades” eclesiásticas, quando estas os molestavam, inspiravam aos chefes da Igreja; desprezo ou rancores do cavaleiro pelo comerciante; virtuosas indignações levantadas no interior do clero pela audácia desses “usurários”, desses “oportunistas” cujos lucros pareciam provir de fontes impuras313. Mas havia outras coisas e mais profundas.

Na sociedade feudal, o juramento de auxílio e de “amizade” tinha figurado, desde a origem, como uma das peças mestras do sistema. Mas era um compromisso de baixo para cima, que ligava um súbdito a um superior. A originalidade do juramento comunal foi ligar dois iguais. Decerto que o pormenor não passava por absolutamente inédito. Assim tinham sido já, como veremos, os juramentos prestados “uns aos outros” pelos confrades das “guildas” populares que Carlos Magno proibiu; e, mais tarde, pelos membros das associações de paz cuja herança as comunas urbanas recolheriam, segundo vários textos. Assim, também, os juramentos por meio dos quais se uniam os comerciantes agrupados em pequenas sociedades, chamadas também, por vezes, “guildas”, as quais, constituídas apenas pelas necessidades do comércio e das suas aventuras, nem assim tinham deixado de apresentar, antes dos primeiros esforços das cidades rumo à autonomia, uma das mais antigas manifestações da solidariedade burguesa. No entanto, jamais, antes do movimento comunal, a prática destas fés recíprocas tinha tomado tal amplitude nem revelado tanto poder. As “conspirações”, surgidas por toda a parte, eram, na realidade, na expressão dum sermonário, como tantos outros “molhos de espinhos entrelaçados”314. Foi este, na comuna, o fermento propriamente revolucionário, violentamente antipático aos olhos dum mundo hierarquizado. Evidentemente que estes primitivos grupos urbanos nada tinham de democrático. Os “altos burgueses”, que foram os seus autênticos fundadores, e que muitas vezes os pequenos não seguiram sem dificuldades, eram, para a gente pobre, senhores por vezes muito austeros e credores impiedosos. Mas, ao substituírem a promessa de obediência, remunerada pela proteção, pela promessa de entreajuda, eles introduziam na Europa um elemento novo de vida social, profundamente alheio ao espírito a que podemos chamar feudal.”

313 Cf. o sínodo de Paris, 1212: MANSI, Concilia, t. XXII, col. 851, c. 8 (feneratorihas et exactoribus).

314 A, GIRY, Documents sur les relations de la royauté avec les villes, 1885, n.º XX, p. 58.

 

 

“Como é que os homens eram julgados? Não há melhor pedra de toque do que esta para um sistema social. Interroguemos, portanto, acerca deste assunto a Europa das proximidades do ano mil. Logo ao primeiro exame, alguns traços, que dominam superiormente o detalhe jurídico, ressaltam num vivo relevo. Em primeiro lugar, o prodigioso retalhamento dos poderes judiciários, e também, o seu entrelaçamento. Finalmente, a sua medíocre eficácia. Numerosas cortes eram chamadas a resolver, a par, as mais graves questões. Entre elas, certamente, algumas regras fixavam, na teoria, a divisão das competências. Mas não sem que ficasse aberta a porta para constantes incertezas. Os processos dos senhores, tal como chegaram até nós, abundam em documentos relativos às contestações entre justiças concorrentes. Descrentes de saberem perante qual autoridade deviam apresentar os seus litígios, os queixosos, muitas vezes, arranjavam-se de modo a constituírem árbitros por sua iniciativa, ou preferiam um acordo amigável, em vez da sentença: com o risco, aliás, na continuação, de o não respeitarem. Incerto quanto ao seu direito, incerto quanto à sua força, o tribunal nem sempre desdenhava exigir, antecipadamente ou logo em seguida, o acordo das partes com a sua sentença. Se se tinha obtido uma decisão favorável, para a fazer executar, com demasiada frequência, não havia outro recurso senão conciliar-se com um adversário recalcitrante. Numa palavra, era agora ou nunca o momento de lembrar que a desordem pode ser à sua maneira um grande fato histórico. Um fato, no entanto, que tem que ser explicado. Visivelmente, aqui, ele estava ligado, em larga medida, à coexistência de princípios contraditórios, os quais, provenientes de diversas tradições, e obrigados, além disso, a adaptar-se, mais ou menos desajeitadamente, às necessidades duma sociedade eminentemente móvel, se entrecruzavam continuamente. Mas essa desordem também tinha a sua origem nas condições concretas que o meio humano impunha ao exercício da justiça.

