Editora: Record
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Eliana Aguiar
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ISBN: 978-85-01-11462-4
Páginas: 446
Sinopse: Nos ombros dos gigantes representa um evento
festivo para os leitores de Umberto Eco. Ao longo de quinze anos, longe das cátedras
universitárias, dos congressos acadêmicos e das cerimônias honorárias, Eco escreveu
estes textos para entreter os espectadores, sempre em grande número, de La Milanesiana,
festival criado e dirigido por Elisabetta Sgarbi ― um “laboratório de excelência”,
que entrelaça artes e saberes diversos, reunindo grandes nomes da cena internacional
nos vários campos da cultura, como literatura, música, cinema, ciência, arte, filosofia
e teatro.
Os textos desta coletânea, em sua maioria, partem do tema
escolhido pelo festival para em seguida percorrer um repertório que bebe tanto na
filosofia, quanto na literatura, na estética, na ética e nas mídias. Em suma: a
quintessência do universo de Umberto Eco, narrado com uma linguagem afável, entremeada
de ironia, às vezes jocosa, e afiada quando necessário. As raízes da nossa civilização,
os cânones mutáveis da beleza, o falso que se torna verdadeiro e modifica o curso
da história, a obsessão pela conspiração, os heróis emblemáticos da grande narrativa,
as formas da arte, aforismos e paródias são alguns dos destaques deste livro, enriquecido
ainda pelas imagens que o autor costumava projetar no decorrer de sua fala. Umberto
Eco.
“É a partir do surgimento medieval dos anões que
tem início a história da modernidade como inovação, que só pode inovar porque recupera
modelos esquecidos pelos pais. Tomemos, por exemplo, a curiosa situação dos primeiros
humanistas e de filósofos como Pico della Mirandola ou Marsílio Ficino. São os protagonistas
— conforme nos ensinam na escola — de uma batalha contra o mundo medieval; é mais
ou menos nesse período que surge a palavra “gótico”, com conotações não totalmente
favoráveis. Mas o que faz o platonismo renascentista? Opõe Platão
a Aristóteles,
descobre o Corpus hermeticum ou os Oráculos caldaicos, constrói o novo saber
sobre uma sabedoria muito antiga, anterior ao próprio Jesus Cristo. Humanismo e
Renascimento são movimentos culturais tidos usualmente como revolucionários, mas
que baseiam sua estratégia inovadora em um dos movimentos mais reacionários que
já existiram, se entendermos como reacionarismo filosófico o retorno à tradição
intemporal. Portanto, estamos diante de um parricídio que elimina os pais recorrendo
aos avós e tentando reconstruir sobre seus ombros a visão renascentista do homem
como centro do cosmos.”
“Mas hoje os mass media e a própria midiatização dos museus, visitados até pelos
incultos de antigamente, geraram a coexistência e a aceitação sincrética de todos
os modelos, para não dizer de todos os valores. Quando Megan Gale volteia, na publicidade
de uma companhia telefônica, entre as cúpulas e volutas do Museu Guggenheim Bilbao,
tanto o modelo sexual quanto o artístico são apetecíveis para qualquer geração:
o museu é tão sexualmente desejável quanto Megan e Megan é um objeto cultural tanto
quanto o museu, dado que convivem no amálgama de uma invenção cinematográfica que
reúne a gastronomicidade do apelo publicitário à ousadia estética daquele que outrora
era somente filme de cinemateca.
Entre novas propostas e exercícios de nostalgia,
modelos como Che Guevara e Madre Teresa de Calcutá, Lady Diana e Padre Pio, Rita
Hayworth, Brigitte Bardot e Julia Roberts, o virilíssimo John Wayne dos anos 1940
e o suave Dustin Hoffman dos anos 1960 tornam-se transgeracionais graças à TV. Nos
anos 1950, o esbelto Fred Astaire dos anos 1930 dança com o musculoso Gene Kelly
a tela nos faz sonhar com toilettes femininamente
suntuosas como as que vemos em Roberta,
e com os modelos andróginos de Coco Chanel. Para quem não tem a beleza máscula e
refinada de Richard Gere, há o fascínio esbelto de Al Pacino e a simpatia proletária
de Robert De Niro. Para quem jamais poderá ter a majestade de uma Maserati, há a
elegante utilidade da Mini Morris.
Os mass
media não apresentam mais nenhum modelo unificado. Podem recuperar, mesmo em
uma publicidade destinada a durar apenas uma semana, todas as experiências da vanguarda
e, ao mesmo tempo, redescobrir uma iconografia oitocentista; oferecem o realismo
fabuloso dos RPGs e as perspectivas alucinadas de Escher, a opulência de Marilyn
Monroe e a graça enfermiça das novas top models,
a beleza extracomunitária de Naomi Campbell e a beleza nórdica de Claudia Schiffer,
a graça do sapateado tradicional de A Chorus
Line e as arquiteturas futurísticas e gélidas de Blade Runner, a androginia de Jodie Foster e a “cara lavada” de Cameron
Diaz, Rambo e a drag queen Platinette,
George Clooney (que todos os pais queriam ter como filho recém-formado em medicina)
e os neo-cyborgs que metalizam o rosto e transformam os cabelos em uma floresta
de pontas coloridas.
