Editora: Edipro
Opinião: ★★★★☆
Tradução e
prefácio: Laurent de Saes
Análise em vídeos: Parte I - Parte II - Parte III
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ISBN: 978-85-7283-957-0
Páginas: 464
Sinopse: Ver Parte
I
“E isto não era tudo. A evolução da economia
desencadeava uma verdadeira revisão dos valores sociais. Sempre tinha havido
artesãos e mercadores. Individualmente, pelo menos estes últimos, tinham mesmo
podido, aqui e além, desempenhar um papel importante. Como grupos, nem uns nem
outros tinham qualquer importância. A partir do final do século XI, a classe
artesã e a classe dos mercadores, que se haviam tornado mais numerosos e muito
mais indispensáveis à vida de todos, afirmaram-se cada vez mais vigorosamente
no contexto urbano, em especial a classe dos mercadores, pois a economia
medieval, desde a grande renovação desses anos decisivos, foi sempre dominada,
não pelo produtor, mas pelo comerciante. Não era para estas pessoas que,
fundamentada num regime econômico onde elas apenas ocupavam um lugar medíocre,
se tinha constituído a ossatura jurídica da época precedente. As suas
exigências práticas e a sua mentalidade deviam naturalmente introduzir nela um
fermento novo. Nascida numa sociedade de trama pouco apertada, em que as trocas
pouco representavam e o dinheiro era raro, o feudalismo europeu alterou-se
profundamente logo que as malhas da rede humana se apertaram e a circulação dos
bens e do numerário se tornou mais intensa.”
“O homem das duas idades feudais, mais do que
nós, estava próximo de uma natureza que, por sua vez, era muito menos ordenada
e suave. A paisagem rural, onde os matos ocupavam espaços tão importantes,
apresentava de um modo menos sensível a marca humana. Os animais ferozes, que
apenas povoam os nossos contos para crianças, os ursos, os lobos,
especialmente, vagueavam por todos os lugares desertos e por vezes até nos
próprios campos cultivados. Além de ser um desporto, a caça era um meio de
defesa indispensável e fornecia à alimentação um contributo quase igualmente
necessário. A apanha dos frutos selvagens e a recolha do mel continuavam a
praticar-se como nos primeiros tempos da humanidade. No que respeita aos
utensílios, a madeira tinha um lugar preponderante. As noites, mal iluminadas,
eram mais escuras, o frio, mesmo nas salas dos castelos, mais rigoroso. Numa
palavra, havia por detrás de toda a vida social um fundo de primitivismo, de
submissão aos elementos indisciplináveis, de contrastes físicos que não podiam
ser atenuados. Não existe qualquer instrumento que permita avaliar a influência
que tal meio circundante podia exercer nas almas. Como pensar, no entanto, que
ele não tenha contribuído para a rudeza daquelas?
Uma história mais digna de tal
nome do que os tímidos ensaios a que as nossas possibilidades nos limitam hoje
teria em consideração as aventuras do corpo. É grande ingenuidade pretender
compreender homens sem saber como passavam de saúde. Mas o estado dos textos, e
ainda mais a insuficiente agudeza dos nossos métodos de investigação limitam as
nossas ambições. A mortalidade infantil, incontestavelmente muito forte na
Europa feudal, não deixava de embotar um pouco os sentimentos relativamente a
lutos que eram quase normais. Quanto à vida dos adultos, mesmo
independentemente dos acidentes de guerra, era em média relativamente curta:
pelo menos, quanto podemos avaliar pelas personagens principais a que se
referem os únicos dados, embora imprecisos, de que dispomos. Roberto, o Pio,
morreu pelos sessenta anos; Henrique I, com 52 anos; Filipe I e Luís VI, com
56. Na Alemanha, os quatro primeiros imperadores da dinastia saxônica atingiram
respectivamente 60 anos — ou perto disso — 28, 22 e 52 anos. A velhice parecia
começar muito cedo, desde a idade madura. Aquele mundo que, como veremos
adiante, se julgava muito velho, era de fato dirigido por homens jovens.
Entre tantas mortes prematuras,
muitas eram devidas às grandes epidemias que frequentemente se abatiam sobre
uma humanidade mal apetrechada para as combater; entre os pobres, além do mais,
eram provocadas pela fome. Juntamente com as violências diárias, estas
catástrofes davam à existência como que um sabor de precariedade perpétua.
Residiu aqui, provavelmente, uma das razões primordiais da instabilidade de
sentimentos, tão característica da mentalidade da era feudal, especialmente
durante a sua primeira idade. A higiene, certamente medíocre, contribuía também
para este nervosismo. Nos nossos dias, houve a preocupação de demonstrar que a
sociedade senhorial não desconhecia os banhos. Há algo de pueril em ignorar, em
favor desta observação, tantas condições de vida ingratas: nomeadamente, entre
os pobres, a subalimentação e, entre os ricos, os excessos de comida. Finalmente,
como se podem negligenciar os efeitos da espantosa sensibilidade às
manifestações pretensamente sobrenaturais? Ela tornava os espíritos
constantemente e quase doentiamente atentos a toda a espécie de presságios, de
sonhos, de alucinações. Esta particularidade era sobretudo intensa nos meios
monásticos, onde as macerações e o recalcamento acrescentavam a sua influência
à de uma reflexão profissionalmente centralizada sobre os problemas do
invisível. Nenhum psicanalista jamais perscrutou os seus sonhos com mais ardor
do que os monges do X ou do XI século. No entanto, os leigos participavam
igualmente da emotividade de uma civilização onde o código moral ou mundano não
impunha ainda às pessoas bem educadas que reprimissem as lágrimas e os seus
“desmaios”. Os desesperos, os furores, as decisões repentinas, as bruscas
mudanças de atitude, apresentam grandes dificuldades para os historiadores,
levados por instinto a reconstruírem o passado segundo as diretrizes da
inteligência; elementos consideráveis de toda a história, sem dúvida,
exerceram, sobre o desenrolar dos acontecimentos políticos, na Europa feudal,
uma ação que não poderia deixar de mencionar-se, a não ser por uma espécie de
pudor inútil.