Nesta sociedade que tinha multiplicado as relações de dependência, qualquer chefe — e Deus sabe como eles eram numerosos — desejava ser um juiz. Pois só o direito de julgar permitia conservar eficazmente no dever, os subordinados e, enquanto impedia que eles se deixassem submeter às sentenças de tribunais estranhos, fornecia a maneira mais segura de os proteger e de os dominar, ao mesmo tempo. Pois este direito também era essencialmente lucrativo. Não só comportava a cobrança de multas e de despesas de justiça, mas também os proveitosos rendimentos das confiscações; além disso, mais do que qualquer outro, ele propiciava esta transformação dos usos em obrigações, da qual os senhores retiravam tantos proveitos. Não foi de modo algum, por acaso, que a palavra justicia viu por vezes a sua aceitação alastrar até ao ponto de designar o conjunto dos poderes senhoriais. Em verdade, existia aqui, sob muitos pontos de vista, a expressão duma necessidade comum a quase toda a vida de grupo: até nos nossos dias, qualquer patrão, na sua empresa, qualquer comandante de tropa, não será, de certo modo, um juiz? Mas os seus poderes, a este título, têm como limite uma esfera de atividade bem determinada. Ele julga, ele deve julgar o operário e o soldado, apenas nessa qualidade. O chefe dos tempos feudais visava mais longe, visto que os vínculos de submissão tendiam então para atingir o homem todo inteiro.

Exercer a justiça não era, aliás, na época feudal, uma tarefa muito complicada. Evidentemente que era preciso ter alguns conhecimentos de direito. Onde os códigos escritos existiam, esta ciência equivalia a saber mais ou menos de cor, ou a mandar ler as regras, por vezes numerosas e pormenorizadas, mas demasiado rígidas, para dispensarem, largamente, qualquer esforço de pensamento pessoal. Se o costume oral, pelo contrário, tinha relegado o texto, bastava ter alguma familiaridade com esta tradição difusa. Finalmente, de qualquer modo, convinha saber os gestos prescritos e as palavras necessárias, que encerravam os trâmites num espartilho de formalismos. Trabalho de memória, em suma, tudo isto, e de prática. Os meios de prova eram rudimentares e de fácil aplicação. O emprego do testemunho, mediocremente frequente, limitava-se ao registo dos depoimentos, mais do que à sua análise. Tomar nota do conteúdo de um documento autêntico — este caso, de resto, foi raro durante bastante tempo —, aceitar o juramento de uma das partes ou o dos ajuramentados, constatar o resultado de um ordálio ou de um duelo judiciário — este divulgava-se cada vez mais, com prejuízo das outras formas do julgamento divino —: semelhantes funções não exigiam qualquer preparação técnica. Os próprios processos incidiam apenas sobre matérias pouco numerosas e sem subtilezas. A anemia da vida comercial reduzia ao extremo o capítulo dos contratos. Quando, em certos meios especiais, se assiste ao desenvolvimento, de novo, de uma economia mercantil mais ativa, a incapacidade de que o direito comum, tal como os tribunais habituais, dava provas, face a semelhantes debates, fez com que, cedo, os grupos de comerciantes os solucionassem entre eles, primeiro, mediante arbitragens não-oficiais, mais tarde, por meio de jurisdições próprias. A “saisine” — isto é, a posse sancionada pelo uso continuado (usucapião) —, os poderes sobre as coisas e sobre os homens: era este o objeto constante de quase todos os litígios. Juntamente, como é óbvio, com os crimes e os delitos. Mas, neste caso, a ação dos tribunais era, na prática, singularmente limitada pela vingança privada. Em resumo, nenhum obstáculo intelectual impedia que qualquer pessoa que dispusesse do poder indispensável, ou tivesse recebido tal incumbência, se arrogasse a qualidade de juiz.

Ao lado dos tribunais ordinários, existia, porém, um sistema de tribunais especializados: os da Igreja. Entenda-se: da Igreja no exercício da sua missão peculiar. Pois os poderes judiciários que os bispos e os mosteiros possuíam sobre os seus dependentes, na sua qualidade de senhores de espada, não cabiam, naturalmente, na rubrica da jurisdição autenticamente eclesiástica. O campo de ação desta era duplo, pois tinha em vista atingir todas as pessoas marcadas pelo sinal sagrado: clérigos e monges. Além disso, a jurisdição eclesiástica tinha mais ou menos vinculados certos delitos ou atos que, ainda que cometidos por seculares, eram concebidos como tendo natureza religiosa: desde a heresia até ao juramento ou ao casamento. O seu desenvolvimento durante a época feudal não revela apenas a fraqueza dos grandes poderes temporais — a monarquia carolíngia, neste ponto, tinha concedido muito menos independência ao seu clero. Ele prova igualmente a tendência do mundo clerical para alargar cada vez mais o abismo entre a pequena coletividade dos servidores de Deus e a multidão profana. Ainda neste particular, o problema das competências provocou vivas questões de limites, especialmente encarniçadas, na verdade, a partir do momento em que, perante as usurpações do espiritual, de novo se levantaram verdadeiros governos de Estado.”