Diante desta orgia de tolerância, deste absoluto
e irrefreável politeísmo, qual seria ainda a linha divisória que separa os pais
dos filhos e obriga os últimos ao parricídio (que é rebelião e homenagem), e os
primeiros ao complexo de Saturno?”
“Os piores diagnósticos de cada época são justamente
os contemporâneos.”
“Considerando, portanto, o arco de cinquenta anos
no curso dos quais tive ocasião de refletir muitas vezes sobre o conceito de beleza,
percebi que poderia muito bem, hoje como então, repetir a este respeito tudo o que
Agostinho
dizia quando perguntado sobre o que é o tempo: “Se ninguém me perguntar, sei o que
é; mas se precisar explicar a alguém que pergunte, não sei”.”
“Ao identificar o belo ao bom, kalòs kai agathòs, os gregos identificavam
o feio físico com o feio moral, e eis que na Ilíada,
Térsites, “o homem mais feio que já esteve em Ílion, vesgo, manco de uma perna,
os ombros curvos sobre o peito, a cabeça pontiaguda coberta por uns pelos ralos”
era mau; assim como eram más as sereias, que eram pássaros repugnantes, e não as
sereias do decadentismo europeu, que as imaginava como belíssimas mulheres. Assim
como eram más as harpias e continuaram a sê-lo, por meio de Dante, na selva dos
suicídios, e como era horrendo o Minotauro e horrenda a Medusa, horrendas as Górgones,
horrendo o monóculo Polifemo.
Mas a cultura grega é obrigada, desde os tempos
de Platão,
a enfrentar um problema: como pode Sócrates,
possuidor de uma alma tão grande, ser feio? E como é feio Esopo que, segundo o Romance de Esopo, de época helenística, “era
escravo, repulsivo à visão, nojento, barrigudo, com a cabeça saliente, nariz chato,
corcunda, oliváceo, baixo, com pés chatos, braços curtos, lábio torto, um erro da
natureza”? E, além do mais, era gago. Ainda bem que sabia escrever.”
“Kitsch é a obra que, para justificar sua função
de estimuladora de efeitos, pavoneia-se com os despojos de outras experiências para
vender-se como arte.”
“Segundo os dicionários de filosofia, absoluto
seria tudo aquilo que é ab solutus, livre
de laços ou limites, que não depende de outro algo, que tem a própria razão, causa
e explicação em si mesmo. Algo, portanto, muito semelhante a Deus, no sentido em
que Ele se definia como “eu sou aquele que é”, ego sum qui sum, em relação ao qual todo o resto é contingente, ou seja, não tem sua causa em
si mesmo e — ainda que exista por acidente — poderia muito bem não existir ou não
existir mais amanhã, como acontece com o sistema solar ou com cada um de nós.
Como seres contingentes e, portanto, destinados
a morrer, temos uma necessidade desesperada de nos ancorar em algo que não perece,
ou seja, algo de absoluto. Mas esse absoluto pode ser transcendente, como a divindade
bíblica, ou imanente. Para não falar de Spinoza
ou Giordano
Bruno, com os filósofos
idealistas, nós também passamos a fazer parte do absoluto, pois o absoluto seria
(em Schelling, por exemplo) a unidade indissolúvel do sujeito que conhece e daquilo
que antes era considerado estranho ao sujeito, como a natureza ou o mundo. No absoluto,
identificamo-nos com Deus, somos parte de algo que ainda não se completou plenamente:
processo, desenvolvimento, crescimento infinito e infinita autodefinição. Mas, se
as coisas fossem assim, nunca poderíamos definir ou conhecer o absoluto, pois fazemos
parte dele e, portanto, tentar concebê-lo seria fazer como o barão
de Münchausen, que saía do pântano puxando-se pelos cabelos.
A alternativa, então, é pensar no absoluto como
algo que não somos e que está em outra parte, não dependendo de nós, como o Deus
de Aristóteles que pensa a si mesmo pensante e que, como queria Joyce no Retrato do artista quando jovem, “permanece
dentro, junto, atrás ou acima de sua obra, invisível, refinado a ponto de desaparecer,
preocupado em aparar as unhas”. De fato, no século XV, em De docta ignorantia, Nicolau de Cusa já dizia: Deus est absolutus.
Mas para de Cusa, enquanto Absoluto, Deus nunca
é plenamente alcançável. A relação entre nosso conhecimento e Deus é a mesma que
se instaura entre um polígono inscrito e a circunferência na qual está inscrito:
à medida que se multiplicam os lados do polígono, ficamos cada vez mais próximos
da circunferência, mas polígono e circunferência nunca serão iguais. De Cusa dizia que Deus é como um círculo cujo centro
está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma.
É possível pensar um círculo com o centro em toda parte e a circunferência em parte
alguma? É claro que não. No entanto, podemos nomeá-lo, e é isso que estou fazendo neste momento. Cada um de vocês
entende que estou falando de algo que tem a ver com a geometria, salvo que é geometricamente
impossível e inconcebível. Existe, portanto, uma diferença entre poder ou não conceber
uma coisa e poder de todo modo nomeá-la, atribuindo-lhe um significado qualquer.
(...)