Estes homens, submetidos em redor
e neles próprios a tantas forças espontâneas, viviam num mundo cujo decorrer se
escapava tanto mais às suas tentativas quão imperfeita era a sua maneira de o
medir. Dispendiosos e pouco cômodos pelo seu tamanho, os relógios de água
existiam apenas em pequeno número de exemplares. As ampulhetas parecem terem
sido pouco usadas correntemente. A imperfeição dos relógios de sol,
especialmente sob céu nublado, era flagrante. Deste fato derivaram curiosos
artifícios. Preocupado com a ideia de regular o curso de uma vida nômada em
grande escala, o rei Alfredo tinha imaginado fazer transportar, para toda a
parte para onde fosse, velas de comprimento igual que fazia acender uma após
outra62. Esta preocupação de uniformidade, na divisão
do dia, era naquele tempo excepcional. Contando geralmente, como na
Antiguidade, doze horas de dia e doze de noite, fosse qual fosse a estação, as
pessoas mais instruídas habituavam-se a ver cada uma destas fracções,
consideradas uma por uma, crescer e diminuir constantemente, conforme a
revolução anual do sol. Isto devia acontecer até ao momento em que, pelo século
XIV, os relógios de pesos proporcionaram, finalmente, com a mecanização do
instrumento, a duração.”
62 ASSER, Life of King Alfred.
ed. Stevenson, c. 104, Um sistema semelhante, se
acreditarmos em L. REVERCHON, Petite histoire de l’horlogerie, p. 55,
teria sido ainda empregue por Carlos V. 66 GISLEBERT DE MONS, ed.
Pertz, pp. 188-189 (1188). 67 P. VIOLLETT, Les Établissements de Saint Louis,
1881-1886 (Soc. da História de França) t. III, p. 165, n.º 8. 67
Pastoral Care, ed. Sweet, p. 6.
“Aos olhos de todas as pessoas capazes de reflexão, o mundo sensível não
era mais do que uma espécie de máscara atrás da qual se passavam todas as
coisas verdadeiramente importantes, uma linguagem, também encarregada de
exprimir, por sinais, uma realidade mais profunda. Tal como a aparência de um
tecido, em si, pouco interesse tem, desta atitude resultava que a observação
era geralmente descuidada em favor da interpretação. (...)
Este mundo de aparências era
também um mundo transitório. Em si mesma inseparável de qualquer representação
cristã do Universo, raramente a imagem da catástrofe final aderiu tão
fortemente às consciências. Meditavam sobre ela; calculavam-lhe os sintomas
precursores. Universal entre todas as histórias universais, a crônica do bispo
Otão de Freising, que começa na Criação, acaba com a descrição do Juízo Final.
Diga-se que com uma inevitável lacuna: de 1146 — data em que o autor cessou de
escrever — até ao dia da grande derrocada. Certamente que Otão a considerava de
pouca extensão: “nós, que fomos colocados no fim dos tempos”, diz ele por
várias vezes. Era esta a maneira de pensar corrente, em seu redor e antes dele.
Não se diga que eram ideias dos clérigos, pois seria esquecer a interpenetração
profunda dos dois grupos, o clerical e o leigo. Até entre aqueles que, como São
Norberto, não iam ao ponto de considerar a ameaça tão próxima que a geração
presente não se extinguiria sem assistir a ela, ninguém ignorava a sua
iminência. Em cada príncipe que consideravam mau, as almas piedosas julgavam
ver a marca do Anticristo, cujo reinado atroz precederá a chegada do Reino de
Deus.”
“As “gestas” épicas, em princípio, não eram
destinadas à leitura. Eram feitas para serem declamadas ou antes salmodiadas.
De castelo em castelo, ou de praça pública em praça pública, eram assim
transportadas por recitadores profissionais, aos quais se chamava “jongleurs”
(menestréis). Os mais modestos, de fato, sustentavam-se de moedas que cada
ouvinte retirava “da fralda da camisa”77, e aliavam ao ofício de
contadores ambulantes de histórias o de dançarinos. Outros, mais felizes, tendo
obtido a proteção de algum senhor importante, que os mantinha na sua corte, tinham
assim assegurado um ganha-pão menos precário. Era entre estes executantes que
eram recrutados também os autores dos poemas. Os menestréis, por outras
palavras, umas vezes reproduziam oralmente as composições de outrem, outras,
tinham eles próprios “encontrado” os cantos que recitavam. Entre um e outro
extremo, existia, aliás, uma infinidade de variedades. Raramente o “inventor” o
era de toda a matéria; e raramente o intérprete se abstinha de qualquer
arranjo. Um público muito variado, na sua maioria iletrado, quase sempre
incapaz de avaliar a autenticidade dos fatos, muito menos sensível, aliás, à
veracidade do que ao divertimento e à exaltação de sentimentos familiares; como
criadores, homens habituados a remodelar continuamente a substância das suas narrativas,
votados, por outro lado, a um género de vida mediocremente favorável ao estudo,
mas no entanto em situação de frequentar os grandes, de tempos a tempos e
desejosos de lhes agradarem; era este o pano de fundo de tal literatura.
Pesquisar de que modo tantas recordações exatas se infiltraram nela equivale a
perguntar quais as vias pelas quais os menestréis foram postos ao fato dos
acontecimentos ou dos nomes.”
77 Huon de Bordeaux, ed.
Guessard et Grandmaison, p. 148.
“Em toda literatura, uma sociedade sempre
contempla sua própria imagem.”
“Por muitas características, o homem das
proximidades do ano 1200, nas classes superiores da sociedade, assemelha-se ao
seu antepassado das gerações anteriores: tem o mesmo espírito de violência, as
mesmas variações bruscas de humor, a mesma preocupação com o sobrenatural,
maior ainda, talvez, no que respeita à obsessão das presenças diabólicas,
graças ao dualismo que, mesmo nos meios ortodoxos, era espalhado pela
vizinhança das heresias dos maniqueus, tão prósperas ao tempo. No entanto, há
dois pontos em que difere dele profundamente: é mais instruído e mais
consciente.”