 

 

No direito penal, a época carolíngia, após certas hesitações, tinha fixado, para as “causas maiores”, um critério retirado da natureza do castigo: apenas o tribunal condal podia condenar à morte ou pronunciar a redução à escravatura. Este princípio, muito explícito, atravessou as épocas. Em verdade, as transformações da noção de liberdade fizeram desaparecer rapidamente a sujeição propriamente penal (os casos em que se vê o assassino de um servo contrair os mesmos laços perante o senhor da vítima entram noutra rubrica: a da indemnização). O alto justiceiro, em contrapartida, permaneceu sempre o juiz normal dos crimes “de sangue”: ou seja, daqueles que envolviam a pena capital. O fato novo foi que estas “questões de espada”, como diz o direito normando, deixaram de ser o privilégio de alguns tribunais grandes. Não há traço mais evidente, durante a primeira idade feudal, do que a multidão de pequenos chefes, assim providos do direito de morte; nem igualmente — ainda que, sem dúvida, tenha sido especialmente acentuado em França — traço mais universal e mais decisivo, para o destino das comunidades humanas. O que se passou então? É perfeitamente evidente que nem a fragmentação de certos poderes condais, pela herança ou por doações, nem mesmo pelas usurpações puras e simples, seriam bastantes para explicar um tal aumento. Na verdade, vários indícios atestam claramente um verdadeiro desvio dos valores jurídicos. Todas as grandes igrejas daí em diante exercem, por si mesmas ou pelos seus representantes, a justiça de sangue: é então que esta se torna uma consequência natural da imunidade, com desprezo pelas regras antigas. É chamada, por vezes, “centaine” ou “voirie”: isto era constatar, de qualquer modo, oficialmente, que futuramente era considerada como a origem dos tribunais do segundo grau. Por outras palavras, a barreira anteriormente levantada pelos Carolíngios, nesse ponto, tinha cedido. E, sem dúvida, a evolução não é inexplicável.

Não nos enganemos, com efeito, estas sentenças capitais, outrora reservadas às audiências condais — assim como, mais alto ainda, ao tribunal real ou às reuniões convocadas pelos missi —, nunca tinham sido muito numerosas, na época franca. Apenas os crimes que eram considerados especialmente odiosos para a paz pública eram então passíveis de semelhantes punições. Muito mais vezes, o papel dos juízes limitava-se a propor ou a impor um acordo e depois a prescrever o pagamento de uma indemnização adequada à tarifa legal e de que a autoridade, dotada dos poderes judiciários, recebia uma parte. Mas, no momento da grande carência dos Estados, surgiu um período de “vendettas” e de violências quase constantes. Contra o velho sistema de repressão, cujos próprios fatos pareciam assim denunciar a temível ineficácia, não tardou a produzir-se uma reação, estreitamente relacionada com o movimento das ligas de paz. Ela encontrou a sua expressão mais característica na atitude completamente nova adoptada pelos meios mais influentes da Igreja. Antigamente, pelo horror do sangue e dos velhos ódios, aqueles tinham favorecido a prática das “indemnizações” pecuniárias. Daqui em diante, vemo-los veementes em exigirem, pelo contrário, que estas remições fossem substituídas por penas corporais, as únicas, pensavam eles, que assustariam os criminosos. Foi nesse tempo — cerca do século X — que o código penal da Europa começou a revestir este aspecto de extrema dureza, cuja marca era obrigado a conservar até ao esforço humanitário de dias muito mais próximos de nós: cruel metamorfose que, se iria, com o tempo, alimentar a indiferença perante o sofrimento humano, tinha sido, nos seus princípios, inspirada pelo desejo de poupar esse mesmo sofrimento.”

 

 

“Quanto às pretensões à monarquia universal, evidentemente que careciam de todo e qualquer apoio material por parte dos soberanos que — não falando já nas dificuldades mais graves — uma revolta dos Romanos ou dos habitantes de Tivoli, um castelo situado num ponto de passagem e na posse dum senhor rebelde, e até a má vontade das suas próprias tropas impediam muitas vezes de governarem eficazmente os seus próprios Estados. Com efeito, até Frederico Barba Ruiva (cuja ascensão se situa em 1152), tais pretensões não parecem ter ultrapassado o domínio das fórmulas de chancelaria. Não se vê que, no decorrer das numerosas intervenções dos primeiros imperadores saxões na França Ocidental, jamais elas tenham sido postas em evidência. Ou, pelo menos, essas imensas ambições não procuravam manifestar-se, a não ser por um expediente. Senhor supremo de Roma, e desse modo, “avoué” de São Pedro, isto é, seu defensor, principalmente herdeiro dos direitos tradicionais que os imperadores romanos e os primeiros Carolíngios tinham exercido sobre o papado, guardião, finalmente, da fé cristã em toda a parte onde chegava o seu domínio, real ou pretenso, o imperador sazão ou sálio não tinha, em sua opinião, missão mais elevada nem mais estreitamente aderente à sua dignidade do que proteger, reformar e dirigir a Igreja romana. Como diz um bispo de Verceil, é “à sombra do poder de César” que “o papa lava os séculos dos seus pecados”326. Mais concretamente, esse “César” considera-se no direito de nomear o sumo pontífice ou, pelo menos, de exigir que ele só seja designado com a sua concordância. “Por amor de São Pedro, escolhemos como papa e nosso preceptor o senhor Silvestre, com a vontade de Deus, ordenámo-lo e fizemo-lo papa”: assim fala Otão III, num dos seus documentos. Desse modo, visto que o papa não era somente bispo de Roma, mas também, e sobretudo, o chefe da Igreja universal — universalis papa, repete por duas vezes o privilégio concedido por Otão, o Grande, à Santa-Sé, — o Imperador reservava-se o exercício de uma espécie de direito de fiscalização sobre toda a cristandade, a qual, se tivesse sido posta em prática, teria feito dele muito mais do que um rei. Também por aí, um fermento de inevitável discórdia entre o espiritual e o temporal se tinha introduzido no Império: fermento de morte, na realidade.”