Outras expressões têm significados vagos e imprecisos
— e com graus de clareza decrescentes. Por exemplo, a expressão o mais alto número par tem um significado,
tanto é verdade que já sabemos que deveria ter a propriedade de ser divisível por
dois (e seremos, portanto, capazes de diferenciá-lo do mais alto número ímpar),
e dispomos também de uma vaga instrução para sua produção, no sentido de que podemos
imaginar que contamos números cada vez mais altos, separando os ímpares dos pares...
Só que logo percebemos que não chegaremos nunca, como em um sonho em que sentimos
que podemos agarrar uma coisa, mas nunca conseguimos. Uma expressão como círculo com o centro em toda parte e a circunferência
em parte alguma não sugere, ao contrário, nenhuma regra para produzir um objeto
correspondente e não só não suporta nenhuma definição, como também frustra qualquer
esforço para imaginá-lo sem sofrer uma sensação de vertigem. Uma expressão como
absoluto tem uma definição a bem dizer
tautológica (é absoluto o que não é contingente, mas é contingente o que não é absoluto),
mas não sugere descrições, definições e classificações; não podemos pensar em instruções
para produzir algo de correspondente, não conhecemos nenhuma de suas propriedades,
exceto a suposição de que as tenha todas e seja provavelmente aquele id cuius nihil maius cogitari possit*, de
que falava Santo Anselmo de Aosta (o que
me traz à mente a frase atribuída Rubinstein: “Se creio em Deus? Não, creio em algo...
muito maior...”).”
*: “Aquilo do qual nada maior pode ser pensável”
““Nomear um objeto é suprimir três quartos da
potência da poesia, que é feita da felicidade de adivinhar pouco a pouco: sugerir,
eis o sonho”. Toda a vida de Mallarmé coloca-se sob o signo deste sonho, mas, ao
mesmo tempo, sob o signo da derrota. Derrota que Dante dera como certa desde o início,
ao compreender que é orgulho luciferino pretender expressar finitamente o infinito;
e havia evitado a derrota da poesia fazendo justamente poesia da derrota, que não
é poesia que pretende dizer o indizível, mas poesia da impossibilidade de dizê-lo.”
“Ecpiroses
contemporâneas
O fogo é destruidor em cada episódio de guerra,
do fabuloso e fabulizado fogo grego dos bizantinos (segredo militar por excelência,
e gostaria de recordar o belo romance que Luigi Malerba lhe dedicou, Il fuoco greco, 1990) à descoberta casual
da pólvora por parte de Berthold Schwarz, dito o Negro, que desapareceu em uma pessoal
e punitiva ecpirose. O fogo é punição para quem faz jogo duplo na guerra e “fogo!”
é o comando de todos os fuzilamentos, como se invocassem a origem da vida para acelerar
o epílogo da morte. Mas o fogo de guerra que mais aterrorizou a humanidade — digo
a humanidade inteira, pela primeira vez globalmente informada de tudo o que estava
ocorrendo em alguma de suas partes — talvez tenha sido a bomba atômica.
Um dos pilotos que lançou a bomba sobre Nagasaki
escreveu: “De repente, a luz de mil sóis iluminou a cabine. Fui obrigado a fechar
os olhos por dois segundos, apesar dos óculos escuros”. O Bhagavad Gita recitava: “Se a luz de mil Sóis brilhasse de uma só vez
no céu, seria como o esplendor do Onipotente Eu me tornei a Morte, destruidora dos
Mundos”, e foram estes os versos que o físico Robert evocou para comentar a explosão
da primeira bomba atômica.
E assim chegamos dramaticamente à conclusão de
meu discurso e — em um espaço de tempo mais razoável, à conclusão da aventura humana
na Terra ou da aventura da Terra no cosmos, pois nunca três dos elementos primordiais
estiveram tão ameaçados como agora: o ar, morto pela poluição e pelo anidrido carbônico;
a água, de um lado, cada vez mais poluída e de outro, cada vez mais escassa. Só
o fogo triunfa, sob a forma de um calor que enlouquece as estações e esteriliza
a Terra e que, derretendo os gelos, convidará os mares a invadi-la. Sem perceber,
marchamos para a primeira e verdadeira ecpirose. Enquanto Bush e a China recusam
o protocolo de Kyoto, caminhamos para a morte pelo fogo — e pouco importa se, depois
do nosso holocausto, o universo se regenerar, pois já não será o nosso.
Em seu Sermão
do fogo, Buda recomendava:
Tudo queima, ó monges! E o que queima? A visão queima, ó monges, as formas
e as cores queimam, a consciência visual queima, o contato visual e qualquer sensação
que dependa do contato do olho com seus objetos — seja ela percebida como agradável,
desagradável ou neutra — também queima. E queima por meio de quê? Queima por meio
do fogo do afeiçoamento [...] Queima, vos digo, por causa do nascimento, da velhice
e da morte, do sofrimento, do lamento, do mal-estar, da angústia e do desalento.
A audição queima, os sons queimam. [...] O olfato queima, os odores queimam. [...]
O paladar, ó monges, queima, os sabores queimam. [...] O tato, ó monges, queima.
[...] A mente, ó monges, queima. [...] Vendo tudo isto, ó monges, o nobre discípulo
que assimilou os ensinamentos fica serenamente desencantado em relação à visão,
às formas e às cores [...], em relação à audição, aos sons. Fica serenamente desencantado
em relação aos odores [...], em relação a qualquer coisa que surja na dependência
do contato da língua com seus objetos, seja ela percebida como agradável, desagradável
ou neutra.