“Também, por outras razões ainda, a palavra
propriedade, aplicada a um imóvel, teria sido vazia de sentido. Ou pelo menos
deveria dizer-se — como facilmente irá acontecer mais tarde, quando se dispuser
de um vocabulário jurídico melhor elaborado — propriedade ou posse deste ou
daquele direito sobre a terra. Com efeito, sobre quase todas as terras e sobre
muitos homens, pesava, naquele tempo, uma multiplicidade de direitos, diversos
pela sua natureza, mas parecendo cada um deles, na sua esfera, igualmente
respeitável. Nenhum apresentava esta rígida exclusividade, característica da
propriedade, do tipo romano. O foreiro que — de pais para filhos, geralmente —
amanhã a terra e colhe; o seu senhor direto, ao qual paga rendas e que, em
alguns casos, saberá apanhar de novo a gleba; o senhor desse senhor e assim por
diante, ao longo de toda a escala feudal: quantas personagens poderão dizer “o
meu campo”! todas com a mesma razão! E isto, não considerando tudo, pois as
ramificações estendiam-se tanto horizontalmente como de cima para baixo e
deveria considerar-se também a comunidade da povoação, a qual, geralmente,
recupera o uso de todos os terrenos cultivados, logo que estes fiquem livres de
colheitas; também deveríamos contar com a família do foreiro, sem a
concordância da qual os bens não poderiam ser alienados; bem como com as
famílias dos sucessivos senhores. Este emaranhado hierarquizado dos laços entre
o homem e solo provinha, sem dúvida, de origens muito remotas. Não fora a
propriedade possuída por vários parceiros, indivisamente, em grande parte da
própria Romania, apenas uma fachada? O sistema, no entanto,
desenvolveu-se nos tempos feudais com vigor incomparável. Uma semelhante
compenetração das posses, sobre uma mesma coisa, não continha nada capaz de
ferir os espíritos bastante pouco sensíveis à lógica da contradição e talvez
que, para definir este estado de direito e de opinião, o melhor fosse pedir
emprestada à sociologia uma fórmula célebre, dizendo: mentalidade de
“participação” jurídica.”
“Refletir sobre uma mudança é sempre arriscar-se
a renunciar a ela.”
“Ser “o homem” de outro homem: no vocabulário
feudal, não existia aliança de palavras mais difundida do que esta, nem mais
rica de sentido. Comum aos falares românicos e germânicos, servia para exprimir
a dependência pessoal, em si. E isto, fosse qual fosse, aliás, a natureza
jurídica exata do vínculo e sem ter em conta qualquer distinção de classe. O
conde era “o homem” do rei, tal como o servo o era do senhor da sua aldeia. Por
vezes, era até no mesmo texto que, com poucas linhas de intervalo, condições
sociais radicalmente diferentes eram assim evocadas, uma após outra: tal como,
cerca do final do século XI, a petição de monjas normandas que se queixavam de
que os seus “homens” — isto é, os seus camponeses — fossem obrigados por um
alto barão a trabalhar nos castelos dos “homens” deste: entenda-se, os
cavaleiros, seus vassalos144. O equívoco não era chocante pois apesar do abismo entre as camadas
sociais, a acentuação exercia-se sobre o elemento fundamental comum: a
subordinação de indivíduo a indivíduo.”
144 HASKINS, Norman institutions, Cambridge
(USA), 1918, Harvard Historical Studies, XXIV, p. 63.
“No entanto, a menos que caíssem, como este, nas mãos do clero, nem os
alódios usurpados, nem os de antiga e autêntica origem, estavam destinados a
conservar por muito tempo a sua qualidade. Era uma vez, conta um cronista, dois
irmãos, chamados Herroi e Hacket, que, depois da morte do pai, rico senhor em
Poperinghe, tinham dividido os alódios. Sem demora, o conde de Bolonha e o
conde de Guines esforçaram-se por os obrigar a prestar-lhes homenagem, mediante
essas terras. Hacket. “receando os homens mais do que Deus”, cedeu às
intimações do conde de Guines. Herroi, pelo contrário, não querendo submeter-se
a nenhum dos seus perseguidores, levou a sua parte da herança ao bispo de
Thérouanne e retomou-a deste como feudo166. Relatada
tardiamente e como um simples “diz-se”, a tradição não está muito segura nos
pormenores. Fundamentalmente, fornece, com certeza, uma imagem justa do que
podia ser a sorte destes pequenos senhores de alódios, pressionados entre as
ambições rivais dos altos barões vizinhos. Igualmente vemos, na crônica exata
de Gilbert de Mons, os castelos, erguidos nas terras alodiais da região do
Hainaut, reduzidos, pouco a pouco, à condição de feudos, pelos condes de
Hainaut ou de Flandres. Como o regime feudal, que se definiu essencialmente sob
as espécies de uma rede de dependências, nunca atingiu, mesmo nas regiões onde
nasceu, o estado de um sistema perfeito, os alódios sobreviveram sempre. Mas,
muito abundantes ainda no tempo dos primeiros Carolíngios — a tal ponto que a
posse de um deles, que se situasse no próprio condado, era então a condição
necessária para poder ser designado como “defensor” de uma igreja, ou seja, o
seu representante leigo —, o seu número, a partir do século X, foi decrescendo
rapidamente, enquanto o dos feudos aumentava sem cessar. O solo caía em
sujeição com os homens.”
“No trabalho de fixação que pouco a pouco se processou, os juristas
profissionais só desempenharam um papel tardio e, em suma, mediocremente
eficaz. Não há dúvida de que, cerca de 1020, vemos o bispo Fulberto de
Chartres, formado pelo direito canônico nos métodos da reflexão jurídica,
abalançar-se a uma análise da homenagem e dos seus efeitos. Mas, interessante
como sintoma da penetração do direito erudito num domínio que até ali lhe fora
alheio, esta tentativa não conseguia elevar-se acima de uma escolástica
bastante balofa. A ação decisiva, aqui, como noutros lugares, pertenceu ao
direito consuetudinário, alimentado de precedentes e progressivamente
cristalizado pela jurisprudência de cortes em que havia muitos vassalos.