326 Hermann BLOCH, em Neues Archiv. 1897, p. 115.

 

 

“Falamos facilmente de Estados feudais. Decerto que a noção não era estranha à bagagem mental das pessoas instruídas; os textos mencionam algumas vezes a velha palavra respublica. Ao lado dos deveres para com o senhor próximo, a moral política reconhecia aqueles que se impunham perante esta autoridade mais elevada. O cavaleiro, diz Bonizon de Sutri, deve “não poupar a sua vida para defender a do seu senhor e pela salvação da coisa pública combater até à morte”334. Mas a imagem assim evocada era muito diferente do que seria hoje. Ela tinha sobretudo um conteúdo muito mais modesto.

Seria longa a lista das atividades que nos aparecem inseparáveis da ideia de Estado e que os Estados feudais, no entanto ignoraram radicalmente. O ensino pertencia a Igreja. Do mesmo modo, a assistência, que se confundia com a caridade. Os trabalhos públicos eram entregues à iniciativa dos utentes ou das pequenas potências locais: ruptura sensível entre todas, com a tradição romana, e até com a de Carlos Magno. Os governantes só começaram a alimentar preocupações desse género depois do século XII e — menos ainda, naquela data, nas monarquias, do que em certos principados de evolução precoce: Anjou, de Henrique Plantageneta, construtor dos diques do Loire; a Flandres, que ficou a dever ao seu conde Filipe de Alsácia alguns canais. Foi preciso esperar pelo século imediato para ver os reis ou príncipes intervirem, como o haviam feito os Carolíngios, na fixação dos preços e esboçar, timidamente, uma política econômica. Na verdade, depois da segunda idade feudal, os verdadeiros conservadores de uma legislação de bem-estar tinham sido quase exclusivamente poderes de extensão mais fraca e, pela sua natureza, completamente estranhos ao feudalismo propriamente dito: as cidades, preocupadas, quase desde a sua constituição em comunidades autônomas, com escolas, hospitais e regulamentos sobre economia.

De fato, o rei ou o alto barão tem três deveres fundamentais e apenas esses: assegurar a salvação espiritual de seu povo, mediante piedosas fundações e pela proteção concedida à fé verdadeira; defender o povo c0ontra os inimigos exteriores — função tutelar à qual se junta, sempre que tal é possível, a conquista inspirada não só pelo ponto de honra como pela ambição de poder —; fazer reinar, finalmente, a justiça e a paz interna. Portanto, porque a sua missão lhe impunha, antes de tudo o mais, derrotar os invasores ou os maus, ele faz a guerra, pune, reprime, em vez de administrar. Mesmo assim, a tarefa desempenhada deste modo era já bastante pesada.

Porque na verdade, um dos traços comuns a todos os poderes é, senão precisamente a sua fraqueza, pelo menos o caráter sempre intermitente da sua eficácia; e esta tara nunca aparece com mais brilho do que aqui, onde as ambições são maiores e o raio de ação pretendido é mais vasto. Um duque de Bretanha, em 1127, confessa-se incapaz de proteger um dos seus mosteiros contra os seus próprios cavaleiros; com isso denuncia apenas a debilidade de um medíocre principado territorial. Mas, entre os soberanos cujos cronistas fazem soar mais alto o poder, não encontraríamos um único que não tivesse tido que passar longos anos a dominar revoltas. O menor grão de areia basta, por vezes, para entravar a máquina. Um pequeno conde rebelde fortifica-se no seu reduto e eis que o imperador Henrique II fica prisioneiro durante três meses335. Já encontrámos as razões principais desta falta de força: lentidão e dificuldades das comunicações; ausência de reservas em numerário; necessidade de um contato direto com os homens, para exercer uma verdadeira autoridade.”

 

 

“II. A VIOLÊNCIA E A ASPIRAÇÃO À PAZ

Um quadro da sociedade feudal, especialmente durante a sua primeira idade, estaria condenado a dar apenas uma imagem bastante infiel da realidade se, preocupado somente com as instituições jurídicas, deixasse esquecer que o homem vivia então em estado de perpétua e dolorosa insegurança. Não era, como hoje, a angústia do perigo atroz, coletivo e intermitente, que um mundo de nações em armas contém. Nem tampouco — ou, pelo menos, não era o principal — a apreensão das forças econômicas que esmagam o pobre ou o mal-afortunado. A ameaça, que era de todos os dias, pesava sobre cada destino individual, atingindo, não só os bens, como a própria carne. De resto, a guerra, o assassínio, o abuso da — força, não há página da nossa análise sobre a qual não tenhamos já visto projetarem-se as suas sombras. Algumas palavras agora serão bastantes para reunir as causas que realmente fizeram da violência a marca de uma época e de um sistema social.