Mas a humanidade não foi capaz de renunciar (ao
menos em parte) ao apego aos próprios odores, sabores, sons e prazeres do tato —
e à produção do fogo por fricção. Talvez devesse ter deixado sua geração aos deuses,
de quem só o receberíamos de vez em quando, sob a forma fulgurante do raio.”
“O econômico é o mais rico dos homens; o mais
pobre é o avaro.” (Chamfort, Massine e Pansieri,
I, 145).
“Foi publicado um livrinho delicioso que reúne
quinhentos lugares-comuns invertidos, já difundidos na internet. São quinhentos
e desde já me desculpo por citar apenas alguns, a partir do título do livro, Scusa l’anticipo ma ho trovato tutti verdi
[Desculpe o adiantado, mas estavam todos verdes].
Primeiro acabou
com a própria vida, depois, com a mesma arma, matou a mulher e os filhos.
Obrigado por ter
estado longe durante este período.
Eu me arrependo
muito por não ter interrompido os estudos.
Já é hora de Papai
Noel entender que crianças não existem.
Sou abobado, sim,
mas não sou velho,
Não dorme, senão
depois não bebe Coca-Cola.
Antigamente tudo
aqui era cidade. (...)
E vamos agora a uma série de paradoxos de Karl
Kraus. Nem tento invertê-los pois basta pensar um pouco para ver que é impossível.
Eles são portadores, contra a opinião comum, de uma verdade não convencional. Não
aceitam torções para transmitir a verdade oposta.
O escândalo começa
quando a polícia o encerra.
Para ser perfeita,
faltava-lhe apenas um defeito.
O ideal da virgindade
é o ideal dos que querem desvirginar.
As penas servem
para desencorajar os que não pretendem pecar.
Há uma obscura razão
da terra que manda exploradores ao mundo.
As crianças brincam
de soldados. Mas por que os soldados brincam de ser crianças?
Naturalmente, Kraus também cai no pecado dos aforismos
cancrizáveis, e eis alguns de seus ditos que podem muito bem ser contraditos e,
portanto, invertidos:
Nada é mais insondável
que a superficialidade da mulher.
Nada é mais superficial que a insondabilidade das mulheres.
Mais fácil perdoar
um pé feio que uma meia feia!
Mais fácil perdoar uma meia feia que um pé feio!
Há mulheres que
não são belas, mas parecem ser.
Há mulheres que são belas, mas não parecem ser.
O super-homem é
um ideal prematuro que pressupõe o homem.
O homem é um ideal prematuro que pressupõe o super-homem.
Os únicos paradoxos que nunca parecem cancrizáveis
são os de Stanislaw J. Lec. Eis uma breve lista de seus Pensieri spettinati (1984):
Se pudéssemos descontar
a morte dormindo-a em prestações!
Sonhei a realidade.
Que alívio acordar!
Abre-te, Sésamo
— quero sair!
Sabe-se lá o que
Colombo teria descoberto se a América não tivesse barrado sua passagem!
Terrível é a mordaça
besuntada de mel.
O camarão enrubesce
depois de morto. Que fineza exemplar, numa vítima!
Ao demolir monumentos,
poupem os pedestais. Eles sempre podem ser úteis.
Possuiu a ciência,
mas não a engravidou.
Em sua modéstia,
considerava-se um grafomaníaco. Na verdade era um delator.
As fogueiras não
iluminam as trevas.
Pode-se morrer em
Santa Helena sem ser Napoleão.
Abraçaram-se tão
apertado que não sobrou espaço para sentimentos.
Ele cobre a cabeça
com as cinzas de suas vítimas.
Sonhei com Freud.
O que significa?
Frequentar anões
deforma a espinha dorsal.
Tinha a consciência
limpa. Nunca usada.
Até em seu silêncio
havia erros linguísticos.
Devo admitir que tenho uma queda por Lec, mas
quero terminar com um paradoxo dele que tem sido um guia, embora nem sempre observado,
para minha vida, e espero que para a de vocês também:
Reflita antes de
pensar.”
“A simulação
barroca
O século que refletiu com maior sutileza sobre
estes problemas foi o barroco, século do nascimento do absolutismo e da razão de
Estado, o século de Mazzarino, que passava o tempo não só perscrutando as mentiras
alheias nos traços do rosto, mas escondendo o que estava lendo ou escrevendo naquele
momento, e que organizava requintados festins nos quais a carne devia parecer peixe,
e o peixe, carne, e as frutas, verduras e vice-versa, pois a aparência mentirosa
suscitava maravilha. Era o século dos mentirosos teatrais, Iago, dom Juan, Tartufo,
mas também o século em que os arquitetos como Borromini mentiam com perspectivas
enganadoras e ambíguas, o século em que contava mais a aparência do que o coração
das coisas, pois era o século em que o olho e a visão transformaram-se em instrumentos
de exploração do universo, o século em que um certo Giuseppe Battista propunha uma
Apologia della menzogna (1673) na qual
aparecem representações emblemáticas da fraude e da simulação.