Depois, ganhou-se o hábito, cada vez mais frequente, de fazer passar estas
condições, que antes eram puramente tradicionais, para o próprio acordo. Melhor
do que as poucas palavras que acompanhavam a homenagem, o juramento de fé, que
podia alongar-se à vontade, prestava-se às minúcias. Assim, uni contrato
prudentemente pormenorizado substituiu a submissão do homem todo inteiro. Por
um acréscimo de "precaução, que é bem significativo acerca do enfraquecimento
do vínculo, o vassalo, geralmente, não promete só auxiliar. Deve também
comprometer-se a não prejudicar. Na Flandres, desde o começo do século XII
estas cláusulas negativas tinham revestido importância suficiente para darem
lugar a um ato à parte: a “caução”, a qual, jurada depois da fé, autorizava, ao
que parece, o senhor, em caso de incumprimento, a apoderar-se de determinado
penhor. Evidentemente que, durante muito tempo, as obrigações positivas não
deixaram de prevalecer.
O dever primordial era, por
definição, o auxílio de guerra. O “homem de boca e de mão” deve, antes e acima
de tudo, servir em pessoa, a cavalo e completamente equipado. No entanto, só
raramente aparece sozinho. Além de os seus próprios vassalos, se os possui, se
agruparem em torno do seu estandarte, as suas comodidades, o seu prestígio, o
costume, por vezes, exige-lhe que se faça acompanhar pelo menos por um ou dois
escudeiros. Em contrapartida, não havia, geralmente, infantaria, no seu
contingente. O seu papel no combate é considerado demasiado medíocre, a
dificuldade em alimentar massas humanas consideráveis é demasiado pesada para
que o chefe do exército possa contentar-se com os peões camponeses fornecidos
pelas suas próprias terras ou pelas das igrejas das quais, oficialmente, se
constituiu protetor. Frequentemente, o vassalo está também sujeito a fazer
guarda no castelo senhorial, seja só durante as hostilidades, seja — pois uma
fortaleza não pode ficar sem vigilância — em qualquer tempo, por turnos, com os
de categoria semelhante à sua. Se ele próprio possui uma fortaleza, deve pô-la
à disposição do seu senhor.
Pouco a pouco, as diferenças de
classe e de poder, a formação de tradições necessariamente divergentes, os
acordos particulares e mesmo os abusos tomados como direitos introduziram
nestas obrigações inúmeras variantes. Quase sempre, afinal, com vista a
aliviar-lhes o peso.
Um grave problema
nascia da hierarquização das homenagens. Súbditos e senhores ao mesmo tempo,
vários vassalos, por sua vez, dispunham de vassalos. O dever que lhes ordenava
que ajudassem o senhor com todas as suas forças parecia que deveria ditar-lhes
que se apresentassem no exército senhorial rodeados da tropa inteira dos seus
dependentes. O costume, todavia, cedo os autorizou a levarem consigo apenas uma
quantidade de servos, fixa por uma vez e muito inferior ao número daqueles que
podiam empregar nas suas próprias guerras. Vejamos, por exemplo, o bispo de
Bayeux, nos finais do século XI. Mais de uma centena de cavaleiros devem-lhe o
serviço das armas. Mas ele só é obrigado a fornecer vinte ao duque, seu senhor
imediato. Pior ainda: se for em nome do rei, de quem a Normandia é mantida como
feudo, que o duque reclama o socorro do prelado, o número de soldados, nesta
escala superior, será reduzido para dez. Esta diminuição da obrigação militar,
debaixo para cima — contra a qual a monarquia dos Plantagenetas, no século XII,
se esforçou por reagir, sem grande sucesso — não se duvida de que foi uma das
principais causas da total ineficácia do sistema vassálico, como meio de defesa
ou de conquista nas mãos dos poderes públicos194.
Antes de mais nada, os vassalos,
grandes e pequenos, aspiravam a não ficarem indefinidamente ligados ao serviço.
Para limitar a duração deste, nem as tradições do Estado carolíngio, nem os
costumes primitivos da vassalagem ofereciam precedentes diretos: o súbdito, tal
como o guerreiro doméstico, ficava armado enquanto a sua presença parecesse
necessária ao rei, ou ao chefe. Pelo contrário, os velhos direitos germânicos
tinham largamente feito uso de uma espécie de prazo tipo, fixado em quarenta
dias, ou, como mais antigamente se dizia, quarenta noites. Este não
regulamentava apenas vários atos de procedimento. A própria legislação militar
franca tinha-o adoptado, como limite do tempo de repouso a que os mobilizados
tinham direito, entre duas convocações. Este número tradicional, que acorria
naturalmente ao espírito, desde o final do século XI, forneceu a norma geral da
obrigação imposta aos vassalos. Uma vez decorrido o prazo, eles eram livres de
voltarem para as suas casas, na maior parte das vezes pelo período de um ano. Sem
dúvida acontecia frequentemente que os viam, apesar disso, permanecer no
exército. Alguns direitos consuetudinários procuravam fazer um dever desse
prolongamento. Mas, daí em diante isso só podia acontecer a expensas do senhor
e pagos por ele. O feudo, outrora salário do “satélite” armado, tinha de tal
modo deixado de corresponder à sua função primitiva que era preciso completá-lo
com outra remuneração.
Não era apenas para combater que
o senhor chamava a si os vassalos. Em tempo de paz, ele reunia a sua “corte”,
que, em datas mais ou menos regulares coincidentes, em geral, com as principais
festas litúrgicas, convocava com grande aparato: sucessivamente, tribunal,
conselho cuja moral política da época impunha ao senhor a opinião em todas as
circunstâncias graves, e também serviço de honra. Aparecer aos olhos de todos
rodeado por um grande número de dependentes; obter, por parte destes, que por
vezes eram também de elevada categoria, o cumprimento público de alguns dos
seguintes gestos de deferência — funções de escudeiro, de escansão, de criado
de mesa — os quais, aos olhos de uma época sensível às coisas vistas, tinham um
alto valor simbólico: poderia haver, para um chefe, manifestação mais
retumbante do seu prestígio, ou meio mais delicioso de ele próprio tomar
consciência disso?
