Editora: Record
Opinião: ★★★★★
Tradução e
prefácio: Ivo Barroso
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ISBN: 978-85-0102-028-4
Páginas: 242
Sinopse: O lobo da estepe conta a história de
Harry Haller, um homem de 50 anos que acredita que sua integridade depende da
vida solitária que leva em meio às palavras de Goethe e às partituras de
Mozart; um intelectual tentando equilibrar-se à beira do abismo dos problemas
sociais e individuais, ante os quais sua personalidade se torna cada vez mais
ambivalente e, por fim, estilhaçada.
A primeira parte do livro é o pesadelo do lobo Haller,
sua depressão e sua incapacidade de se comunicar que está na base da crueldade
e da destruição. Na segunda, o lobo se humaniza, através da entrada em cena de
Hermínia, que tenta reaproximá-lo do mundo, no caso uma comunidade simplória,
com salas de baile poeirentas e bares pobres.
O lobo da
estepe foi escrito quando Hesse tinha 50 anos, como
seu personagem, e estava profundamente influenciado pela psicanálise. O estilo
adotado, altamente revolucionário para a época, foi elogiado por Thomas Mann,
para quem, como novela experimental, O
lobo da estepe era tão genial quanto Ulisses,
de James Joyce.
“Lembro-me, já nos últimos tempos de sua estada conosco, de um conceito
dessa natureza, que nem chegou a ser mesmo um conceito, mas antes unicamente um
olhar. Foi quando um célebre historiador e crítico de arte, de renome europeu,
anunciou uma conferência na Universidade local e logrei persuadir o Lobo da
Estepe a que fosse assisti-la, embora não me demonstrasse nenhum prazer em ir.
Fomos juntos e nos sentamos um ao lado do outro no salão do auditório. Quando o
orador subiu à tribuna e começou a elocução, decepcionou, pela maneira
presumida e frívola de seu aspecto, a muitos de seus ouvintes, que o haviam
imaginado algo assim como um profeta. E quando então começou a falar e, à guisa
de introdução, endereçou aos ouvintes palavras lisonjeiras, agradecendo-lhes
por haverem comparecido em tão grande número, nesse exato momento o Lobo da
Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a
toda a pessoa do conferencista, oh! um olhar inesquecível e tremendo, sobre
cuja significação poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas
criticava o orador e destruía a celebridade daquele homem com sua ironia
esmagadora embora delicada; não, isso era o de menos. Havia nesse olhar um
tanto mais de tristeza que de ironia; era na verdade, um olhar profundo e
desesperadamente triste, com o qual traduzia um desespero calado, de certo modo
irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só
transverberava com sua desesperada claridade a pessoa do vaidoso orador,
ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a
disposição do público e o título um tanto pretensioso da anunciada conferência
— não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação,
toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade
fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além
das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa
espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade;
expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um
conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar
dizia: “Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!” E toda a celebridade,
toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a
sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não
passava de frívolas momices! (...)
Convenci-me
de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido de várias
acepções de Nietzsche, havia forjado
dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também
me apercebi de que a base de seu pessimismo não era “o desprezo do mundo”, mas
antes o desprezo de si mesmo, pois podendo falar sem indulgência e
impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio;
era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e
desprezava.
Devo
acrescentar aqui uma observação psicológica: embora saiba muito pouco sobre a
vida do Lobo da Estepe, tenho bons motivos para acreditar que foi educado por
pais e professores bondosos, porém severos e muito devotos, desses que
fundamentam toda a educação no “quebrantamento da vontade”. Tal destruição da
personalidade e quebra do desejo não foram conseguidas com aquele aluno, de
cuja prova saiu mais insensível e duro, orgulhoso e espiritual. Em vez ter sua
personalidade destruída, ele conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo.
Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira
toda a genialidade de sua fantasia, toda a força de seu poderoso pensamento.
Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra
si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade,
cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor,
sempre estava fazendo os esforços mais heroicos e sérios para amá-los, para ser
justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o “Amarás teu próximo!” estava
tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo”; assim, toda a sua vida
era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o
desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o
mesmo desespero e horrível isolamento.”
“—
O senhor está vindo do trabalho? É verdade que disso nada entendo; vivo um
tanto à margem, o senhor compreende... Mas creio que também lhe interessem os
livros e coisas assim; sua tia me disse que o senhor completou seus estudos e
que era um bom estudante de grego. Esta manhã encontrei uma frase em Novalis...
Permita-me que lha mostre? O senhor também há de gostar de vê-la.