Torquato Accetto, em sua Dissimulazione onesta (1641), não louva a simulação, que serve para
mostrar aquilo que não se é, mas a dissimulação, que servia para não mostrar aquilo que se é — praticando
aquela falsa modéstia que Kant,
ao contrário, condenava. Para Accetto (em um século de intrigas, enganos, ameaças
e ciladas),
o viver prudente se acompanha com a pureza do espírito [...] em uma via plena
de obstáculos devemos proceder com passos cautelosos e lentos [...] o Evangelho
nos convida a ser prudentes como serpentes e simples como pombas [...] quem não
sabe fingir não sabe viver [...] e dissimular nada mais é que uma indústria de não
deixar que vejam as coisas como são, é um véu composto de trevas honestas [...]
da qual não se forma o falso, mas se dá algum repouso ao verdadeiro [...]. Se alguém
usasse máscara todo dia, ficaria mais conhecido do que qualquer outro [...] enquanto
dos excelentes dissimuladores que existiram e existem não se tem notícia alguma.
Apotegma tão verdadeiro que Accetto, que confessa
a certa altura que publicou seu livro em um estilo distante “porque escrever sobre
a dissimulação exigiu que eu dissimulasse”: teve tanto sucesso em sua intenção que
ninguém lhe prestou atenção e teve de esperar que Croce viesse a redescobri-lo,
esquecido em estantes poeirentas.
Por outro lado, se Descartes
não fugia da fama, depois da condenação de Galileu
resolveu não publicar o livro Le monde ou
traité de la lumière, no qual trabalhava desde 1630, honrando assim o conhecido
lema bene qui latuit, bene vixit*.
Seria fácil dizer que, se Accetto elogia a dissimulação,
Baltasar Gracián em seu Oráculo manual e arte
de prudência (1647) elogia a simulação. Mas as coisas não são fáceis assim,
sobretudo para um jesuíta barroco. Gracián não cessa de afirmar que não se deve
confundir a política com o engano, que “somente a verdade pode conferir autêntica
reputação”; acusa Maquiavel de ser um valiente
embustero, ou seja, um intrépido mentiroso, que “parece ter candura nos lábios
e pureza na língua, mas cospe fogo infernal que inflama os costumes e incendeia
as repúblicas”. À primeira vista, parece que aquilo que ele prega para sobreviver
a seu tempo é a prudência, a discrição, a reserva — pois é preciso a “uma judiciosa
cautela também ao dizer a verdade, que mesmo sem mentir, não deve ser dita toda
de uma vez” e que “não há nada que exija mais cautela que a verdade; dizê-la é como fazer uma sangria no coração. Saber
dizê-la exige tanta habilidade quanto a que é necessária para saber calá-la.”
Mas da discrição extrema à tímida simulação é
só um breve passo. Gracián sabe (como já aconselhava Maquiavel) que é preciso vestir
antes a pele da raposa que a do leão; que a sabedoria prática consiste em saber
dissimular; que a astúcia vale mais que a força; que “as coisas não são consideradas
pelo que são, mas pelo que parecem ser”; que “valer e saber mostrar que vale significa
valer duas vezes”; que “aquilo que não se vê é como se não existisse”; que “jogar
a descoberto não produz vantagem nem prazer”; que “não há perfeição que não corra
o risco de parecer bárbara se não for assistida pelo esplendor do artifício”, que
“não se deve agir sempre com franqueza, pois do contrário os outros perceberão essa
constância e poderão prever e talvez frustrar nossas ações”; que é preciso apoiar
os outros para obter o que se quer, não revelar as próprias fragilidades, saber
imputar aos outros os próprios erros, nunca estar na companhia de quem pode nos
diminuir, e que “uma boa pasta de dentes perfuma a boca e a grande sutileza da vida
é ser capaz de vender o ar, pois é possível pagar a maior parte das coisas só com
palavras...”.
Enfim, “labuta é a vida do homem, contra a malícia
do homem. A astúcia luta com estratagemas bem estudados: não age nunca do modo previsto;
ela acena, sim, um movimento, mas para induzir ao erro; esboça destramente um gesto
no ar e opera em seguida em uma situação inesperada, sempre pronta a desmentir a
intenção mostrada. Acena um propósito [...] depois faz exatamente o contrário, saindo
vencedora graças à surpresa que suscita”.
Certo, Gracián não é Accetto, e por isso suas
máximas desfrutaram de grande sucesso nos séculos sucessivos.”
*: Quem soube viver discretamente, viveu bem.
“Tanto um quadro de Rafael quanto aquele de Twombly
poderiam corresponder a esta definição da forma artística feita por Luigi Pareyson
em Estética (1954):
Na obra de arte, as partes estabelecem um duplo tipo de relação: de cada
uma com as outras e de cada uma com o todo. Todas as partes estão ligadas entre
si em uma indissolúvel unidade, de modo que cada uma é necessária e indispensável
e tem uma colocação determinada e insubstituível, a tal ponto que uma falta dissolveria
a unidade e uma variação traria a desordem Se a alteração das partes é a dissolução
da unidade e a desintegração do todo, isso ocorre porque o próprio todo preside
à coerência das partes entre si e faz com que conspirem todas juntas para formar
o inteiro. Neste sentido, as relações que as partes estabelecem entre si nada mais
fazem que refletir a relação que cada parte tem com o todo: a harmonia das partes
forma o inteiro porque o todo funda sua unidade.