Destas cortes “plenárias,
maravilhosas e importantes”, os poemas épicos de que elas são um dos ambientes
familiares exageraram ingenuamente o esplendor. Mesmo relativamente àquelas em
que os reis, segundo o ritual, figuravam de coroa na cabeça, o quadro é
demasiado lisonjeiro. Com maioria de razão, se evocarmos as modestas reuniões
em torno dos pequenos ou médios barões. Que nestas reuniões, no entanto, foram
tratados muitos assuntos; que as mais brilhantes delas emprestaram a tudo um
aparato de cerimônia e atraíram, além de uma assistência normal, uma multidão
de aventureiros, de dançarinos, e até de ladrões de bolsas; que o senhor fosse
levado, não só pelo uso como pelo seu interesse, bem entendido, a distribuir
ali pelos seus homens os presentes de cavalos, de armas, de vestuário, que eram
simultaneamente o penhor da sua fidelidade e o sinal da sua subordinação; que,
finalmente, a presença dos vassalos cada um “cuidadosamente adornado, conforme
a sua categoria”, como o prescrevia o abade de Saint-Riquier — nunca tenha
deixado de ser ali exigida: tudo isto nos é confirmado pelos textos mais
exatos. O conde, dizem os Usages de Barcelone (Costumes de Barcelona), quando
reúne a sua corte, deve: “fazer justiça...; prestar auxílio aos oprimidos... à
hora das refeições, fazê-las anunciar com o soar de trompas para que nobres e
não nobres venham tomar parte nelas, distribuir mantos aos seus grandes;
decidir sobre o exército que irá levar a devastação a terras de Espanha; armar
novos cavaleiros”. Numa categoria mais baixa da hierarquia social, um pequeno
cavaleiro da Picardia, declarando-se, em 1210, homem lígio do vidama de Amiens,
prometia-lhe, de uma só vez, o auxílio na guerra durante seis semanas e “vir,
quando me for dito, à festa que fará o dito vidama, para ali permanecer à minha
custa, com a minha mulher, durante oito dias”195
Este último exemplo mostra, como
muitos outros, de que modo, tal como acontecera com o serviço militar, o
serviço da corte foi pouco a pouco regulamentado e limitado. O que, no entanto,
não quer dizer que a atitude dos grupos vassálicos, perante as duas obrigações,
tenha sido semelhante sob todos os pontos de vista. O serviço militar não
passava de um encargo. A assistência à corte comportava, em compensação, muitas
vantagens: dádivas senhoriais, belos banquetes, participação, também, no poder
de comando. Por isso, os vassalos cada vez menos procuraram furtar-se a ela.
Até ao fim da era feudal, estas assembleias, ao contrabalançarem, em certa
medida, o afastamento nascido da prática do feudo, contribuíram para manter,
entre o senhor e os seus homens, o contato pessoal, sem o qual não existe
vínculo humano.
A fé impunha ao vassalo “ajudar”
o seu senhor em todas as coisas. Com a sua espada, com o seu conselho: conforme
era necessário. Chegou um momento em que se acrescentou: também com a sua
bolsa. Nenhuma instituição revela melhor a unidade profunda do sistema de
dependências sobre o qual se tinha construído a sociedade feudal do que a deste
apoio pecuniário. Servo; foreiro, chamado “livre”, de um senhorio; súbdito, num
reino; vassalo, finalmente: todo aquele que obedece deve ao seu chefe ou senhor
o socorro nas suas necessidades. Ora, existirá maior mal do que a falta de
dinheiro? Os próprios nomes da contribuição que o senhor, em caso de
necessidade, estava autorizado a requisitar aos seus homens, pelo menos no
domínio do direito feudal francês, foram semelhantes, do cimo ao fundo da
escala. Dizia-se “auxílio”, simplesmente; ou ainda “taille” (talha),
expressão feita por imagem do verbo “tailler”, à letra, tirar a alguém
um pedaço da sua substância e, consequentemente, lançar um imposto196.”
194 HASKINS, Norman institutions,
p. 15 — ROUND, Family origins, 1930, p. 208; CHEW, The English
ecclesiastical tenants-in-chief and knight-service, especially in the
thirteenth and fourteenth century; — GLEASON, An ecclesiastical barony
of the middle ages. 1936. — H. NAVEL, l’enquête de 1133,
1935, p. 71.
195
HARIULF, Chronique, III, 3, ed. Lot., p. 97. — Us. Barc. c. CXXIV
— DU CANGE, Dissertations sur l’hisíoire de saint Louis, V, ed. Henschel, t. VII, p. 23.
196
Em Inglaterra, contudo, os termos acabaram por se hierarquizar, ficando o de
“auxílio” reservado aos vassalos e “talha” aos dependentes mais modestos.
“Ao
senhor, o costume, geralmente, não impunha qualquer compromisso verbal ou
escrito que correspondesse ao juramento do vassalo. Estas promessas “de cima”
só tardiamente apareceram e permaneceram sempre excepcionais. Não houve, assim,
oportunidade de definir as obrigações do chefe com tanto pormenor como as do
subordinado. Aliás, um dever de proteção prestava-se, muito menos do que os
serviços, a tais minúcias. “Em relação e contra qualquer criatura que viva ou
que morra”, o homem será defendido pelo seu senhor. Primeiro, e acima de tudo,
no seu corpo. Nos seus bens também e mais particularmente nos seus feudos.