Fez-me
entrar no quarto, que recendia a forte cheiro de fumo, tirou um livro de uma
pilha deles, folheou-o, à procura.
—
Esta aqui também é boa, muito boa — disse. — Veja só esta frase: “O homem devia
orgulhar-se da dor; toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe.”
Magnífico! Oitenta anos antes de Nietzsche! Mas não é esta a passagem que eu
pensava mostrar-lhe... Espere, aqui está. Ouça: “A maioria dos homens não quer
nadar antes que o possa fazer.” Não é engraçado? Naturalmente, não querem
nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não
querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem
pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe
com isso, mas, sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia
morrerá afogado.”
“A enfermidade anímica de Haller é, hoje o percebo, não o capricho de um
solitário mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose daquela geração a que
pertencia Haller, neurose que não atacava em absoluto os débeis e
insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os mais
fortes.
Estas
anotações — e é indiferente saber se nelas existe uma grande ou pequena dose de
realidade — são uma procura, não de vencer a enfermidade da época com rodeios
ou paliativos, mas um intento de converter a própria doença em objeto de
interpretação. Significam literalmente uma jornada pelo inferno, uma caminhada
algumas vezes angustiosa, outras cheia de entusiasmo através do caos de um
mundo anímico tenebroso, caminho percorrido com a vontade de atravessar o
inferno, de oferecer a face ao caos, de padecer o mal até o fim.
Uma
palavra de Haller deu-me a chave dessa compreensão. Disse-me ele, certa vez,
quando falávamos a propósito das chamadas crueldades da Idade Média:
—
Tais horrores na verdade não existiram. Um homem da Idade Média condenaria
totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e
bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio
estilo, têm sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam
certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças. O
verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana reside ali onde se
chocam duas culturas ou duas religiões. Um homem da antiguidade, que tivesse de
viver na Idade Média, haveria de sentir-se tão afogado quanto um selvagem se
sentiria em nossa civilização. Há momentos em que toda uma geração cai entre
dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e
inocência ficam perdidos para ela. Naturalmente isso não atinge a todos da
mesma maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da
época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar
sozinho e incompreendido, é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres
humanos.”
“Não
fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas
tão somente um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de
minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis,
tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem
singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que
até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de
Adalbert Stifter e degolar-se com a navalha de barbear, era meditada
tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia.
Quem
havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque de gota, das dores
malignas por detrás dos globos oculares, transformando a alegria de ver e de
ouvir num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou
aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos
quais em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o
mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso
e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética, e
quando tudo está concentrado e levado ao clímax do insuportável dentro de nosso
próprio ser enfermo — quem já havia passado por aqueles dias infernais
mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se
sentava agradecido junto à estufa a ler os jornais, verificando satisfeito que
não estalara nenhuma nova guerra, que não surgira nenhuma nova ditadura, que
não se descobrira nenhum nauseante escândalo no mundo da política e das
finanças, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para
entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase
regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranquilo semideus, um tanto
anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa
ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semideus um tanto
encanecido que cantava o salmo incolor pareciam gêmeos.”
“Mas,
graças a Deus, havia também exceções, havia também, às vezes, pelo menos horas
que me traziam grandes comoções, grandes dádivas, que me transportavam a mim, o
extraviado, de volta ao vivo coração do mundo. Triste, embora excitado
intimamente, procurei lembrar-me do último acontecimento dessa natureza. Fora
um concerto; executavam música antiga e excelente, e então, entre dois
compassos do piano, abriu-se para mim a porta do além, atravessei o céu e vi
Deus em seu trabalho, sofri dores bem-aventuradas, deixei tombar minhas defesas
e passei a não temer mais nada no mundo, a assentir a tudo e a tudo entreguei
meu coração. Não durou muito, talvez um quarto de hora; mas, de novo, me voltou
aquela sensação em sonhos, e desde então, através dos dias tristes, consigo
captar um reflexo dela de quando em vez, ora claramente, por um instante, como
dourada mancha divina caminhando através de minha vida, quase sempre impregnada
de pó e de lodo, ora voltando a brilhar de súbito com raios de ouro, dando-me a
impressão de que jamais a perderia, para logo ocultar-se de repente.