Então, duas seriam as formas de imperfeição possíveis
de imputar a uma obra de arte: a ausência de algumas partes que o todo exigiria
ou a presença de algumas partes a mais. Tem certamente pouco a Vênus de Milo, mutilada
há séculos. Muitos imbecis tentaram fazer com que voltasse a ser perfeita, mais uma daquelas, com ambos os
braços; vi uma delas em um museu de cera californiano com uma legenda “assim como
era quando foi criada por um escultor desconhecido”.
Mas por que julgamos tola a tentativa de aperfeiçoar
a Vênus de Milo? Porque, ao contemplá-la, o que nos fascina é continuar imaginando
aquele todo que se perdeu. E a este sentimento vem se juntar um outro gosto, nascido
no século XVIII, geralmente resumido pelo termo estética das ruínas.”
“Deveria começar dizendo que aquilo que gostaria
de dizer tem grande importância, mas é um segredo, e por isso devo ficar de boca
fechada. Fazendo isso, granjearei grande prestígio e todos ficarão convencidos de
que, como dizia Já’far al-Sadiq, sexto Imã, “Nossa causa é um segredo dentro de
um segredo, o segredo de alguma coisa que permanece velada, um segredo que só um
outro segredo pode explicar, um segredo sobre um segredo que se satisfaz em um segredo”.”
“Um dos casos em que a síndrome da conspiração
desenvolveu-se com maior fantasia é o da destruição das Torres Gêmeas, complô invariavelmente
atribuído aos planos secretos de Bush, aos judeus e assim por diante.
Busquem na internet: verão que New York City tem
onze letras; Afghanistan tem onze letras; Ramsin Yuseb, terrorista que tinha ameaçado
destruir as torres, tem onze letras; George W. Bush tem onze letras; as Torres Gêmeas
formam um 11; Nova York é o décimo primeiro estado dos Estados Unidos; o primeiro
avião a se chocar contra as torres era o voo número 11, que levava 92 passageiros
e 9 + 2 = 11; o voo 77, que também se chocou contra as torres, levava 65 passageiros
e 6 + 5 = 11; a data 9/11 é igual ao número de emergência americano, 911, cuja soma
interna dá 11; o total das vítimas de todos os aviões desviados foi 254, cuja soma
interna dá 11; 11 de setembro é o dia 254 do calendário anual e a soma interna de
254 é 11. E assim por diante, cabalando.
Quais são as objeções a estas coincidências aparentemente
prodigiosas?
New York tem 11 letras se acrescentarmos City;
Afghanistan tem 11 letras, mas os sequestradores não eram afegãos, e sim da Arábia
Saudita, do Egito, do Líbano e dos Emirados Árabes; Ramsin Yuseb só tem 11 letras
se usarmos especificamente uma determinada transliteração, se em vez de Yuseb transliterássemos
Yussef o jogo deixaria de funcionar; George W. Bush só tem 11 letras com a middle initial; as Torres Gêmeas desenham
um 11, mas também um 2 em algarismos romanos; o voo 77 não atingiu uma das torres,
mas o Pentágono, e não transportava 65, mas 59 passageiros; o total das vítimas
não foi 254, mas 265, e assim por diante.
Sempre na internet, informam que, juntando o nome
do primeiro avião que se chocou com a primeira torre, Q33NY, com a sigla de Nova
York, NYC, e colocando a fórmula obtida no computador sem usar a fonte habitual,
como Times ou Garamond, mas uma outra mais ou menos cabalística chamada Wingdings,
você obterá assombrosas mensagens secretas.
O único problema é que nenhum dos aviões que se
chocaram contra as torres chamava-se Q33, e foi preciso inventar esta sigla para
obter a pretensa mensagem secreta.
Há também alguns pretensos segredos que, quando
revelados, se mostram muito decepcionantes. Temos, por exemplo, o caso do terceiro
segredo de Fátima que, entregue em um envelope fechado em 1944 por irmã Lúcia, deveria
ter sido aberto depois de 1960. Mas João XXIII e seus sucessores não acharam oportuno
revelar seu conteúdo, que acabou sendo revelado, afinal, em 2000, por ordem de João
Paulo II. Parece que Ratzinger era o único que já conhecia a mensagem e, com certo
bom senso, havia aconselhado a deixá-lo quieto onde estava, pois não continha nada
de interessante. Mas o fascínio do segredo tinha crescido além de qualquer medida.
Aberta a mensagem, todos viram que eram descrições trágicas, sem dúvida, mas inspiradas
nas imagens de alguns Apocalipses
ibéricos, e se tinha alguma capacidade profética era a de dizer que nos anos que
se seguiram à sua redação (mas também nos anos anteriores e justamente a dois passos
de irmã Lúcia, na Espanha) aconteceriam coisas muito feias — que se podia saber
ou imaginar sem precisar ter visto Nossa Senhora.