Aliás, deste protetor feito juiz, como veremos, ele esperava boa e rápida
justiça. Acrescentemos as vantagens, imponderáveis e, no entanto, preciosas,
que, numa sociedade muito anárquica, assegurava, com ou sem razão, o patronato
de um poderoso. Tudo isso estava longe de poder ser desprezado. O que não
impedia que, no fim de contas, o vassalo, sem dúvida, devesse mais do que
recebia. Salário de serviço, o primitivo feudo tinha restabelecido o
equilíbrio. À medida que, praticamente transformado em bem patrimonial, a sua
função original caiu no esquecimento, a desigualdade dos cargos tornou-se mais
flagrante; e, por isso, tornou-se cada vez mais vivo o desejo de pôr cobro à
situação, entre aqueles que ela desfavorecia.
II. A vassalagem em lugar da
linhagem
Todavia,
se nos limitássemos a este balanço por meio de deve e haver, obteríamos apenas
uma imagem singularmente sem vida da natureza profunda do vínculo. Fora como
uma espécie de sucedâneo ou de complemento da solidariedade de linhagem, que se
tornara insuficientemente eficaz, que as relações de dependência pessoal tinham
feito a sua entrada na história. O homem que não tem um senhor, se a sua
parentela não toma conta dele, segundo o direito anglo-saxão do século X, é um
fora-da-lei198. O vassalo perante o senhor e o
senhor perante o vassalo foram durante muito tempo como que um parente
suplementar, facilmente comparado, tanto nos deveres como nos direitos, aos
parentes pelo sangue. Numa das suas constituições de paz, Frederico Barba Ruiva
diz que, quando um incendiário procurar asilo num castelo, o senhor da
fortaleza será obrigado, se não quiser passar por cúmplice, a entregar o
fugitivo, “a menos, no entanto, que este seja seu senhor, seu vassalo ou seu
parente”. E não era por acaso que o mais antigo “coutumier” (consuetudinário)
normando, quando se ocupa do assassínio do vassalo pelo senhor e do senhor pelo
vassalo, classifica estes crimes, num mesmo capítulo, à mistura com os mais
horríveis homicídios cometidos no seio da parentela. Deste caráter quase
familiar da vassalagem derivariam vários traços duradoiros, não só nas regras
jurídicas como nos costumes.
O
primeiro dever de um membro de uma linhagem era a vingança. Igualmente, para
aqueles que tinham prestado ou recebido homenagem. Uma velha glossa germânica
não traduzia já, ingenuamente, o latim ultor — vingador — pelo
alto-alemão mundporo: patrono199? Esta igualdade
de vocação entre a parentela e o vínculo vassálico, iniciada pela “faide”,
continuava diante do juiz. Desde que não tenha, pessoalmente, assistido ao
crime, diz um “consuetudinário” inglês, do século XII, ninguém pode
constituir-se acusador, em caso de assassínio, a menos que seja parente do
morto, seu senhor ou seu homem, pela homenagem. Esta obrigação impunha-se com a
mesma força ao senhor em relação ao seu vassalo e ao vassado para com o senhor.
No entanto, marcava-se uma diferença de grau, bem conforme ao espírito desta
relação de submissão. Se acreditarmos no poema de Beowulf, os
companheiros do chefe assassinado, na antiga Germânia, teriam recebido a sua
parte no “preço do sangue”. Já não acontecia o mesmo na Inglaterra normanda. O
senhor participava da compensação paga por morte do vassalo; mas o vassalo nada
recebia daquela que era devida pelo assassínio do senhor. A perda de um
servidor tem preço; a do senhor, não.
O
filho do cavaleiro só raramente era educado na casa paterna. O uso, respeitado enquanto
os costumes feudais tiveram alguma força, mandava que o pai o confiasse, ainda
muito novo, ao seu senhor, ou a um dos seus senhores. Junto deste chefe, o
rapaz, enquanto desempenhava as funções de pajem, instruía-se nas artes da caça
e da guerra, mais tarde, na vida da corte. (...)
Outras
sociedades, na Europa medieval, conheceram práticas análogas, destinadas, ali
também, a reavivar, por intermédio dos jovens, laços que o afastamento ameaçava
constantemente afrouxar. Mas o “fosterage” da Irlanda parece ter servido
principalmente para estreitar a ligação da criança com o clã materno e por
vezes, para consolidar o prestígio pedagógico de uma corporação de padres
letrados. Entre os Escandinavos, era ao fiel que cabia o dever de educar a
posteridade do seu senhor: de tal modo que Harald da Noruega quis manifestar
aos olhos de todos a subordinação que dizia existir do rei Aethelstan da
Inglaterra para com ele, e não achou melhor maneira de o fazer, conta a saga,
do que mandar colocar, de surpresa, o seu próprio filho no colo daquele homem
feito pai contra vontade. A originalidade do mundo feudal foi ter concebido a
relação de baixo para cima. As obrigações de deferência e de gratidão assim
contraídas eram consideradas muito fortes. Durante toda a sua vida, o rapazito
de outrora devia lembrar-se de que tinha sido o “nourri” (alimentado) do
senhor — a palavra, como o seu conteúdo, data da época franca na Gália e
encontra-se ainda nos escritos de Commynes200. —
Certamente que aqui, como em outros lugares, a realidade desmentiu muitas vezes
as regras da honra. No entanto, como recusar toda a eficácia a um costume que —
ao mesmo tempo que colocava nas mãos do senhor um precioso refém — fazia
reviver em cada geração de vassalos um pouco daquela existência à sombra do
chefe, de quem a vassalagem tinha recebido a parte mais sólida do seu valor
humano?