“Quando, extinto o Império romano dos Francos, diversos reis se sentarem no trono augusto, cada homem terá somente, confiança na sua espada”: assim, com o matiz de profecia falava um clérigo de Ravena, cerca dos meados do século IX, que tinha visto e lamentado o desaparecimento do grande sonho imperial carolíngio338. Os contemporâneos tiveram, assim, nítida consciência disso: sendo ela própria consequência, em larga medida, de irreprimíveis hábitos de desordem, a carência dos Estados, por seu turno, tinha favorecido o ímpeto do mal. Igualmente as invasões, ao fazerem penetrar em todo o lado o homicídio e a pilhagem, trabalharam por sua vez, com eficácia, no sentido de destruírem os velhos quadros dos poderes. Mas a violência imperava também no mais profundo da estrutura social e da mentalidade.

Ela estava presente na economia; num tempo de trocas raras e difíceis, para ficar rico, haveria meio mais seguro do que utilizar ora a pilhagem, ora a opressão? Toda uma classe dominadora e guerreira vivia principalmente disso e um monge, friamente, podia forçar um pequeno senhor a dizer, num documento: dou esta terra “livre de qualquer encargo, de impostos, de obrigações de trabalho gratuito... e de todas aquelas coisas que, pela violência, os cavaleiros têm o hábito de extorquir aos pobres”339.

A violência estava também presente no direito: por força do princípio consuetudinário que, ao fim de um certo tempo, acabava por praticamente legitimar qualquer usurpação; em consequência, também, da tradição solidamente enraizada que reconhecia a um indivíduo ou ao pequeno grupo a faculdade, ou até lhe impunha o dever, de fazer justiça por si próprio. Responsável por uma infinidade de dramas sangrentos, a “faide” familiar não era a única forma de execução pessoal que punha constantemente em perigo a ordem pública. As assembleias de paz, quando proibiam à vítima de um dano material, real ou fictício, o indemnizar-se diretamente, apossando-se de um dos bens do autor do dano, sabiam muito bem atingir desse modo uma das ocasiões mais frequentes de perturbação.

A violência, finalmente, estava presente nos costumes, pois os homens, mediocremente capazes de reprimirem o seu primeiro impulso, nervosamente pouco sensíveis ao espetáculo da dor, pouco respeitadores da vida, na qual viam apenas um estado transitório, eram ainda, além de tudo isto, muito propensos a fixar o seu ponto de honra no desenvolvimento quase animal da força física. “Todos os dias — escreve, cerca de 1024, o bispo Burchard de Worms — se cometem assassínios, à maneira dos animais selvagens, entre os dependentes de São Pedro. Perseguem-se pessoas por se estar embriagado, por orgulho, ou até por nada. No decurso de um ano, trinta e cinco servos de São Pedro, perfeitamente inocentes, foram mortos por outros servos da igreja; e os assassinos, em vez de se arrependerem, gabam-se do seu crime.” Quase um século mais tarde, uma crônica inglesa, louvando a grande paz que Guilherme, o Conquistador, estabelecera no seu reino, julgava não poder exprimir melhor essa plenitude senão por meio destes dois traços: daqui em diante, nenhum homem pode matar outro, seja qual for a ofensa que dele tenha recebido; todos podem percorrer a Inglaterra com o cinto cheio de ouro, sem perigo340. Isto era pôr a descoberto, ingenuamente, a dupla raiz dos males mais vulgares: a vingança que, segundo as ideias daquele tempo, podia fazer as vezes de justificação moral, mas também o banditismo, na sua nudez.

Todavia, toda a gente sofria com estas brutalidades, afinal, e os chefes, mais do que ninguém, tinham consciência dos desastres que elas desencadeavam. De tal modo que, das profundidades desta época conturbada eleva-se, com toda a força de uma aspiração dirigida para o mais precioso e o mais inacessível dos “dons de Deus”, um longo grito de paz. Entenda-se, acima de tudo, de paz interior. Para um rei, ou para um príncipe, não havia elogio melhor do que o cognome de Pacífico. A palavra deve ser tomada no seu sentido pleno: não aquele que aceita a paz, mas que a impõe. “Que a paz esteja no reino”: assim se rezava no dia da sagração do rei. “Abençoados sejam os pacificadores”, dirá São Luís. Comum a todos os poderes, esta preocupação por vezes é expressa em termos de comovente candura. Escutemos, nas suas sábias leis, o próprio rei Knut, do qual um poeta da corte havia dito: “ainda tu eras tão jovem, ó Príncipe, e já, à medida que tu avançavas, se viam a arder as casas dos homens”: “Queremos — diz ele — que todos os homens, com mais de doze anos, jurem nunca roubar, nem serem cúmplices de ladrões.”341. Mas como, justamente, os grandes poderes temporais eram ineficazes, vemos desenvolver-se, à margem das autoridades regulares e sob o impulso da Igreja, um esforço espontâneo para a organização desta ordem tão desejada.