Uma
noite aconteceu que, estando insone, comecei a declamar versos, versos muito
mais belos e estranhos do que jamais teria sonhado escrever, versos que de
manhã já havia esquecido, mas que permaneciam ocultos dentro de mim como um
duro cerne sob a casca quebradiça. Outra vez, ocorreu-me isto com a leitura de
um poeta, ou meditando um pensamento de Descartes, de Pascal; e numa outra, vi brilhar de
novo a trilha dourada, que conduzia ao céu, quando me encontrava na presença de
minha amada. Ah, é difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que
levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua
arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser
eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos
não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por
muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio
um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e
hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar,
aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não
entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas
quais milhares de outros tantos anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo
nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e
êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida
parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés,
essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão
pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da
Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra
abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”
“Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal
após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o
frio espaço silente em que giram as estrelas.
De
um salão de dança, diante do qual passei, me veio o ritmo de uma vívida música
de jazz, como o odor bravio e quente
da carne crua. Detive-me um momento; aquela espécie de música sempre tivera
para mim um secreto encanto, apesar do muito que a detestava. O jazz me repugnava, mas me era cem vezes
mais agradável do que toda a música acadêmica de hoje, me submergia
profundamente no mundo dos impulsos com seu alegre e rude barbarismo e respirava
uma ingênua e honrada honestidade.
Permaneci
um momento no faro, a sentir o cheiro da música sangrenta e aguda, a olfatar
malignamente cobiçoso a atmosfera daquela sala. Parte da música, a lírica, era
pegajosa melíflua e cheia de sentimentalismo; a outra, selvagem, extravagante,
cheia de força; no entanto, ambas as partes caminhavam juntas, ingênua e
amistosamente, e formavam um todo. Era música decadente. Devia haver música
assim na Roma dos últimos césares. Naturalmente era uma baboseira, comparada com
Bach e Mozart e a música dos grandes mestres; mas assim também era toda nossa
arte, todo nosso pensamento, toda nossa aparência de cultura, quando comparada
com a verdadeira cultura. E esta música tinha a vantagem de possuir uma grande
sinceridade, de ser sinceramente negroide, cheia de um humor alegre e infantil.
Tinha algo dos negros e algo dos americanos, que a nós, europeus, parecem tão
fortes e cheios de infantilidade. Chegaria a Europa a ser assim? Já estava a
caminho disto? Éramos nós, velhos conhecedores e reverenciadores da verdadeira
poesia de outros tempos, apenas uma minoria estúpida de complicados neuróticos,
que amanhã seriam esquecidos e ridicularizados? O que chamamos cultura, o que
chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria
simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só
por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente, nem era verdadeiro,
nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que
nós, os loucos, tanto defendíamos?”
“Cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve.”
“Ocorria a ele o que se dá com todos o que buscava e desejava com um
impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau
demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha
parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu
amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo
dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxuoso pela luxúria. O Lobo da
Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria
sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser
agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo
homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena
buscar. Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa
liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma
inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e
que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de
relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a
independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e
sua sentença.”
“Nada
sabia sobre a autenticidade de meus próprios sentimentos. É preciso que se viva
no normal e no possível para que saiba algo de tais coisas.”
“Assim
como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas
frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isto contra a minha vontade, assim
procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as
horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm
conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas,
tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a
mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente
continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua
própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua
desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que
assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus
assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o
vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até me
burlo dos homens nestas páginas, não será por isto que os culpe de minha
indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de
onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo
enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela
mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do
eterno jogo!”
“E como tampouco pudesse aguentar, ao que parece, a solidão, como minha
própria sociedade me odiasse tão indizivelmente e me tivesse horror, afogado
que estava no espaço sem ar de meu inferno, que saída me restava? Nenhuma.
Pensei em meu pai e minha mãe, na sagrada chama de minha juventude há tanto
tempo extinta, nos milhares de alegrias e afãs de minha vida. Nada me restava
de tudo aquilo, nem sequer o arrependimento, somente o tédio e a dor. Nunca me
havia causado tamanha pena o simples fato de viver como naquela hora.
Numa
afastada taberna de subúrbio descansei por uns momentos, bebendo água e
conhaque, e depois continuei a correr, acicatado pelo diabo, indo pelas
abruptas e tortuosas ruelas da cidade velha, pelas avenidas, até a praça da
estação. “Viajar!” — pensei. Entrei na estação, consultei a lista dos trens
pregada à parede, bebi um copo de vinho e tentei recobrar o ânimo. Comecei a
ver cada vez mais se aproximando, cada vez mais claramente, o fantasma que
tanto temia. A volta a casa, o voltar a encerrar-me no quarto, o ter de
permanecer quieto diante do desespero! Não podia escapar a isso ainda que
continuasse caminhando horas e horas: o regresso à minha porta, à minha mesa
cheia de livros, ao divã com o retrato de minha amada pendurado em cima; não
podia escapar ao instante em que tomaria a navalha e teria de cortar o pescoço.