Numa
sociedade em que o indivíduo pertencia tão pouco a si próprio, o casamento,
que, como já vimos, punha tantos interesses em jogo, estava longe de se
assemelhar a um ato de vontade pessoal. A decisão, acima de tudo, pertencia ao
pai. “Ele quer ver o filho casado enquanto for vivo; portanto, compra-lhe a
filha de um nobre”: assim se exprime, sem rodeios, o velho Poema de Santo
Aleixo. Ao lado do pai, algumas vezes, mas especialmente se ele já não
existia, intervinham os parentes. Mas também, no caso do órfão nascido de um
vassalo, intervinha o senhor. E até, quando se tratava de um senhor, os
vassalos também. Neste último caso, em verdade, a regra nunca ultrapassou o
alcance de um simples uso de conveniência; em todas as circunstâncias graves o
barão devia consultar os seus homens; nesta, também, entre outras. De senhor
para vassalo, pelo contrário, os direitos fizeram-se muito mais precisos. A
tradição recuava às origens mais longínquas da vassalagem. “Se o soldado
privado (buccellarius) deixa apenas uma filha — diz uma lei visigótica
do século V — mandamos que ela fique sob as ordens do senhor, o qual lhe
arranjará um marido de condição igual. Se, porventura, ela escolhe um esposo,
contra a vontade do patrono, terá que restituir-lhe os bens que seu pai tiver
recebido daquele.”201. A hereditariedade dos feudos
— já presente, aliás, neste texto, sob uma forma rudimentar — fornece aos
senhores mais um motivo, e muito poderoso, para vigiar as uniões que, quando a
terra caía em poder de uma mulher, lhes impunham um fiel estranho à primitiva
linhagem. Os seus poderes matrimoniais, contudo, só se desenvolveram plenamente
em França e na Lotaríngia, verdadeiras pátrias do sistema vassálico, e nos
feudalismos de importação. Certamente que as famílias de condição cavaleiresca
não foram as únicas a sofrerem tais ingerências, nesse setor; na verdade,
muitas outras se encontravam submetidas a uma autoridade de natureza senhorial,
mediante outros vínculos, e os próprios reis, nessa qualidade, consideravam-se
por vezes no direito de disporem da mão, pelo menos das suas súbditas. Mas em
relação aos vassalos — algumas vezes, também aos servos, outros dependentes
pessoais — considerava-se quase universalmente como legítimo o que, em presença
de subordinados de graus diferentes, passava por um abuso de força. “Não
casaremos as viúvas e as filhas contra sua vontade — promete Filipe Augusto aos
habitantes de Falaise e de Caen — a menos que elas detenham, no todo ou em
parte, um feudo nosso “de loriga” (entenda-se: um feudo militar, caracterizado
pelo serviço com cota de malhas). A boa regra queria que o senhor se pusesse de
acordo com os membros das linhagens: colaboração que, no século XIII, por
exemplo, um costume de Orleães se esforçava por organizar e que é revelado, no
reinado de Henrique I, de Inglaterra, por uma curiosa carta real202.
Quando o senhor, no entanto, era poderoso, conseguia ultrapassar todos os
rivais. Na Inglaterra dos Plantagenetas, esta instituição, oriunda de
princípios tutelares, degenerou finalmente num comércio estranho. Os reis e os
barões sobretudo os reis — vendiam a quem dava mais, órfãos ou órfãs para
casar. Ou até, na iminência de ter que aceitar um marido que lhe não agradava,
a viúva pagava bem, e de contado, a permissão de o recusar. Apesar do
afrouxamento progressivo do vínculo, a vassalagem, como se vê, nem sempre
escapou àquele outro perigo cuja sombra ameaça quase todos os regimes de
proteção pessoal: transformar-se num mecanismo de exploração dos fracos pelos
fortes.”
198. Cf. atrás, p. 258.
199 Steinmeyer e SIEVERS, Althochdeutschen
Glossen, 1, pp. 268 e 23.
200 FLODOARD, Hist.
Remensis eccl.. III, 26, em SS., t. XIII, p. 540: cf. já Actus
pontificum Cenomannensium, pp. 134 e 135 (61): “nutritura”. — COMMYNES, VI,
6 (ed. Mandrot, t. II, p. 50).
201 Codex Euricianus. c. 310. Pelo
contrário, o vassalo, casado pelos seus dois senhores sucessivos, caso revelado
pelo sínodo de Compiègne de 757, é, de acordo com o primeiro sentido da
palavra, um simples escravo e não nos interessa aqui.
202 Ordonnances. t. XII, p. 295. — Et.
de Saint Louis, I, c. 67. — STENTON, The first century of English
feudalism (1066-1166), pp. 33-34.
“Para além dos problemas específicos, tão
numerosos, que levanta a história da vassalagem europeia, existe um grande
problema humano que os domina a todos: qual foi, nos atos e nos corações, a
verdadeira força deste cimento social? Na verdade, a primeira impressão que
acerca disso nos dão os documentos é a de uma estranha contradição, perante a
qual convém não tergiversar.
Não é necessário procurar muito
nos textos para recolher uma impressionante antologia em louvor da instituição
vassálica. (...)
O primeiro dever do bom vassalo,
naturalmente, é saber morrer pelo seu chefe, com a espada na mão: sorte digna
de inveja entre todas, pois é a de um mártir e abre as portas do paraíso. Quem
fala deste modo? Os poetas? Sem dúvida, mas a Igreja também. Um cavaleiro havia
sido obrigado a matar o seu senhor: “Deverias ter aceitado a morte em lugar
dele — declara um bispo, em nome do concílio de Limoges, em 1031 — a tua
fidelidade teria feito de ti um mártir de Deus.”207
Era um vínculo de tal ordem que
não o reconhecer era o mais horrível dos pecados. Escreve o rei Alfredo que,
quando os povos da Inglaterra se tornaram cristãos, estabeleceram, para a maior
parte das omissões, tarifas de compensação, “exceptuando a traição do homem
para com o seu senhor, não ousando, perante tal crime, usar dessa
misericórdia... tal como Cristo não a concedeu aos que o entregaram à morte”.
“Não há redenção para o homem que matou o seu senhor”, repete, com mais de dois
séculos de intervalo, na Inglaterra já feudalizada segundo o modelo do
continente, a compilação de costumes chamada Leis de Henrique Primeiro; “para
ele, a morte nas torturas mais atrozes”. Contava-se, no Hainaut, que um
cavaleiro, tendo morto, em combate, o jovem conde da Flandres, seu senhor
lígio, fora ao encontro do Papa, em penitência. Tal como o Tannhäuser da lenda.