 

 

No decorrer da segunda idade feudal vemos, por todos os lados, o poder sobre os homens, até aí dividido ao máximo, começar a concentrar-se em organismos mais vastos: não pontos novos, certamente, mas verdadeiramente renovados na sua capacidade de ação. As excepções aparentes, como a Alemanha, desaparecem desde que se queira deixar de encarar o Estado unicamente sob as cores da realeza. Um fenômeno tão geral só poderia ser comandado por causas igualmente comuns a todo o Ocidente. Para enumerá-las, bastaria quase retomar às avessas o quadro das que precedentemente haviam conduzido ao desmembramento.

O termo das invasões tinha libertado os poderes reais e principescos de uma tarefa em que se esgotavam as suas forças. Ao mesmo tempo, ela permitiu o prodigioso impulso demográfico que denuncia, a partir do meio do século XI, o avanço do desbravamento de terras. A densidade crescente da população não tornava apenas mais fácil a manutenção da ordem. Favorecia também a renovação das cidades, do artesanato e das trocas. Graças a uma circulação monetária mais abundante e mais ativa, o imposto reaparecia e, com ele, o funcionalismo assalariado e os exércitos pagos, em substituição do ineficaz regime de serviços hereditariamente contratuais. Decerto que também o pequeno ou médio senhor não deixavam de tirar proveito das transformações da economia; teve, como já vimos, as suas “tailles” (talhas). Mas o rei ou o príncipe, possuíam quase sempre mais terras e mais vassalos do que qualquer outro senhor. Além disso, a própria natureza da sua autoridade fornecia-lhe múltiplas ocasiões para cobrar taxas, especialmente sobre as igrejas e sobre as cidades. O rendimento diário de Filipe Augusto, à data da sua morte, igualava, em ordem de grandeza, cerca de metade do rendimento anual mencionado, um pouco mais tarde, por um senhorio monástico, o qual, sem ser dos mais ricos, dispunha, no entanto, de bens muito extensos, numa província particularmente próspera347. Assim, o Estado tinha, desde então, começado a adquirir esse elemento essencial da sua supremacia: uma fortuna incomparavelmente mais considerável do que a de qualquer outra pessoa ou coletividade privadas.

As modificações da mentalidade dirigiam-se no mesmo sentido. O “renascimento” cultural, operado depois do fim do século XI, tinha tornado os espíritos mais aptos a conceberem o vínculo social sempre um pouco abstrato por natureza, que é a subordinação do indivíduo ao poder público. Ele despertara também a memória dos grandes Estados policiados e monárquicos do passado: o Império romano, cujos Códigos, tal como os livros de história, falavam da majestosa grandeza do tempo dos príncipes absolutos; o Império Carolíngio, embelezado pelo culto da lenda. Sem dúvida que os homens bastante instruídos para que sobre eles, pudessem exercer-se semelhantes influências continuavam a ser um punhado, proporcionalmente à massa. Mas, em si mesma, essa elite tinha-se tornado mais numerosa. Especialmente a instrução tinha conquistado, nos meios laicos, a par da alta aristocracia, a classe dos cavaleiros. Mais úteis do que os clérigos, numa época em que todo o administrador tinha que ser, ao mesmo tempo, chefe guerreiro, sujeitos menos do que aqueles à atração de interesses estranhos aos poderes temporais, habituados, enfim, de longa data, à prática do direito, estes fidalgos de medíocre fortuna formariam, muito antes da — burguesia, o estado-maior das monarquias renovas: a Inglaterra de Henrique Plantageneta, a França de Filipe Augusto e de São Luís. O costume, o gosto, a possibilidade da escrita, permitiram aos Estados a constituição daqueles arquivos administrativos sem os quais não poderia existir poder verdadeiramente contínuo. Quadros dos serviços devidos pelos feudos, contabilidade periódica, registos das atas expedidas ou recebidas: são os auxiliares de memória que, desde os meados do século XII, vemos surgir no Estado anglo-normando e no reino, normando também, da Sicília; cerca do final desse mesmo século ou no decorrer do seguinte, no reino da França e na maior parte dos seus grandes principados. O seu aparecimento foi como que o sinal de advertência de que se levantava no horizonte um novo poder, ou, pelo menos, reservado até então às grandes igrejas e à corte pontifical: a burocracia.”

347 Rendimento diário, à morte de Filipe Augusto, segundo o testemunho de Conon de Lausanne: 1200 libras parisis (SS., t. XXIV, p. 782). Rendimento anual da abadia Sainte-Geneviève, de Paris, segundo um cálculo para as décimas, em 1246: 1810 libras parisis; Biblioth. Sainte-Geneviève, ms. 356, p. 271. A primeira importância deve provavelmente ser demasiado elevada e a segunda demasiado baixa. Acrescente-se, porém, para restabelecer a diferença, que uma subida dos preços, entre as duas datas, é verosímil. De qualquer modo, o contraste é impressionante.