Esta imagem fazia-se cada vez mais clara diante de mim e cada vez mais precisa;
sentindo o coração bater-me fortemente, provava a angústia maior de todas as
angústias; o medo à morte! Sim, tinha um pavoroso horror à morte. Embora não
vislumbrasse outra saída, embora o tédio, a dor e o desespero me tivessem
sitiado, embora já nada me atraísse nem pudesse causar-me alegria ou dar-me
esperanças, horrorizava-me indizivelmente a execução, o último instante, a fria
ferida aberta na própria carne! Não enxergava nenhum caminho por onde pudesse
escapar daquilo que tanto temia. Se na luta contra o desespero e a covardia
esta última vencesse também hoje por acaso, amanhã e todos os dias seguintes
estaria diante de mim o desespero, aumentado pelo desprezo de mim mesmo. Tantas
vezes apanharia a lâmina para tornar a afastá-la, que uma vez decerto chegaria
ao fim. Então era melhor fazê-lo logo, hoje! Falava comigo mesmo como se
falasse com uma criança assustada, mas a criança não me ouvia, fugia dali,
queria viver. Continuei minha caminhada inconstante pela cidade, fiz amplos
círculos em torno de minha casa, com a ideia do regresso em mente, mas sempre
procrastinando. Parava aqui e ali nas tabernas, enquanto esvaziava um copo ou
dois; logo voltava a caminhar, em amplos círculos em torno da meta, em torno da
navalha, em torno da morte. Às vezes, sentava-me, morto de cansaço, num banco,
na borda de uma fonte, à beira da calçada; ouvia bater meu coração, limpava o suor
da face, continuava meu trajeto, cheio de angústias mortais, cheio de
vacilantes ânsias de viver.”
“— Engraçada a ideia que você tem da vida! Sempre metido em coisas
difíceis e complicadas, e não aprendeu as fáceis? Não teve tempo para isso?
Tinha outras coisas para fazer. Bem, graças a Deus, não sou sua mãe. Mas agir
assim, como se você já tivesse experimentado toda a vida e nela não encontrasse
nada de interessante, isso não; isso não pode ser.
—
Não ralhe comigo! — supliquei. —Já sei que estou louco.
—
Espere aí, não me venha com esta história. O senhor não está louco, professor;
até me parece que de louco não tem nada. É apenas racional de uma maneira
estúpida, eis o que acho; exatamente como um professor.”
“Havia
convidado a admirável jovem do Águia Negra para a noite de terça-feira, e não
me foi fácil esperar que chegasse aquele dia; quando por fim chegou a
terça-feira, tive perfeita noção da importância que tinham para mim as relações
com aquela moça, uma simples desconhecida, e isso me encheu de espanto. Só
pensava nela, e esperava tudo dela, estava disposto a sacrificar-lhe tudo e pôr
tudo a seus pés, embora não estivesse em absoluto enamorado dela. Bastava
imaginar que não compareceria ao encontro ou que dele se houvesse esquecido, para
ver claramente o que ela representava para mim; o mundo me parecia então
novamente vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltava a
envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída daquele inferno
silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada
agradável para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror.
Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia
em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem,
como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um verdadeiro
paraíso. Conhecia meu estado com plena e brutal clareza e reconhecia que a
tensão insuportável entre o não poder viver e o não poder morrer era o quem e
fazia dar tanta importância à desconhecida, à linda bailarina do Águia Negra.
Era a única janela, a luminosa e diminuta abertura em minha sombria e
angustiosa caverna. Era a salvação, o caminho para a liberdade. Haveria de
ensinar-me a viver ou ensinar-me a morrer, haveria de tocar com sua mão firme e
formosa meu coração transido, para que ele, em contato com a vida, de novo
florescesse ou se tornasse em cinzas. De onde tirava ela essa força, de onde
lhe vinha a magia, de que profundos abismos se elevava até ela essa profunda
significação que tinha para mim? Não sabia e não me importava sabê-lo.
Bastava-me saber de sua existência. Nenhuma ciência, nenhum conhecimento me
importara tanto; estava saciado deles, precisamente nisto consistia a ignomínia
e o tormento mais agudos de que eu padecia: ver tão claramente meu próprio
estado, ter perfeita consciência dele. Via a este infeliz, a este Lobo da
Estepe diante de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu
destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a
aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão. Poderia
dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a concatenação e os motivos
do meu padecimento, da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de
minha neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia
falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e
compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso.”