O pontífice ordenou que lhe cortassem as mãos. No entanto, como elas não
tremessem, comutou-lhe a pena, mas com a condição de expiar durante o resto da
sua vida, o seu crime, num claustro. No século XIII, o senhor de Ybelin, ao ser-lhe
proposto mandar assassinar o Imperador, que se tornara o seu pior inimigo,
dirá: “Ele é meu senhor; faça dele o que fizer, manteremos o nosso juramento.”208
Esta ligação era sentida como
sendo tão poderosa que a sua imagem se projetava sobre todos os outros laços
humanos, mais antigos do que ela e que teriam podido parecer mais veneráveis. A
vassalagem, assim, impregnou a família. “Nos processos de pais contra filhos ou
de filhos contra pais — decide a corte condal de Barcelona —, no julgamento, os
pais deverão ser tratados como se fossem senhores e os filhos, como seus
homens, entregues pelas mãos.” Quando a poesia provençal inventou o amor
cortês, concebeu o juramento do perfeito amante sobre o modelo da dedicação
vassálica. E isto, tanto mais facilmente, aliás, quanto o adorador, de fato,
era muitas vezes de categoria menos elevada do que a dama dos seus pensamentos.
A assimilação foi levada a tal extremo que, por uma estranha volta de
linguagem, o apelido ou o cognome da bem-amada era facilmente dotado do género
masculino, como convém a um nome de chefe: Bel Senhor, “mon beau
seigneur”, só conhecemos sob este pseudônimo uma daquelas a quem Bertrand de
Born entregou o seu volúvel coração. No seu sinete, por vezes, o cavaleiro
mandava gravar a sua imagem com as mãos entre as mãos juntas da sua Dulcineia.
Do mesmo modo — provavelmente reanimado, no tempo do primeiro romantismo, por
uma moda arqueológica — a lembrança deste simbolismo, de uma ternura muito
feudal, não sobrevive ainda, nos nossos dias, nas regras de civilidade que nos
prescrevem o emprego quase unilateral da palavra homenagens, bem descolorida
já? Até a própria mentalidade religiosa se enfeitou com estas tintas
emprestadas. Entregar-se ao diabo, era tornar-se seu vassalo; juntamente com os
sinetes amorosos, as cenas de entrega de si mesmo ao Demônio contam-se entre as
melhores representações da homenagem que possuímos. Para o anglo-saxão
Cynewulf, os anjos são os thegns de Deus; para o bispo Eberhard de
Bamberg, o Cristo é o vassalo do Pai. Mas, sem dúvida que não existe testemunho
mais eloquente da omnipresença do sentimento vassálico do que, nas suas
vicissitudes, o próprio ritual da devoção: substituindo a atitude antiga dos
que oravam, de mãos estendidas, o gesto das mãos postas, imitado da “commendise”
(proteção), tornou-se, para todos os católicos, o gesto da oração, por
excelência209.
Diante de Deus, no íntimo da sua
alma, o bom cristão via-se como um vassalo, dobrando os joelhos perante o seu
senhor.
Todavia, era impossível que a
obrigação vassálica não entrasse algumas vezes em conflito com outras
obrigações: a do subordinado, por exemplo, ou do parente. Mas quase sempre
triunfava das suas rivais, não apenas na prática, mas também conforme o
direito. Quando Hugo Capeto, em 991, retomou Melun, o visconde, que havia
defendido a fortaleza contra ele, foi enforcado, com a sua mulher: menos, sem
dúvida, por rebelião para com o seu rei do que por um crime mais atroz: tinha
ao mesmo tempo faltado à lealdade para com o conde, seu senhor direto, presente
no campo real. Em contrapartida, os homens de Hugo exigiram o perdão dos
cavaleiros do castelo: como vassalos do visconde, ao tornarem-se cúmplices da
sua revolta, não haviam apenas manifestado a sua “virtude”, como diz o
cronista? Quer dizer: a sua fidelidade à homenagem, a qual se sobrepunha, então
à fidelidade para com o Estado210. Os próprios laços
de sangue, que decerto pareciam muito mais sagrados do que os do direito
público, eram ultrapassados pelos deveres da dependência pessoal. Em
Inglaterra, as leis de Alfredo determinam: “Podem-se empunhar armas por um
parente, injustamente atacado. Exceto, no entanto, contra o seu senhor: isso,
não o permitimos.” Numa passagem célebre, a crônica anglo-saxônica põe em cena
os membros de uma linhagem que a “vendetta” de dois senhores diferentes, entre
os quais se repartia a sua obediência, lança uns contra os outros. Eles aceitam
esta sorte: “nenhum parente nos é mais caro do que o nosso senhor”, dizem eles.
Palavras graves, com a qual faz eco, em pleno século XII, e na Itália
respeitadora das leis, a frase do Livro dos Feudos: “Contra todos, os vassalos
devem ajudar o senhor: contra os seus próprios irmãos, contra os seus filhos,
contra os seus pais.”211”
207 Por exemplo, Girart de
Roussillon. trad. P. MEYER, p. 83; Garin le Lorrain. ed. P. Paris,
t. II, p. 88. — Concilio: MIGNE, P. L., t. CXLII, col. 400.
208
Alfred. em LIEBERMANN. Die Gesetze der Angelsachsen, t. I. p. 47
(49, 7); Leges Henrici, 75, 1. — GISLEBERT DE MONS, ed. Pertz. p. 30.
— PHILIPPE DE NOVARE, ed. Kohler, p. 20.
209
The Christ of Cynewulf. ed. A. S. Cook, v. 457. — MIGNE, P. L. t.
CXCIII, col. 523 e 524. — L. GOUGAUD, Dévotions et pratiques du moyen ãge, 1925,
p. 20 e seg.
210 RICHER, IV, 78.
Outros exemplos (até ao século XIII) JOLLIFFE. The constitutional history of medieval England, p. 164.
211
Alfred, XLII, 6. — Two o) the Saxon chronicles, ed. Plummer, t. 1, pp. 48-49
(755). — K. LEHMANN, Das Langobardische Lehnrechl: Vulgata. II, 28, 4.
Um comentário:
Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
Desta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.
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