 

 

“Talvez esta aventura semântica não deixe de espantar as pessoas que, no seu apego aos fatos linguísticos, tendem a ver uma efervescência recente da consciência nacional. O argumento linguístico, no entanto, nas mãos dos políticos, não é de hoje. No século X, um bispo lombardo, indignando-se das pretensões — historicamente muito fundamentadas — dos Bizantinos sobre a Apúlia, não escrevia: “de que este território pertence ao reino da Itália, a língua dos seus habitantes é a prova”359? O uso dos meios de expressão comuns não só torna sempre os homens mais próximos uns dos outros como manifesta, ao mesmo tempo que cria outras novas, as semelhanças das tradições mentais. Coisa ainda mais sensível às almas ainda rudes: a oposição das linguagens alimentava o sentimento das diferenças, ele próprio fonte de antagonismos. Um monge da Suábia, no século IX, já notava que os “Latinos” metiam a ridículo as palavras germânicas e foi das zombarias sobre os respectivos idiomas que, em 920, nasceu entre as escoltas de Carlos o Simples e de Henrique I uma rixa bastante sangrenta a ponto de ter posto termo à entrevista dos dois soberanos360. Do mesmo modo, no próprio interior do reino de Oeste, a curiosa evolução, ainda mal explicada, que, no galo-românico tinha provocado a formação de dois grupos de falares distintos, fez com que, durante longos séculos os “Provençais” ou gentes do Languedoc, que não possuíam, de modo algum, a unidade política, tivessem nitidamente o sentimento de constituírem uma coletividade bem à parte. Do mesmo modo, aquando da segunda cruzada, viram-se cavaleiros lorenos, súbditos do Império, aproximarem-se dos Franceses, cuja linguagem compreendiam e falavam361. Nada há de mais absurdo do que confundir a língua com a nacionalidade. Mas não o seria menos negar o seu papel na cristalização das consciências nacionais.”

359 LIUDPRAND, Legatio, c. 7.

360 WALAFRID STRABO, De exordiis. c. 7, em Capitularia reg. Francorum, t. II, p. 481, — RICHER, I,

362 EUDES DE DEUIL, em SS., t. XXVI, p. 65.

 

 

A feudalidade europeia apresenta-se, contudo, como sendo o resultado da brutal dissolução de sociedades mais antigas. Com efeito, ela não seria compreensível sem a grande perturbação das invasões germânicas, a qual, obrigando a fundirem-se duas sociedades originariamente colocadas em estádios muito diferentes da evolução, rompeu os quadros tanto duma como doutra e fez voltar à superfície tantas maneiras de pensar e de hábitos sociais dum caráter singularmente primitivo. A feudalidade europeia constituiu-se definitivamente na atmosfera das últimas investidas bárbaras. Ele supunha um profundo abrandamento da vida de relação, uma circulação monetária que, demasiado atrofiada, não permitia um funcionalismo assalariado, uma mentalidade ligada ao sensível e ao próximo. Quando estas condições começaram a modificar-se, começou a passar a sua hora.

A feudalidade foi mais uma sociedade desigual do que hierarquizada: mais de chefes do que de nobres; de servos, não de escravos. Se a escravatura não tivesse nele desempenhado um papel tão fraco, as formas de dependência autenticamente feudais, na sua aplicação às classes inferiores, não teriam tido ocasião de existirem. Na desordem geral, o lugar do aventureiro era demasiado importante, a memória dos homens, demasiado breve, a regularidade da classificação social demasiado mal garantida para permitir a estrita constituição de castas regulares.

No entanto, o regime feudal supunha a estreita sujeição econômica duma multidão de gente humilde, relativamente a alguns poderosos. Tendo recebido das épocas anteriores a villa já senhorial do mundo romano e as circunscrições rurais germânicas, ele alargou e consolidou esses modos de exploração do homem pelo homem e, reunindo num inextricável feixe o direito à renda do solo e o direito ao mando, fez de tudo isto, verdadeiramente, o senhorio. Em favor duma oligarquia de prelados ou de monges, encarregados de propiciarem o Céu. Em favor, sobretudo, duma oligarquia de guerreiros.

Na verdade, o mais rápido dos inquéritos comparativos basta para mostrar que entre as características distintivas das sociedades feudais devemos incluir a quase coincidência estabelecida entre a classe dos chefes e uma classe de guerreiros profissionais, que serviam da única maneira que então parecia eficaz, isto é, como cavaleiros pesadamente armados. Como já vimos: as sociedades em que subsistiu um campesinato armado, ou ignoraram a estrutura vassálica, tal como o senhorio, ou de ambos conheceram somente formas muito imperfeitas: como por exemplo na Escandinávia, ou nos reinos do grupo asturo-leonês O caso do Império bizantino é talvez mais significativo ainda, porque as instituições nele apresentaram a marca dum pensamento diretor muito mais consciente. Ali, após a reação anti-aristocrática do século VII, um governo, que conservara as grandes tradições administrativas da época romana e por outro lado preocupado com a necessidade de obter um exército sólido, criou tenências oneradas, perante o Estado, por obrigações militares: verdadeiros feudos, num sentido, mas, ao contrário do Ocidente, feudos de camponeses, cada um constituído por uma modesta exploração rural. Os soberanos, doravante, não terão desejo mais caro do que o de proteger estes “bens de soldados”, como aliás os pequenos proprietários em geral, contra o monopólio dos ricos e dos poderosos. No entanto, cerca do final do século XI, veio o momento em que o Império, sobrecarregado com as condições econômicas que tornavam cada vez mais difícil a autonomia aos camponeses constantemente endividados e enfraquecido também por discórdias internas, deixou de proporcionar aos livres exploradores da terra qualquer proteção útil. Não perdeu assim apenas preciosos recursos fiscais, mas, ao mesmo tempo, ficou à mercê dos magnates, únicos capazes, doravante, de recrutarem entre os seus dependentes, as tropas necessárias.