Ao contrário de muitos entusiastas de criptografia
que tentariam encontrar significados recônditos na mensagem, inclusive supostas
relações entre segredos de Fátima e segredos de Medjugorje, Ratzinger — então prefeito
da Congregação pela doutrina da fé — tratando primeiro de precaver-se lembrando
que uma visão particular não é matéria de fé e que uma alegoria não é um vaticínio,
identificava explicitamente as analogias com o Apocalipse e observava: “A conclusão do ‘segredo’ recorda imagens que Lúcia
pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições
de fé”. Sendo assim, em um capítulo que se intitula significativamente “A estrutura
antropológica das revelações privadas”, ele escrevia que o vidente “vê com suas
possibilidades concretas, com as modalidades que lhe são acessíveis de representação
e de conhecimento”. O que, em palavras simples, queria dizer que irmã Lúcia havia
visto em êxtase aquilo que havia lido nos livros de seu convento e em textos com
mais de dois mil anos. O que o segredo de Fátima revelava já estava à venda havia
muitíssimo tempo em todas as livrarias da Pia Sociedade de São Paulo.”
“Noto que há alguns anos falei sobre o absoluto
(não é culpa minha se a Milanesiana retorna de modo um pouco obsessivo a assuntos
intratáveis) e noto igualmente que o sagrado é comumente entendido como sentimento
ou visão de algo que transcende nossa experiência, nnas dá a esta experiência um
sentido. Alguém poderia dizer que o sagrado identifica-se com o absoluto, mas o
absoluto é objeto de alguma filosofia ou religião e é um conceito filosófico, enquanto
o sagrado é considerado uma força misteriosa que constitui a origem de todo pensamento
ou sentimento religioso.”
“Existe um texto bastante desconcertante no qual
Ockham diz que uma imagem tem de ser um signo que nos permita recordar algo que
já conhecemos como entidade individual; do contrário, a imagem não seria, a nossos
olhos, semelhante ao representado. Ou seja: a estátua de Hércules nunca me faria
pensar em Hércules se eu já não tivesse visto Hércules (Quaest. in II Sent, Reportatio 12-13).
Este texto aceita (como se houvesse um acordo
geral sobre a questão) não termos condições de imaginar, a partir de um ícone, algo
que nos fosse desconhecido até então. Isso poderia parecer contraditório com nossa
experiência, pois as pessoas usam pinturas, fotografias ou identikit para poder reconhecer pessoas, animais ou coisas ainda desconhecidas,
e mesmo nos tempos de Ockham os monarcas costumavam mandar imagens de sua filha
ao primo de um outro país a quem ela era destinada como esposa. Existe uma explicação
epistemológica para uma afirmação tão embaraçante. Para Agostinho,
um signo era algo que fazia in cogitationem
venire uma outra coisa, e para a tradição aristotélica, pelo menos até Tomás,
o signo remetia imediatamente ao conceito, o qual era, por sua vez, imagem da coisa.
Para Ockham, ao contrário, o verdadeiro signum
da coisa é o conceito, não a palavra que a ela remete. Os conceitos são os signos
naturais que significam as coisas, enquanto
as palavras são impostas por relação direta com as coisas: “voces sunt signa secundario significantia illa
quae per passiones animae primario importantur” (Summa logicae I, 1). As palavras significam as mesmas coisas significadas
pelos conceitos, mas não significam os conceitos!
Se o único signo das coisas individuais é o conceito,
e a expressão material (seja uma palavra ou uma imagem) é somente um sintoma da
imagem interna, então, sem uma notitia intuitiva
preliminar de um objeto, a expressão material não pode significar coisa alguma.
As palavras ou as imagens não criam nem fazem nascer alguma coisa na mente do destinatário
(como podia acontecer na semiótica agostiniana), se naquela mente já não existe
o único signo possível da realidade experimentada, ou seja, o signo mental.
Ora, poderíamos objetar a Ockham que uma representação
qualquer (como o identikit) estimula nossa
mente a produzir um signo mental graças ao qual podemos reconhecer a coisa correspondente,
e esta é a razão pela qual podemos imaginar Hércules ou Hitler mesmo sem nunca os
ter encontrado. Mas o texto de Ockham faz surgir um problema interessante: nenhum
policial poderia elaborar um retrato falado se a testemunha que lhe fornece o input não tivesse encontrado ou visto o indivíduo
correspondente e Pietro Annigoni não teria podido fazer o retrato da rainha Elisabeth
se não a tivesse visto diante de si. Como consequência incontestável, não pode existir
imagem de algo que ninguém nunca tenha
visto — a menos que, como no caso do centauro, se crie uma coisa desconhecida por
composição de partes de coisas conhecidas. E é por isso que podemos fazer imagens
de Hitler e até do Mickey, mas não podemos fazer imagens de um círculo cujo centro
está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma. A teoria ockhamista
da imagem pode ser contestada no que se refere a imagens de coisas atingíveis na
experiência, mas resiste perfeitamente quanto a imagens daquilo que transcende a
experiência.”
“De fato, para o Pseudo-Dionísio Areopagita,
Deus é inefável, e o único modo de falar dele adequadamente é o silêncio (A teologia mística, III, 412-413).
Quando alguém fala, é para ocultar os mistérios divinos daqueles que não podem
alcançá-los (Epístola IX, 1, 452).
Este comportamento mistérico é, no entanto,
continuamente contestado pelo comportamento oposto, a persuasão teofânica de
que, sendo Deus a causa de todas as coisas, todos os nomes lhe cabem, no
sentido de que todo efeito remete à sua Causa (Dei nomi divini I, 7), de
modo que a Deus são atribuídas forma e figura de homem, de fogo, de âmbar, e
dele são louvadas as orelhas, os olhos, os cabelos, o rosto, as mãos, os ombros,
as asas, os braços, o dorso, os pés, e para eles são forjados coroas, copos,
crateras e outros objetos cheios de mistério (ibid. I, 8).