“— Venho
manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo,
em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a
fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias
humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este
seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não
me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais,
os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem
absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia
até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de
mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos
ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da
gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas
escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados;
semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é
outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida
alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples,
qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam
chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a
próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares,
nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um
momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta
desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim
tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que
passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas
sempre me desesperaram: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum.
Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima
carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada
vale ter boas ideias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim; em
compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões
públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por
alcançá-lo.”
“— Estou tão só e amo tão pouco a vida, as pessoas e a mim
mesma quanto você; e, como você, não posso levar nada disto a sério. Sempre
houve pessoas assim, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e não podem
conformar-se com sua estupidez e crueldade.”
“—
Quero dizer-lhe hoje uma coisa que já sei há muito e que você também sabe, mas
que talvez nunca a confessou a si mesmo. Quero dizer-lhe agora o que sei de
mim, de você, de nosso destino. Você, Harry, sempre foi um artista e um
pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre ao encalço do grande e do
eterno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais foi
despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou
sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no
desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e
venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado
destino, nada pôde ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não
encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura.
Não é verdade, Harry? Não é este o seu destino?
Eu
assentia, assentia e assentia.
—
Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava
disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o
mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a
vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um
salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o
café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra
coisa e traz em si o heroico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a
veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote. Pois bem, meu
amigo, comigo também foi assim! Eu era uma jovem bem dotada, com vocação para
viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesma e para
realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a esposa de um rei, a
amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de um mártir. E a vida
só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que já se vai tornando
bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu. Fiquei algum tempo
desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma. A vida, pensava eu,
sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos sonhos, pensava,
era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais. Mas isso não me
valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além disso, fosse
curiosa, examinei a vida com certa atenção, observei meus vizinhos e
conhecidos, mais de cinquenta pessoas e destinos, e percebi então, Harry, que
meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim como os seus. Mas a
vida, a realidade, não tinha razão. O fato de uma mulher da minha classe não
ter alternativa senão envelhecer de uma maneira insensata e pobremente junto a
uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou casar-se com ele por
seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era tão injusto quanto o
de um homem como você, solitário, tímido e desesperado, ter de recorrer à
navalha de barbear. Talvez a miséria em mim fosse mais material e moral, e em
você mais espiritual; mas o caminho era o mesmo. Pensa que eu não pude
reconhecer sua angústia diante do foxtrote, sua repugnância pelos bares e pelos
dancings, sua hostilidade para com a música de jazz e tudo o mais? Compreendia e muito bem, como compreendia seu
horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a conduta
irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da guerra, as
passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se
compõe música, se celebram as festas e se educa! Você tem razão, Lobo da
Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente faminto
e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com
tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma
dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode
ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia,
alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez
de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste
belo mundo...”
“Todo verdadeiro humor começa quando a pessoa
deixa de se levar a sério.”
“— Você seria capaz de atirar contra aquele homem e fazer-lhe um buraco
na nuca? Por Deus que eu não conseguiria.
—
Isso porque não te ordenaram — grunhiu meu amigo.”
“— Em minha juventude — observei com tristeza — esses dois músicos eram
tidos como os mais extremos contrastes que se podia conceber. Mozart sorriu.
—
Sim, é sempre assim. Tais contrastes, vistos a pequena distância, sempre tendem
a apresentar sua crescente similitude. A instrumentação excessiva não foi, na
verdade, uma falha pessoal de Wagner ou de Brahms; era um defeito de sua época.
—
Como? E tiveram de pagar tão duramente por isso? — exclamei em tom de protesto.
—
Naturalmente. A lei segue seu curso. Depois de pagar a culpa de seu tempo,
ver-se á se a culpa pessoal merece alguma redenção.
—
Mas nenhum dos dois teve culpa?
—
Certamente que não. Não tiveram culpa, como tampouco Adão teve culpa de haver
comido a maçã e nem por isso deixou de pagar pelo pecado.
—
Mas isso é terrível.
—
Sem dúvida, a vida é sempre terrível. Nada podemos fazer em contrário e, não
obstante, somos responsáveis. Mal se nasce já se é culpado. O senhor deve ter
recebido instrução religiosa muito particular para desconhecer tais dogmas.”
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