Nas sociedades feudais, o vínculo humano característico foi o elo entre o subordinado e o chefe mais próximo. De escalão em escalão, os nós assim formados uniam, tal como se se tratasse de cadeias infinitamente ramificadas, os menores aos maiores. A própria terra só parecia ser uma riqueza tão preciosa por permitir obter “homens”, remunerando-os. Queremos terras, dizem, afinal, os senhores normandos, ao recusarem os presentes de joias, de armas, de cavalos, oferecidos pelo seu duque. E dizem uns para os outros: “assim, poderemos manter numerosos cavaleiros e o duque não368”.

Faltava criar uma modalidade de direitos da terra, adequada à recompensa dos serviços e cuja duração se modelasse pela duração da dedicação. A feudalidade ocidental tirou uma das suas características mais originais da solução que encontrou para este problema. Enquanto as pessoas de serviço, agrupadas em torno dos príncipes eslavos continuavam a receber do príncipe os seus domínios, como doação pura, o vassalo franco, depois de algumas tentativas, não obteve mais do que feudos, em princípio, vitalícios. Pois, nas classes mais elevadas, distinguidas pelo honroso dever das armas, as relações de dependência tinham revestido, na origem, a forma de contratos livremente consentidos, entre duas pessoas vivas, colocadas frente a frente. Da necessidade deste contato pessoal, elas retiraram sempre o melhor do seu valor moral. No entanto, cedo, diversos elementos tinham vindo embaciar a pureza da obrigação: a hereditariedade, natural numa sociedade em que a família permanecia tão vigorosamente constituída; a prática do “chasement” que, imposta por condições econômicas, acabava por onerar mais a terra do que sobrecarregar o homem de fidelidade; enfim, a pluralidade das homenagens, principalmente. A lealdade do recomendado continuava a ser, em muitos casos, uma grande força. Mas como cimento social por excelência, chamado a unir, de alto a baixo, os diversos grupos, a impedir o emparcelamento e a suster a desordem, revelou-se decididamente ineficaz.

Em boa verdade, no imenso alcance conferido a estes vínculos, desde o princípio que tinha havido uma parte de artifício. A sua generalização nos tempos feudais foi o legado dum Estado moribundo — o dos Carolíngios — que tinha sabido opor ao descalabro social uma das instituições nascidas desse próprio descalabro. Em si mesma, a compartimentação das dependências era, sem dúvida, capaz de ser útil à coesão do Estado. Testemunha-o a monarquia anglo-normanda. Mas era precisa uma autoridade central, secundada, como em Inglaterra, ainda menos pela simples conquista do que pela coincidência, com esta, de novas condições materiais e morais. No século IX, o impulso para a dispersão era demasiado forte.

Na área da civilização ocidental, o mapa da feudalidade apresenta alguns grandes espaços em branco: a península escandinava, a Frísia, a Irlanda. Talvez seja mais importante ainda constatar que a Europa feudal não foi totalmente feudalizada no mesmo grau nem segundo o mesmo ritmo e, especialmente, que em parte alguma o foi completamente. Em nenhum país a população rural caiu totalmente nas malhas duma dependência pessoal e hereditária. Quase por toda a parte — ainda que em número extremamente variável, conforme as regiões — subsistiram terras alodiais, grandes ou pequenas. A noção de Estado nunca desapareceu absolutamente e, onde conservou piais vigor, houve homens que teimaram em chamar-se “livres”, no sentido antigo da palavra, porque dependiam apenas do chefe do povo ou dos seus representantes. Na Normandia, na Inglaterra dinamarquesa, em Espanha, mantiveram-se grupos de guerreiros camponeses. O juramento mútuo, antítese dos juramentos de subordinação, viveu nas instituições de paz e triunfou nas comunas. Faz certamente parte da trajetória de todo sistema de instituições humanas jamais realizar-se senão imperfeitamente.”

 

 

“Sujeição rústica; em lugar do salário, geralmente impassível, o largo uso da tenência-serviço, que, no seu sentido exato, é o feudo; supremacia duma classe de guerreiros especializados; vínculos de obediência e de proteção que uniam o homem e, nesta classe guerreira, revestem a forma particularmente pura da vassalagem; fraccionamento dos poderes, gerador da desordem; no meio de tudo isto, no entanto, a sobrevivência doutros modos de agrupamento, parentela e Estado, devendo este, durante a segunda idade feudal, retomar um novo vigor: parecem ser estes os traços fundamentais da feudalidade europeia.”

Um comentário:

Doney disse...

Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
Desta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.