Contudo, o Pseudo-Dionísio adverte que estas
nomeações por via simbólica nunca são adequadas. Daí a necessidade de que tais
representações denunciem sua fraquíssima hiperbolicidade (se me permitem o
oximoro): só se pode nomear o divino por similitudine
dissimile ou dissimilitude inconveniente (por exemplo, A hierarquia celeste II,
2-3), de modo que a divindade é chamada às vezes “também pelos nomes das coisas
mais baixas, como unguento fragrante, pedra angular e até lhe atribuem uma
forma ferina, adaptando-lhe as características do leão e da pantera e dizendo
que será como um leopardo e uma ursa enfurecida” (ibid, II, 5, 87), até chegar a dar a Deus a forma de um verme — e o
caso máximo de dissimilitude é citado na Epístola
IX, 5, que examina um trecho do Salmo
78 em que Deus apareceu tomado pela ira e “acordou como homem que dormia, /
como valente embriagado pelo vinho”.
Mas aqui também se faz alusão ao sagrado
inexprimível através de representações de coisas alcançáveis na experiência — que
não são mais que tentativas de antropomorfização da divindade (Deus com barba e
com auréola triangular), sem falar no procedimento de animalização do Espírito
Santo.
E então, sem poder elaborar verdadeiramente
uma teologia negativa que diga somente o que Deus não é, e tentando uma
contraditoriamente positiva, acaba-se por aceitar representações de Deus como
se fosse um de nós. O que aparece até no início do Gênesis:
se Deus fez o homem à própria imagem e semelhança, isso significa que o homem
pode imaginar Deus à sua própria imagem e semelhança.
De certa forma, o cristianismo superou esta
impossibilidade ao falar de uma divindade encarnada. A encarnação seria o
artifício semiótico através do qual Deus se faz pensável e representável,
compreensível também para os humildes — não apenas através da imagem de Jesus,
mas também por meio da aparência daqueles que foram de certo modo mediadores do
sagrado, como a Virgem e os santos.
Mas o predicamento ockhamista ressurge também
nestes casos, pois nenhum dos que pintaram ou esculpiram retratos de Jesus ou
da Virgem já os viu — pois a retratística de personagens evangélicos nasce séculos
depois da morte de Cristo — e (caso se pretenda dar fé a estes achados) também o
Mandylion, o linho da Verônica ou o Sudário aparecem em época bastante tardia.
Ora, se existe alguém que teve a experiência direta
de Deus, este alguém são os místicos e, justamente por fidelidade à ideia de
não perceptibilidade do sagrado e de impossioilidade de traduzi-lo em imagem,
eles sempre descrevem a experiência do divino sob a forma da escuridão, da
noite escura, do vazio e do silêncio.
Todos os grandes místicos afirmaram que, também
na visão mística, que no entanto é dom inefável, pode haver imagem de Deus.
Deus para o místico aparece como um Grande Nada.
Diz Dionísio, o Cartuxo: “O, Deus
amabilíssimo, tu mesmo és a luz e a esfera da luz, onde teus eleitos vão
suavemente repousar, onde adormecem e dormem. És como um deserto amplíssimo,
perfeitamente plano e incomensurável, no qual o coração verdadeiramente pio,
purificado de qualquer amor particular, iluminado do alto e pleno de ardor,
erra sem se perder, sucumbe beato e ao mesmo tempo se cura”.
Mestre Eckhart fala do abismo sem modo e sem
forma da divindade silenciosa e deserta e quer entrar no fundamento simples, no
deserto silencioso onde nunca se viu diversidade, nem Pai, nem Filho, nem Espírito
Santo, no íntimo onde ninguém se encontra em casa; lá, aquela luz se apaga, lá
ela é mais una que em si mesma, pois este fundamento é um silêncio simples que
é imóvel em si. Só assim a alma atinge a suprema beatitude, lançando-se na
divindade deserta onde não há obra nem imagem.
Johannes Tauler escreve nas Prédicas:
O espírito purificado e clarificado mergulha nas trevas divinas, num
silêncio mudo e numa união incompreensível e inefável, e neste mergulhar
perde-se qualquer igualdade e qualquer desigualdade, e neste abismo o espírito
perde-se a si mesmo e não sabe nem de Deus nem de si mesmo, não conhece nem
igual nem desigual, nem o que quer que seja, pois mergulhou na unidade de Deus
e esqueceu todas as diferenças.
E diz que se chega à verdadeira simplicidade
por meio dos sentidos fechados, da ausência das imagens e do desprezo de si mesmo.
Em todo evento e em todo ato externo é preciso dominar os próprios sentidos,
pois na verdade os sentidos levam o homem para fora de si e provocam nele imagens
estranhas. Há o exemplo de um padre de vida santa que, tendo de sair de sua cela
no mês de maio, tapou os olhos com o capuz da túnica. Quando lhe perguntaram
por que fazia isso, ele disse: “Defendo meus olhos da visão das árvores, para
não ser impedido nas visões do meu espírito. Ó queridos filhos, se a visão do
bosque selvagem já causava impedimento àquele homem, quanto nos deve ser danosa
a variedade das coisas mundanas e frívolas!”
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